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"Um implacável
diagnóstico
democracia
um livro para todos os qll(,
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dos males da
alguma vez tenham se sentido estranhados
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e de si mesmos."
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País
deslocados,
diante dos oulrn~~
Tzvetan Todorov
o homem
desenraizado Tradução de CHRISTINA CABO
DEDALUS - Acervo - FFLCH
SBD-FFLCH-USP
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EDITORA RIO
DE
RECORD
JANEIRO
1999
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SÃO
PAULO
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l0 CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.
T572h
Todorov. Tzvetan, 1939O homem desenraizado / Tzvetan Todorov; tradução de Christina Cabo. - Rio de Janeiro: Record, 1999. Tradução de: L'homme dépaysé Inclui bibliografia ISBN 85-01-05137-3 I. Todorov, Tzvetan, 1939- . 2. Refugiados França - Vida intelectual. I. Título.
99-0193
políticos -
aos meus amigos
CDD - 306.4 CDU - 316.7
Título original em francês L'HOMME DÉPAYSÉ
Copyright © Éditions du Seuil, 1996
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição para Portugal e resto da Europa.
(?ireitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil âtlquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Te!': 585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução Impresso no Brasil fI.'\1'tORl~
ISBN 85-01-05137-3 PEDIDOS PELO REEMBOLSO Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
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EDITORA AFILIADA
Sumário
Voltar 11 Em visita à própria casa, 15 - A dupla vincu1ação, 19 - Desenraizado, dcsenraizamento,23
PRIMEIRA PARTE
Originário da Bulgária 31
1. A experiência totalitária 33 Traços constitutivos, 33 - Os charmes secretos, 39 - Os grupos e o indivíduo, 41 - Desdobramentos, 46
2. Os campos 53 Funções dos campos, 54 cotidiana, 60
Perfis de prisioneiros, 56 -
Vida
3. O fim do comunismo 67 Razões do desmoronamento, 68 - Melancolia pós-totalitária, 71
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Tzvetan Todorov
°
- Gerir passado, 75 - Seqüelas do traumatismo, Apreensões quanto ao futuro, 84
82 -
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TERCEIRA PARTE
Visitante nos Estados Unidos 189
SEGUNDA PARTE
10. A crítica literária
Cidadão na França
Pós-estruturalismo, 192 - Pragmatismo, 197 - Sobrevivências marxistas - Humanismo crítico, 203 11. As humanidades 209
91
4. Os processos Kravtchenko e Rousset 93 Estratégias de desculpa, 94 - Julgar passado, 99
O lugar dos intelectuais, 210 - A acusação e a defesa, 213 - Existe um cânon?, 217
°
5. O caso Touvier 105
12. O declínio da autonomia
Crimes contra a humanidade, 106 - O desaforamento, O processo, 114 - Lições, 120
111 -
7. Política dos intelectuais
8. Censura e liberdade de expressão 153 Liberdade e poder, 155 - A liberdade dos artistas, 157 Liberdade e responsabilidade, 161 - O caso Rushdie: os inimigos e os amigos, 164 - Os versos satânicos,169 e vida cotidiana
A arte na vida, 174 moderna, 183
Em Paris 243
141
As três vozes, 142 - A tentação da utopia, 144 - A insensatez dos intelectuais, 146
173
Obras e ações, 180 - A desumanização
223
Vitimização, 225 - Vinculação a um grupo, 227 - Identidade e diferença, 231- A comunidade das vítimas, 235 - O futuro da democracia, 239
6. Debates sobre o racismo 127 Os antianti-racistas, 129 - Diante do crescimento do racismo, 133 - O contexto atual,136
9. Cultura
191
Bibliografia 249
Voltar
Desenraizado, adj. que se desenraizou: Arrancado do seu lugar de origem: Povos desenraizados. / / Que perdeu as suas características de origem. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa Caldas Aulete
Durante muito tempo, acordei aos sobressaltos. Os detalhes se diferenciavam, mas, em linhas gerais, o sonho era sempre o mesmo. Eu não estava mais em Paris, mas em minha cidade natal, Sófia; havia voltado ali por uma razão qualquer e experimentava a alegria de rever os velhos amigos, meus pais, meu quarto. A seguir vinha o momento da partida, do retorno a Paris, e as coisas começavam a se desfigurar. Já estava dentro do tramway que deveria conduzir-me à estação (é o trem, o Expresso Oriente, que, anos antes, havia me levado de Sófia para atirar-me dois dias mais tarde, em uma fria manhã de abril, nas plataformas da estação de Lyon) quando descobri que a passagem não estava no bolso; sem dúvida, eu a havia esquecido em casa, mas se voltasse para procuráIa iria perder o trem. Ou então o tramway parava de repente por causa de um tumulto inexplicável; os passageiros descia 111, eu também. Tentava abrir caminho, com uma pesada mala lIa mão, mas era impossível: a multidão era compacta, indifeIcnte, impenetrável. Ou, ainda, o tramway chegava à estação, l'U me precipitava em direção à porta de entrada porque estava atrasado, mas, atravessado o umbral, descobria que aquela estação era apenas um cenário: do outro lado não havia hall, viajantes, trilhos, trens; não, eu estava só diante de um campo, a perder de vista, a erva amarelada dobrava-se ao vento. Ou então eu deixava a casa em um carro dirigido por um
