Título original: Jésus le Christ
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INTRODUÇÃO
Dieu se donne un visage
Tradução de: Manuel de Aguiar
«Não nos cansa...
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Título original: Jésus le Christ
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INTRODUÇÃO
Dieu se donne un visage
Tradução de: Manuel de Aguiar
«Não nos cansamos de repetir frases feitas sobre Deus feito homem. Temos, porém, de reconhecer que ainda não tomámos perfeita consciência do que há de inaudi to na aproximação da palavra Deus à palavra homem, a propósito de Jesus de Nazaré». (1) Estas linhas exprimem bem qual o espírito das dili gências que nós faremos ao longo desta obra. Com efeito, quereríamos que aparecesse, ao longo destas páginas, o que efectivamente há de inaudito na fé cristã na apro ximação destas duas palavras Deus e homem. Que Deus Se tenha feito homem, que Ele tenha tomado cafne hu piana eis o grande problema dos nossos contemporâ neos. Pelo que não é possível, hoje em dia, prender-se a fórmulas já gastas. No mundo em que nós vivemos, que perdeu as suas raízes cristãs, a fé dos cristãos em Jesus de Nazaré é, se não aberrante, ao menos vazia. Pelo que é necessário encontrar-lhe o conteúdo. Afé dos cristãos pode resumir-se no subtítulo desta pequena obra: emJesus de Nazaré, «Deus assume um rosto». Para ii1Er exprimir o que tem de inesperado iimaial afirmação, podem fazer-se testes, aliás fáceis e úteis: basta considerar a forma como se fala de Jesus, —
Fotocomposição: SOTECLA. LDA.
ISBN 972-30-0447-X (edição original: ISBN 2-227-30137-6 Paris. França)
© Éditions du Centurion, 1988, Paris
©
1990. EDIÇÕES PAULISTAS Rua Dom Pedro de Cristo, 10
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Tel. 80 52 73 1700 LISBOA
(1) Claude Geffré. L’historicité de Dieu ou le vrai scandale de la foi’, Catéchèse, n.° 76, Julho de 1979, p. 31.
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quer à nossa volta, no falar espontâneo das pessoas, quer nas próprias expressões mais elaboradas da literatura e do cinema. O problema que se poderia pôr, a pergunta que se poderia fazer já foi feita por Cristo: «quem di zem os homens que Eu sou?» (Mc 8,27). Os estudos e os inquéritos, susceptíveis de dar resposta contemporâ nea a esta pergunta estão aí e são muitos. Contentemo -nos com indicar algumas pistas. Quem dizem os homens que Eu sou? Há muito pouco tempo, surgiu uma nova colecção «Jesus depois de Jesus» (2), cuja ambição é delinear, em vinte volumes, os retratos de Jesus através da história. Ao longo dos vinte séculos que nos separam do nasci mento de Jesus multiplicaram-se os retratos. Assim e para não falar senão do século XIX surgiu-nos um Jesus romântico, um Jesus revolucionário e violento, coum Jesus oscilante entre «a doçrae a munista até dor») Cada época nos deixou os seus próprios retra • Jesus. E tão diferentes uns dos outros ue nos oderemos justamente perguntar se tiveram ou não diante dos olhos o mesmo. moeo. os retratos se afastaram bastantes vezes da fé cristã. Um outro teste pode ser o cinema. O «rosto de Cris ) do cinema é pelo menos tão variado como o da 4 to»( literatura. Umas vezes, animado por uma vontade im piedosa de desmistificar a figura de Jesus, outras vezes, desejoso de apresentar ou, pelo menos, de fazer pres —
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(2) Colecção Jesus depois de Jesus»’, Cerf. 1987. Anunciados, vinte volumes. Ver igualmente a colecção .»Jesus e Jesus Cristo’. dirigida por J. Doré, Paris, Desclée, colecção em que os colaboradores são não só teólogos corno também representantes de outras religiões e até agnósti cos. Afinal apareceram mais de trinta volumes. (3) Frank Paul Bowman. Le Christ des barricades. 1789-1848, Pa ris, Cerf, 1987. (4) Henri Agel. Le visage du chrisr à 1 ‘écran. Paris, Desclée. 1985.
