A REVOLUgAO BURGUESA NO BRASIL Florestan Fernandes (2* Para chegar a conceituacao c a nossa "revolucao burguesa", Flores...
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A REVOLUgAO BURGUESA NO BRASIL Florestan Fernandes (2* Para chegar a conceituacao c a nossa "revolucao burguesa", Florest; )rocesso de formacao da economia e da s tempos em que se iniciou a coloniza snao para exercer melhor a critica da lemas da crise do poder burgues no Brasil, crise deflagrada pela passagem do capitalismo competitive ao capitalismo mcnopoHsta. Desdobra-se essa analise na abordagem do modelo autarquico-burgues de transformacao capitalista vigente no Brasil, e das contradicoes sociais e politicas geradas no interior da nova ordem.
A SOCIOLOGIA NUMA ERA DE REVOLUQAO SOCIAL Florestan Fernandes (2.a ed., reorg. e ampl.) Este livro, que anarece sob organizacao relativamente diversa, em sua segunda edicao, reiine ensaios voltados para o tipo de conhecimento que o sociologo deve criar quando se procura atingir o desenvolvimento de acordo com os requisites da democratic. Escritos numa epoca em que narecia pacifico que os principals pafses da America Latina, o Brasil inclusive, possuiam condicoes para desencadear uma revolucao democratica "dentro da ordem", eles fccalizam as tarefas r,r£ticas da Sociologia e a interacao^dos panels que o scciologo deve desempenhar em sua dupla condicao de cientista e cidadaa. Apesar das aparencias, o livro nao perdeu sua atualidade. Suas principais ideias ainda estao de pe. Que estrategia devemos seguir, nas condicoes brasileiras, nara o desenvolvimento da ciencia? O que precisa fazer o sociologo, enquanto cientista, para converter o ccnhecimento sociologico em um conhecimento critico, litil ao "planejamento dentro da Uberdade"? A realidade que exigia o debate dessas ideias nao desapareceu. Ao contrario, ela se agravou, impondo que retomemos, de modo ainda mats intenso, o debate interrompido.
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idson de Oliveira Nunes (organizador)
A Ayentura Sociologica Objetividade, Paixao, Improvise e Metodo na Pesquisa Social
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Z A HA A culture o service do progresso social
EDITORES
de ciencias sociais EDITORES
A AVENTURA SOCIOLOGICA Trata-se este de urn volume singular, Nele, conhecidos cientistas sociais brasileiros narram sua pratica de pesquisa, suas indecisoes, descobertas e incertezas. Narram seu. processo .de trabalho e procuram descrever e rejfletir sobre o seu cotidiano de produc.ao de conhecimento, preocupando-se basicamente com as questoes metodologicas. Talvez seja mesmo este o topico que resume e :faz convergir essas cronicas: o processo de desvendar cientificamente a realidade segundo os individuos que fazem das Ciencias Sociais a sua profissao, Mas a maior particularidade do livro reside na maneira pela qual foram escritas as cronicas. Elas foram contadas na primeira pessoa do singular, retratando a interagSo do investigador com. os problemas metodologicos e com a complexidade 'do objeto, Nao se trata, pbrtanto, de discursos normativos, tao proprios aos manuals de metodologia da • pesquisa, m'as sim de relates que recuperam o fascinante processo de encontro com a realidade e com sua captagao em bases analfticas. A rigor, estas sao historias que os .manuais nao contam; sao historias da pratica cotidiana de trabalho clentifico. Ouatro formas diferentes de intera^ao com a pesquisa social sao destacadas. 