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amigo; ele decidia pegar um atalho, porque estávamos com pressa, mas se perdia, as ruas se estreitavam, tornavam-se cada vez mais desertas, para terminar em terrenos baldios. Meus sonhos nunca paravam de inventar novas variantes para esta impossibilidade de partir novamente, mas o resultado final era sempre o mesmo: por razões puramente fortuitas, o retorno a Paris confirmava-se impossível. Eu deveria doravante viver em Sófia. A angústia, mesmo em sonho, tornava-se tamanha que eu acordava com o coração acelerado. Abria os olhos na penumbra e reconhecia pouco a pouco os contornos do quarto parisiense, tocava o ombro de minha mulher, que dormia a meu lado, e entregava-me com prazer à realidade. Havia sido apenas um sonho! Eu podia me levantar e reencontrar minha vida, minha verdadeira vida. Esquecia os temores noturnos até a próxima ocasião, algumas semanas, alguns meses depois. Compreendi depois que este sonho era comum a muitos imigrantes, ao menos entre aqueles que vinham do Leste europeu. Meus sonhos de impossível retorno foram espaçando-se e desapareceram desde que voltei realmente à Bulgária. Isso aconteceu em 1981, exatamente dezoito anos depois de minha chegada a Paris. Havia tomado muitas precauções para que o sonho não se tornasse realidade. Para começar, não havia corrido o risco de fazer uma viagem particular: consegui ser convidado para um congresso que deveria celebrar o aniversário de mil e trezentos anos da criação do Estado búlgaro; portanto, uma manifestação muito oficial, e eu fazia parte da delegação francesa. Havia avisado os amigos de minha partida, sobretudo aqueles que poderiam ter acesso à mídia: eles deveriam constituir um comitê para exigir minha libertação caso me impedissem de retomar à França! Enfim, última precaução, casei-me, alguns dias antes da viagem, com a mulher com quem vivia, para que fosse esposa legítima e não concubina suspeita que viria até mim em caso de neces-
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sidade ... Apresso-me a dizer que tal necessidade nunca se materializou. Algumas esquisitices espantaram-me no curso desta viagem, é verdade, mas voltei são e salvo, na data prevista, sem perder o avião ou esquecer os documentos. Aquela temporada, no entanto, revelou-me uma dimensão de minha identidade que gostaria de tentar descrever aqui.
Em visita à própria casa A experiência que evoco aqui é a de um exilado retomando ao país depois de longa ausência (preciso que sou exilado "circunstancial", nem político, nem econômico: vim para a França em total legalidade, ao final de meus estudos universitários, para passar um ano a fim de "aperfeiçoar minha educação"; depois, o provisório tornou-se definitivo). Uma série de acasos tornou esta experiência particularmente intensa. Alguns homens descem ao fundo de grutas profundas para observar, em circunstâncias excepcionais, as reações do organismo; isso permite, em seguida, um melhor conhecimento de seu funcionamento normal. Embora não intencionalmente, participei, durante esses dez dias do mês de maio de 1981, de uma experiência também pouco comum: não uma descida a mil e oitocentos metros debaixo da terra, mas um retorno ao lugar deixado para trás dezoito anos antes. As circunstâncias eram então: a duração da ausência; o caráter total da ruptura durante esses anos (não existe uma comunidade búlgara em Paris, ou, por falta de interesse, não a conheci; as notícias circulavam mal entre Sófia e Paris, a cortina de ferro contribuía para tal; e a descontinuidade entre estes dois lugares era realmente maior do que entre Paris e São Francisco, por exemplo); enfim, a identidade rigorosa dos lugares: eu morava, durante essa temporada, com meus pais,
