METAFILOSOFIA Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
Murilo Seabra
2a Edição Revista e Ampliada
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METAFILOSOFIA Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
Murilo Seabra
2a Edição Revista e Ampliada
Brasília, 2014
Diagramação: Éric Seabra e Murilo Seabra
Seabra, Murilo 6P 0HWD¿ORVR¿DOXWDVVLPEyOLFDVVHQVLELOLGDGHHVLQHUJLD LQWHOHFWXDO0XULOR6HDEUD%UDVtOLD%LEOLRIRQWH S ISBN
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SUMÁRIO
Principais conceitos 7 Prefácio 9 Apresentação 45 Bloco 1: A arte de analisar poeira 49 Bloco 2: Originalidade 69 Bloco 3: Estética da austeridade 83 Bloco 4: A filosofia acadêmica não teve século XX 103 Bloco 5: Estar à vontade 135 Bloco 6: Placas e definições 173
Bloco 7: Implementação e impacto 195 Bloco 8: O senhor Quita 227 Bloco 9: Cordas vocais 247 Bloco 10: Trilhos 265 Carta aos estudantes 285 Créditos das ideias 305 Mais conceitos 309 Obras citadas 317
PRINCIPAIS CONCEITOS
Estar à vontade §§40, 203, 204, 215, 229, 237, 259, 266, 417 Iemanjá e Nossa Senhora §§43, 44, 52, 415, 417 Luta §§105, 120, 121, 124, 166, 253, 279, 300, 305, 318, 319, 321, 324, 372, 473, 474 Metafísicas da inovação e da repetição §§429, 430, 434, 435 Originalidade §§2, 3, 52, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 64, 69, 70, 71, 72, 73, 88, 103, 195, 196, 261, 334, 338, 366, 379, 382, 418, 429, 437, 438, 479, 494, 500 Retina §§91, 92, 136, 339, 350, 369, 423 Sensibilidade §§59, 91, 98, 105, 453, 471
Prefácio
Comenta-me ou te devoro: O que um filósofo vê quando abre a janela Julio Cabrera (Universidade de Brasília) I – Entrando numa escrita: a insurgência de Murilo Seabra A melhor coisa que se pode dizer sobre este livro é que ele foi escrito “à vontade”. O “estar à vontade” ou “pensar à vontade” é uma das categorias que Murilo Seabra usa neste pequeno metalivro, que corre na contramão de certas convicções acadêmicas enraizadas. Para Murilo, os pensamentos fluem de maneira autêntica, espontânea e genuína quando filosofamos entre amigos e para amigos, para pessoas que não nos intimidam. Os pensamentos, pelo contrário, travam e ficam falsos quando somos obrigados a pensar para um meio acadêmico impessoal e anônimo. Sabe-se que a “qualidade” de um trabalho filosófico mede-se, nas universidades, precisamente pelo fato de ser ele julgado – fria e objetivamente – por pessoas que não constam entre nossos amigos. A filosofia universitária não apenas não nos deixa “à vontade”, mas faz questão de nos deixar tão constrangidos quanto possível. Mas isto marca também o paradoxo da publicação deste livro, que cairá fatalmente nas mãos de inimigos, de pessoas para as quais não estava destinado. Parece um destino inglório dos filósofos latino-americanos o fato de que seus textos tenham que ser, por um bom tempo,
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metafilosóficos. Já faz algo em torno de 20 anos que outro pensador solitário, Edson Andrade, escreveu no Rio Grande do Sul uma obra-prima metafilosófica, Da arte de criar mundos, e Gonzalo Armijos, um equatoriano radicado no Brasil, inventou outra obra deste tipo, mencionada várias vezes por Murilo, De como ser filósofo sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Mas não somos metafilósofos por paixão. Somos metafilósofos por imperiosa necessidade de sobrevivência. Quando não nos deixam filosofar, nosso pensar tem que falar sobre si mesmo num movimento de insurgência. Um pensamento genuíno não pode, em nosso meio atual, apenas “surgir”, ele tem que “insurgir-se”, surgir apesar das ameaças e travas, vir a existir contra tudo o que quer abortá-lo e impedi-lo de se manifestar. Em tempos melhores, não haveria necessidade de explicar ao leitor a maneira como a filosofia se instaurou e como ela agora impede o pensar ao invés de estimular a reflexão. Vivemos num tempo em que somos obrigados a ensinar, em meio a expressões de animosidade, como retomar a trilha do pensamento num ambiente não interessado em filósofos. Para dizer tudo isto é preciso ser metafilósofo, gastar tempo escrevendo livros como este. Este livro seria perfeitamente inútil se a filosofia pudesse se manifestar de maneira exuberante. Em bons tempos filosóficos, a metafilosofia deveria ser inócua; um termômetro das coisas estarem tão mal para a filosofia desde a América Latina é a nossa imperiosa necessidade de metafilosofar. Que livros como o de Murilo sejam indispensáveis é um sintoma dos nossos tempos. Que não se diga, em todo caso, que Murilo Seabra seja autor de um livro único, e que só faz metafilosofia por ser incapaz de filosofar. Isto seria redondamente falso. Desde o final da década de 90, quando era um jovem aluno da graduação, Murilo escreve textos curtos numa espécie de aprendizado fantasma, paralelo a seus penosos estudos acadêmicos (aqueles nos quais você 12
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nunca está “à vontade”). Na minha mesa de trabalho encontro “O ataque do mal”, um texto com o qual Murilo se debate há muitos anos; “Lutas simbólicas”, um texto que acabou de ser publicado numa coletânea da Revista de Artes da UnB, e que é aproveitado dentro da arguição do presente livro; e milhares de textos curtos, alguns deles montados de maneiras insólitas, em pequenas encadernações cheias de becos sem saída (e muitas vezes sem entrada). Menciono alguns: “Eletroencefalograma de um louco”, “Morfeio”, “Filosofia da música: notas sobre o processo de composição musical”, “Entalhes sobre a linguagem”, “Notas sobre o processo de endoculturação”, “Fim dos tempos”, “O desaparecimento dos diálogos, das cartas, dos aforismos, dos desenhos, dos poemas, dos ensaios, das confissões autobiográficas e dos diários da filosofia”, “Regras para a geração de mundos”, “O mundo interno e seu vocabulário externo”, “Pano de fundo”, “O racionalista medieval”, “Cores”, “A contradição e a dor”, “Mawatwa”. Existem muitos outros, alguns sem título ou mesmo com títulos sem graça (“Algumas observações”), como se a reflexão estivesse, às vezes, tão à solta que não fosse mais possível titulá-la. Tampouco é Murilo um produtor compulsivo de textos; ele só escreve quando algo queima dentro dele. Como em todo filósofo, é difícil definir claramente o seu estilo (“literário”? “filosófico”?) ou a “área” de reflexão destes escritos: filosofia da mente, filosofia da linguagem, ética, ontologia – tudo isso e algumas outras áreas inventadas (filosofia das miudezas? filosofia das falas de rua?) vêm à tona quando você “está à vontade”, quando simplesmente pensa em lugar de redigir papers para revistas especializadas. É claro que Murilo teve que se habilitar (teve mesmo ou foi escolha?). Tentou mestrado na UnB várias vezes e não conseguiu; tentou a USP, mas tampouco conseguiu ter seu modo de trabalhar admitido; voltando a Brasília, tentou novamente e esta vez foi aceito – eu fazendo parte da banca de seleção – com 13
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um projeto sobre um autor europeu (Wittgenstein), condição necessária, como se sabe, para a aceitação em qualquer instituição latino-americana séria. Poucos perceberam, no entanto, que a dissertação de Murilo, “Porque não se devem interpretar as Investigações Filosóficas de Wittgenstein”, foi, do ponto de vista metodológico, uma devoração oswaldiana das ferramentas conceituais do filósofo austríaco aplicadas a questões que jamais passaram pela cabeça de Wittgenstein, e, do ponto de vista temático, uma violenta crítica ao modo acadêmico de filosofar. Durante a convulsionada defesa da dissertação, houve tumultos e incômodos, o que provou que a dissertação, apesar de tudo, atingiu o seu alvo em cheio. Foi dessa forma que um belo dia, depois de sonhos agitados, Murilo acordou transformado num Mestre em Filosofia. II – Final dos tempos filosóficos: Murilo pisa em cadáveres cercado por um ódio profundo Qual é, afinal, a situação contra a qual Murilo Seabra se insurge? Uma situação muito grave, não apenas pela sua intrínseca relevância, mas também porque ela não é sequer percebida como problemática, sendo, pelo contrário, tomada como uma situação extraordinariamente positiva. Trata-se do que denomino de “crise do autoral”. A formação de um “filósofo” (talvez seria melhor falar numa “formatação”) passa hoje, nas universidades, pelo estudo aprimorado e rigoroso da tradição filosófica europeia (e norte-americana). O que se espera de um “filósofo” é que ele conheça perfeitamente algum setor desta tradição, se especialize nela, publique papers e livros dentro da mesma, atinja certa “excelência” no domínio das suas fontes – com o necessário domínio das línguas estrangeiras relevantes –, publique em revistas indexadas e tenha uma agenda cheia de viagens nacionais e internacionais para expor seus trabalhos 14
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exegéticos, históricos ou de comentários, explicativos ou críticos (passar a vida acadêmica inteira “lendo criticamente” uma tradição filosófica é outra maneira de ficar totalmente atrelado a ela). Não existe neste esquema nenhum espaço para alguém que pretenda expor seus pensamentos, aquilo que provém das suas próprias tradições e entranhas existenciais (latino-americana, brasileira, comunal, familiar, pessoal). Qualquer tentativa neste sentido produzirá o efeito dos professores enviarem essa pessoa para estudar os autores da tradição europeia, para ali encontrar subsídios que, em algum dia longínquo, lhe permitirão talvez apresentar algum pensamento próprio. Mas o pensador é um ente singular, com uma breve vida filosófica pela frente; ele quer filosofar agora. Há pessoas – não muitas talvez – que não querem ser comentadores, exegetas ou historiadores; eles querem ser autores, pensadores, mesmo que pensadores menores. A situação contra a qual Murilo se insurge é aquela em que não existe qualquer espaço para o autoral. Pior ainda: onde o autoral é considerado pouco sério, diletante, improvisado, autodidata, não profissional e até moralmente reprovável. O filósofo autor virou incompetente, ridículo e amoral. A questão da autoralidade é muito grave porque os atuais produtores de filosofia, tal como a conhecemos, são cegos para qualquer criação filosófica alternativa sem qualificá-la simplesmente de diletante, não profissional ou de “filosofismo” improvisado e “sem rigor”. Propositalmente falo em criação e não em produção, que é o termo mercadológico usualmente utilizado, termo que convém perfeitamente ao tipo de filosofia que se produz nas universidades. Gerações e gerações de estudantes foram perdendo esta capacidade ótica e não conseguem mais ver a filosofia a não ser pelos olhos institucionais, o que era, precisamente, o objetivo almejado. Quando o pensador autoral, depois de muitas hesitações e
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temores, ousa escrever e apresentar suas ideias, a sua criação será desqualificada se medida com a vara acadêmica. Para apreciarem a criação filosófica alternativa e autoral, os leitores de filosofia teriam que ser capazes, depois de anos e anos de “formatação” acadêmica, de mudar os critérios usuais de avaliação. Se aplicarem os critérios vigentes, qualquer produção autoral será vista como “má filosofia” e rejeitada. Se um “bom texto filosófico” deve estar construído tomando como base a história do pensamento europeu, citando interminavelmente seus autores, definindo perfeitamente seus conceitos, argumentando logicamente, não se permitindo nenhuma narrativa ou intuição norteadora, perseguindo um objetivo perfeitamente claro que não possa mudar no meio do percurso, não tocando em temas cotidianos e não se permitindo rupturas de estilo, então um livro autoral não será jamais considerado como um “bom texto filosófico”. Este é o problema inicial, não um problema conceitual, mas, eu diria, quase um problema perceptivo. Não é que o autoral pareça de má qualidade; ele é realmente de má qualidade, se medido com os critérios vigentes. Se for realmente autoral, parecerá inevitavelmente não ter “qualidade”. Fugir da “excelência” se torna um requisito do autoral. Neste sentido, talvez seja ainda otimista o primeiro aforismo de Murilo neste livro, onde se apresenta o comentador como ainda desejando ser filósofo, e até tendo inveja de quem é capaz de sê-lo (“No âmago do comentador fermenta uma dor indizível: ‘Eu queria ter tido essa ideia’”). Seria bom se as coisas fossem assim, a situação não seria tão dramática. Na verdade, porém, o comentador se convenceu totalmente de que a filosofia se resume em comentar; ele não se permite mais fermentar qualquer “dor indizível”; ele nem sabe mais que ele “queria ter tido essa ideia”. Murilo matiza seu aforismo §1 com o §366: na verdade, já não aparece na consciência do
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comentador qualquer visão do original, porque simplesmente não há, para ele, o original; portanto, não há nada a invejar ou fermentar. Em outros aforismos, como §315 e §353, Murilo tem aguda consciência deste problema da autovisualização do comentador, que já aprendeu a identificar a filosofia com o que ele faz, sem qualquer aceno para um dever ser pelo qual ainda valeria a pena lutar. Na situação atual, há uma espécie de cegueira (não de nascimento; doença adquirida) para perceber que o autoral é uma ruptura, algo que provém do vivido, escutado e sofrido, das entranhas do filósofo em seu ambiente (ambiente do qual é afastado em seus estudos de pensamentos alheios em línguas e raízes estranhas). Trinta anos de estudos eruditos não gerarão jamais um filósofo, assim como o melhor casal de gatos jamais gerará um filhote de cachorro. Trata-se de algo de outra natureza, não há uma continuidade. À medida em que se tornar mais talentoso e aprimorado, o comentador de filosofia, pelo contrário, ficará mais e mais acanhado para expor as suas ideias, ficará cada vez mais cauteloso, até abandonar totalmente a ideia de pensar algo que seja seu. Não há nada que prepare alguém para a filosofia; o filósofo poderá ter muitos conhecimentos, mas no momento de pensar, já os terá superado. Terá feito com eles o que os filósofos costumam fazer com o que leem: dar uma olhada rápida e interesseira, interpretar mal, utilizar inescrupulosamente o que leu para a própria escrita. Murilo aponta, já no início de seu livro, que a primeira reação contra estas ideias será de “ódio profundo”. Isto é compreensível. Pense numa pessoa que trabalhou durante anos para constituir toda a sua existência intelectual em cima de uma certa competência (por exemplo, a de conhecer e comentar a obra de Kant ou de Wittgenstein ou de Aristóteles) e vem uma pessoa – de menos idade, talvez com menos conhecimentos 17
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– e lhe diz que o que ele faz carece de valor, que ele não está fazendo filosofia genuína. Pode-se imaginar outra reação a não ser a de “ódio profundo”? Contra o que pensam as metafísicas da “pessoa”, os animais humanos são seres sem nenhum “valor intrínseco”; portanto, temos constantemente que nos dar valor, precisamos avidamente de reconhecimento; não somos reconhecidos por termos valor, mas temos valor por sermos reconhecidos. Ideias como as de Murilo ou as minhas ou as de Gonzalo Armijos devem abalar profundamente os mecanismos de autovaloração dessas pessoas e gerarem um ódio arrasador contra os responsáveis pelo abalo. Ideias como as deste livro são como flechas que você deve atirar no alvo e sair correndo, pois a reação será aterrorizadora. Mas não é apenas o ódio profundo explícito que estas ideias provocam numa comunidade como a nossa, avessa a qualquer tipo de autoralidade, e que identificou a filosofia com o pensamento institucional, técnico e produtivo. Elas também disparam outras atitudes que Murilo não considera, talvez mais amedrontadoras que o ódio profundo manifesto; refiro-me ao cinismo, à dissimulação, à falsa cordialidade e, inclusive, ao total acordo no plano das ideias. Já falei com comentadores de Kant que me cumprimentavam pela minha defesa da autoralidade, declarando-se totalmente de acordo com a afirmação de que o Brasil precisa estimular a exposição de ideias próprias. Esta é uma vicissitude psicológica do ódio profundo (porque o ódio continua ali dentro) que pode tornar-se muito complicada, porque ela gera a impressão de que estamos todos lutando pelas mesmas causas, e o inimigo está sempre em outro lugar. Este ódio tem algo de emocional e não racionalmente justificado nas ideias ou seu modo de exposição. Murilo e eu discordamos em muitas coisas – como explicarei melhor na seção IV deste prefácio – mas principalmente num ponto fundamental: enquanto eu penso que o comentário e a exegese 18
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histórica e temática constituem uma forma perfeitamente legítima de se fazer filosofia, e que o que deve ser criticado é o fato de terem se transformado em uma opção exclusiva, Murilo pensa, pura e simplesmente, que o comentário é antifilosófico, e que quem desenvolve esse tipo de atividade não faz realmente filosofia. O caso é que tanto a minha postura mais tolerante quanto a postura mais radical de Murilo são habitualmente recebidas com exatamente o mesmo tipo de ódio profundo (e de cinismo, dissimulação e falsa cordialidade), sem qualquer distinção. Isto me leva a pensar que a reação do ódio profundo é totalmente emocional e não racionalmente sustentada. III – Contra a filosofia teórica, técnica e europeia: Murilo entre a arte, a história, a geografia e a filosofia O que foi falado até aqui constitui a parte mais críticonegativa da questão. Indo para as partes mais positivas, Murilo Seabra propõe neste livro três linhas de ação contra a situação antes exposta. Possivelmente não lhe agradará muito esta classificação que eu faço, já que, em seu escrito, todas estas linhas estão imbricadas, embora algumas recebam mais desenvolvimento que outras. Eu as chamo: (1) A questão empírica (contra a ideia da filosofia ser uma atividade puramente teórica); (2) A questão linguística (contra a ideia de que a filosofia precisa ser técnica); (3) A questão geopolítica (contra a ideia de que a filosofia é exclusivamente europeia). A filosofia institucional perdeu totalmente de vista a dimensão “de campo” da filosofia, abraçando a suposição de que o filósofo trata exclusivamente de ideias e não de fatos; quem lida com fatos é antropólogo ou sociólogo, não filósofo. Assim, quando o filósofo profissional abre a janela de seu quarto de manhã, ele não mais vê o brilho do sol; ele vê um texto (em alemão?) que fala do brilho do sol. (Como 19
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naquela cena do início de Zabriskie Point, de Antonioni, onde os letreiros e cartazes à beira da estrada cobrem a totalidade da paisagem). O filósofo apenas lida com textos, seu último contato com o real é a citação. Frequentemente vemos textos filosóficos que já começam com uma citação (“Em Benjamim (2001) encontramos a ideia de que...”). A ideia de Murilo é que a filosofia, numa das fases da sua libertação, deveria começar a atender seriamente para este aspecto “etnográfico” do pensamento, e tentar pensar sobre as coisas em lugar de limitar-se a citar. É claro que um texto pode virar coisa para o filósofo etnógrafo (os comentários, por exemplo), mas isto já está num registro diferente da citação; em lugar de ser citado, o texto vira objeto de curiosidade. A questão não é apenas metodológica, mas também substantiva, pois se esta dimensão empírica da atividade filosófica for suprimida, então, realmente, como foi dito a Murilo certa vez, não há diferença entre filosofar e interpretar (§29 e §317). Se, em última instância, só há textos, não há tanta diferença entre um texto original e um texto sobre um texto. O filósofo acadêmico concebe a investigação filosófica como algo que consiste em sentar-se e ler; não há saída para o exterior nesta remissão incansável de textos a outros textos (como a menina Alice presa em labirintos, conseguindo fugir de um somente para cair em outro e outro e outro). Quando o filósofo acadêmico caminha pelas ruas, e, aparentemente, “observa” o mundo ao seu redor, ele não pensa estar recolhendo material para seu trabalho. Na verdade, ele “olha sem ver”, pensando no que acabou de ler e no que ainda vai ler. Com isto, um imenso acervo de problemas filosóficos lhe escapa totalmente; para ele, o depoimento de um morador de rua sobre a morte de um colega não tem nada a ver com a filosofia; para ele, um problema filosófico é um enigma colocado por algum escritor europeu, talvez vinte e cinco séculos atrás (§142). Mas apesar 20