'Em primeiro lugar, examina-se a busca da realidade catrav^s da entrevista e da observa^ao, \ : ressaltando as diferentes estratlgias de 1 abordageiri, a versao qualitativa, a I'quantitativa e a associagao das tecnicas. Sao I artigos distintps que exemplificam p^ara o lestiidioso as peculiarsdades destas. tecnicas, § jiem sempre alternativas, de pesquisa j social. Tarabe*m se vera, num segundo passo, ;,^a apresenta^ao de tentativas de reconstrucaO !/, de fatos recentes representados por '! processes decisorios ja encerrados, e sobre ;' o^quais se deseja produzir interpreta cipio do que ir •, de Londres a Oxford ou de Cartum ao Cairo. £ possivel que um ou outro individuo na tribo fale ingles^ mas a grande maioria comunica-se exclusivamente atraves dbs dialetos locals, o que evidentemente representa, em principio, uma descontinuidade maior em Jermos de comunicacao do que entre um scholar, ingles , e urn operand seu conterraneo, apesar de Bernard Shaw. Trata-se, no entanto, de um tipo de comunicagao, a verbal, q^^nao esgota todo o potencial simboUco Humano. Pode-se imaginar q^ie o ingles desenvolva um interesse e cultive uma empatia por chefes tribais, atribuindo a estes, real ou fantasiosamente, problemas semelhantes aos seus na area da manipulacao do conhecimento e no exercicio de certas prerrogativas, podendo estabelecer pontos de contato e de aproxima9ao, em determinados niveis, maiores do que os existentes entre o mesmo scholar e seus fellow-country men de origem proletaria. _-v ^ Simmel-' ao analisar a nobreza europeia mostra o seu carater cosmopolita e internacional, passando sobre as fronteiras dos EstadosT^enfatizando seus lagos comuns de grupo de status marcando vigorosamente a distancia em rela^ao aos conterraneos camponeses, proletarios ou mesmo burgueses4. Sercf diivida o patrimonio ou a cultura comum de uma nobreza europeia sao muito mais obvios do que experiencias particulares de chefes tribais africanos e de um scholar ingles que possam apresentar algumas semelhancas. Nura a
Em "O Of/cio do Etn61ogo ou como Ter 'Anthropological Blues'" — Publicacoes do Programa de Pos-Graduacao em Antropologia Social do Museu Nacional, 1974, e inclm'do nesta coletanea. 4 Em "The Nobility" em On Individuality and Social Forms, The University of Chicago Press, 1971.
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A VERSAO QuALrrATtvA
A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA
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I
caso esta-se falando em uma categoria social e no outro em~~interacao entre individuos que nao chegamos a perceber ou definir como uma categoria. Mas ja surge com nitidez a questao da relacao entre distancia social e psicologica. 0 fato de dois individuos pertencerem a mesma sociedade nao signified' que estejam mais proximos do que se fossem de sociedades diferentes, porem aproximados por prefereneia, gostos, idiossincrasias. Ate que ppnto pode-se. nesses casos, distingmr o^jocio-cultural do psicologico? No mundo academico on intelectual em geral esta experiencia e bem conhecida. Quantas vezes em encontros, seminaries, conferencias, etc. de carater internacional nao nos encontramos interagindo a vontade, de maneira facil e descontraida, com colegas vindos de sociedades e culturas as mais dispares? Lembro-me bem de uma vez, chegando a uma universidade americana na hora do almoco, ter oportunidade de sentar a mesma mesa com colegas americanos, um trances, um argentine e nm holandes. Quase todos estavamos nos conhecendo. No entanto a conversacao correu facil, nao so quanto ao torn, com pequenas ironias e piadas implicitas, meias palavras, refereneias, etc. Tinhamos lido Alexandre Dumas e Walter Scott na adolescencia e gostavamos de Beetboven e Rosselini. Comentou-se o filme do autor italiano, que seria exibido na universidade durante a semana e discutiu-se a 7.a Sinfonia, programada para aquela noite. Esnobismo intelectual? Cultura ornamental cultivada pela intelectualidade academica? 