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na mesma casa onde havia vivido a infância e a adolescência. Eis por que, sem procurar concentrar a atenção sobre mim mesmo, gostaria de transcrever aqui minhas impressões. O exilado de retorno ao país natal não é de todo semelhante ao estrangeiro em visita - nem mesmo ao estrangeiro que ele mesmo foi, no momento em que debutou no exílio. Assim que cheguei à França, em 1963, ignorava tudo. Era um estrangeiro no seio da sociedade francesa, que apenas se tornou familiar a mim progressivamente; vivi, em meu contato com ela, não um salto brutal, mas uma passagem imperceptível da posição de outsider para insider (sendo o out e o in, o fora e o dentro, naturalmente, sempre considerados de forma relativa). Um dia, tive de admitir que não era mais um estrangeiro, ao menos não no mesmo sentido de antes. Minha segunda língua foi instalada no lugar da primeira sem choque, sem violência, ao longo dos anos. Mas é exatamente o contrário que acontece por ocasião do retorno do exilado. De um dia para o outro ele descobre ter uma vida interior de duas culturas, de duas sociedades. Bastou-me apenas encontrar-me em Sófia para que tudo me parecesse imediatamente familiar; eu economizava os processos de adaptação preliminares. Não me sentia menos à vontade em búlgaro do que em francês e tinha o sentimento de pertencer às duas culturas ao mesmo tempo. "Situação inviável? Se posso hesitar sobre a interpretação de minha experiência, uma coisa me parece certa, indubitável: esses foram para mim dias de inquietação e de opressão física. Acrescento de imediato, para afastar uma explicação que poderia vir facilmente ao espírito, que a origem da inquietação sobre a qual quero falar não me parece ter sido política, no sentido estrito da palavra, quer dizer, ligada à diferença de regime entre a França e a Bulgária. Minha hostilidade interior aos princípios deste regime não havia mudado durante os últimos vinte anos e, ainda mais do que antes, minha con-
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duta não era a de um combatente. A dificuldade de ser que evoco aqui se situa em outro plano. Tive um pressentimento dessa inquietação antes mesmo de partir para Sófia, enquanto preparava minha comunicação para o congresso ao qual havia sido convidado. Sendo o local do reencontro "a Bulgária", vi-me confrontado com uma questão, a do valor do nacionalismo. Minha tese era (simplificarei um pouco) que a defesa do grupo a que pertencemos não é mais do que um egoísmo coletivo; que as influências exteriores, longe de ser fontes de corrupção, são, ao mesmo tempo, inevitáveis e proveitosas para a evolução da cultura; que de qualquer forma vale mais viver no presente do que tentar ressuscitar o passado; enfim, que ali não havia grande interesse em fechar-se dentro do culto aos valores nacionais tradicionais. Escrevi isso sem hesitação. As dificuldades surgiram no momento em que comecei a traduzir minha exposição, escrita originalmente na língua de empréstimo, o francês, para o búlgaro, a língua de origem. Não era um problema de vocabulário ou de sintaxe; mas, ao mudar de língua, vi-me mudar de destinatário imaginário. Tornou-se claro para mim, nesse momento, que os intelectuais búlgaros, aos quais meu discurso havia sido endereçado, não eram capazes de compreendê-Io como eu gostaria. A relação com os valores nacionais não tem o mesmo sentido quando habitamos um pequeno país (o nosso), situado na órbita de outro país, maior, ou quando vivemos no estrangeiro, em um terceiro país, onde estamos - como acreditamos - protegidos de qualquer ameaça proveniente de um vizinho mais poderoso. Paris era certamente o lugar propício a uma renúncia eufórica aos valores nacionalistas; Sófia o era muito menos. É preciso lembrar-se (porque as coisas estão muito mudadas desde então) que na época o discurso nacionalista representava a única oposição pública possível à ideologia comunista. Fazer elogios aos va-
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lores nacionais búlgaros significava, para todos os envolvidos, atacar as palavras de ordem oficiais; como o poder não queria ser contra as profissões de fé patrióticas, via-se obrigado a tolerar certa dose de anticomunismo. Em grau menor, este problema é familiar a todo orador, a todo escritor: modifica-se seu discurso em função do auditório, do suposto leitor. Mas, a modificação que me sugeriram os ouvintes imaginários era mais do que isso: era preciso, sem rodeios, substituir uma afirmação por seu oposto. Eu compreenderia a posição dos intelectuais búlgaros se tivesse estado no lugar deles; provavelmente os teria dividido. No entanto, não estou mais entre eles, moro em Paris e não em Sófia e (então?) pensava o contrário. Mas, como dizer-Ihes? Agir como se possuísse apenas a minha personalidade francesa e expor minha opinião sem dar-me conta daquilo que sabia a respeito da reação deles? Isso teria sido recusar-me a reconhecer que possuía acesso ao interior da cultura búlgara. Falar como se nunca houvesse deixado Sófia? Isso equivaleria a apagar os últimos dezoito anos de minha vida. Tentar combinar as duas posições, encontrar a neutralidade? Não se combina A e -A impunemente. Restava-me o recurso do silêncio... Esta inquietação reproduziu-se sob outra forma por ocasião de conversas com amigos em Sófia.Por exemplo, alguém se queixou das condições de sua vida. Quando ouço o mesmo em Paris, posso tentar dar à pessoa diante de mim toda a espécie de sugestões; elas são mais ou menos convincentes, mas repousam forçosamente num fundo de existência dividido; desta forma ele ou ela aceita me ouvir.De qualquer modo, ele não iria a Sófia. Se eu tentava "colocar-me na pele" do interlocutor, assim como na de meu personagem búlgaro, propunha soluções especificamente "búlgaras" para seu problema. Percebia, então, que ele me ouvia com desconfiança: "Se as coisas fossem assim tão fáceis", parecia dizer seu si-