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da sua recusa ao empírico, quando um filósofo lê Platão ou Heidegger, a sua leitura pode ser vista também como uma empreitada empírica (§143, §148). E os próprios filósofos fizeram pesquisas empíricas, como quando Platão registrou as falas dos sofistas (§152). Para fazer filosofia, e não meros comentários, esta dimensão etnográfica do pensamento deveria ser utilizada e desenvolvida; ela foi muito importante, segundo Murilo, para outras manifestações da cultura, tais como a arte, a história e a geografia, atividades humanas em contato com o mundo e não com meras representações do mundo. Por que temos hoje uma arte brasileira admirada no planeta inteiro, mas não temos – e, se seguirmos pelo caminho atual, não teremos – uma filosofia brasileira admirada no planeta inteiro? Questão de genes? Murilo pensa que não, e isto nos leva para a segunda questão positiva, a questão linguística, e ao que Murilo chama “lutas simbólicas”. Pois para a filosofia assumir a sua dimensão etnográfica, para se debruçar sobre o cotidiano e fugir do domínio exclusivo dos livros, tem que haver uma espécie de “conversão” das pessoas e comunidades a um novo vocabulário, e as expressões cruciais tem que começar a ser entendidas de outro modo. Nesse viés, Murilo considera a filosofia enormemente atrasada em comparação com as artes, a história e a geografia. Nestes outros âmbitos culturais, durante o século XX, houve renovações extraordinárias do que tinha sido até então entendido como arte, história ou geografia, até o ponto que mentes tradicionais e conservadoras geravam invariavelmente frases como: “Isto não é arte”, “Isso não é história”, “Isto não é geografia”. Quando surge uma renovação profunda de estruturas, há uma luta pelos símbolos, pelas próprias palavras que definiram até então a atividade humana em questão (“filosofia”, “arte”, etc.) (Na Argentina, um exemplo muito apropriado disto é a discussão sobre o “tango” após o 21
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surgimento de Astor Piazzola, diante do qual os admiradores de Carlos Gardel diziam: “Pero eso no es tango!”). A história das mudanças nessas atividades humanas pode contar-se, segundo Murilo, de duas maneiras antagônicas: como a história da degradação de uma forma pura, de uma essência, ou como a história de uma ampliação de fronteiras (§102 e seguintes). A primeira impressão da nova pintura, da nova música, etc., foi que ela sofria de extrema fealdade, desproporção e desagrado, na medida em que se continuava vendo os produtos novos com os olhos antigos: há uma luta entre a visão como degradação e a visão como ampliação; se a nova visão ganhar, as coisas passarão a ser vistas da nova maneira: “As opiniões que vencem a guerra deixam de ser opiniões... Deixam de parecer performativas para parecerem puramente descritivas” (§111). O mesmo aconteceu com a história quando se passou da concepção meramente política para a concepção plural, que permitia, por exemplo, falar de uma história do meio ambiente ou de uma história das drogas (§116, §120, §300). Mas enquanto a arte, a história e a geografia se renovaram de maneira radical, a filosofia, segundo Murilo, não teve seu século XX, não houve renovação, os filósofos continuaram filosofando como faziam no século XIX (§131). Não adianta mencionar obras filosóficas renovadoras, em estilo e temática (como, digamos, A caminho da linguagem de Heidegger ou O cartão postal de Derrida), que são sempre casos excepcionais; fala-se aqui do que é produzido em massa pelos departamentos de filosofia de todo o mundo (§132). Precisamente, neste livro de Murilo Seabra se declara oficialmente a luta simbólica que deveria acontecer dentro da filosofia, a luta pelos símbolos “filosofia”, “qualidade”, “originalidade”, etc. (§315, §318, §319, §324), luta que deveria permitir o alargamento das fronteiras da filosofia, como aconteceu nessas outras áreas. Mas na 22
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situação atual de marasmo, conformismo e rotina acadêmica, a filosofia não renova seu campo de trabalho e não enriquece suas possibilidades de investigação. A questão linguística não se exaure na questão das lutas simbólicas. Segundo Murilo, não pode haver filosofia a não ser através de uma liberação da linguagem; o pensamento fluído e natural, pensado entre amigos, precisa lançar mão da linguagem cotidiana, com todas as suas “imperfeições”, suas gírias e deselegâncias, precisa fugir como da peste de qualquer “terminologia filosófica”, de qualquer jargão especializado, de qualquer linguagem empostada na qual nos sintamos na obrigação de sermos reconhecidos por algo que não somos, substituindo nossa persona filosófica por um vocabulário elegante (um traje à rigor filosófico). Já na primeira página da apresentação do seu livro, Murilo escreve: “Não temos uma sacada a expressar”. O leitor tradicional de filosofia ficará chocado com esta palavra, que mais tarde será tematizada em contraste com “insight”; quem fala e pensa academicamente terá insights, quem pensa solto e “à vontade” terá sacadas (§196). “Sem o destronamento do dialeto acadêmico, a filosofia não tem chance alguma de vir à existência” (§166). A universidade combate e exclui a linguagem local e comunal e procura substituí-la por um jargão especificamente filosófico (§169). “Se você quiser filosofar, use a linguagem que você usa quando está descontraído” (§193, §222). Pelo contrário: “(...) quem só sabe falar de forma institucional, só sabe pensar de forma institucional” (§195) A “linguagem comunal” é aquela que falamos quando estamos à vontade; aí é quando nosso pensamento dispara. Quando filosofamos livres e à vontade, a linguagem se torna uma parte inseparável de nós mesmos, enquanto que, quando filosofamos para a academia, a linguagem transforma-se num “curioso código de etiqueta” (§257). 23
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A terceira linha de ataque é a que chamo de geopolítica; além da filosofia ser puramente teórica (sem nada de empírico) e técnica em sua linguagem (sem nada de comunal ou cotidiano), ela está ligada exclusivamente com uma tradição, a ocidental europeia. A partir daí, detecta-se uma persistente assimetria entre as atitudes diante do pensamento supraequatorial e do pensamento subequatorial; a linha do Equador não é meramente geográfica. Há uma supervalorização do primeiro e uma subvalorização do segundo, o que provoca nos subequatoriais “uma sede profunda de europeidade” (§25). Os julgamentos a respeito destes dois grupos não são objetivos, mas curiosamente “rígidos”: mesmo as excelências dos subequatoriais são depreciadas, enquanto os erros e ingenuidades dos supraequatoriais são perdoados e explicados (§53). Há hipercondescendência com os supraequatoriais, nenhuma boa vontade com africanos e sulamericanos (§73, §326, §338). Não são, pois, apenas os traços internos dos textos o que conta, mas também a nacionalidade do autor (§64). As coisas estão colocadas de modo que o pensamento subequatorial se mostra sempre deficiente, diante de exigências que não podem, por definição, ser atendidas (§83). O anseio pelo europeu baseia-se mais num componente estético do que estritamente epistêmico (§91, §96). O pior é que esta assimetria é assumida, especialmente, pelos subequatoriais, e não pelos supraequatoriais: “Os esforços críticos da metafilosofia devem ser dirigidos mais contra a mentalidade dos subequatoriais do que contra a mentalidade dos supraequatoriais: não são os supraequatoriais que subestimam o pensamento subequatorial – são os subequatoriais” (§489). O movimento de resistência a isto seria, por exemplo, começar a questionar a real relevância do pensamento supraequatorial para os subequatoriais: “Não são apenas perguntas do tipo ‘O que Kant entende por juízo sintético a priori?’ e ‘O que 24
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Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?’ que deveriam importar aos artesãos da filosofia. Eles também deveriam fazer perguntas do tipo: ‘Qual é a verdadeira importância de saber o que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’?’ e ‘Qual é a verdadeira importância de saber o que Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?’” (§275). “Kant foi um filósofo em Königsberg. Mas aqui no hemisfério sul, ele nunca foi um filósofo” (§389). IV – Murilo contra Cabrera: afinal, o que fazer com os comentadores? Até aqui tentei expor tudo aquilo com o qual concordo plenamente, aquilo que me deixa jubiloso neste metalivro. Mas nem tudo são concordâncias. Sem dúvida, não acusarei Murilo de “simplificar demasiado as coisas”. Ele escreve: “Escrever é simplificar!” e faz notar que os supraequatoriais também simplificam (§22). Penso que Murilo se dá a si mesmo o direito de simplificar porque seu protesto é necessário e premente. Gerações de jovens pensadores serão ainda sacrificadas em nome da “excelência” da obra exegética, histórica e eurocentrada. Diante da gravidade da situação, a simplificação se torna necessária. Outros talvez o acusem de criar “falsas dicotomias” (ou filósofo ou comentador), insistindo que se pode filosofar através do comentário. Já muito cedo, na apresentação, Murilo escreve: “(...) ao contrário do que muitos professores apregoam, longe de ser necessário ser um bom comentador para ser um bom filósofo, é preciso antes ser um bom filósofo para ser um bom comentador. Você precisa ter algo a dizer para ter algo a dizer sobre o que os outros têm a dizer (...)”. E ao longo do livro, ele irá arguindo de que forma aquilo que o filósofo faz é estruturalmente diferente do que o comentador faz; isto é certamente uma dicotomia, mas não uma falsa dicotomia. De
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maneira que as minhas linhas críticas não vão por aí. Há algumas questões pontuais com as quais discordo. Jamais poderia assinar embaixo do ingênuo e autobenevolente aforismo §462: “Ninguém sabe mais sobre as suas capacidades do que você mesmo”. Creio que ninguém sabe menos. Sou muito menos esperançoso do que Murilo no que se refere a “filósofos de rua” (§144, §154). Tenho bastante experiência nisto e posso dizer que as pretensas “filosofias” dessas pessoas são monótonas e desinteressantes, mistura de crenças religiosas, ressentimento social e preconceitos incutidos pelas classes dominantes. O senhor Quita (§157) poderá ser filósofo graças ao fato de que Murilo estava por perto para recolher e sublimar reflexivamente o que esse senhor disse; qualquer morador de rua se transformará num filósofo interessante se algum filósofo interessante (como Murilo) estiver por perto com uma pena na mão. Outra discordância pontual é com a questão das gírias; não creio que as gírias sejam mais criativas do que as linguagens comuns sem gírias (embora eu concorde com Murilo que as gírias sejam mais criativas do que os linguajares acadêmicos); pessoalmente, consigo pensar completamente “à vontade” sem usar gírias, mas também sem utilizar jargões incompreensíveis. Por outro lado, as gírias também se institucionalizam e passam a nivelar discursos: para dizer que algo está ótimo, sou hoje (fevereiro de 2014) obrigado a dizer: “Só ouro!”; mas não sou livre para inventar outra gíria sem ser punido com olhares reprovadores ou de incompreensão. Há, pois, uma ditadura das gírias. Creio que esta questão fica, em definitivo, no plano das preferências: Murilo sente-se à vontade com elas enquanto eu nunca senti a menor falta delas. Mas nada disto é importante. O realmente importante, a discordância crucial, está na utilização que Murilo faz da minha famosa frase: “É impossível não ser original”, dizendo que esta ideia mantém uma tolerância indesejável com os comentadores,
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que fariam “filosofia desde” em meu sentido sem qualquer problema. Então, temos que começar por recuperar o sentido primitivo dessa frase. Ela aparece em meu texto: “Descobrindo a pólvora: o caso René Descartes”, incluído em meu Diário de um filósofo no Brasil. Sua intenção original contra o comentador era dizer a ele: “Você se insurge contra a nossa pretensão de originalidade e afirma que é impossível ser original; mas, na verdade, o ser humano está feito de tal forma que nunca pode simplesmente aceitar o dado; ele sempre está além do dado e o transforma; mesmo você, comentador juramentado, que pretende ficar no frio e objetivo distanciamento do puramente descritivo, mesmo você também deturpa os autores aos quais você quer permanecer totalmente fiel. Nesse sentido, até você é original sem querê-lo, no meio da sua reverência servil ao autor (europeu)”. Esta era a intenção original. (Ver Diário, 2ª edição, p.179). Aqui Murilo se incomoda porque eu estaria com isto conferindo originalidade ao comentador e apagando as diferenças gritantes entre filósofos e comentadores. Mas a originalidade do comentador é apenas aquela que ele ganha de presente pelo fato de ser um ser humano, pelo fato de ser um ser que, inevitavelmente, transcende tudo o que toca, algo que já pode ser observado em crianças (e podia ser observado muito antes do existencialismo francês). Resta fazer as diferenças indispensáveis entre esta originalidade elementar que caracteriza o humano e as peculiaridades muito mais complexas da originalidade de um filósofo. A originalidade do filósofo não se limita ao mero transcender o dado, é um transcender criativo e perturbador. A originalidade do filósofo decorre de algo que ele fez com aquele transcender, e não do mero transcender, também presente no comentador. De maneira que as enormes, abissais diferenças que Murilo quer – e eu também quero – manter entre o filósofo e o comentador, 27
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continuarão a valer perfeitamente mesmo se a minha frase (“É impossível não ser original”) for aceita como verdadeira. Murilo entende mal a minha noção de “filosofar desde”, também apresentada no Diário, ao alegar que o comentador seria, só pelo fato de transcender o texto comentado, um filósofo-desde. Eu explico cuidadosamente a diferença entre filosofar em X e filosofar desde X; os comentadores brasileiros fazem filosofia no Brasil quando apresentam seus trabalhos em congressos; é inegável que eles estão fazendo filosofia no Brasil; mas eles não fazem filosofia desde o Brasil, no sentido de tecerem comentários impessoais e anônimos, não autorais, que poderiam perfeitamente serem feitos desde Berlim, Londres ou da Escandinávia. Não há nenhum cuidado em situar os pensamentos, em ver as peculiaridades da origem de uma reflexão, pois rapidamente – como Murilo mostra bem – é imposta uma situação reflexiva que não é a nossa (e é isso o que torna Kant um filósofo em Königsberg mas não em Brasília, com o que concordo plenamente). Mas então é totalmente falso dizer que um comentador consegue ser um “filósofo desde” na minha perspectiva. Pelo fato de comentar europeus exclusivamente, e com o “desde” dos europeus, ele já está radicalmente excluído do âmbito do que chamo um “filosofar desde”. Portanto, é totalmente absurdo sugerir que a noção de “desde” compactua com a manutenção do eurocentrismo (§377). Mas como Murilo é um filósofo e não um comentador, ele deturpa a minha ideia de “desde” em lugar de estudá-la e compreendê-la pacientemente, como faria um bom comentador. Afinal de contas, Murilo vai além da minha frase, como acontece sempre, mas de uma maneira criativa que o comentador é incapaz de executar. Já numa nota de rodapé da segunda edição do meu Diário (p.180), eu menciono a observação de Murilo de que isto concederia originalidade ao comentador; eu respondo 28
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dizendo que sim, que não tenho o menor problema com isso; para fazer a diferença que nos interessa, ainda seria necessário levar em conta qual tipo de transcender o dado caracteriza o comentador e qual tipo de transcender o dado caracteriza o genuíno filósofo, e aqui as enormes e abissais diferenças que Murilo quer manter apareceriam novamente. Mas dizer que um comentador consegue permanecer totalmente fiel ao que comenta, seria afirmar não que o comentador é um mal sujeito, um ser humano errado, maldoso ou incompetente; seria afirmar que o comentador é uma máquina; seria despojar o comentador da sua característica de humano; é isso o que queremos? Fazer com o comentador o que os espanhóis e portugueses fizeram com os indígenas da América, negar-lhe a mera humanidade? Devemos considerá-lo um monstro para poder combatê-lo? Vejamos em detalhe o que Murilo fez com a famosa frase. O que primariamente lhe incomoda é que o comentador não é atacado com o devido vigor: “As ideias de Cabrera me parecem bem formuladas e convincentes. O meu coração, porém, hesita entre abraçá-las integralmente ou reprová-las por não golpearem com o devido vigor o filosofar do tipo ‘a’” (§377). O filosofar do tipo ‘a’ é o do comentador: “consiste em ensinar e discutir a filosofia produzida na Europa e nos Estados Unidos com um grau moderadíssimo de consciência crítica (...)”, §374). Ele acha que o fato de hoje estarmos imersos numa terrível tirania do filosofar de tipo ‘a’ habilita – e inclusive exige – assumir diante dela uma atitude de total rejeição. Segundo ele, não se negocia com uma tirania: se derruba; não há mesa de negociações, apenas revolução armada. No mesmo aforismo, ele propõe a noção de “impacto” para tentar desempatar a situação. Uma obra filosófica deve ter impacto pelo menos no local onde ela nasce. E é esse impacto o que a genuína obra filosófica teria, e o comentário não (apesar 29
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de ambos serem “originais” no sentido de transcenderem o dado). Os textos “filosóficos” produzidos pelas universidades não têm impacto na comunidade extra-universitária e nem mesmo dentro da universidade (§382). No que considero um erro de leitura, ele afirma que muitos destes textos poderiam “até estar de acordo com o ‘filosofar desde’ de Cabrera”, o que é falso; minha noção de “desde” deixa de fora todo transcender do dado meramente exegético e centrado na Europa. Aqui Murilo inventou uma controvérsia entre nós que não existe (e não viu outra que existe, da que falarei logo a seguir). Ele pensa que porque se concedeu ao comentador o mero transcender humano do dado, se concedeu ao comentador o caráter de filósofo original pleno; falta sutileza de análise aqui: o bisturi tem que entrar na carne e distinguir nitidamente os tipos de transcendências, a do filósofo e a do comentador. O mero fato de transcender o dado não transforma o comentador magicamente em filósofo, como Murilo acredita em todo o longo e apaixonado aforismo §382. Ele desafia a encontrar então quais seriam as ideias originais de um comentador de Wittgenstein; você não vai encontrá-las (para tranquilidade de Murilo). Você só vai encontrar frases, termos e proposições do comentador que não estavam no texto original de Wittgenstein; ao tentar reescrever o autor comentado, ele o colocou de outra maneira (e é isso o que dá pé às intermináveis discussões nos congressos de filosofia: cada um dos comentadores defende a sua exegese como sendo a mais fiel ao autor, o que mostra que eles se afastaram da fonte de uma maneira perceptível). Tudo isso é muito pouco para tornar filósofo um comentador; nem todo ir além é criativo e autoral. E é por isso que você não entrará num mestrado com um projeto sobre as ideias de um comentador de Wittgenstein; mas nada disto derruba a ideia de que é impossível não ser