13 possivel, mas constituem-se em temas de conyersa assim como discutir um jogo de futebol ou a ultima'atuagao de Rivelino ou Paulo Cesar com o chofer de taxi ou com o porteiro do edificio. Que tipo de conversa e mais real, verdadeira? 0 fato , e que se esta discutindo o problema de experiencias mais _ou^meno3 ' comuns, partilhaveis que permitem um nivel de interagao especffico. Falar-se a mesma lingua nao> so^ nao^exclui, que exista_m grandes : diferengas no vocabulario mas que significados e _ interpretagoes diferentes podem ser dados a palavras, categorias ou expressoes aparentemente identicas. Voltamos a Bernard Shaw e a Pigmaliao. Por outro lado, toda a tradigao marxista valorize a experiencia comum de classe e acentua, em certas interpretagoes, o carater extra e ^upranacional da luta politica, desenfatiza os lacos comuns, patrimonio culttiral de que poderiam participar classes socials distintas, para enfatizar, por exemplo, a experiencia basica comum de exploragao a que estaria submetido o proletariado. Expressoes ou termos como burguesia internacional, unidacte internacional proletdria tendem» a sublinhar a importancia de experiencias e Jnteresses sociologiCQg^...hlsMricgs. comuns ^m detrimento ^as nog5es de identidade e cultura_nacional. A ynidade,jQO caso, nao seria dada pela lingua,
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por tradigoes^nacionais de carater mais geral mas por experieucias 'e"vivencias de classe, definidas em lermos sociol6gicos,^econ6micos e historicos, que originam inclusive a nogao de cgfoigw.^xfejiZgww V que pode ultrapassar as fronteiras dos Estados Nationals. Sem du"- t vida a nocao de Estado National e a valorizagao de um patrimonio comum dentro de suas fronteiras em oposicao a patrimonies de outros Estados esta ligada a uma conjuntura socio-hislorica precisa. Normalmenle o aparecimentodo Est^dp_jtjoderiao_£_associado ao desenvolvimento da burguesia, ao fortalecimento do nacionafismo^. Enquanto movimento intelectual surge o Romantismo, preocupado em pesquisar (ou ate criar)^aiZ|es, fundamentos, essentials de um povo, nacionalidade. £ conheciHa a manipulacao de ideologias nacionalistas, de oposigao simbolica e material ao que vem de fora, como estranho, intruso, fora de contexto, aUenado. Pode parecer, estranho que um antropologo esteja chamando atengao ^ara o "artificialismo" de certas separagpe^^^lhnitej_ejQtee-sociedades-.e_culrurag/,Mas creio que, contejnporaneamente, cabe justamente aos antropologos relativizar "essas_nogoes, nao negarido^as ou invaliHando-as iUeologcamente mas apontando a^ sua_djmgnsaa _de algo ' ' * -jOTOJuatfa_cultural e historicamenle. NacTse lrata_de ser_ fa'dii inferhacionalisla,~mas sim ^"chamar atengao para a complex! categoria distancia e disso "extrair consequencias para" o '~~~ ~~~--—~ --"Assim, volto ao problema de Da Malta, para sugerir certas complicagoes. 