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lêncio reprovador (ou às vezes dizia sua voz), "por que então você não fica aqui para testar seu próprio remédio?" Eu nem ao menos podia replicar, nesta situação: "Oh, sim, você sabe, seus problemas ... Eu, na segunda-feira, tomo um avião para Paris!" Isso era, no entanto, verdade e me veio o desejo de dizê-Ia, já que não encontrei solução para seu problema, ou que gostaria de fugir de seu sorriso desconfiado. Não, eu não podia exprimir-me assim, não apenas porque não teria sido polido mas também porque isso faria com que me situasse exclusivamente do ponto de vista de meu personagem francês, aquele que estava em Sófia apenas de passagem. Talvezpudesse combinar as duas posições? Já me senti bem sendo francês e búlgaro ao mesmo tempo, não posso encontrar-me a não ser em Paris ou em Sófia; a presença simultânea em dois lugares não era mais de minha competência... O teor de minha proposta dependia muito do lugar onde ela se anunciava para que o fato de encontrar-me aqui ou lá fosse indiferente. Minha dupla vinculação produzia apenas um resultado: aos meus próprios olhos, ela surpreendia por inautenticidade cada um de meus dois discursos, já que cada um podia apenas corresponder à metade de meu ser, ou então eu era um duplo. Fechei-me novamente no silêncio opressor.
A dupla vinculação No curso de outras conversações, percebi que em resposta às perguntas sobre a vida na França eu falava com prazer daquilo que se assemelhava à vida na Bulgária, ou daquilo que não merecia nenhum elogio (com freqüência as duas coisas coincidiam: burocracia, espírito de mandarim, nepotismo ...). Ao contrário, tudo aquilo do qual poderia me vangloriar mal passava pela minha garganta. No primeiro caso, eu ocupava uma posição tão acessível ao personagem francês
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quanto ao personagem búlgaro em mim, enquanto, no segundo, apenas o francês poderia falar; sendo também búlgaro, colocava-me no lugar de meus amigos e sofria as limitações que pesavam sobre mim. A palavra dupla revelava-se uma vez mais impossível e encontrava-me cindido em duas metades, uma tão irreal quanto a outra. Sem dúvida acreditando me agradar, mas talvez também sendo sinceros, os velhos amigos que encontrei me diziam: "Você não mudou nada! Está exatamente a mesma coisa!" Ouvir isso não me agradou. Era uma forma de negar os últimos dezoito anos, de agir como se eles não houvessem existido, como se eu nunca tivesse adquirido uma segunda personalidade. Minha mãe havia guardado em urna gaveta um par de sapatos e os havia entregado a mim para que pudesse trabalhar no jardim; eu os tinha calçado, não havia nenhuma dúvida, eram meus, estavam deformados nos mesmos pontos e me cabiam perfeitamente. Reconheceram-me, aceitaramme, e retomamos as conversas interrompidas dezoito anos antes. Tudo colaborava para me fazer pensar que esses anos simplesmente não haviam existido, que haviam sido um fantasma, um sonho do qual acabava de acordar. Por pouco iriam me oferecer trabalho, eu iria instalar-me, poderia me casar ... Teria desejado o contrário, que não me reconhecessem, que se espantassem com as minhas aparentes mudanças, e experimentei um certo alívio ao telefonar para o adido cultural francês: eu sabia falar francês, não havia sonhado! Além do mais, este senhor me conhecia de nome, sabia que eu iria vir: minha existência francesa não era um fantasma! Então, mesmo que o assunto da conversa fosse o mais corriqueiro (corno fazer chegar mais livros franceses às bibliotecas búlgaras sem, no entanto, aumentar o orçamento?), sentiame reaquecido pela cumplicidade de nossa troca: haviam-me confirmado minha existência. Se perco meu lugar de