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original no sentido do inevitável transcender do dado, que parece ser uma característica do humano. O ponto controverso é que enquanto para mim o problema do comentarismo consiste na sua pretensão à exclusividade e unicidade, para Murilo o comentário constitui uma forma de filosofar intrinsecamente problemática. Ele é, pois, contra a minha ideia de considerar o comentário como uma das formas que a filosofia pode legitimamente adotar (§405). Ele admite que o comentário seja uma forma de codificar nossos pensamentos, mas isto fica muito aquém de um genuíno filosofar. Seu argumento é bom: em comentários, o comentador não pode expressar livremente seu pensamento, como o filósofo pode fazer em diálogos, aforismos ou cartas. Um bom comentário implica que seu autor ficou em segundo plano, e isso não é filosofar; filosofar é expressar os próprios pensamentos livremente (§414). “Infelizmente”, diz ele, “trata-se da única forma admitida nos departamentos de filosofia brasileiros. (...) Então, será que os departamentos de filosofia brasileiros estão na verdade cheios de filósofos, cheios de gênios?” (§405). Suponho que a resposta negativa a isto ficou clara pelo anterior. Na verdade, os comentadores não se disfarçam de filósofos; apenas os transcendem em mudanças de expressão, e depois ficam anos e anos discutindo sobre elas. Os seus disfarces nem chegam a ser disfarces. Realmente, este mero transcender de expressões (o que Murilo chama, em outros lugares, de reescrever o que já foi escrito), continua contribuindo para a canonização dos filósofos europeus. Concordo plenamente com o aforismo §407: se o comentário é apenas uma das formas de filosofar, já não passou da hora de experimentar as outras? Este é o ponto! Por isso, o §410 vai novamente na direção errada: é claro que a academia não está justificada em exigir que os estudantes desenvolvam os pensamentos dos filósofos
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canônicos, se é isso a única coisa que eles podem fazer; mas não vejo o que haveria de errado em deixar os estudantes que querem comentar filosóficos canônicos comentá-los. Os aforismos §418 e seguintes são um tanto equívocos; parece-me que eles são fortemente ditados por uma maneira de filosofar que Murilo, em certos momentos do seu livro, denomina de “geométrica” (§393, §463), e que não é certamente a minha. Ele coloca exemplos de triângulos e quadrados, problemas que possuem uma objetividade esmagadora, que a imensa maioria dos problemas filosóficos não possuem: é mais fácil alguém reproduzir um triângulo azul diante de um triângulo azul do que alguém reproduzir, digamos, a ideia da morte da arte em Hegel exatamente nos mesmos termos de Hegel; de maneira que os exemplos colocados em §418 podem cometer a falácia da falsa analogia. Mas eu diria que mesmo diante de figuras de cores, já à criança humana custa muito reproduzir as figuras tal qual as vê; sempre há uma subjetividade em jogo (este é um termo que não aparece no livro num viés hermenêutico-existencial) que enfeita, aumenta, diminui, acentua, escamoteia, etc. Murilo debocha aqui da ideia de que é impossível não inovar, mas trata-se de uma ideia perfeitamente compreensível: os humanos tem problemas em simplesmente repetir o dado. Talvez a concepção geométrica de filosofia seja herdada de Wittgenstein, que tampouco fala em subjetividade e excessos existenciais; o próprio Murilo admite que pode ter “incorporado” Wittgenstein ao tentar enfrentar a ideia cabreriana da impossibilidade de não inovar. Os resumos da situação expostos em §429 e §434 são completamente geométricos, e não considera mediações: é claro que a “metafísica da inovação” autoriza o comentar; apenas desautoriza a exclusividade do comentar. Portanto, o “então vamos comentar!” de §429 não decorre, assim como não decorre o “(...) não precisamos nos 32
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entregar à tarefa de filosofar, visto que, de um jeito ou de outro, ela será inevitavelmente realizada”. O raciocínio mais correto seria dizer: “A ‘metafísica da inovação’ autoriza o comentário como uma forma entre outras de filosofar; mas essa forma é extremamente limitada e pobre; vamos então explorar as outras!” Ou dizer: “Mesmo que, inevitavelmente, iremos além do dado, tentemos ir além do dado de maneiras mais criativas do que o comentar”. Parece-me que, neste ponto, as diferenças entre Murilo e Cabrera são políticas, e não estritamente conceituais. Ambos concordamos que o comentador faz algo que empobrece enormemente as possibilidades da filosofia, e que ele obstaculiza o desenvolvimento de outras formas de filosofar. Mas enquanto eu não tenho problemas em manter o comentar como uma forma entre outras de se fazer filosofia, Murilo quer destruí-lo, quer tomar o poder que ele possui e substituí-lo por outro, norteado por outros valores. O erro consiste em passar da crítica ao transcender comentador como insuficiente (concordância) para a atitude da destruição do comentador. Concordamos plenamente com o diagnóstico, mas não com o procedimento. Se o comentador está hoje armado de metralhadora e os filósofos autorais apenas com pedras, é preciso desarmar o comentador; não se trata de pronunciarse em seu favor ou colocar-se ao seu lado (§414). Realmente, o comentador-tirano deve ser derrotado. Entretanto, o saldo dessa luta deveria ser que autores e comentadores, ambos desarmados, façam filosofia como quiserem. Para o autoral, fazer filosofia consiste em expressar os próprios pensamentos livremente; para o comentador, filosofia é percorrer autores e tentar parafraseá-los. Para cada um deles, o outro não estará fazendo genuína filosofia. Talvez eu queira utilizar o tempo que Murilo gasta em destruir comentadores para construir as formas de filosofia que o comentador ignora. O grande 33
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problema do comentador não é que ele comenta; o grande problema do comentador consiste nas forças políticas que ele é capaz de mobilizar para impedir que se faça outra coisa além de comentar, que é só o que ele sabe fazer. A dificuldade do comentarismo é a mesma de qualquer outro dogmatismo: a sua incapacidade para se reconhecer como um entre muitos, e o querer reivindicar unicidade e exclusividade. Mas não há nada intrinsecamente perverso no comentar. O ódio profundo de Murilo pelos comentadores deixase ver em alguns aforismos que estão além da contundência e mais perto da simples agressividade; por exemplo, segundo ele, qualquer trabalho universitário constitui um “deverzinho de casa” (§7, §59); qualquer estudioso transforma-se num “espanador” (§9), que remove a poeira dos livros em lugar de pensar; os comentários são “sempre rasos e sempre risíveis” (§59); e: “Quem ainda quiser defender que nos departamentos de filosofia se faz história da filosofia, precisará estar preparado para defender que a revista de celebridades Caras é uma revista de sociologia” (§123). Ou: “O único que se pode fazer é somente jogar uma chave inglesa nas engrenagens que mantêm os departamentos de filosofia brasileiros funcionando a todo vapor – e atrapalhar um pouco o seu ininterrupto processo de fabricação de comentadores” (§323); ou: “Para se fazer filosofia, é preciso tomar aquilo que se faz nos departamentos brasileiros de hoje como um modelo do que não se deve fazer” (§443); ou: “Quem se protege atrás de autores cujo mérito não está em questão não é nada mais e nada menos do que um covarde: os comentadores fazem pouco exteriormente por serem pouco interiormente” (§457). No curioso epílogo autobiográfico, um tanto ficcional, achamos frases como “O crime organizado está no poder”, assim como louvores incondicionais a Theodore Kackzynski. Às vezes, a mira da arma está mais cuidadosamente focada em alguém, como, por exemplo, Marilena Chauí. 34
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O comentador almeja “encontrar o seu próprio Spinoza e tornar-se mais uma Marilena Chauí” (§2); os departamentos de filosofia assumem como óbvio “que fazer filosofia é fazer o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real (expor os pensamentos de outrem)” (§324; ver também: §344, §352, §354, §355, §358, §361, §406, onde Chauí e Spinoza são focados mais como fenômenos sociais e institucionais usados para veicular a ideologia do comentarismo, do que propriamente como filósofos, como o próprio Murilo o coloca na Apresentação). Meu problema aqui é o seguinte: se o comentador tem que ser destruído como comentador, e não apenas como tirano (ou seja, como alguém que não deixa filosofar de outra maneira a não ser comentando), o ideal de Murilo é a substituição de uma tirania por outra. Porque eu suponho que na república de Murilo estará proibido comentar por considerar-se oficialmente que se trata de uma maneira empobrecedora de filosofar (algo com o qual concordamos); os estudantes serão obrigados a criar filosofia autoral própria e quem quiser meramente comentar autores será excluído, mesmo que seja de maneiras sutis e indiretas (de maneira semelhante a como, na situação atual, são excluídos estudos sobre filósofos latino-americanos, sem proibições explícitas, mas de maneira sorrateira: não tem orientadores, não há linhas de pesquisa sobre esses temas, etc.). Se o comentar tem algum “vício intrínseco” que deva ser eliminado, ele não pode ser deixado como uma forma entre outras de filosofar, mas deve ser radicalmente extirpado como uma erva daninha. Bom, isto eu não posso aceitar, porque não consigo descobrir qual seria o argumento que me serviria para excluir a tirania comentarista e me permitiria admitir a tirania autoral. Assim como uma sociedade livre não é uma sociedade sem submetidos, mas uma sociedade onde alguém possa decidir se quer ou não se submeter a outro, uma sociedade
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filosófica livre não é uma sociedade sem comentadores, mas uma sociedade onde alguém possa decidir se quer ou não ser comentador; em nossa situação atual, isso não pode ser decidido; isso está imposto. Aqui realmente a questão toda se assume como uma luta (não apenas simbólica) em termos de vencedores e vencidos; não há nada para entender ou analisar; trata-se de ocupar belicamente um terreno ocupado pelo inimigo. Os aforismos 473 e 474 afirmam isto claramente. Ao referir-se às lutas na arte, na história e na geografia do século XX, Murilo diz que se pode assumir duas posturas diante delas: engajar-se num dos lados erguendo uma bandeira ou “(...) sair do campo de batalha para examiná-la através de uma lente de aumento”, “colocá-la em perspectiva”. “De fato, mais interessante do que torcer para um time e entrincheirar-se contra o time adversário, é ver a profunda necessidade que um tem do outro (...)”. E ainda: “(...) torna-se claro que as partes litigantes numa luta simbólica tentam sempre solidificar as opiniões que defendem, e volatizar as opiniões que atacam...”. No aforismo seguinte, Murilo descarta a segunda postura: “Não existem critérios que possamos usar para observar as lutas simbólicas confortavelmente sentados do lado de fora da arena, critérios que possamos usar para determinar quem está com a razão independentemente de quem vence a disputa (...)” (§474). Mas precisamente porque não temos nenhum critério externo para julgar quem está certo ou errado, o mais sensato seria aceitar todas as posturas sem transformar nenhuma delas no padrão geral e obrigatório. A primeira coisa a ser feita seria destruir a atual hegemonia do comentarismo; o segundo passo consistiria em dar um lugar para o comentário na nova ordem; de hegemônico, o comentário passaria a ser um entre muitos. Caso contrário, o autoritarismo terá simplesmente mudado de lugar.
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O manifesto metafilosófico está escrito e era preciso escrevê-lo. Curiosamente, foi uma pura contingência (a hegemonia do comentarismo) que tornou necessário este livro. Mas a necessidade deste Metafilosofia tornou agora necessário que Murilo escreva, no futuro, seus livros filosóficos mais contingentes. Que mostre o que deve ser feito após ter mostrado, com tanta lucidez, o que não deve ser feito.
Julio Cabrera. Brasília, fevereiro de 2014.
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METAFILOSOFIA Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
Murilo Seabra
“Parece também que a organização do cérebro é menos perfeita nos dois extremos. Nem os negros nem os lapões têm a inteligência dos europeus.” Jean-Jacques Rousseau
“Mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um crioulo, e mais ainda perante um europeu, são as principais características dos americanos do sul, e ainda custará muito até que europeus lá cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos, sob todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer.” Georg W. Hegel
“O bom desempenho numa disciplina ou série de disciplinas pode ser a mais coerente decorrência da apatia de um estudante. Da mesma maneira, o mau desempenho pode ser o atestado mais significativo de envolvimento com os estudos. Somente para quem não filosofa o desempenho é uma questão crucial para a filosofia.” Gabriel Antunes
“Antes de mais nada, quero dizer que a vitória extraordinária do Brasil foi a vitória do futebol. Do futebol que o Brasil joga, sem copiar de ninguém, fazendo da arte de seus jogadores a sua força maior e impondo ao mundo futebolístico o seu padrão, que não precisa seguir esquemas dos outros, pois tem sua personalidade, a sua filosofia e jamais deverá sair dela.” João Saldanha
Apresentação
É quando escrevemos para as pessoas que fazem parte do nosso círculo de amizades – e não para a academia – e não para receber uma nota numa disciplina – que os nossos dedos se sentem realmente à vontade para correr livremente sobre o teclado. No primeiro caso, escrevemos praticamente sem pensar. Ou melhor, o ato de escrever e o ato de pensar se fundem numa unidade: pensamos à medida que escrevemos, e escrevemos à medida que pensamos. Tudo é natural. Não escrevemos tentando passar a impressão de que somos o que não somos. Não nos preocupamos em ser sérios e empostados, muito menos esnobes e empolados. Não substituímos as nossas palavras de uso diário por palavras de uso exclusivamente universitário. Não substituímos a nossa forma natural de expressão por uma forma artificial que visa gerar a impressão de que realmente sabemos do que estamos falando. Não escrevemos preocupados com a estética do saber. No segundo caso, também escrevemos praticamente sem pensar. Mas agora é porque todo o pensamento foi elaborado antes de sentarmos para escrever – ou porque simplesmente não foi elaborado. Não temos uma sacada a expressar. Não temos realmente nada a expressar. O ato de escrever e o ato de pensar se apartam, se distanciam – um some da vista do outro. Tudo é artificial. Escrevemos tentando passar a impressão de que somos o que não somos: preocupamo-nos em ser sérios e empostados, bem como esnobes e empolados:
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substituímos as nossas palavras de uso diário por palavras de uso exclusivamente universitário: substituímos a nossa forma natural de expressão por uma forma artificial que visa gerar a impressão de que realmente sabemos do que estamos falando. Em poucas palavras, escrevemos preocupados com a estética do saber. A adoção da estética da austeridade como uma tática para gerar a impressão de conhecimento é extremamente infeliz. Do ponto de vista estilístico, a filosofia andou na contramão da literatura do século XX. A primeira se enrijeceu e se mediocrizou, e o seu apequenamento estético não foi compensado por nenhum ganho epistêmico; pelo contrário, é justamente por causa dessa clausura estética que vastos territórios reflexivos permanecem ainda completamente inexplorados. Já a segunda ampliou não apenas os seus horizontes temáticos, como também os seus recursos expressivos. Enquanto a literatura usa fartamente a linguagem coloquial, já não distinguindo mais entre os termos cultos e as gírias, enquanto a literatura torce ferozmente a gramática e a ortografia, admitindo dentro dos seus domínios o que era antes terminantemente proibido, a filosofia continua humilde e obedientemente na era do narrador onisciente. Eu não fui ousado do ponto de vista estilístico neste livro. Eu apenas escrevi sem pensar. De fato, uma parte considerável das reflexões reunidas aqui foram originalmente formuladas em e-mails enviados aos meus amigos. E o que elas carregam em comum é a expressão de um desejo bem simples: abrir espaço para o florescimento da filosofia. Por mais que divulgar e comentar as obras dos filósofos supraequatoriais tenha lá o seu valor, comentar nunca foi, não é e nunca será igual a filosofar. Além do mais, ao contrário do que muitos professores apregoam, longe de ser necessário ser um bom comentador para ser um bom filósofo, é preciso antes ser um bom filósofo
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para ser um bom comentador. Você precisa ter algo a dizer para ter algo a dizer sobre o que os outros têm a dizer. Relendo hoje as notas reunidas aqui, fiquei com a impressão de que fui várias vezes mais agressivo do que o necessário e do que o desejável. Mas acho que não há razão alguma para suprimir a minha cólera e abrandar o meu tom agora. Este livro é acima de tudo um registro da minha indignação com a situação a qual os estudantes dos departamentos de filosofia brasileiros estão sujeitos. Acho que preciso esclarecer um ponto. Em vários momentos, eu menciono a professora Marilena Chauí, a maior especialista brasileira em Spinoza, para ilustrar as minhas críticas. Mas eu uso o nome de Marilena Chauí como uma entidade cultural. O meu objetivo não é de modo algum criticála e sim criticar a insistência da maior parte dos professores dos departamentos de filosofia brasileiros de que se deve comentar e não filosofar, o que pode ser expresso por “O que se deve fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real, não o que Spinoza fez quando escreveu a Ética”. Portanto, o que pode parecer à primeira vista uma crítica à Marilena Chauí é na verdade uma crítica à mentalidade reinante nos departamentos de filosofia brasileiros. É lamentável o fato de que ela conquistou respeito e admiração dentro da comunidade acadêmica não por suas próprias ideias, mas por seus comentários a Spinoza. Naturalmente, o problema não foi que ela escreveu uma obra monumental sobre um pensador clássico: ela tem direito de fazer o que quiser com o tempo de que dispõe para escrever. O problema é que se ela tivesse escrito uma obra monumental com os seus próprios pensamentos, ela muito provavelmente teria sido ridicularizada pela comunidade filosófica brasileira. O problema não está nos interesses teóricos particulares da Marilena Chauí (embora seja, sim, relevante perguntar como eles se constituíram), mas 47
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na mentalidade reinante nos departamentos de filosofia, que lutam tanto no plano institucional quanto no plano simbólico para literalmente massacrar qualquer movimento em direção à originalidade. E as mesmas observações valem, sem dúvida, para o professor Roberto Machado. As minhas críticas se dirigem à mentalidade que o louva não como pensador, mas como comentador. É inadmissível o fato de que um projeto de pós-graduação sobre as suas ideias não tem a mínima chance de ser aceito nos departamentos de filosofia brasileiros. É inadmissível o fato de que as suas obras só podem figurar na seção da bibliografia reservada para a literatura secundária, não na seção reservada para a literatura primária. Não tive a ajuda de um revisor. Também não domino bem a nova ortografia da língua portuguesa, que me pegou de surpresa. Então, espero que os meus erros de português sejam perdoados (achei melhor publicar logo este livro do que aguardar até que todos eles fossem corrigidos). De qualquer maneira, a melhor forma de ler este livro não é com as pontas dos dedos – é com os órgãos internos. Murilo Seabra.