0 que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas nao e necessariamente conhecido e p que nap_j;em.og e encotttramos pode ser exotico mas, ate certo pomo^confeecifjo. No entanto estamos sempre pressupondo familiaridad.es j exotismos como^fontes de conhecimento ou desconhecimentg,_respectivameiite. Da'^janela 3e mea"apartamento vejo na rua um grupo de nordestinos, trabalhadores de construgao civil enquanto a alguns metros adiante conversam alguns ^surfistas. Na padaria _ha ..uma~f ila_jde_ empregadas Hbmesficas, tres senhoras de classe media conversam na porta do predio. em_ f rente ; dois militares^atravessam a rua. Nao ha diivida de que todos estes individuos e grupos fazem parte da paisagem, do cenario da rua, de modo geral estou habituado-com a sua presenca, 'ha uma familiaridade. ijlas, por outro lado. o_meu conhecimento a respeito de suas vidas, habitos, crencas, valores e altamente^HifeTenciado. Nao so o meu grau de familiaritlade5, nos termos de Da Malta, esta louge de ser homogeneo. como o de conhecimento e muito desigual. No enlanto, todos nao so fazem parte de minha sociedade. mas sao meus contemporaneos e vizinhos. Encontramo-nos na rua, falo com alguns, cumprimento outros, ha ca que
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A BUSCA DA REALIDADE OBJETIVA
so reconhego e, evidentemente, ha desconhecidos tambem. Trata-se de situagaQ^diferente de uma sociedade de pequena escala, com divisao social do trabalho menos complexa, com maior concentragao ou menor mimero de papeis, etc. Ja discuti, em outra ocasiao, o problema do anonimato relativo na grande metropole, chamando atencao para a existencia de areas e dominios ate certo ponto autonoraos que permitem um jogo de papeis e de construcao de identi^ ,-dade bastante rico e complexo5. O fato e que dentro da grande me-1 , tropole, seja Nova York, Paris ou Rio de Janeiro, ha descontinuidades vigorosas entre o "mundo" do pesquisador e outros mundos, fazendo com que ele, mesmo sendo nova-iorquiuo, parisiense ou carioca, possateryexperiencia de_e§tranheza, nao reconhecimento ou .ate choquejcultural comparaveis a de viagens a sociedades e regioes^ t> "exoticas". Na opiniao de Da Mattac isso-Baa-aCQntec^jcamji jHaioria das p^essMs^dentro-da^ociedade_^ompIexajia medida em que a realidade e asjiategorias sociais a sujL_vplta estaoniera^gi^^aisTCTr' hierarquia-organizaTTnapeia e, portanto, cada categoria social tern o" seu lugar atra'ves de estereotipos como, por exemplo: o trabalhador nordestino, "paraiba^, e ignorante, infantil, subnutrido; o surfista e maconheiro, aUenado, etc. Eu acrescentaria que a dimensao do poder e da dominacao e fundamental para a construgao dessa hierarquia e desse mapa. A etiqueta, a maneira, de dirigir-se as pessoas, as expectativas de respostas, a nocao de adequagao etc,, relacionamse a distribuicao social de poder que e essenciahnente desigual em uma sociedade de classes. Assim, em principio, dispomos de um mapa que nos familiariza com os jienarios e situagoes_sficiais-de-jiosso cotidiano, dando nome, lugar e posigao aos individuos. Isto, no entanto, nao significa que conhecemos o ponto de vista e a visao de t-mundo dos diferentes atores em uma situagao social nem as regras que estao por detras dessas interagoes, dando continuidade ao sistema. Logo, sendo o pesquisador membro da sociedade, coloca-se, inevitavelmente, a questao de seu lugar e de suas possibilidades de relativiza-Io ou transcende-lo e poder "por-se no lugar do outro". E preciso chamar atengao para o fato de. que mesmo~^'as~1i5cie"dades mais hierarquizadas ha mementos, situagoes ou papeis sociais que permitem a critica, a relativizacao ou ate o rompimento com a hierarquia. Na sociedade complexa contemporanea existem tenden5
Com L.A. Machado da Silva "A Organizagao Social do Meio Urbano" — inedito.
67 Comunicaeao Pessoal. Ver o trabalho classico de Louis Dumont Homo Hierarchicus, Gallimard, 1966, onde o autor mostra que mesmo na India, modelo de sociedade hierarquica, ha margem para a saida ou estranhamento da hierarquia.