enundação, não posso mais falar. Eu não falo, logo não existo. O espaço (aliás) estava ameaçado de desaparecimento. O tempo nunca havia me parecido tão longo: esses dez dias duraram quase dezoito anos. Toda noite me sentia envelhecer vários anos. No lugar das experiências vividas em Paris, cada conversa, cada reencontro me fazia imaginar aquelas que teria podido viver em Sófia; ou mais: fazia-me lembrar daquilo que havia vivido ali, embora ignorando. Não aprendi história à maneira de um estrangeiro, ou de um descendente longínquo, a quem é preciso explicar tudo porque ele vem do exterior; não, eu a recebi de dentro, por subentendidos, por alusões, pela imaginação. Esta possibilidade que tive de mais uma vez mergulhar imediata e totalmente na Bulgária que havia deixado tornou inverossÍmil aos meus próprios olhos a experiência do passado imediato, minha identidade francesa. Era impossível, com estas duas metades, fazer um todo; era uma ou outra. A impressão dominante era a de incompatibilidade. Minhas duas línguas, meus dois discursos se pareciam muito, de certa forma; cada um poderia satisfazer à totalidade de minha experiência e nenhum era claramente submisso ao outro. Um reinava aqui, o outro lá, mas cada um reinava incondicionalmente. Eles se assemelhavam e podiam, em conseqüência, substituir-se um ao outro, mas não combinar-se entre si. Donde a persistência desta impressão: uma de minhas vidas deve ser um sonho. Em Sófia, era a vida na França que me aparecia como sonho e eu sentia esta impossibilidade de voltar atrás que experimentamos ao acordar. Eu me surpreendia a dizer freqüentemente, por ocasião de um novo reencontro: Veja, ainda um fantasma! ou indiferentemente: Eu sou um fantasma ..., ou melhor, uma encarnação. Aquilo fazia-me pensar em um conto de Henry ]ames, O recanto agradável, onde o personagem principal está de volta a
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seu país após trinta e três anos de ausência. Este homem encontra-se confrontado com uma questão que não vem com freqüência ao espírito sedentário: o que teria sido eu, em que teria podido transformar-me caso tivesse permanecido em casa? O herói do conto vai até encontrar, no interior de uma casa vazia, um "verdadeiro" fantasma, seu alter ego, sua variante continua imóveL. De volta a Paris, é justamente ao acordar que me sentia mais perturbado: não sabia mais em que mundo deveria entrar. Minha mãe escreveu-me de seu canto: "Pergunto-me se você realmente esteve aqui ou se isso não foi um sonho." Sonho ou loucura, porque eu talvez não faça mais do que fingir ter vivido aqui e lá? Cada uma de minhas línguas era um todo e é precisamente isso o que as tornava incombináveis, o que as impedia de formar uma nova totalidade. Antes desta visita, meu conhecimento do búlgaro não tornou em nada a minha vida na França perturbadora: ali, o uso de minha língua-mãe estava reservado a três ou quatro situações bem precisas. Algumas palavras para conversar com os raros búlgaros que conheci em Paris; a correspondência com meus pais, algumas leituras bem espaçadas; a tabuada e dois ou três palavrões: aí estão quase todas as circunstâncias onde, na França, eu me servia do búlgaro. A língua de origem estava claramente submissa à língua emprestada. Eu podia, contudo, imaginar a situação inversa: morando na Bulgária, transformava-me em tradutor de francês ou falava com visitantes estrangeiros ou tornava-me um especialista em história da França. No entanto, isso não foi o que vivi durante minha visita de dez dias: não renunciei a nenhuma parte de minha personalidade francesa e, ao mesmo tempo, adquiri, reintegrei uma personalidade búlgara também inteira. Isso é muito para um único ser! Uma das duas vidas deveria eliminar a outra. Para evitar esta sensação, refugiei-me voluntariamente no trabalho físico solitário: aparei a grama
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do jardim, podei as árvores, removi a terra; um pouco como quando nos sentimos pouco à vontade na casa de pessoas que mal conhecemos e nos propomos a ajudar na cozinha, felizes por participar da interação do grupo sem ter que usar as palavras. A lição deste retorno ao país natal, dezoito anos depois da partida, impôs-se pouco a pouco em mim. A coexistência de duas vozes tornou-se uma ameaça, conduzindo à esquizofrenia social, já que elas estão em concorrência; mas, se elas formam uma hierarquia cujo princípio tenha sido livremente escolhido, podemos superar as angústias do desdobramento e a coexistência torna-se o terreno fértil de uma nova experiência. Não importa qual hierarquia: em uma editora em Sófia, propuseram-me escrever o prefácio de uma coletânea de crítica literária francesa; hesito em aceitar, desconversando, agora que me surgiu a oportunidade de interpretar o papel de prefaciador na França. A razão é clara: a hierarquia do discurso, que agora é a mesma, se inverterá. Eu sei integrar a voz búlgara (estrangeira!) no quadro francês, não o contrário; o lugar de minha presente identidade é Paris, não Sófia.