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A arte de analisar poeira BLOCO 1
A arte de analisar poeira
1 No âmago do comentador fermenta uma dor indizível: “Eu queria ter tido essa ideia”. 2 Como os comentadores odeiam quem se atreve a sair do território do reescrever para entrar no território do escrever, quem se atreve a sair do território do repensar para entrar no território do pensar, quem se atreve a sair do território da repetição para entrar no território da inovação! Como eles odeiam quem se atreve a sair do território do comentar para entrar no território do filosofar! Como eles odeiam! Como eles odeiam! Trata-se de um ódio profundo... Trata-se de um ódio descomunal... Que fica muito bem escondido atrás de um ar de superioridade: “Você acha que está sendo original? Você só está repetindo o que outros filósofos já disseram! Você está apenas reinventando a roda!”, atrás de conselhos aparentemente responsáveis: “Você deveria estudar mais a fundo a história da filosofia! Sim, você deveria estudá-la mais a fundo! É preciso primeiro conhecer o que já foi feito! Só depois você terá condições de saber se as suas ideias são realmente novas! Só depois você terá condições de oferecer
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uma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente própria!”, e atrás de uma metafísica assustadoramente fatalista: “É impossível ser original nos dias de hoje... Nos tempos de Tales, era possível... Nos tempos de Descartes, era possível... Nos tempos de Heidegger, era possível... Mas nos dias de hoje? Ah, é impossível! Tudo já foi escrito!”. E o que ele está querendo é que você se conforme a fazer o que ele faz: o que ele está querendo é que você se conforme ao uso das funções de copiar e colar, CTRL+C e CTRL+V. O que ele está querendo é que você não use a sua energia! O que ele está querendo é que você abra mão das suas forças reflexivas! O que ele está querendo é que você jamais coloque o seu intelecto para trabalhar a todo vapor! O que ele está querendo é que você estabeleça em seu horizonte um objetivo absolutamente medíocre: o de ser um mero comentador, apenas um mero comentador, nada além de um mero comentador. Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente medíocre: o de encontrar o seu próprio Deleuze e tornar-se mais um Roberto Machado! Pois ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente medíocre: o de encontrar o seu próprio Spinoza e tornar-se mais uma Marilena Chauí! Tornar-se um comentador reconhecido, um comentador respeitado, um comentador imbatível: o que mais pode almejar um professor de filosofia brasileiro? Sim, os professores de filosofia brasileiros acalentam o sonho de serem eruditos. E eles querem que os estudantes acalentem o mesmo sonho: o de serem eruditos, apenas eruditos, nada mais do que eruditos. 3 Ah, como os comentadores adorariam saltar na garganta de quem se atreve a perseguir o ideal de escrever ao invés do ideal de reescrever! Mas eles represam os seus impulsos em nome de
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uma estratégia mais sutil, mais civilizada: a de deslegitimá-los, a de estigmatizá-los, a de torná-los alvo de riso, a de tornálos alvo de escárnio, a de despojá-los de sua lucidez, de sua sobriedade, de sua seriedade, de seus conhecimentos: “Você deveria estudar mais a fundo a história da filosofia! Sim, você deveria estudá-la mais a fundo! É preciso primeiro conhecer o que já foi feito! Só depois você terá condições de oferecer uma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente própria!”. Mas por que você acha que quero contribuir para as discussões típicas da história da filosofia ocidental? E por que você acha que conhece a história da filosofia ocidental mais a fundo do que eu? Acaso você sabe até onde realmente chegam os meus conhecimentos? O comentador passa de “Ele está fazendo uso de suas forças reflexivas a fim de pensar ao invés de repensar, a fim de desdobrar as suas próprias ideias ao invés de desdobrar as ideias alheias” para “Ele é um irresponsável, ele é um ingênuo, ele não tem conhecimentos acadêmicos, ele ignora a história da filosofia” de forma automática e irrefletida. Aos olhos dele, todo mundo que se coloca a trabalhar em sua oficina está necessariamente se colocando a trabalhar na reinvenção da roda. 4 Então, não se espante se o seu professor desdenhar das suas ideias! Não se espante se ele tratá-las com sarcasmo! Ele não quer que você faça o que ele não faz! Ele não quer que você mostre que consegue fazer o que ele não consegue fazer! 5 A maioria dos professores não tem o menor interesse em ajudá-lo a desenvolver as suas ideias. Pelo contrário, se você
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mostrar a eles os seus rascunhos, eles provavelmente tentarão redirecionar a sua energia e transformá-lo em mais um exegeta. É infinitamente melhor discuti-las com amigos! Sim, é infinitamente melhor discuti-las com amigos! Não há espaço para o desenvolvimento de ideias próprias nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje... Realmente, não há espaço... Infelizmente, não há espaço... Mas não deixe de trabalhar em seus pensamentos só pelo fato de que a universidade não serve como uma oficina! 6 O que você gosta de fazer com a sua energia? Você gosta de trabalhar em sua oficina? Então, trabalhe em sua oficina! Você gosta de pensar a todo vapor? Então, pense a todo vapor! 7 Os seus deverzinhos de casa, escreva-os para a academia. E as suas ideias, escreva-as para os seus amigos. Pois a academia não está interessada nas suas ideias, e os seus amigos não estão interessados nos seus deverzinhos de casa. 8 Não tome a filosofia acadêmica como um parâmetro na hora de desenvolver as suas ideias! Elas não precisam ter nenhuma semelhança com as ideias que circulam dentro da academia. 9 Eu não tinha entrado no curso de filosofia para ficar desempoeirando os clássicos, eu não tinha entrado no curso
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de filosofia para virar um espanador – então, revoltei-me, revoltei-me, revoltei-me: e gritei todos os argumentos que consegui formular contra o fato de que os absurdos escritos pelos estudantes eram vistos de cima para baixo (isto é, com um olhar hipercrítico), ao passo que os absurdos escritos pelos filósofos de renome eram vistos de baixo para cima (isto é, com um olhar hipercondescendente). Gritei, gritei, gritei – até ficar rouco – contra aquilo que queriam fazer de mim: contra o fato de que eu não poderia optar entre ser um filósofo e ser um espanador – contra o fato de que eu precisava, ao contrário, optar entre ser um espanador e não ser nada dentro da academia. 10 É importante escrever trabalhos acadêmicos! É importante escrever comentários! É importante escrever exegeses! É importante! De fato, não há nada mais importante aos olhos da academia... A maior parte dos professores de filosofia não está realmente interessada no que você pensa, não está realmente interessada nas suas ideias... Apenas em ver se você absorveu bem a matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! Apenas em ver se você domina com destreza a arte de usar as funções CTRL+C e CTRL+V! Sim, o que os professores de filosofia brasileiros de hoje fazem é apenas treinar os estudantes a usarem com destreza as funções CTRL+C e CTRL+V! Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben! Explique as ideias deles! Mostre que você absorveu as descobertas deles e que você é capaz de leválas adiante e de desdobrá-las! Mostre que você é um bom discípulo! Mostre que você é um bom boneco de ventríloquo! Sim, mostre que você consegue emprestar as suas cordas vocais
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aos pensamentos dos outros! Mostre que você pode ser um fiel porta-voz de um filósofo europeu ou norteamericano de renome! Mostre que você tem condições de entrar para o time empenhado em torná-lo um filósofo de renome! 11 Sim, o que os professores de filosofia brasileiros de hoje fazem é apenas treinar os estudantes a usarem com destreza as funções CTRL+C e CTRL+V! Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben! Os nomes não importam tanto... Eles mudam de tempos em tempos... O que não muda é o fato de que você precisa escolher um filósofo importante aos olhos dos professores do departamento e usar as suas forças reflexivas para escrever sobre ele... Sim, um filósofo importante aos olhos dos professores do departamento! Nunca lhe ocorreu que “ser um filósofo importante aos olhos dos professores” não é o mesmo que “ser um filósofo importante”? Nunca lhe ocorreu que podem haver filósofos importantes que os professores não tomam como importantes? Ou que os filósofos que eles tomam como importantes podem não ser importantes? Você entende a expressão “filósofo importante aos olhos dos professores” como se ela significasse simplesmente “filósofo importante”? 12 Reescreva a filosofia de Wittgenstein usando as suas palavras! Ou a filosofia de Heidegger! Ou a filosofia de Deleuze! Ou a filosofia de Agamben! Os nomes não importam tanto... Eles mudam de tempos em tempos... O que gera a impressão de avanço, a impressão de progresso... Os filósofos recém
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traduzidos imediatamente empurram os anteriores para o final da fila! 13 Os chamados “analíticos” e os chamados “continentais” não brigam tanto: estão ambos com os olhos voltados para o hemisfério norte ocidental. 14 A maior parte dos professores de filosofia não está realmente interessada no que você pensa, não está realmente interessada nas suas ideias... Apenas em ver se você absorveu bem a matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! Sim, é importante mostrar na atual conjuntura que se tem uma memória prodigiosa... Muito mais do que mostrar que se tem também capacidade de raciocínio! “Mas você está simplificando as coisas: não é verdade que os professores não se interessam pela capacidade de raciocínio dos estudantes!”. Mas às vezes é preciso simplificar as coisas para enxergá-las! Você já viu um mapa que não simplifica o que ele mapeia? Dizer que os professores estão mais interessados na memória do que no raciocínio dos estudantes não é uma simplificação irresponsável e gratuita; pelo contrário, é uma formulação em palavras simples das diretrizes que orientam as suas aulas. 15 É importante escrever deverzinhos de casa! Mas escrevêlos não é um trabalho importante em si mesmo... Toda a sua importância vem do fato de que os professores fazem com que seja importante. “Deverzinhos? Essa é uma expressão muito
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depreciativa!”. A qualidade dos deveres de casa depende da quantidade de liberdade concedida aos estudantes. 16 Com esmero! Escreva os seus deverzinhos de casa sobre Wittgenstein e Heidegger com esmero! Sim, escreva-os com esmero! Mas não se esqueça de que eles são apenas deverzinhos de casa! Apenas deverzinhos de casa! E se não foi simplesmente para adquirir um diploma que você entrou no curso de filosofia? E se não eram deverzinhos de casa o que você realmente queria escrever? 17 Por que você entrou no curso de filosofia?! 18 Você entende a expressão “filósofo importante aos olhos dos professores” como se ela significasse simplesmente “filósofo importante”? Definitivamente, existe um problema com a expressão “filósofo importante”! Sim, existe um problema com ela! Pois não há filósofos importantes em si mesmos! Na verdade, um filósofo importante é apenas um filósofo importante aos olhos de quem o considera importante! Aos olhos de quem batalha para torná-lo importante! E também, naturalmente, aos olhos de quem é convencido a considerá-lo importante! 19 O que faz um filósofo ser um filósofo importante?
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20 Não consideramos os filósofos importantes por eles serem importantes. Eles são importantes por nós os considerarmos importantes. 21 Ah, existem filósofos demais para serem todos considerados importantes! É preciso, portanto, submetê-los a uma triagem... Pois não cabem todos no curso de filosofia! Não cabem! Mas como fazer uma triagem que respeite a ordem objetiva das coisas? Isto é, como fazer uma triagem que espelhe a real importância deles? Mas eles mesmos não se organizam de forma espontânea e objetiva numa fila onde primeiro figuram os mais importantes e por último os menos! São as pessoas que os organizam em fila! São as pessoas! Ou melhor, são os professores! E você está de acordo com eles? E você já se perguntou como é que os professores dos departamentos de filosofia fazem as escolhas deles? Mas a escolha é feita mesmo por eles? Ou ela foi feita para eles – assim como está sendo feita para você? 22 Para um filósofo figurar no começo da fila, ele precisa, antes de mais nada, provir do hemisfério norte ocidental. “Mas você está simplificando as coisas! Por exemplo, não estudamos filósofos portugueses!”. Sim, estou simplificando as coisas – é importante simplificá-las. Um mapa de uma cidade pode muito bem se contentar em mostrar as suas ruas e avenidas, negligenciando os seus quebramolas e as rachaduras das suas calçadas! Um mapa que subtrai, que desconsidera, que
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elimina informações não é necessariamente um mapa que as deturpa! Pelo contrário! Da mesma forma, é absolutamente natural simplificar ao escrever... É absolutamente natural! Sim, escrever é simplificar! Os detalhes têm lá a sua importância... Mas é preciso antes de tudo ter uma visão geral das coisas para saber onde e como situá-los... Sim, sempre se subtrai, sempre se desconsidera, sempre se elimina quando se escreve! Sempre! Ou você acha que os seus queridos filósofos do hemisfério norte ocidental não simplificam ao escrever? Ah, como é forte o impulso para protegê-los! Os filósofos supraequatoriais não simplificam a realidade! Eles não subtraem, não desconsideram, não eliminam nada.... Eles mantêm todos os quebramolas e todas as rachaduras das calçadas! Por outro lado, como os subequatoriais são enviesados! Não os li... Não os li... Mas eu sinto que são enviesados! Sim, eu sinto! Eles subtraem, desconsideram e eliminam precisamente os dados mais importantes! Ah, como eles são enviesados! Quando os supraequatoriais simplificam a realidade, é para depurá-la e revelar os seus aspectos essenciais... Quando os subequatoriais a simplificam, é para deturpá-la. Pura e simplesmente, para deturpá-la. 23 Quando lemos filósofos com os quais nos sentimos indispostos de antemão, pensamos em linhas de crítica nas quais nunca pensaríamos se nos contentássemos apenas em ler filósofos com os quais estamos sentimentalmente prontos a aquiescer. 24 Observe como os olhos dos estudantes e dos professores de filosofia se movimentam quando eles entram numa livraria: os
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olhos deles se iluminam quando descobrem títulos de filósofos europeus que desconheciam (ou títulos desconhecidos de filósofos europeus que conheciam); e quando por acaso descobrem títulos de autores sulamericanos, as suas pupilas se contraem – os seus olhos se anuviam. Há uma perfeita continuidade entre a contração involuntária das pupilas e a irresistível certeza emocional de que os subequatoriais simplificam a realidade. 25 O fato de que distinguimos nitidamente entre os filósofos supraequatoriais e os subequatoriais pode ser lido no comportamento dos nossos olhos. E o que eles denunciam são os nossos desejos mais recônditos. A supervalorização dos filósofos das metrópoles e a subvalorização dos filósofos das colônias irradiam a partir do nosso íntimo. Em nossas subjetividades está inscrita uma sede profunda de europeidade. 26 Você não encontrará no departamento de antropologia um professor sequer que responderá a pergunta “Você é um antropólogo?” com um “Não, não sou um antropólogo”. Nem no departamento de história um professor sequer que responderá a pergunta “Você é um historiador?” com um “Não, não sou um historiador”. Mas nos departamentos de filosofia você encontrará aos montes professores que responderão a pergunta “Você é um filósofo?” com um “Não, não sou um filósofo”.