QUALITATIVA
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cias, areas e dominios onde se evidencia a procura de contestar e redefinir hierarquias^e a distribuicao de poder. Ao contrario de socie"dSdeslradicionais mais estaveis^ojujntegradas^^sta longe de haver~um~cbnsenso em tomo dos lugares e pbsigoes'ocupados e de seu valor relativo. Existe o dissenso em varios niveis, a possibilidade do conflito e permanente e a realidade esta sempre sendo negociada entre atores que apresentam interesses divergentes. Embora existam os mecanismos de acomodacao ou de apaziguamento, sua eficacia e muito variavel e, ate certo ponto, imprevisivel. Ha diferentes tipos de desvio e contestacao que poem em cheque a escala de valores. dominante. A ciencia social surge e se desenvolve nesta conjuntura. tendo todauma_diniensao incoiJoclasta^voltada^para o exame crftico^e-dessjacralizador da^goeiedade,/ Os cientistas sociais, antropologos, sociologos, cienfistas politicos, etc. estao constantemente entrando em areas antes inviolaveis, levantando duvidas, revendo premissas, questionando. £ claro que isto varia em fungao de n possibilidades — origem social, tipo de formagao, orientagao teorica, posicao ideologica entre outras. Mas mesmo em se tratando de individuos e correntes mais ligados ou identificados com tendencias conservadoras, ou ate reacionarias, o proprio trabalho de investigagao e reflexao sobre a sociedade e a cultura possibilitam uma dimen-/ sao nova da investigaqao cieptifica, de_consequencias radicals — o/ qiieMionamento e_-exanie sistematico de seu proprio ambiente. Trata-se, afinal de contas, de uma tentativa de identificar mecanismos^ebli^cieutes e~"incbnscientes "que sustentam e dao contiHuidade a determinadas relagoes e situacoes. Assim volta-se a um ponto critico. Nao so o grau de faniiliaridade_^aria, nao e igual a conhecimeuto, mas pode constituir-se em impedimenta se nao for__r3ativizado e objeto de reflexao sistematica. Posso estar acostumado, como ja disse, com uma certa paisagem social onde a disposigao dos atores me e familiar, a hierarquia e a distribuicao de poder permitemme fixar, grosso modo, os individuos em categorias mais amplas. No^ entanto, isto nao^significa que eu compreenda^a. Joglca de suas relagoes. CTmeu conhecimento pode estar seriamente comprometido pelasrotina, habitos, estereotipos. Logo, posso ter um mapa mas nao compreendo necessariamente os principios e mecanismos que oorganizam. 0 processo de descoberta e analise ^do_que e familiar pode, sem duvida, envolver dificuldades diferentes do queem rela530 ao_jjue^e^ex6tico.yEm principio dispomos de mapas mais complexes e cristalizados' para a nossa vida cotidiana do que em relacaoa grupos ou sociedades distantes ou afastadosylsso nao significa quer mesmo ao nos defrontarmos, como individuos e pesquisadores, com
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A BUSCA
£)REALlDADE OBJETIVA
grupos e situacoes aparentemente_mais-ex6ticos ou distantesfnao estejamos sempre^.classiiic^ndo,,e^rotuJan^_.^e_^ordoLCOin principles basicos atraves dos quais fomos e somos sociaIizados._E provavel que exista maior numero de duvidas'e'Hesitagoes como as de um turista em um pais desconhecido mas os mecanismos classificadores estao sempre operando. Dentro ou fora de nossa isociedade pesoui" i it nos —i—-**•—, aadores ocidentais estamos sempre, por exemplo, trabaihandoe_jios I referindo a categoria individuo como unidade 15aiica_de mapeamento. No entanto, atraves da obra de Louis Dumont, sabemos que existem sociedades em que essa categoria nao e dominante8. Mesmo dentro da sociedade brasileira ha grupos e areas que apresentam fortes diferengas e descontinuidades em relacao a nogao dominante de individuo.9 Levando mais longe o exame das categorias familiar e exotica, isem querer erilrar em discussoes de natureza filosofica, nao ha como deixar de mencionar os impasses sugeridos pelo^^existenciaU^ -010L em relacaojag_ conhecimento-.do^outro. Nao vejo isto como um impedimento ao trabalho cientifico mas como uma lembranca de Immildade e controle de onipotencia tao comum em nosso meio._0 conhecimento de situ"Sfoes~T»u:-~indiviSuos~e constniido a partir de um sistema de intera§5es cultural e historicamente definido. Embora aceite a ideia de que os repertories humanos sao limitados, siias -combinacoes sao suficieutemente variadas para criar surpresas e abrir abismos, por mais familiares que individuos e situacoes possam parecer. Neste sentido um certo eeticismo pode ser sauday^l. Earece-me que Clifford Goertz ao enf atizar a natureza de (interpret fyagao'\ do trabalho antropologico chama atengao de_que_£_^rocesso te—conhecimento tta vida soc^lLsejnprejJmpHca.^emmuni .grau de | subjetividade e que, portanto, tern um carater aproximativo e nao definitivo10. 0 que significa a veTha estorinha ^eT que^antropologos sofisticados escolhem sociedades sofisticadas para estudar, os mais ansiados trabalham com culturas onde a ansiedade e dominante? Isto mostra nao a feliz coincidencia ou a magica do encoutro entre pesquisador e objeto com que tenha^afmidade, mas sim o eaTater de interpretacao e a dimensao de subjetividade euvolvidos neste tipo de trabalho. A^-'reajj^jj^^familiar ou exotica) sempre e filtrada_^por—um_dgterminado^pgnTo de vista do observador, ela e 8
Op- c't-
9 Refiro-me a esta questa'o era "Relacoes entre a Antropotogia e a Psiquiatria" em Revisto. da Associa^ao de Psiquiatria e Psicologia da Infancia e da Adolescencia — Rio, V. 2, 1976 — N.° 1. 10 Geertz, Clifford — The Interpretation of Cultures, Nova York, Basic Books, 1973.