I>esenraizado,desenraizarnento
Toda ruptura e toda cisão não são uma fatalidade. Sabemos que a este respeito as opiniões divergem. Malraux lembrou a este propósito uma opinião autorizada, a do coronel Lawrence "da Arábia": ele "dizia por experiência que todo homem que pertence realmente a duas culturas perdia a alma". Em nossa época de "crispação de identidade", de nacionalismo dissimulado, religioso ou cultural, tais intenções parecem ganhar nova atualidade, embora, em uma primeira forma - elogio da terra e dos mortos, condenação do desenraiza-
Tzvetan Todorov
o homem desenraizado
mento -, já dominassem o debate na França na época do caso Dreyfus. É verdade que o discurso contrário nos é hoje igualmente familiar: numerosas pessoas, em particular os artistas e intelectuais, louvam a pluralidade das culturas, a mistura das vozes, a polifonia desmedida, que não conhece hierarquia nem ordem; elas se reconhecem dentro do cosmopolitismo, se não no nomadismo generalizado, quadro apropriado ao sujeito descentrado que seria cada um de nós. Eu não posso debater estas questões com julgamento imparcial, já que meu destino pessoal desvia forçosamente minha maneira de ver; mas posso tentar precisar o sentido de minha experiência. No início de minha temporada na França, eu procuravae consegui mais tarde - a assimilação máxima. Falava exclusivamente em francês, evitando os antigos compatriotas; podia, de olhos fechados, reconhecer os diferentes vinhos e queijos do país; apaixonava-me exclusivamente por mulheres francesas ... Este movimento teria podido prolongar-se indefinidamente, sem provocar nenhum terremoto: teria resultado, ao final da operação, em um menos búlgaro e um mais francês. O saldo teria sido nulo, sem perda nem ganho para a humanidade ... O que é preciso crer e lamentar é a própria desculturação, degradação da cultura de origem; mas ela talvez seja compensada pela aculturação, aquisição progressiva de uma nova cultura, de que todos os seres humanos são capazes. É verdade que não poderemos jamais nos libertar de certos traços decididos pela genética: a não ser que passasse por uma operação complicada, estou condenado a manter meu sexo, minha raça (no sentido das características físicas visíveis), a configuração individual do meu corpo. Deveriam, portanto, assimilar-se os traços adquiridos, como as tradições, a religião ou a língua? Condenar o indivíduo a continuar trancado na cultura dos ancestrais pressupõe de resto que a cultura é um código imu-
tável, o que é empiricamente falso: talvez nem toda mudança seja boa, mas toda cultura viva muda (o latim tornou-se língua morta a partir do momento em que não pôde mais evoluir). O indivíduo não vive uma tragédia ao perder a cultura de origem quando adquire outra; constitui nossa humanidade o fato de ter uma língua, não o de ter determinada língua. .Çontudo, minha aspiração à assimilação não deveria, na verdade, ser tão total quanto esta, já que nunca fiz esforço para perder o sotaque de origem. Pouco tempo antes de minha primeira viagem de volta à Bulgária, estes indícios de diferença irredutível se reafirmaram. Por quê? Uma das razões foi sem dúvida o próprio sucesso de minha integração na França: eu havia me tornado por naturalização um cidadão francês, trabalhava em uma instituição que era o que havia de mais oficial, o CNRS,l tinha um filho que ia à escola como todas as crianças francesas. Outra razão surgiu, um pouco paradoxalmente, da própria evolução do meu trabalho. Eu experimentava a necessidade de estabelecer uma relação mais clara entre o objeto que procurava conhecer e o sujeito que eu era - uma relação que me parecesse pertinente no campo das ciências humanas, diferentemente do que se passa nas ciências da natureza. Senti uma necessidade, em meus textos sobre literatura e em outros discursos, não de desabafar mas de alimentar meu trabalho com algo mais do que a simples leitura de livros dos outros: com minhas intuições pessoais, logo com minha experiência. Mas um fato biográfico era difícil de ignorar: eu era um imigrante, um búlgaro na França. Tive que render-me à evidência: não seria jamais um francês, ao menos como os outros. De resto, a mulher com quem me casei na véspera de minha viagem à Bulgária era, como eu, uma estrangeira na França. Meu estado atual não
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lCentro Nacional de Pesquisas Sociais. (N. da T.)