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27 Você já leu as obras escritas pelos seus professores? E quantas delas você realmente admira? Nenhuma? Então, por que você quer seguir o exemplo deles? 28 Os professores de antropologia querem que os seus estudantes se tornem antropólogos (não simples intérpretes de LéviStrauss ou de Viveiros de Castro). Os professores de história querem que os seus estudantes se tornem historiadores (não simples intérpretes de Bloch ou de Vansina). E os professores de filosofia? O que eles querem que os seus estudantes se tornem? 29 “Existe uma diferença entre ser um antropólogo e ser um intérprete de um antropólogo. Existe uma diferença entre ser um historiador e ser um intérprete de um historiador. Mas no caso da filosofia, as coisas são diferentes. O filósofo não faz pesquisas empíricas. Ele não vai para campo. Assim, não existe nenhuma diferença entre ser um filósofo e ser um intérprete de um filósofo.” Ah, não? Então, tente entrar num programa de mestrado ou de doutorado em filosofia com um projeto sobre as ideias do Roberto Machado! Sim, sobre as ideias do Roberto Machado! Sim, tratando as obras dele sobre Nietzsche, Foucault e Deleuze como literatura primária, não como literatura secundária! Tente! Então, não parece que do ponto de vista institucional existe uma diferença bastante nítida entre ser um filósofo e ser um intérprete de um filósofo? Uma diferença bastante nítida! “Mas no caso da filosofia, as coisas são diferentes. O filósofo não faz pesquisas empíricas. Ele não
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vai para campo. Assim, não existe nenhuma diferença entre ser um filósofo e ser um intérprete de um filósofo.” Se você se ativer ao que os professores falam, você será pura e simplesmente ludibriado. Você precisa se ater ao que eles fazem. 30 O que os professores querem é bem simples: que você mostre aptidão para ser um competente porta-voz de algum filósofo supraequatorial – mais especificamente, de algum filósofo europeu ou norteamericano... O que os professores querem é bem simples: que você mostre que pode ser um bom boneco de ventríloquo! O que os professores querem é bem simples: que você mostre que tem condições de entrar para o time empenhado em canonizá-lo... Porque é absolutamente fundamental canonizá-lo! É absolutamente fundamental insuflar importância nele! Você quer ser visto como alguém que estuda um filósofo sem importância? Então, ele precisa ser canonizado – para que o esforço que você dispensa em estudálo seja justificado. 31 Ser um porta-voz do pensamento de outrem e ser um pensador são duas coisas totalmente diferentes. O primeiro é uma espécie de comerciante que ganha a vida importando e distribuindo mercadorias intelectuais entre os famintos de erudição e de civilização. Ele depende inteiramente do segundo. Ele vive às suas custas, ele vive à sua sombra. O status que ele conquista entre os famintos é uma função direta do status do pensador cujos direitos de importação e de comercialização ele detém.
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32 Os professores de filosofia tentam estreitar a nossa concepção de filosofia: eles tentam nos fazer pensar que para escrever um texto filosófico é preciso escrever algo que esteja conectado com a filosofia acadêmica, e expresso na linguagem da filosofia acadêmica. 33 Os comentadores se amparam em regras institucionais – contra as quais argumentos, por se moverem no plano verbal, por se moverem no plano discursivo, são ineficientes. 34 “Mas é preciso dialogar com algum filósofo!”, dizem os professores. Mas em que sentido ‘é preciso’? A única verdade contida aqui é a seguinte: do ponto de vista institucional, é preciso dialogar com algum filósofo ocidental. Não se trata de um ‘é preciso’ que emana da natureza da filosofia! Não se trata de um ‘é preciso’ que emana da essência da filosofia! Mas você o trata como se emanasse da natureza da filosofia! Você o trata como se emanasse da essência da filosofia! 35 “Mas é preciso dialogar com algum filósofo!”. Ele certamente não está disposto a incluir no campo do termo ‘filósofo’ aquele pensador que conhecemos pessoalmente na rodoviária.
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36 Só é filosofia o que não é filosofia. 37 Dadas as regras que vigoram nos departamentos de filosofia brasileiros de hoje, até que ponto se pode tomar os trabalhos
acadêmicos dos estudantes como um testemunho confiável do que eles realmente pensam? 38 Até que ponto se pode tomar aquilo que os empregados falam sobre os seus chefes na frente dos seus chefes como um testemunho confiável do que eles realmente pensam? 39 Até que ponto se pode tomar o gesto de adoração do escravo diante da imagem de Nossa Senhora como um testemunho confiável das suas verdadeiras crenças? 40 O estudante, o empregado e o escravo possuem todos algo em comum: estão todos sob pressão institucional: estão todos privados de um elemento absolutamente essencial para o pleno
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desenvolvimento de sua própria energia e de seu próprio ser: a sensação de estar à vontade. O primeiro não se sente à vontade para expressar o que pensa porque não quer ser reprovado, o segundo porque não quer ser despedido e o terceiro porque não quer ser chicoteado. 41 Eles são constrangidos a usar um leque limitado de signos. E assim só conseguem expressar um leque limitado de sentidos. “Mas os estudantes continuam pensando de forma livre e autônoma!”. Aquilo que não tem lugar nas mentes dos professores, não tem lugar nas mentes dos estudantes. 42 Quando os signos são podados, os sentidos são podados. 43 A afirmação de que “Sempre poderemos reverenciar Iemanjá em segredo quando nos ajoelharmos diante da imagem de Nossa Senhora!” é como a afirmação de que “Sempre poderemos expressar as coisas que expressamos usando todo o alfabeto, mesmo que sejamos obrigados a usar apenas a letra ‘a’!”. 44 Sim, você pode ter certeza de que o escravo recém chegado ao Brasil ajoelha-se perante a imagem de Nossa Senhora e pensa em Iemanjá! Mas você não pode ter a mesma certeza de que o escravo nascido e criado no Brasil ajoelha-se perante a imagem de Nossa Senhora e pensa em Iemanjá!
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45 Julgando-o comunal demais, a academia o rejeita. Julgando-o acadêmico demais, os seus amigos o rejeitam. A primeira rejeição se baseia na impressão de que ele traz um perigo – e a segunda na impressão de que ele não traz perigo algum – para a lógica colonial. 46 Se um signo é externo a mim, eu sou externo a ele. Não tenho um laço afetivo com ele. Não me interesso por ele. Não injeto energia e vitalidade nele. Têm mais chances de serem bem sucedidos na academia os estudantes para os quais os signos ditados por ela não permanecem sendo signos externos. 47 Por que você diz que os estudantes podem relacionar-se com os signos impostos pela academia de muitas maneiras diferentes? Quais são os seus objetivos? Quais são as suas intenções? 48 Quem aceita uma imposição sem questioná-la não a sente como uma imposição. E uma coisa é questioná-la com uma camada muito superficial e frívola do intelecto – e outra coisa bem diferente é questioná-la com as entranhas. 49 Não existem filósofos canônicos. Apenas filósofos que canonizamos ininterruptamente.
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50 “Afirmar que os primeiros exercícios filosóficos serão forçosamente toscos, desajeitados, mesmo ingênuos, é proferir um truísmo banal, pois é forçosamente assim em todos os ramos do saber teórico (...). Haverá outra maneira de aprender a fazer algo, no campo teórico ou prático, senão começando a fazer e fazendo, de preferência sob o acompanhamento e aconselhamento de um mestre, aquilo que se quer aprender a fazer bem? Não é, aliás, o mesmo que ocorre no aprendizado da historiografia filosófica?”.1 Todo mundo sabe que não tem sentido tomar os parâmetros usados para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o comentar há mais de dez anos e usá-los para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o comentar há apenas um ano. Todo mundo sabe! Mas ninguém parece saber que também não tem sentido tomar os parâmetros usados para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o filosofar há mais de dez anos e usá-los para avaliar o trabalho de quem se ocupa com o filosofar há apenas um ano! 51 Só julgamos as formas embrionárias como se fossem formas adultas quando queremos que sejam abortadas.
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Originalidade BLOCO 2
Originalidade
52 “Contra o que habitualmente se pensa, estamos condenados a ser originais (...)”, escreveu Cabrera em sua discussão do caso Descartes vs. Agostinho.2 Trata-se de um texto que fala de Iemanjá através de Nossa Senhora... Usando apenas os signos acadêmicos, escrevendo um texto que poderia facilmente passar por um texto exegético convencional, ele mostra que estamos realmente muito mais dispostos a conceder mérito a um europeu sem mérito do que a um sulamericano com mérito. Não falamos que Descartes reinventou a roda mesmo tendo ele repetido quase literalmente Agostinho! Não falamos! E também não sentimos que ele reinventou a roda... Isto é, mesmo quando enunciamos em alta e clara voz “Descartes reinventou a roda”, ele continua grandioso aos nossos olhos... Ele continua a nos parecer um deus... Ele continua a nos parecer extremamente original. Descartes foi, sim, original! Como não pode ter sido? Não se desfaz com argumentos – por mais sólidos e contundentes que eles sejam! – uma obra de engenharia psicológica de anos.
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53 Mesmo quando os europeus e os norteamericanos reinventam a roda, sentimos com todo o nosso ser que eles foram originais... Mesmo quando os sulamericanos são originais, sentimos com todo o nosso ser que eles reinventaram a roda! Sim, somos hipercondescendentes com os europeus e os norteamericanos – e hipercríticos com nós mesmos... Ter ideias é algo reservado a eles... Ter boas ideias é algo reservado a eles... E não são apenas os sulamericanos que pensam que os europeus e os norteamericanos são superiores. Não são apenas os sulamericanos que têm certeza que os europeus e os norteamericanos são superiores. Eles também pensam que são superiores. Eles também têm certeza que são superiores. Os subequatoriais e os supraequatoriais não vivem em diferentes malhas simbólicas, apenas em posições diferentes da mesma malha simbólica. 54 Os comentadores não são tão sensíveis a argumentos quanto pensam... Os comentadores não são tão sensíveis a argumentos quanto querem que pensemos... 55 Então, não se espante se o seu professor desdenhar das suas ideias! Não se espante se ele tratá-las com sarcasmo! Não se espante! É realmente de se esperar que ele elogie os seus trabalhos medíocres, onde você não faz mais do que expor e discutir o pensamento de algum filósofo europeu canônico ou em vias de ser canonizado – e que ele ataque com fúria as suas tentativas de pensar por si mesmo e desenvolver as suas próprias ideias! 72
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Como notou Cabrera no seu Diário de um filósofo no Brasil, o professor de filosofia brasileiro em geral acha que é “muito difícil dizer algo ‘de novo’” por conta da “riqueza e variedade da história da filosofia”.3 Um estudante pode achar que teve uma ideia nova, uma ideia própria, uma ideia original, mas na verdade ter apenas reformulado uma ideia antiga. Tudo já foi pensado! “Esta costuma ser uma das maiores preocupações do filósofo acadêmico profissional. E quando palestramos em algum lugar tentando expor nossos próprios pensamentos, é comum notarmos uma tensão muito forte em nossos cultos ouvintes, como se estivessem forçando suas mentes na tentativa de lembrar onde eles já leram ou escutaram coisas parecidas, e as repetições e semelhanças, se descobertas, serão destacadas com especial satisfação no debate posterior.”4 Cabrera nos legou aqui uma observação etnográfica preciosa: de fato, quando mostramos aos professores de filosofia brasileiros as nossas próprias ideias, a primeira coisa que eles costumam fazer é dizer que elas não são nossas: trata-se do golpe que eles mais sentem prazer em desferir: “O que você escreveu não é original”. Do alto de seus saberes históricos (que eles consideram sólidos, vastos e profundos, mas que na verdade são frágeis, risíveis e superficiais), eles se arrogam o direito de desqualificar de maneira lacunar e não obstante taxativa toda e qualquer tentativa de pensar ao invés de repensar, de escrever ao invés de reescrever – de filosofar ao invés de comentar. 56 Uma coisa é como a atribuição de originalidade funciona. Outra coisa é como se pensa que ela funciona. E uma terceira 3
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coisa é como ela deveria funcionar. E as mesmas considerações podem ser feitas a respeito da atribuição de qualidade: como ela funciona, como se pensa que ela funciona e como ela deveria funcionar são coisas inteiramente diferentes. 57 Como medir a originalidade de um texto? Como afirmar com certeza que ele é original? Como afirmar com certeza que ele não é original? O que deve ser levado em consideração na hora de avaliar se um texto é original ou não? Podemos descobrir mais semelhanças entre os textos T1 e T2 do que entre os textos T3 e T4 e mesmo assim nos vermos obrigados a admitir que T2 é mais original em relação a T1 do que T4 em relação a T3? Sim, podemos nos ver obrigados a admitir que T2 é mais original que T4 se as semelhanças entre T1 e T2 forem semelhanças de opinião e as semelhanças entre T3 e T4 forem semelhanças de abordagem! O que realmente importa numa obra teórica é a sua abordagem! As semelhanças de opinião não podem ter o mesmo peso que as semelhanças de abordagem! 58 Imaginemos um caso bem simples. As pessoas A e B leram apenas os textos T1 e T2. O texto T2 foi escrito depois do texto T1. A primeira acha T2 original e a segunda não acha T2 original. Evidentemente, tanto A quanto B julgam-se perfeitamente racionais, e acreditam que em seus julgamentos só estão levando em consideração os teores de T1 e T2. Então, como explicar as suas diferentes opiniões sobre T2? É porque uma delas está enfatizando trechos irrelevantes dos textos em questão e obliterando trechos relevantes? Mas qual delas está enfatizando trechos irrelevantes e obliterando trechos 74
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relevantes? É porque uma delas tem uma compreensão mais exata do verdadeiro teor de T1, isto é, do que T1 realmente diz? Mas qual delas tem uma compreensão mais exata do verdadeiro teor de T1? É aquela que extrai mais ideias de T1 ou aquela que extrai menos ideias de T1? É aquela que vê as ideias de T2 em T1 ou aquela que não vê as ideias de T2 em T1? As divergências sobre a originalidade de T2 podem vir não apenas de divergências sobre aquilo que T1 diz de forma explícita, mas também de divergências sobre aquilo que T1 diz de forma implícita. Sim, quem estiver decidido a encontrar argumentos para demonstrar que T2 não é original, conseguirá certamente fazê-lo! 59 Imaginemos um livro que diga do início ao fim coisas como “O universo é constituído de microgirafas que amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras, que por sua vez formam microgatos, que por sua vez formam átomos”. Num certo sentido, ele será original – porém, a sua falta de seiva, a sua falta de substância, a sua falta de qualidade, fará com que hesitemos em chamá-lo de ‘original’. Pois não usamos o termo ‘original’ simplesmente para classificar os textos que dizem coisas que nunca foram ditas antes. Usamos o termo ‘original’ também como um indicador de qualidade: ele precisa conter ideias dignas de serem lidas. Poderíamos ressignificar o termo ‘original’ para que ele não tivesse responsabilidade alguma sobre a qualidade? Sim, poderíamos. Mas já entrevemos aqui uma parte da diferença entre como a atribuição de originalidade efetivamente funciona e como se pensa que ela funciona – e como ela deveria idealmente funcionar é naturalmente uma outra questão. Mas voltemos ao livro que diz do início ao fim coisas como “O universo é constituído de microgirafas que
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amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras”. Ele não poderia exercer um impacto filosófico muito maior do que um trabalho filosófico supostamente sério? Ah, o que mais se vê sendo produzido nos departamentos de filosofia brasileiros são trabalhos filosóficos supostamente sérios! Sim, os estudantes escrevem deverzinhos de casa – e os professores escrevem deverzões de casa. Mas qual é a diferença entre eles? Mas qual é a verdadeira diferença entre os deverzinhos e os deverzões? O que faz com que os primeiros sejam vistos como destituídos de toda a seriedade e portanto como totalmente descartáveis – e os segundos como investidos de seriedade e portanto como publicáveis? O que faz um deverzão de casa parecer elevar-se sobre os deverzinhos e escapar da sua condição de dever de casa? O seu tamanho? A quantidade e a diversidade das suas citações? A firmeza gramatical das suas frases? Pois certamente não é o seu conteúdo! Não é o fato de que ele é digno de ser lido! Não é o fato de que ele se eleva sobre os seus pares e escapa da sua condição de simples dever de casa! Por mais extenso que ele seja, por mais citações que ele faça e por mais que ele obedeça à risca as normas acromáticas da gramática oficial, um deverzão de casa jamais escapará da sua condição de deverzão de casa – ou melhor, da sua triste e dolorosa condição de mero deverzinho de casa hipertrofiado – pelo simples fato de estar perpassado e marcado pela submissão. Se você seguir com maestria e levar ao paroxismo as orientações intelectuais dos departamentos de filosofia brasileiros, você não produzirá obras filosóficas de valor, você produzirá, no máximo, deverzinhos de casa de valor – sem jamais, é claro, arranhar o fato de que realmente não há deverzinhos de casa de valor. Pois escrever deverzinhos de casa é sempre rebaixar de si mesmo. É sempre ser injusto com as próprias forças. É sempre desperdiçar sinapses nervosas. É sempre desperdiçar vida. Um livro que dissesse do início ao fim coisas como “O universo
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é constituído de microgirafas que amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras” despertaria comentários mordazes dos autores de deverzinhos de casa. Mas do ponto de vista da seriedade, ele não deixaria nada a desejar em relação aos deverzinhos de casa deles; do ponto de vista do conteúdo, ele não deixaria nada a desejar em relação aos deverzinhos de casa deles; do ponto de vista do valor, ele não deixaria nada a desejar em relação aos deverzinhos de casa deles. Pelo contrário, se distinguirmos entre conteúdo e impacto (se reconhecermos que o caráter filosófico de uma obra reside menos no seu conteúdo do que no impacto sobre o meio que a circunda), estaremos aptos a responder aos comentários mordazes dos autores de deverzinhos de casa com uma mordacidade agora perfeitamente justa e bem colocada: sim, um livro que dissesse do início ao fim coisas como “O universo é constituído de microgirafas que amontoam-se umas sobre as outras formando microcapivaras” seria aparentemente vazio e aparentemente ridículo. Mas ele teria muito mais impacto e seria assim muito mais filosófico do que os comentários sempre rasos e sempre risíveis que os professores escrevem e estimulam os estudantes a escrever sobre os pensadores europeus e norteamericanos! Os deverzinhos de casa propalados por eles são aparentemente profundos e sérios, são aparentemente investidos de verdade e de sabedoria... Mas o teste do impacto mostra que não são realmente filosóficos... Eles parecem sérios! Eles parecem profundos! E as suas qualidades terminam precisamente aqui: no nível do parecer... Em geral, os professores acadêmicos dirigem a atenção dos estudantes apenas para o conteúdo, como se ele fosse o território por excelência da filosofia. Mas do ponto de vista filosófico, não há conteúdo quando não há impacto... O conteúdo e o impacto não são como a água e o óleo... Não há como separá-los! Só tem impacto o que tem conteúdo... Só tem conteúdo o que tem impacto... O grande lance, portanto, não é 77
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simplesmente produzir uma obra que espante: que surpreenda: que intrigue – mas cujo impacto evapore rapidamente no ar, permitindo que a sensibilidade afetada volte ao seu marasmo e reassuma a sua forma anterior. O grande lance é responder as arbitrariedades supostamente sérias e profundas que nos circundam com sacadas que provoquem um abalo sísmico de efeitos duradouros. O universo que a ideia de impacto descortina ainda está por ser explorado! 60 Como funciona a palavra ‘novo’ dentro do contexto filosófico universitário? Uma coisa é usar a palavra ‘novo’ simplesmente de forma heterocrítica – como um elemento neutro da nossa reserva teórica – para qualificar os textos alheios: para valorizá-los (“Esse texto traz algo de novo”) ou desvalorizá-los (“Esse texto não traz nada de novo”). Outra coisa é transformar a palavra ‘novo’ em um tema de discussão: olhar para ela ao invés de pura e simplesmente olhar através dela. E quando se transforma a palavra ‘novo’ em tema de discussão, abala-se tanto a força legitimadora da afirmação de originalidade quanto a força deslegitimadora da negação de originalidade. De fato, o grande lance é transformar os componentes da nossa reserva teórica em temas de discussão: ao invés de perguntar “Ele é um pensador sério?”, perguntar “É preciso ser um pensador sério?”, “O que é ser um pensador sério?”, “O que faz um pensador ser um pensador sério?”, “O que deveria nos fazer considerar um pensador como um pensador sério?”. 61 O texto T2 é original? Ou ele apenas repete T1? Uma pessoa pode privilegiar certos traços de T1 e T2 para defender a 78
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afirmação de que T2 é original, e outra pode privilegiar outros traços para defender a afirmação de que T2 apenas repete T1. E além de discordarem quanto aos traços de T1 e T2 que devem ser avaliados, elas podem também discordar quanto aos critérios que devem ser empregados para avaliá-los. Por exemplo, uma pessoa pode dizer: (A) “T2 não é original, pois T1 diz a, b, c, d, ao passo que T2 diz b, c, d, e! Só há uma coisa que T2 diz e T1 não diz!”. Ou seja, a originalidade não é uma característica intrínseca, ela é uma relação. Para determinar a sua presença, é preciso analisar a relação entre dois textos. Mas outra pessoa pode dizer: (B) “Se você quer saber se T2 é original, não basta comparar T2 com T1! É preciso também ver como T4 é comparado com T3, como T6 é comparado com T5 e assim por diante! E observe que todo mundo considera T4 original, mesmo T3 dizendo f, g, h, i e T4 dizendo g, h, i, j! Como a distância entre T2 e T1 é equivalente à distância entre T4 e T3, então T2 deve ser considerado original, porque T4 é considerado original!”. Ou seja, a originalidade não é simplesmente uma relação, ela é uma relação de segunda ordem entre relações de primeira ordem.