A VERSAO QUALITATIVA
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percehida_de-.maneira diferenciada. Mais uma vez nao estou procla-'" mando a falencia do rigor cientiHco no estudo da sociedade, mas a necessidade de percebe-lo enguanto obietividade relativa, mais ou Ester'moviinen^He^elativizar as nogoes de distancia e objetividade se de um lado nos torna mais modestos quanto a construgao do nosso conhecimento em geral, por outro lado permite-uos observar o familiar e estuda-lo sem paranoias sobre a impossibilidade de resultados imparciais, neutros. Ill — Tive oportunidade de pesquisar um universe de pequena classe media s whitte-colar que me era familiar atraves do mapa hierarquico e politico de minha sociedade e de meu bairro.11 Atravss de estereotipos localizava os moradores de grandes predios de conjugados. Ao passar por um desses edificios, "sabia" que era mn ^balanca"* que havia desconforto, falta de higiene e que seus moradores eram de condigad social inferior, sujeitavam-se a condijoes de vida mais ou menos degradantes por estarem ah'enados, sugestlonaveis. Certamente tinha duvidas, questionava alguns-desses estereotipos. la conhecera pessoas que moravam em sjbalajigas^ e . que nao se ajustavam a essas pre-nocoes. De qualquer forma, se um desses predios, particularmente, tornou-se mais familiar ainda, - quando para la me mudei, o meu conhecimento de sua populacao era precario. 0 esforco de entender e registrar o discurso^do UJDIyerso, (jeu^sistemade^clajsificacao e de captar sua visao de mundo nem sempre foi bem sucedido. Percebia como a minha insergao no sistema hierarquico da sociedade brasileira levava-me constantemente a julgamentos apressados e preconceituosos, as vezes ate por querer drasticamente repelir as nocoes anteriores, caindo em arrnadilhas inversas. 0epois de ano e meio de residencia no predio, creio , que consegui perceber alguns mecanismos que sustentavam a logica das relagoes socials internas e externas e tambem captar algo do eatilo de vida e visao do mundp locals. Estou consciente de que se trata, no entanto, de um^Trate^C"^"^e que Por mais que tenha pro*curado reunir dados "verdadejros^ e "objetivos"_jsgbr£^m^dda da. ^^^JlSJSSrsc:, a ^inh^^TiKjetivi3ade-esta":!presente'"em--todo--o- tra- \ , 'balho. Isso esta claro para mim na medida em que volto constantemente a reexaminar a pesquisa e mesmo a revisar o local da invcstigagao. Por outro lado, sendo um grupo que vive na minha cidade, conhego outras pessoas, inclusive cientistas sociais que o encontram. li Ver A Utopia Vrbana — Um Estudo de Antropologia Social, Zahar Editores, 1973, 2.» ed., 1975.