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Tzvetan Todorov
corresponde, então, à desculturação, nem mesmo à aculturação, talvez mais ao que possamos chamar de transculturação, a aquisição de um novo código sem que o antigo tenha se perdido. Desde então, vivo em um espaço singular, ao mesmo tempo por fora e por dentro: estrangeiro "na minha casa" (em Sófia), em casa "no estrangeiro" (em Paris). Não exagero para mim mesmo a originalidade desta experiência de biculturalismo. Além do mais, estou longe de ser o primeiro a experimentá-Ia; no campo da cultura e das artes, são numerosos os que foram atraídos por metrópoles como Paris ou Londres, Nova Yorkou Toronto, e este número continua a crescer todos os dias. E, mais, as identidades culturais não são apenas nacionais, existem outras, ligadas aos grupos pela idade, sexo, profissão, meio social; em nossos dias, então, todos já vivemos, ainda que em níveis diferentes, este reencontro de culturas no interior de nós mesmos: somos todos híbridos. A origem cultural nacional é simplesmente a mais forte de todas, porque nela se combinam os traços deixados - no corpo e no espírito - pela família e pela comunidade, pela língua e pela religião. Por que, então, ela viveu às vezes na euforia e em outras ocasiões na tristeza? Para alcançar a transculturação antes é preciso passar pela aculturação; para poder se desligar com sucesso de uma cultura, é preciso começar pelo autodomínio, pelo "falar". Posso evocar a facilidade que tive em assimilar-me na França, em um primeiro momento, sem julgar parecer imodesto, porque isso não implica nenhum mérito pessoal: deve-se, em parte, a meu meio familiar, que me levou a concluir o ensino superior e a aprender línguas estrangeiras; e, de outra parte, ao regime político que reinava em meu país natal, que incitou tantos compatriotas meus a fugir dele. Se minha partida tivesse sido obrigatória em vez de voluntária, se houvesse chegado à França privado da lín-
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gua comum, assim como de toda competência profissional, teria certamente tido muito mais dificuldade em alcançar sucesso na primeira integração. Esta é, de qualquer forma, indispensável. Admitamos que esta primeira fase de contato entre culturas seja desenvolvida sem obstáculos. A que poderia servir, então, a transculturação? Ao desenraizamento, em todos os sentidos da palavra. O homem desenraizado, arrancado de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento: é muito mais agradável viver entre os seus. No entanto, ele pode tirar proveito de sua experiência. Aprende a não mais confundir o real com o ideal, nem a cultura com a natureza: não é porque os indivíduos se conduzem de forma diferente que deixam de ser humanos. Às vezes ele fecha-se em um ressentimento, nascido do desprezo ou da hostilidade dos anfitriões. Mas, se consegue superá-Io, descobre a curiosidade e aprende a tolerância. Sua presença entre os "autóctones" exerce por sua vez um efeito desenraizador: confundindo com seus hábitos, desconcertando com seu comportamento e seus julgamentos, pode ajudar alguns a engajar-se nesta mesma visão de desligamento com relação ao que vem naturalmente através da interrogação e do espanto. Este próprio livro descreve, ao mesmo tempo, um desenraizamento geográfico e algumas visões desenraizadas. Minha passagem de Sófia a Paris ensinou-me, hoje percebo, ao mesmo tempo o relativo e o absoluto. O relativo, porque não podia mais ignorar que tudo não deveria acontecer em todos os lugares como em meu país de origem. O absoluto também, portanto, porque o regime totalitário no qual eu havia crescido podia me servir, em todas as circunstâncias, de padrão do mal. Donde, sem dúvida, minha simultânea aversão, na prática do julgamento moral, a estes dois irmãos Íni-