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62 Os comentadores parecem usar critérios na hora de avaliar se um texto é original ou não. 63 Você precisa gerar a aparência de que está usando critérios para emprestar seriedade aos seus julgamentos! Inclusive aos seus próprios olhos! 64 Não são apenas os traços internos aos textos que os comentadores levam em consideração na hora de avaliarem se ele é ou não original. A nacionalidade do autor também conta! Sim, para eles a nacionalidade é decisiva! 65 A nacionalidade do autor também conta! Trata-se de um critério de atribuição (ou de supressão) do signo ‘novo’ realmente atuante, embora ele seja tão irracional que o fato de que ele é realmente atuante não pode em hipótese alguma ser reconhecido. 66 O comentador acha que estamos pedindo para ele abaixar o seu nível de exigência, mas só estamos pedindo para ele mantêlo. Do seu ponto de vista, porém, é exatamente o contrário que ocorre: achamos que estamos pedindo para ele manter o seu nível de exigência, mas estamos pedindo para ele abaixá-lo. 80
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Sim, é possível narrar as coisas das duas maneiras: as coisas de fato são narradas das duas maneiras: tanto do ponto de vista dos comentadores quanto do ponto de vista dos seus críticos. 67 Chegamos a arranjos sígnicos com base em critérios ou chegamos a critérios com base em arranjos sígnicos? 68 Os resultados da comparação não dependem apenas da comparação. 69 As reflexões metafilosóficas nos afastam do uso corrente e irrefletido da palavra ‘novo’, e nos levam a examinar aspectos seus que normalmente passam desapercebidos... Como o seu forte poder legitimador! E especialmente o forte poder deslegitimador de afirmações do tipo “O que você escreveu não é original!” ou “Isso já foi dito antes!”. 70 Por que negar a originalidade de um texto é reduzi-lo a cinzas? 71 Por que uma das formas preferidas de ataque ao valor dos textos pelos professores de filosofia brasileiros é justamente o ataque à sua originalidade? Por acaso um texto não pode ter outras qualidades? 81
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72 “Quando você for fazer o seu doutorado, você poderá ser original.” Ou seja, reprima-se – represe-se – por enquanto. Mas a verdade é que quando você for fazer o seu doutorado, você já não quererá mais desenvolver as suas ideias, você já terá outros objetivos, você já será outra pessoa. E se você por acaso olhar para atrás e lembrar das ideias que não desenvolveu, certamente você irá lamentar a ingenuidade delas: e você estará certo: porque você as deixou no estágio embrionário.
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Estética da austeridade BLOCO 3
Estética da austeridade
73 Eu senti a força da hipercrítica dentro de mim quando me sugeriram ler De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, do Gonzalo Armijos Palácios. Sim, eu senti a força da hipercrítica dentro de mim! “Gonzalo Armijos Palácios? Ele não deve ter nada a me acrescentar!”. O fato de que contesto a ideia propagada pelos professores e reproduzida pelos estudantes de que tudo o que vale a pena ser lido vem da Europa ou dos Estados Unidos não significa que eu não sinta que tudo o que vale a pena ser lido vem da Europa ou dos Estados Unidos. Não significa que as disciplinas que cursei ao longo da graduação não deixaram as suas marcas em minhas entranhas, não significa que não atuaram sobre os meus gostos e os meus desejos, não significa que não submeteram o meu ser a uma profunda e quase irreversível obra de engenharia: o que sinto permanece ainda defasado, muito defasado, em relação ao que penso e digo. E o meu comportamento, no fim das contas, atende mais ao que sinto do que ao que penso e digo. Sim, é o que eu sinto que determina os livros que efetivamente compro e que efetivamente leio: é o que eu sinto – não o que eu penso, não o que eu digo. É o que eu sinto: as nossas ações livres e espontâneas refletem muito mais os nossos sentimentos do que os nossos pensamentos. Os autores estrangeiros dilatam as minhas pupilas e enchem a minha
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boca de saliva: tenho vontade de lê-los: eles despertam os meus desejos. Antes mesmo de abrir seus livros, tomo como certo que lê-los será proveitoso. E se não for proveitoso? E se as minhas expectativas positivas forem frustradas? Não será por causa deles, será por minha causa. Por minha causa! Não, não foram eles que não conseguiram escrever nada de interessante, fui eu que não consegui compreendê-los! A seiva está lá latejando sob as suas palavras... Não posso culpá-los se não sou capaz de acessá-la... Ah, preciso ler mais, estudar mais, familiarizar-me mais com o seu linguajar... Mais, mais, mais... O que significa, na verdade, que não há espaço lógico para as minhas expectativas serem frustradas... Sim, com os autores estrangeiros sou hipercondescendente... As minhas faculdades críticas simplesmente entram em hibernação quando abro os seus livros... Ou melhor, não sou hipercondescendente com os autores estrangeiros, apenas com os autores europeus e norteamericanos: apenas com os autores reconhecidos: apenas com os autores consagrados: pois os africanos e os sulamericanos, também estrangeiros, não dilatam minhas pupilas, nem enchem minha boca de saliva: não despertam em mim as mesmas reações fisiológicas e emocionais que os autores europeus e norteamericanos despertam... Na verdade, eles despertam em mim reações fisiológicas e emocionais contrárias, milimetricamente contrárias... Para começo de conversa, não tenho nenhuma vontade de lê-los. Nenhuma! O que contrasta de forma patente com a minha sede infinita de livros europeus e norteamericanos... E mesmo que as ideias dos subequatoriais com as quais me deparei por um infeliz acaso sejam notáveis, mesmo que os raciocínios deles sejam impecáveis, precisarei realmente me esforçar para afastar a insistente impressão – a insistente certeza – de que eles não escreveram mais do que trivialidades... Mas eles não podem me surpreender? Eles não podem frustrar as minhas expectativas
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negativas? Não, eles não podem. Pois todo o meu ser está organizado de maneira tal que eles não são capazes mais do que confirmar o que eu já sabia: que em termos de originalidade e de seriedade, eles permanecem muito aquém dos europeus e dos norteamericanos: de fato, eles permanecem muito aquém dos critérios mínimos de qualidade: eu os leio com as minhas faculdades críticas funcionando a todo vapor ao invés de hibernando: ou melhor, elas agora já não apontam as suas flechas para mim, mas para o que tenho diante de mim: se não encontro nada de interessante em seus livros, o problema não está comigo, o problema está com eles: se não encontro seiva por baixo de suas palavras, é por suas palavras não terem seiva alguma a oferecer. Com os europeus e os norteamericanos, sou hipercondescendente. Com o resto do mundo, sou hipercrítico. No primeiro caso, abaixo a cabeça docilmente... No segundo caso, eu a levanto arrogantemente... Sou uma espécie de cão de guarda empenhado em proteger o status simbólico dos meus donos! A hipercondescendência e a hipercrítica são duas posturas complementares, duas posturas que considero intelectualmente equivocadas, mas que, em última instância, não consigo evitar: sim, elas foram aprendidas (logo, é possível desaprendê-las), mas elas foram aprendidas (logo, não é tão simples assim desaprendê-las). Desvencilhar-se da hipercondescendência com os europeus e os norteamericanos e da hipercrítica com os africanos e os sulamericanos não é como desvencilhar-se de “O Rio de Janeiro é a capital do Brasil” em favor de “Brasília é a capital do Brasil”. As primeiras não estão inscritas apenas no cérebro, mas em todos os órgãos internos. Substituir uma informação por outra é infinitamente mais fácil do que substituir uma reação emocional por outra. O primeiro passo talvez seja imprescindível para o segundo. Mas ele não leva inevitavelmente ao segundo.
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74 De fato, não é apenas para ler Wittgenstein que o leio. É para ganhar status! Não é apenas para ler Heidegger que o leio. É para ganhar status! Quando sento para lê-los, estou menos interessado naquilo que eles têm a dizer do que naquilo que eu mesmo terei a dizer depois de lê-los: que sei o que Wittgenstein pensa, que sei o que Heidegger pensa: que eu os li, que eu os compreendi: que eu conheço Wittgenstein e Heidegger, que eu domino Wittgenstein e Heidegger: que eu existo! 75 Comento, logo existo. 76 Os comentadores não leem... Eles também não escrevem: são os outros que escrevem através deles. 77 Há muitos europeus e norteamericanos instalados em nossas entranhas... Eles se instalaram? Nós os instalamos! Não lemos senão através deles: não escrevemos senão através deles: são eles que leem: são eles que escrevem: são eles que avaliam: são eles que julgam. São deles que emanam as leituras hipercondescendentes e hipercríticas... São eles que envolvemse com o ler e escrever em nosso lugar... 78 Quem é dócil ao ler, é dócil ao escrever. 88
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79 E quem não consegue envolver-se com o que lê nem com o que escreve, não pode senão odiar quem consegue. 80 Eu não extraio da leitura dos europeus e norteamericanos a sensação de que vale a pena lê-los. É a sensação de que vale a pena a lê-los que me leva a lê-los. Também não extraio da leitura dos africanos e latinoamericanos a sensação de que não vale a pena lê-los. É a sensação de que não vale a pena a lê-los que me leva a não lê-los. E as duas sensações são inabaláveis: elas sobrevivem a todos os contraexemplos: elas impedem que existam contraexemplos. Não há leitura neutra, não há leitura ponderada, não há leitura sóbria: leio os primeiros fazendo obsessivamente autocríticas: sempre há algo de errado comigo; leio os segundos fazendo obsessivamente heterocríticas: sempre há algo de errado com eles. No primeiro caso, elimino o sujeito da leitura: ninguém lê; no segundo caso, elimino o objeto da leitura: ninguém é lido. Ser hipercondescendente com os outros é ser hipercrítico consigo mesmo. Ser hipercrítico com os outros é ser hipercondescendente consigo mesmo. 81 A hipercrítica tem uma função bastante precisa: ensinar os estudantes subequatoriais a se aquietarem: ensiná-los a permanecerem em seus devidos lugares: ensiná-los a sentarem direito, a olharem para frente com atenção e admiração: ensiná-los a recopiarem obedientemente nos seus cadernos o que os professores copiam obedientemente no quadro: ensiná-los que devem consumir, não produzir conhecimento: 89
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ensiná-los que devem espanar, não filosofar. Eles precisam ter consciência do que podem e do que não podem fazer, do que são e do que não são: podem espanar, pois são espanadores; não podem filosofar, pois não são filósofos. O que podem fazer não é ditado de dentro para fora. Mas de fora para dentro. Suas capacidades precisam ser domesticadas, precisam ser aparadas, precisam ser mantidas sob controle: precisam ser canalizadas para o exímio, para o excelente, para o magistral espanar. A hipercrítica é implacável: se um estudante deixar o espanador de lado – se ele deixar a falta de capacidade que lhe imputam de lado – para esticar timidamente a mão em direção a uma caneta, uma nuvem de vespas virá imediatamente ferroá-lo. 82 Os conceitos de hipercrítica e de hipercondescendência também poderiam, é claro, ser respectivamente designados por ‘hipocondescendência’ e ‘hipocrítica’. Os subequatoriais não acertam. Os supraequatoriais não erram. As coisas são realmente assim? Não, elas não são assim. Mas elas têm que ser vistas assim. E uma ordem enunciada numa voz suficientemente firme e suficientemente imperiosa pode com efeito fazer com que o mundo se conforme rápida e obedientemente a ela: “Feche a porta!” – e pronto: lá está a porta trancada à chave e pregada à tábuas. Para se poder fazer constatações serenas e triviais como “Os subequatoriais não acertam” e “Os supraequatoriais não erram”, é preciso antes dar ordens veementes, obstinadas, sanguinárias – é preciso antes dar ordens que não admitam concessões.
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83 O problema não está propriamente nas deficiências dos trabalhos dos pensadores subequatoriais. O problema está antes nas exigências que – por definição – eles não podem atender. 84 Os níveis de exigência que os leitores brasileiros impõem aos textos variam conforme eles sejam assinados por europeus ou por sulamericanos. Na hora de avaliar um texto assinado por um europeu, eles são condescendentes. Na hora de avaliar um texto assinado por um sulamericano, eles mostram os dentes. O simples fato de que o autor é sulamericano proscreve de antemão a possibilidade de ele receber uma avaliação positiva do leitor brasileiro, e prescreve, no lugar dela, uma avaliação, no melhor dos casos, mediana. A nota máxima que o leitor brasileiro está disposto a dar ao texto de um autor sulamericano coincide com a nota mínima que ele está disposto a dar ao texto de um autor europeu. 85 Os leitores brasileiros avaliam com sobriedade os textos dos europeus e avaliam com ferocidade os textos dos sulamericanos? Ou eles avaliam com sobriedade os textos dos sulamericanos e avaliam com generosidade os textos dos europeus? Ou será que fazem as duas coisas, isto é, avaliam para menos os textos dos sulamericanos e para mais os textos dos europeus? Talvez não exista tendência alguma a desfavorecer os sulamericanos!