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A VERSAO QUALITATIVA
A BTJSCA DA REALIDADE OBJETEVA, A
que tambem tem alguma familiaridade ou ate fizeram pesquisas em contextos semelhantes. Desta .forma a mmha interpretacao esta sendo constantemente testada, revista e confrontada. 0 mesmo nao se da com muitos estudos de sociedades exoticas e distarites. pesquisadas por apenas um investigador, em que nao houve oportunidade de~maiores discussoes ou polemieas. Assim, a interpretacao de um investigador fica sendo a versao existente sobre determiriada cultura/nao sendo exposta a certos questionamentos. Ao contrario, na sociedade brasileira ha muitas opinioes e interpretaQoes sobre Copacabana, carnaval, futebol, etc., colocando os pesquisadores no centro de acirradas polemicas. Embpra familiaridade nao seja igual a conhgciniento. cientifico> e fora de diivida que representa tambem um certp_tipo_p!e agre•~ ensao da realidade, fazendo com que as opinioes, vivencias, percepf 5oeT~de~peSs6as'~sem formagao academica ou sem pretensoes cientificas possam dar valiosas contribuicpes para o conhecimento da vida social, de uma epoca, de um grupo. Alem disso, ha individuos ou grupos que talvez por um movimento de estranhamento, como certos artistas, captam e descrevem significativamente aspectos de uma sociedade de maneira mais rica e reveladora do que trabalhos mais orientados (real ou pretensamente) de acordo com os padroes eientificos. Os exemplos na literatura sao obvios como Balzac, Proust, Thomas Mann e, no Brasil, Machado de Assis, Graciliano Ramos,,1 Oswald de Andrade, etc, Tambem no teatro, cinema, musica, artes ', plasticas poderiam ser citados exemplos. Isto sem falar em generos ' meuos "nobres" como o jornalismo em suas varias manifestagoes, a historia em quadrinhos e a literatura de cordel entre outros. Ou seja, numa sociedade_j;orn^lexa^-conteniporanea como a brasileira, o antropologo apresenta sua interpretagao, que, por mais que possa ter uma certa respeitabilidade academica, e mais uma versaocriie^j^oncorrera con^ outras —— ar tisticas ^ -,poiit-ic as ^ -^ enL,te J.ZDOS de acei^5ao_perante-um_puBlico^relatiya^ejote^^tewgeneo., Ha outras pessoas, profissionais de_Ciencias^jjejiflisE.o.u_nao, observaiido e^ o_Jamiliar — a nossa sociedade__em seus multiplos aspectos, com esquemas e^ preocupagoes diferentes. Se o interesse por_grupos tribais, por exemplp,_e relativamente restrito,to-mesmo nao~se pode dizer sobre umbanda, escola de-samba._uso de toxicos, homossexualismo e outros temas -que tem sido pesquisados por an—...___ j^j,..,, .,,„ _^w_«._ esta proximp.i ^^suajpropria socisujiQe, j o antropologo ^exppe:se, com maipr ou menpr^intensidadej a um con- I fronl^wcjom_outro_si:!especialistas, com leigos e ate, em_certos^casos, I com representantes dos universe que foram investigadores, que^po- i
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dem discordar das interpretagoes do investigador. Vivi essa experi•encia em minha pesquisa sobre uso de toxicos em camadas medias -altas,12 quando pelo menos duas pessoas que eu tinha entrevistado nao concordaram com algumas das minhas conclusoes, apresentando criticas que me levaram a rever pontos importantes. Embora isso possa acontecer no estudo de outras sociedades, e menos provavel por, opiniSes daquejes a quern estudou. Par_ace-meque,jiesse nivel, o estudo do ifamiliar^t f erece vantagens em termos_de DosjsjSil^^te5-4e rever e enriquecer os_resuItadqs_das^p^squisas:\Acredito que seja as HmitagSes •de oTigem"3o antropologo e^chegar a ver o familiar nao necessari.amente~cbmo exotica! mas~como-uma-5liotade— bem-rmafe~co'mplexa""do que aquela~representada _pelos Taaci5Dais-~e"de~classe"atraves_-dos quais fomos socializad^JO DTO> " •- • r'-'f*~~—TL_ 'J-^ ' •'-'^'-* "" - ~i -—^J -*f~