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migos que são o relativismo do "vale tudo" e o maniqueísmo do preto e do branco. diálogo interior do qual falo não saberia subdividir-se ao infinito. Não acredito nas virtudes do nomadismo sistemático, da acumulação ilimitada de empréstimos culturais. Para estar à vontade em uma cultura, numerosos anos de aprendizagem são necessários; a duração limitada da vida humana nos impede de ir além de duas ou três experiências semelhantes. À Bulgária e à França somei, há uns trinta anos, um terceiro país, os Estados Unidos. Não penso mais, no entanto, em conhecê-Io realmente: apesar das ligações de amizade e até mesmo de parentesco que me unem a várias pessoas que ali moram, apesar das visitas quase anuais, devo admitir que esse país é para mim, acima de tudo, um lugar aonde vou para exercer a minha profissão. Isso consiste concretamente em dar uma conferência ou um curso no âmbito de um departamento de literatura - francesa, inglesa ou comparada. A visão que tenho dos Estados Unidos é na verdade limitada: só encontro ali, por assim dizer, universitários; eu mesmo moro em uma cidade universitária ou no quarteirão da universidade. O resto do mundo americano, percebo-o refletido nas indicações de meus interlocutores, dos artigos de jornal e das imagens de televisão. Embora eu seja uma pessoa deslocada em três países, teci ligações muito diferentes com cada um deles. A Bulgária é o país onde cresci; o que me resta hoje, à exceção das lembranças pessoais, é a experiência - constitutiva - do indivíduo face a um regime totalitário. A França é a nação onde vivo; a seu destino estou ligado de coração, e dela me sinto cidadão. Os Estados Unidos são um lugar onde me encontro para exercer a profissão, onde reencontro mais colegas do que compatriotas. A única coisa que esses três países têm em comum para mim (mas outros estão na mesma si-
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tuação) é o fato de que encontrei amigos com que continuo a conviver hoje, na presença ou na ausência. As páginas que se seguem são endereçadas e, por esta razão, dedicadas a eles.
1 A experiência totalitária
.9 totalitarismo pode ser descrito, e o foi, de diferentes pontos de vista: filosófico ou político, econômico ou sociológico. Eu gostaria, de minha parte, sem ter que escolher entre estas perspectivas, de colocar-me no interior da consciência dos sujeitos em um Estado totalitário e evocar a imagem que eles fazem do regime em que vivem. O plano sobre o qual me situo é o de uma experiência comum, ele relaciona-se à psicologia coletiva em suas relações com a política. Baseio-me, esclareço, em minha própria experiência e na das pessoas que me colocaram a par das suas. É verdade que, desde minha partida da Bulgária, não deixei de ler o que diversos autores tinham a dizer sobre o totalitarismo, e isso certamente influenciou minha maneira de evocar e compreender o passado. Traços constitutivos Jrês grandes características do regime apresentam-se ao olhar de quem quer que procure analisá-Io: 1) ele afirma ter
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uma ideologia; 2) usa o terror para orientar a conduta da população; e 3) a regra geral de vida é a defesa do interesse particular e o reinado ilimitado da vontade do poder. Manter estas características separadas parece-me indispensável, não diminuindo nenhuma delas perante as outras. O totalitarismo corresponde à reunião destes traços e não à única ideologia, que era, ao que me concerne, comunista, já que ela era alhures nacional-socialista. Algumas palavras agora para precisar estes traços. l).A ideologia. O conteúdo do ideal, a imagem da sociedade perfeita na terra que é apresentada como o início da sociedade real, absorve influências distantes: a do milenarismo cristão, a dos utopistas da renascença, a, já mais próxima, dos primeiros pensadores do socialismo. Seria, portanto, mais do que justo vinculá-Ia ao nome de Karl Marx, fundador do movimento comunista: é nele que se encontram os principais ingredientes da doutrina, tanto os econômicos quanto os sociais. Vivendo em uma sociedade totalitária, temos tendência a subestimar a importância da ideologia: tudo isso parece ser apenas palavras no ar, poeira nos olhos, falsidade e mentira, sem a menor ligação com a vida real. "Eles" nos falam de um futuro radioso para tentar nos fazer esquecer a monotonia do presente, eles" evocam o poder do povo para esconder sua avidez pessoal de riqueza e privilégios. Mais: por pouco que tenhamos um resto de memória, damo-nos conta de que o conteúdo da ideologia, ou ao menos da interpretação concreta dos grandes princípios, varia consideravelmente de um momento para outro, já que são sempre apresentados como imutáveis porque únicos verdadeiros. A evolução das relações da União Soviética com a Alemanha hitleriana, no final dos anos trinta, ou com a China de Mao, ao longo dos anos sessenta, propõe exemplos particularmente expressivos, retirados da política exterior; e existiam mil outros à nossa volta.