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Talvez exista apenas uma tendência a favorecer os europeus! Ou o contrário! Como saber? 86 Mas esse fenômeno da flutuação dos níveis de exigência conforme a nacionalidade do autor realmente existe? Para os comentadores – para a maior parte da comunidade filosófica acadêmica brasileira! – a resposta é obviamente negativa. Na hora de avaliar um texto, é apenas o seu teor que a razão leva em consideração! A metafilosofia combate fantasmas! 87 Mas não sabemos pela experiência cotidiana que semelhantes fenômenos de flutuação existem? Imagine um adolescente bem rebelde: ele não poderia, sem perceber, achar rasa e equivocada uma ideia defendida pela mãe dele, mas achar essa mesma ideia profunda e acertada quando vinda da boca de um amigo? A questão é saber se as flutuações também operam no âmbito da filosofia universitária brasileira de forma regular e sistemática. 88 De acordo com a maioria das pessoas que circulam nos departamentos de filosofia brasileiros, não existe nenhum favorecimento dos europeus e nenhum desfavorecimento dos sulamericanos. As obras são julgadas pelos seus conteúdos, e apenas pelos seus conteúdos. O que é bom, é bom. O que é ruim, é ruim. O que é original, é original. O que não é original, não é original. Se existem favorecimentos e desfavorecimentos, eles são ocasionais e acidentais. Não devem, portanto, exibir nenhuma regularidade. 92
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89 É tecnicamente bastante difícil mostrar num caso específico que o fenômeno da flutuação efetivamente ocorreu! 90 Se a flutuação existe no âmbito extrauniversitário, por que ela não pode existir no âmbito intrauniversitário?! 91 O estilo de escrita! Um texto com muitas citações não é apenas um texto que fala ao nosso intelecto, é também um texto que fala aos nossos sentidos... Sim, aos nossos sentidos! Do ponto de vista puramente estético, um texto que não possui citação alguma ou que possui apenas uma citação aqui e outra ali exerce sobre a nossa sensibilidade um impacto nitidamente diferente de um texto cuja vivacidade está completamente sufocada por citações... O primeiro não gera de forma tão contundente quanto o segundo a impressão de que estamos diante de um texto saturado de conhecimento, de um texto que não nos é oferecido simplesmente para desfrutarmos de suas subidas e descidas e idas e vindas... Não, ele tem algo a dizer... Uma verdade a comunicar... Ele é um texto sério... Um texto com teor cognitivo... É um texto no qual podemos confiar... A insistência na importância da leitura, em prejuízo do pensamento, sugere que o importante é mostrar grande erudição. E os artigos de filosofia são prova disso. As listas bibliográficas são enormes. Em artigos de apenas quinze páginas há mais citações e referências do que em obras 93
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inteiras dos filósofos conhecidos (...)! Quem insiste na importância da leitura deve pensar em quantas vezes os clássicos citaram em suas obras clássicas. As Meditações não fazem uma só citação. Nem a Crítica da razão pura. Não mostra isso de maneira clara que a ênfase deve ser posta não na leitura e sim em alguma outra coisa, como, por exemplo, na própria reflexão?5 É preciso acrescentar que para gerar o efeito estético de seriedade, para gerar o efeito estético de “grande erudição”, não basta pura e simplesmente citar abundantemente. É preciso também alinhar-se à política de citações que prescreve nomes europeus e norteamericanos e proscreve nomes africanos e latinoamericanos. Cite muito. Mas não de tudo! Leia muito. Mas não de tudo! Sim, aprendemos bem ao longo do curso de graduação quais leituras e citações irão nos rebaixar simbolicamente e quais leituras e citações irão nos elevar! Ah, como é diferente ler um texto que cita um europeu após o outro e ler um texto que cita um latinoamericano após o outro! Como é diferente ver uma bibliografia só com nomes europeus e uma bibliografia só com nomes latinoamericanos! Como é diferente! Os nomes europeus e os nomes latinoamericanos exercem impactos muito distintos sobre a nossa sensibilidade... Sobre a nossa sensibilidade! Sim, trata-se de uma questão estética! Somos sensíveis a argumentos. Somos sensíveis à razão. Somos sensíveis às tramas epistêmicas. Uma generalização suspeita nos traz uma sensação de desconforto, um raciocínio que nos parece ter dado um salto grande demais nos faz coçar as têmporas... Sim, somos sensíveis a maracutaias argumentativas, mesmo que nossas desconfianças sejam sentidas apenas nos
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recessos das nossas consciências. Sim, somos sensíveis à razão... Porém, somos muito mais sensíveis a aparências! Somos muitos mais sensíveis aos componentes estéticos do que aos componentes epistêmicos dos textos! Somos sensíveis a uma série de variáveis que não pertencem exatamente ao terreno argumentativo – sobretudo, somos sensíveis a nacionalidades! Elas guiam com as suas mãos invisíveis os nossos julgamentos! Sim, as suas mãos invisíveis! Pois sentimos com todo o nosso ser que os nossos julgamentos estão fundados única e exclusivamente na razão! Mas o fato é que teremos muito mais chances de ver as falhas argumentativas de um texto se ele for atribuído a um latinoamericano ao invés de um europeu. Muito mais chances! A europeidade nos amansa. Ela traz para o primeiro plano aquilo com que concordamos e joga para o segundo plano aquilo com que discordamos. Ela nos predispõe a ler aquiescendo. Ou melhor, a europeidade opera uma verdadeira mágica: ela muda o sentido da leitura e faz com que o texto escreva em nossas retinas! Ela faz com que ele se torne um parâmetro, uma régua, uma medida! A latinidade, ao contrário, desperta a nossa belicosidade. Ela atiça o nosso espírito crítico, ela convida os nossos dentes caninos, ela coloca os nossos dedos no gatilho. Europeus? Sempre estamos prontos a congratulá-los! Latinoamericanos? Sempre estamos prontos a estripá-los! E tudo isso acontece nos bastidores da consciência. E tudo isso acontece muito antes de considerarmos os conteúdos dos textos. E tudo isso acontece antes que possamos analisar objetivamente as suas ideias e os seus argumentos. A tendência a supervalorizar a europeidade e a subvalorizar a latinidade não vem de uma simples informação que pode ser facilmente substituída. Ela é antes a expressão de um longo processo formativo que imprimiu marcas profundas em nossas retinas. Podemos até clamar por latinoamericanos
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com as camadas mais superficiais do nosso ser. Mas os nossos anseios mais profundos são por europeus. 92 Ah, a estética do saber! A aparência epistêmica é tão importante quanto o conteúdo epistêmico! Ela pode ser buscada e alcançada de diversas formas... Através de citações e mais citações... Ou através de uma fraseologia pouco colorida... Deliberadamente pouco colorida! Tudo depende do público, é claro. Tudo depende do público. Ele pode não exigir uma supressão da cor... Contanto que elas permaneçam relativamente pálidas! Ou que elas variem entre alguns poucos tons de cinza! Pois um texto colorido demais já não é interpretado pelas nossas retinas como um texto que oferece conhecimento... Se ele tiver ingredientes epistêmicos, eles estarão em segundo plano, escondidos atrás do seu elevado teor estético... É como se a episteme e a estética fossem inversamente proporcionais! Como se uma refratasse a outra! E a detentora da palavra sóbria, da palavra séria, da palavra razoável, da palavra que merece ser ouvida, da palavra que não se perde em circunvoluções é a episteme, não a estética... É desestetizando-se que a crítica puxa para si mesma seriedade... É desestetizando-se que a crítica puxa para si mesma autoridade para julgar as obras de arte... É desestetizando-se... Ou melhor, é aparentemente desestetizando-se... Aparentemente! É tentando, através de uma cuidadosa alquimia, neutralizar os seus elementos estéticos... Pois tudo o que ela tem são elementos estéticos! Do mesmo modo, é desestetizando-se que a filosofia puxa para si mesma seriedade... É desestetizando-se que a filosofia puxa para si mesma autoridade para falar sobre a realidade... É desestetizando-se que ela diferencia-se da arte. Ou melhor, é aparentemente desestetizando-se... Aparentemente!
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93 Os ingredientes estéticos são inumeráveis... E também inelimináveis... Eles não podem sequer ser reduzidos... Só é possível, jogando com eles, dar a impressão de que estão ausentes. Mas o fato de que um triângulo é um triângulo escaleno não significa que ele não seja um triângulo! Ah, os artigos publicados nos jornais! Eles são cuidadosamente escritos de acordo com regras que visam eliminar o que têm de poético... Eles são cuidadosamente escritos de acordo com a estética da austeridade! Que é apenas uma estética entre outras! Qual jornalista nunca passou pela experiência de ter que substituir a última palavra de uma frase só porque ela rimava com a última palavra de uma frase vizinha? As rimas podem ser interessantes numa manchete... E no meio de um artigo, uma ou duas até são admissíveis... Pois elas têm uma grande chance de passarem desapercebidas... Mas as rimas não podem ser numerosas demais... Não, não podem... Se um jornalista sentou para escrever num dia particularmente inspirado e as palavras fluíram numa intensidade tal que o seu artigo ficou pronto em questão de minutos, ele precisará, no momento da revisão, retirar o excesso de rimas que porventura apareceram para não dar a impressão de que escreveu um texto poético... De que escreveu um texto não sério... O artigo já estava pronto! Já estava gramaticalmente impecável! Mas ficou gracioso demais... É preciso mexer nele! Sim, ele tem que desestetizar o seu artigo, ele tem que despi-lo da sua poesia, da sua fluidez, da sua cor, do seu sabor – para ele poder gerar a impressão de que é digno de confiança, e de que traz um sólido conteúdo epistêmico... A verdade é um subproduto da estética da austeridade... A epistemologia, no fundo, é apenas um ramo da estética... Ah, os ingredientes estéticos dos jornais televisivos! Eles não desempenham um papel fundamental na 97
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tarefa de fazer com que pareçam dignos de confiança? Como o apresentador pode não ser o porta-voz da realidade, se ele usa um terno escuro, se ele franze a testa nos finais das frases e se ele as pronuncia sempre com uma voz grave? Imagine um apresentador usando roupas alaranjadas com bolinhas azuis e quadradinhos verdes e modulando a sua voz constantemente! É claro que os sinais da seriedade podem variar de lugar para lugar e de época para época... E que nem todo mundo os leva invariavelmente a sério... Mas eles existem... Sem dúvida, eles existem! 94 A filosofia está literalmente estrangulada pela estética da austeridade. 95 A metafilosofia não tem apenas um nódulo político a massagear. Diante dela está também um nódulo estético. 96 A europeidade é um ingrediente estético que contribui significativamente – decisivamente – para produzir a sensação de que o texto à nossa frente merece atenção, de que o texto à nossa frente tem algo de importante, de sério e de profundo a dizer. A latinidade, ao contrário, é um ingrediente estético que refrata a sensação de solidez: ela nos faz olhar o texto à nossa frente como se ele tivesse sido escrito não por mãos divinas e sim por mãos humanas: ou por mãos subumanas: não conseguimos levar a sério as coisas nas quais a latinidade deixa o seu tempero. 98
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97 A europeidade inspira reverência. A latinidade inspira irreverência. 98 Se as nossas sensibilidades permanecerem eurocentradas, os nossos pensamentos também permanecerão eurocentrados. 99 “Resguardemo-nos de retirar de nossa ciência sua parte de poesia. Resguardemo-nos, sobretudo, já surpreendi essa sensação em alguns, de enrubescer por isso.”6 Enrubescer! Não devemos subestimar o quão profundamente inscritos em nossos órgãos internos estão os microtabus disciplinares: temos uma reação pática absolutamente intransigente quando vemos a ciência e a filosofia colocadas ao lado da poesia: a ciência e a filosofia, pensamos, ocupam-se com o conhecimento – apenas com o conhecimento: precisam se depurar: precisam se desestetizar: precisam até mesmo se enfeiar: quando são aproximadas da poesia, elas entram num processo de erosão... A ciência e a filosofia temem ser castigadas perdendo a coroa do saber caso mostrem personalidade ao invés de mediocridade estilística. Quanto mais apagada e desajeitada for uma obra do ponto de vista estético, mais notável ela será do ponto de vista epistêmico!
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Tabela 1
100 A tabela 1 nos permite vislumbrar o imenso universo de regras implícitas que governam de forma rígida e autoritária a produção intelectual do departamento de filosofia da UnB. Observe que os títulos das dissertações não revelam tão claramente quanto os títulos dos seus capítulos o fato de que no departamento de filosofia da UnB é preciso comentar, não filosofar! Ou seja, quando analisamos somente os primeiros (os títulos das dissertações), ficamos com a impressão de que existe, sim, bastante espaço no departamento de filosofia da UnB para o autêntico desenvolvimento do pensamento: você pode, sim, filosofar ao invés de comentar: você pode, sim, escrever ao invés de reescrever: você pode, sim, pensar ao invés de repensar: você pode, sim, produzir ao invés de reproduzir. Mas quando passamos aos segundos (os títulos dos capítulos),
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vemos que as coisas não são bem assim. Pelo contrário, embora a liberdade da filosofia seja muitas vezes glorificada, o fato é que as suas chances de ser admitido nos programas de mestrado e doutorado em filosofia aumentam consideravelmente quando você apresenta um insípido projeto exegético sobre um filósofo europeu de renome – e diminuem drasticamente quando você apresenta um projeto que revela a sua intenção de filosofar! 101 Sim, podemos ler as definições por trás do caráter supostamente indefinível da filosofia nos produtos dos seus esforços. O fato de que uma regra é implícita não significa que ela não seja atuante. Mas é bastante difícil contestá-la – pois como nada explicitamente está dito, parece que não há nada a ser contestado!
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A filosofia acadêmica não teve século XX BLOCO 4
A filosofia acadêmica não teve século XX
102 É possível narrar a história da arte moderna e contemporânea de várias maneiras diferentes... Nada nos impede, por exemplo, de afirmar que desde o Salon des Refusés o que ela tem vivido não é nada mais e nada menos do que um lamentável processo de degradação... O impressionismo fez a pintura perder completamente o rumo... Já que só é possível assinalar os inícios retrospectivamente e arbitrariamente, podemos dizer que a queda da arte começou no momento preciso em que Monet encostou o pincel na tela pela primeira vez! As pinturas que passaram a atrair a atenção desde então são tão ruins que poderiam ter sido feitas por crianças! Não encontramos formas igualmente indefinidas e cores igualmente borradas nas paredes dos hospícios? Igualmente indefinidas! Igualmente borradas! Num caso, porém, temos um não saber pintar involuntário, não escolhido, e menos ainda alardeado... No segundo caso, temos um não saber voluntário, escolhido, alardeado, muito alardeado... E a pintura arrastou consigo a música... Que começou a substituir paulatinamente suas composições refinadas e engenhosas por ruídos cimentados uns sobre os outros das formas mais rudimentares possíveis... E a poesia? A poesia do século XX decaiu perceptivelmente em relação à poesia do XIX: os versos cuidadosamente metrificados, as
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rimas cuidadosamente elaboradas, os temas cuidadosamente escolhidos cederam lugar a aberrações simplesmente indignas do rótulo ‘poesia’. E a escultura? A mesma coisa aconteceu com a escultura! A mesma coisa! Seus artífices também resolveram desaprender a esculpir... Já nos fins do XIX a falta de habilidade com o bronze e o mármore começaram inspirar mais respeito e admiração do que a habilidade... E o teatro? Um absurdo! Um absurdo! O desnorteamento total da crítica se mostra claramente no fato de que a Semana de 22 é hoje aplaudida! Aplaudida! Ah, o mundo está de cabeça para baixo... 103 Sim, a história da arte moderna e contemporânea pode ser narrada como uma história decadente... Como uma história de perda de parâmetros... De perda de critérios... De perda de valores... De perda de sentido... De perda de talento... De perda de equilíbrio... De perda de técnica... De perda de originalidade... De perda de qualidade... De perda de identidade... De perda de si mesma... De perda... Só de perda... A história da arte moderna e contemporânea pode ser narrada como uma história puramente negativa... Não houve nela ganhos... Só perdas... Ela não avançou... Só regrediu... E ela de fato foi narrada assim... Por várias vozes... Situadas nos mais diversos nichos da cultura... Dentro das instituições... E também nas ruas... Tanto na esfera pública... Quanto na esfera privada... Algumas com mais poder de influência sobre o curso dos acontecimentos... Outras com menos... Mas nenhuma sem poder algum e nenhuma com todo o poder nas mãos: a força das vozes é sempre ponderada, o que evita ao mesmo tempo que decidam tudo e que não decidam nada.
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104 Sim, houve mãos que empunharam a pena para escrever a história da decadência da arte... Contudo, não conseguiram impor a sua versão dos fatos... Que para elas talvez não fosse apenas a versão correta, mas a única versão concebível! Sim, a única versão concebível! Uma coisa é pensar da forma x e admitir a possibilidade de se pensar da forma y sem estar com a cabeça fora do lugar... Outra coisa é pensar da forma x e não admitir a possibilidade de se pensar da forma y sem estar com a cabeça fora do lugar! Concedemos a todo mundo o direito de achar o que quiser... Mas não de saber o que quiser! Sim, vale a pena examinarmos o modo como utilizamos os verbos ‘achar’ e ‘saber’. Nós sabemos! Os outros acham! 105 Mas é possível também narrar a história da arte moderna e contemporânea como se ela tivesse sido marcada não por um desregramento gratuito e sim por uma luta bastante meditada contra os limites inteiramente arbitrários que sufocavam o seu desdobramento... As colagens de Braque e Picasso não perverteram a pintura, elas ampliaram os seus horizontes plásticos... Ao desafiar a fronteira que separava os sons que poderiam ser legitimamente utilizados dos sons que deveriam ser obrigatoriamente descartados pela música (em suma, ao defender o direito de cidadania dos ruídos), John Cage não trabalhou em prol da degeneração da sua arte, ele não trabalhou em prol da sua queda de qualidade, ele trabalhou em prol da sua renovação, ele trabalhou em prol do alargamento do seu universo de possibilidades. “Tudo é válido. Entretanto, nem
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tudo é tentado.”7 O que motivou a crítica de Monteiro Lobato a Anita Malfatti não foi o bom senso... Não foi o bom gosto... Não foi a lucidez... Não foi a perspicácia... Foi a estreiteza! Não há mistério nenhum aqui! As coisas são de fato muito simples, muito simples... Ele se autorrepresentava como um mero defensor dos “princípios imutáveis” da arte, um mero defensor das suas “leis fundamentais”.8 Mas ele foi apenas o porta-voz da mentalidade do seu tempo e do seu meio, que o atravessava e o ultrapassava... Uma mentalidade! Sim, uma mentalidade! Princípios imutáveis? Leis fundamentais? O que os críticos esquecem é que até os princípios mais imutáveis e as leis mais fundamentais têm história e também geografia! Eles variam de época para época e de lugar para lugar... Eles são verbalizações de uma sensibilidade local e transitória... Princípios imutáveis? Leis fundamentais? Eles estão muito longe de ser meras traduções das ranhuras da sensibilidade para a linguagem cotidiana! Meras traduções? Ah, muito longe! Pelo contrário, eles imprimem nela as suas marcas... 106 Sempre puxamos as palavras solidificadoras para as nossas próprias opiniões (por exemplo, a palavra ‘saber’, que finca o sabido no chão) e sempre empurramos as palavras volatizadoras para as opiniões dos outros (por exemplo, a palavra ‘achar’, que arranca o achado do chão). Tentamos solidificar o que afirmamos (e os outros negam) e volatizar o que negamos (e os outros afirmam)!
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107 As palavras legitimadoras (como ‘saber’) encontram-se no meio de uma partida interminável de cabo de guerra, e as deslegitimadoras (como ‘achar’) no meio de uma partida interminável de batata quente... As palavras legitimadoras, nós as puxamos com toda a força para a nossa própria visão das coisas... As palavras deslegitimadoras, nós as lançamos sobre a visão que os outros têm das coisas... Embora dêem-se como novos, como precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e a mistificação.9 Vocês querem a palavra ‘novo’? Não, vocês não podem ficar com ela! Trata-se de uma palavra legitimadora demais... Tomem a palavra ‘velho’! E fiquem também, de quebra, com a palavra ‘anormal’. A opinião que Monteiro Lobato expressa em seu artigo não é mais do que a “opinião geral do público não idiota” e “dos críticos não cretinos”.10 Ou seja, nem todo mundo pensa como ele sobre a arte moderna... Por exemplo, os idiotas não pensam como ele! Os idiotas e os cretinos! Sim, é possível simpatizar com as obras de Anita Malfatti! Porém, é só quem não simpatiza com elas que está “de cabeça não virada”!11
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108 A estreiteza foi jogada de um lado para o outro pelas diferentes visões críticas da arte moderna e contemporânea... Ninguém queria ficar com ela! De um lado para o outro, de um lado para o outro... Até que um dos lados não encontrou mais forças para tornar a jogá-la, não encontrou mais forças para desfazer-se dela... E se deixou ser estigmatizado... Conformado ou não com a derrota, precisou, não obstante, conformar-se com a sua perda de status – com a sua perda de espaço tanto no universo simbólico quanto no universo institucional. 109 Quando nos aproximamos do fim de uma guerra simbólica, durante a qual tudo é confuso, tudo é incerto, a palavra ‘estreiteza’ deixa de ser uma palavra que ninguém sabe exatamente onde colocar e começa a criar raízes num lugar bem preciso... Não sou eu que penso que Monteiro Lobato foi estreito! Ele foi estreito! 110 Quando vencemos uma guerra simbólica, deixamos de achar que as coisas são desse ou daquele jeito e passamos a saber que elas são desse ou daquele jeito. 111 Mas é apenas lentamente que o mar de signos se aquieta num arranjo que favorece uma das partes litigantes... É apenas aos poucos... Paulatinamente... Gradativamente... Afinal, é de uma mentalidade que estamos falando! Uma pessoa pode mudar 110
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subitamente de opinião. Mas quando consideramos um número maior de pessoas, as mudanças ficam proporcionalmente mais lentas... Aos poucos, aos poucos... Princípios imutáveis? Leis fundamentais? O que era antes um fato vira uma opinião e o que era antes uma opinião vira um fato... Sim, os fatos podem ser volatizados e as opiniões podem ser solidificadas! Monteiro Lobato foi estreito! Sim, ele foi! Não acho... Eu sei! As opiniões que vencem a guerra deixam de ser opiniões... Deixam de parecer performativas para parecerem puramente descritivas... Puramente descritivas... Uma opinião verdadeira e justificada já não é mais uma mera opinião! 112 Temos espalhado sobre a realidade um mar de signos: um mar que não está de modo algum parado, por mais que pareça quieto: um mar que está constantemente se reconfigurando. Toda a massa líquida sustenta-se sobre um fundo sólido... Mas ele também está em movimento... Em boa medida, por causa do movimento da água... E ele também faz com que ela se movimente... 113 Os arranjos sígnicos dependem menos dos arranjos da realidade do que do modo como queremos arranjá-la. 114 Não nos contentamos em reduzir as opiniões das outras pessoas a meras opiniões! Também queremos fazer com que elas sejam apenas instâncias ou casos específicos de uma opinião que em última análise nem sequer é delas... De uma 111
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opinião que as perpassa... De uma opinião que as ultrapassa... Sim, tratamos de diluir toda a autonomia de pensamento delas numa mentalidade! Numa mentalidade! Não é você que pensa assim. Não se trata de uma opinião sua. Você que é dela. 115 Os signos legitimadores são puxados continuamente para perto... Os signos deslegitimadores são empurrados continuamente para longe... E assim eles vão de um lado para o outro, de um lado para o outro, de um lado para o outro... Até que se fixam. Quem prefere o signo ‘conservador’ ao signo ‘inovador’? Quem prefere o signo ‘reacionário’ ao signo ‘revolucionário’? Quem prefere que as suas opiniões sejam desclassificadas como simples expressões de uma mentalidade ao invés de serem vistas como expressões autônomas de uma razão sóbria e senhora de si? Quem quer ser estigmatizado? É só quem não dá a mínima para os seus próximos que consegue aceitar de bom grado as qualificações que lhe são imputadas. 116 A história da disciplina de história ao longo do XX foi quase tão turbulenta quanto a história da arte... Ela passou por transformações epistemológicas tão profundas que se um eminente historiador do início do XX fosse transportado para os dias de hoje, ele provavelmente cairia em prantos... O que aconteceu com a minha disciplina? História econômica? História das mentalidades? História vista de baixo? História da infância? História do meio ambiente? História oral? História das mulheres? História das drogas? Ah, a história voltou ao antiquarismo! A razão é que no início do XX os historiadores achavam que a história precisava se debruçar exclusivamente 112
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sobre questões políticas... Não sobre questões políticas do presente, é claro... Mas sobre questões políticas do passado! Assim, eles não chamavam o que faziam de ‘história política’ nem de ‘história do passado’, muito menos de ‘história tradicional’. Eles chamavam o que faziam simplesmente de ‘história’ e a si mesmos simplesmente de ‘historiadores’! Os fenômenos políticos do passado esgotavam tudo o que havia para ser legitimamente estudado pela história... Tudo! 117 Quando Marc Bloch e Lucien Febvre começaram a fazer história econômica, os historiadores estabelecidos sentiram imediatamente as suas entranhas reagindo... Não se tratava de história e sim de jornalismo ou algo do gênero! “A história é a política do passado; a política é a história do presente”, como cunhou John Seeley: trata-se realmente de uma elegante e apelativa microdefinição de história, que para ele era evidentemente uma descrição neutra e objetiva da essência de sua disciplina.12 Não apenas de como ela era, mas também de como ela deveria ser... É claro que ninguém dispunha de força para proibir Bloch e Febvre de tematizarem o que bem entendessem... Eles podiam escrever sobre a economia! Eles podiam escrever sobre a cultura! Eles podiam escrever sobre o presente! Eles podiam escrever sobre qualquer coisa! Sim, eles podiam! Contanto que não chamassem o que escreviam de ‘história’. Se quisessem usar o rótulo ‘história’, que escrevessem sobre questões políticas do passado! Nem tudo é história... Nem tudo! Há espaço para tudo... Mas não dentro da disciplina de história!
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118 Marc Bloch e Lucien Febvre lançaram a revista Annales d’histoire économique et sociale em 1929... Sim, 1929! Quando a esfera econômica atraiu subitamente tanta atenção quanto a esfera política... Era impossível portanto ignorar o que eles escreviam... Mas não faltou quem dissesse “Isso não é história!” em resposta aos seus extravagantes trabalhos, que passavam ao largo da política do passado... Nem quem dissesse que se eles satisfaziam os requisitos mínimos necessários para serem considerados trabalhos históricos, não satisfaziam os requisitos mínimos necessários para serem considerados trabalhos históricos de qualidade... Os requisitos mínimos necessários! Entre 1929 e 1945, apenas 2,8% dos artigos publicados nos Annales foram dedicados à história política... Mas eles representaram 49,9% dos artigos da Revue historique. Evidentemente, os historiadores dos Annales sabiam perfeitamente que estavam transgredindo tabus... O que explica o fato de no mesmo período haver nos Annales uma proporção significativamente maior de artigos discutindo teoria do que na Revue historique.13 E além de desafiarem os limites temáticos da história, ameaçando a sua nobreza, as novas gerações desafiaram também os seus limites metodológicos, ameaçando a sua solidez... Era mesmo imprescindível utilizar fontes não oficiais? Era mesmo preciso aventurar-se em terrenos tão pantanosos? Ah, baderneiros! As novas gerações lidavam com temas de pouca importância empregando métodos pouco confiáveis!
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119 O uso abundante de fontes não oficiais na primeira metade do XX e de fontes orais na segunda metade pareceu aos historiadores tradicionais um verdadeiro ultraje à seriedade científica do seu campo de estudos. Contudo, os que na primeira metade do XX formavam a esmagadora maioria, no fim do XX já formavam a esmagada minoria. 120 As transformações epistemológicas pelas quais passou a disciplina de história realmente não aconteceram de forma suave e tranquila... O processo foi traumático para as duas partes litigantes... Não apenas para os historiadores das novas gerações cujo status de historiadores era continuamente colocado em questão... Mas também para os historiadores tradicionais, que perderam o poder de condecorar o que lhes agradava e de condenar o que lhes enfezava... Historiadores tradicionais? Eles não viam a si mesmos como historiadores tradicionais! Eles eram os guardiães da história! Da verdadeira história! Sim, a adjetivação foi proposta por seus adversários... Que pretendiam mostrar que eles tematizavam apenas uma parcela do que era legítimo tematizar, utilizando apenas uma parcela dos métodos que era legítimo utilizar... E o fato de que ela criou raízes, o fato de que hoje chamamos de ‘história tradicional’ a história que segue a lógica fabril da história do início do XX, significa que os historiadores das novas gerações venceram a luta para alargar os horizontes temáticos e metodológicos da história...
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121 A história oral só conseguiu se consolidar nas últimas décadas do XX. Pois ela encontrou uma resistência enorme por parte dos historiadores! Contudo, a história oral encontrou também um número significativo de historiadores prontos a defendê-la e sobretudo a exercê-la, sem os quais ela certamente não teria hoje o lugar que tem dentro da disciplina de história... Todo o mar de signos que banhava a história oral foi reconfigurado. Não espontaneamente. Mas por meio de lutas. Ela deixou de ser objeto de escárnio: Os historiadores das sociedades modernas, industriais e maciçamente alfabetizadas – ou seja, a maior parte dos historiadores profissionais – em geral são bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado. “Nesta questão eu sou quase totalmente cético”, observou A. J. P. Taylor, causticamente. “Velhos babando acerca de sua juventude? Não!”14 para tornar-se uma parte indispensável da história: Quanto às fontes orais, são intrinsecamente diferentes das fontes escritas, mas são do mesmo modo úteis. (...) O grupo a que pertenço, em Barcelona, é contra a história social, a história política, a história das mulheres, a história dos marginais; nós queremos uma história sem adjetivos, uma história bemfeita, uma história que seja útil. E estamos 14
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convencidos de que essa história bem-feita, sem fontes orais, é uma história incompleta.15 Do mesmo modo úteis! Pouco a pouco, vários dos signos chamados para deslegitimar a história oral (‘frágil’, ‘imprecisa’, ‘insatisfatória’, ‘incompleta’, ‘inacabada’ etc.) passaram a ser usados para qualificar a disciplina de história como um todo: Ao mesmo tempo, sabemos que a fonte oral é uma fonte viva, é uma fonte inacabada, que nunca será exaurida, e portanto que a história bem-feita que queremos fazer é uma história inacabada. (...) Mas a história que queremos fazer é mais completa que uma história contemporânea feita sem fontes orais.16 perdendo assim a razão de serem vistos como signos deslegitimadores! Fiquemos em paz... Estamos todos condenados ao inacabamento! Estamos todos condenados à imprecisão! 122 Monteiro Lobato não tentou deslegitimar a arte moderna dizendo que ela não era nova e sim velha? A história oral tentou legitimar a si mesma dizendo que ela era velha e não nova: No cerne do contra-discurso elaborado pela história oral no decorrer dos anos 60, há, em primeiro lugar, a vontade de derrubar o interdito
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estabelecido pela história crítica do século XIX, que expulsa a tradição oral do campo científico em proveito das fontes escritas. A história oral opõe a esse veto uma dupla questão acerca da legitimidade e, sobretudo, da anterioridade milenar. Convoca o pai da história, Heródoto, que foi o primeiro a realizar o seu inquérito, com o olho e o ouvido, com a observação direta e o testemunho. (...) A história oral, assim, vem se dando títulos de nobreza antiga (...).17 Então, a história oral representou ou não uma ruptura com a história da primeira metade do XX? Ela estava ou não em continuidade com a metodologia tradicional da história? Havia razão ou não para escandalizar-se com o uso de gravadores de voz? O signo ‘velho’ não é invariavelmente deslegitimador, nem o signo ‘novo’ invariavelmente deslegitimador! 123 Ah, um pouco de reflexão sobre o que se faz nos departamentos de história basta para revelar que nos departamentos de filosofia não se faz história da filosofia e sim exegese (mais ou menos como os teólogos fazem exegese bíblica). Quem ainda quiser defender que nos departamentos de filosofia se faz história da filosofia, precisará estar preparado para defender que a revista de celebridades Caras é uma revista de sociologia!
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124 Os horizontes temáticos e metodológicos da história eram muito mais estreitos no início do XX do que são hoje... E eles não se ampliaram sozinhos... Eles não se ampliaram espontaneamente... Houve uma luta para ampliá-los... Bem como para deter a sua ampliação! Houve uma luta para transformá-los de limites racionais em limites arbitrários... Uma luta que processou-se tanto por meio de trabalhos que os colocavam explicitamente em questão quanto por meio de trabalhos que simplesmente não os levavam em consideração. 125 Os historiadores que se posicionaram contra as transformações fabris da história não estavam, aos seus próprios olhos, tentando impedir o desenvolvimento da sua disciplina, mas tentando impedir que ela se degradasse... Eles achavam que ela não poderia ser modificada sem ser descaracterizada... Quando Bloch e Febvre começaram a fazer história econômica, os historiadores do seu tempo e do seu meio não quiseram chamá-la de ‘história’. Por quê? Eles incluíam o objeto de estudo ‘política’ na própria definição do campo de estudo ‘história’! O que deveria ter permanecido em silêncio... 126 A situação ideal para os historiadores tradicionais é sempre aquela onde eles não precisam enunciar em alta e clara voz: “Os problemas que tematizamos e os métodos que utilizamos esgotam os problemas tematizáveis e os métodos utilizáveis pela disciplina de história”. Quanto mais regras e definições preciso explicitar, menos autoridade e poder eu tenho. Quem 119
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realmente manda não diz “Por favor, feche a porta”, mas simplesmente “Porta!” – e alguém imediatamente corre lá para fechá-la. 127 Então, é possível fazer ao menos duas histórias diametralmente opostas das transformações epistemológicas pelas quais passou a disciplina de história ao longo do XX... De acordo com uma delas, a história ampliou paulatinamente os seus horizontes temáticos e metodológicos... De acordo com a outra, ela perdeu paulatinamente as estribeiras... Sim, a história epistemológica da disciplina de história ao longo do XX pode ser narrada tanto com palavras desalentadoras quanto com palavras eufóricas... 128 E o mesmo pode ser dito da disciplina de geografia... No início do XX, os geógrafos nunca pensariam que em seu campo de estudos surgiriam coisas como “a geografia dos sons, a geografia dos cheiros e a geografia dos gostos”.18 Nem que a pintura de paisagens poderia vir a despertar o interesse sistemático de sua disciplina.19 129 Não existe dúvida alguma de que houve coisas que aconteceram com a geografia, mas não com a história, e coisas 18
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que aconteceram com a história, mas não com a geografia. Contudo, o fato é que não precisamos nos esforçar muito para encontrar paralelos entre o que os historiadores e o que os geógrafos dizem acerca das trajetórias de suas disciplinas! O que é dito de Vidal de la Blache, alçado ao papel de pai da geografia moderna, é sem grandes alterações dito de Leopold von Ranke, alçado ao papel de pai da historiografia moderna... Os dois contribuíram de maneira significativa para traçar os contornos e solidificar os núcleos de suas disciplinas, bem como para extirpar delas o amadorismo, representado, na geografia, principalmente pelas figuras dos viajantes, dos funcionários do governo e dos militares, e, na história, também pelas figuras dos viajantes, dos funcionários do governo e dos militares, mas sobretudo pela figura dos antiquários. E la Blache e Ranke se tornaram nomes evocados para que fossem mantidos fora das suas disciplinas tão arduamente construídas os elementos perturbadores trazidos pelas novas gerações... Contudo, não demorou muito para que as novas gerações passassem a afirmar que la Blache e Ranke não defendiam visões tão estreitas quanto os la blacheanos e os rankeanos. Corrigindo a primeira edição do seu A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, Yves Lacoste disse: “Quando escrevi este livro, eu imputava essa permanência da exclusão dos fenômenos políticos do campo da geograficidade à influência considerável exercida por Vidal de la Blache sobre a escola geográfica francesa (...).” Porém, ele foi depois levado a “modificar profundamente esta explicação”, pois o último livro de la Blache, “desconhecido da quase totalidade dos geógrafos franceses de hoje”, desafiava de forma radical o “famoso ‘modelo vidaliano’”.20 Analogamente, no prefácio
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