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sentir o Seu mistério, o cinema é de facto uma lingua gem muito difícil. Entre o Jesus Superestrela dos filmes do Oeste, contado pelo cinema americano, e o «Mes sias» visto pelo italiano Rosselini, há a imensa distância do oceano. O cineasta italiano, com a sua evocação da simplicidade do Jesus que trabalha a madeira, e vive pró ximo dos Seus pela Sua humilde condição de carpintei ro, faz-nos pensar em Jesus numa outra dimensão, a dimensão do mistério, que um Jesus superestrela não po de deixar de escamotear. O Jesus do cinema, as mais das vezes, é a expressão da sensibilidade de uma época. Mas, numa civilização da imagem, como é a nossa, o cinema é, talvez, um dos meios pelos quais os nossos contemporâneos podem mais frequentemente entrar em contacto com Jesus. E é por isso que o cristão consciente não tem outra alternativa senão estar atento àquilo que aparece no cinema. Um dos testes mais significativos poderia ser to de Jesus pintado pelas seitas, um Jesus à margem da Igreja, um Jesus com todas as cores do arco-íris. Estu dando a «nova religiosidade» (5) que se manifesta nestas seitas, J. Vernette notou que a figura de Jesus sofre em tudo isto uma distorção em função dos dois pólos em volta dos quais estas seitas se podem classificar. que bebem na mística orien, designam Jesus como Cristo, crístico, iniciado, Mestre, instrutor, guia. Jesus, que ocupa um lugar ao lado de outros mestres da sabedoria, não tem qualquer identidade divina. Outras teorias religiosas, próximas do fundo judeo-cristão, con sideram Jesus como Salvador, Filho de Deus, Messias, etc. E correm o risco de esguecepor seu lado, a Sua Eiiuianidade. Ora estas seitas revelam bem uma tendên ia que nos ameaça a todos: a de fragmentar a figura (5) Jean Vernette, Jésus dans Ia nouvelle religiosité, col. Jésus et Jésus-Christ, núm. 29, Paris, Desclée, 1987.
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de Jesus, reter dela apenas um aspecto, o da Sua hurna ndade&io da Sua divindade.. E, finalmente, o derradeiro teste: as sonda ens. Quando interrogamos, as pessoas acerca daqui o em que elas crêem, rapidamente nos damos conta de que a sua fé é bastante incerta. Ela já não sealimenta unicamente dos ensinamentos da Igreja pelo que a imagem de Jesus se torna pouco nftida. Uma sondagem (6) efectuada em Setembro de 1986 revelou que 64 % dos franceses acre ditam em Cristo como Filho de Deus; mas admira mais que, entre aqueles que se dizem explicitamente católi cos, somente 72 % reconheçam que Jesus é Filho de Deus, ao passo que 11 % dizem que não é e 17 % não sabem que responder. Para alguns, Jesus não passa de um sábio ou de um super-sábio, que ensina um código de moralidade, prega a palavra de Deus, um profeta. o filho do carpinteiro, etc. Jesus tem sem dúvida e ao contrário do que acontece com a Igreja uma boa «imagem de marca»; só que esta imagem é muito —
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E vós, quem dizeis que Eu sou? Aquilo que dissemos sobre a imagem de Jesus e que é expressão da opinião pública pode servir-nos de pon to de partida para a descoberta daquilo que sobre Jesus afirma o discurso cristão. Desde que um «certo Jesus» surgiu na história dos homens,. gerações de homens e de mulheres reconheceram neste homem o Filho de Deus. O que eles criam acerca d’Ele_foi-nos_transi do pe1in,ge1hq, ps Concflioseos testemunhos que nos ficaram. As perguntas que fazemos a n6 próprios acerca de Jesus não encontrarão, porém, aqui, uma res posta teórica. E caminhando que nós nos damos conta (6) Sondagem efectuada em Setembro de 1986 pelo Sofres, publi cada em Le Monde de 1 de Outubro de 1986 e no número 2144 de La Vie, 1 a 7 de Outubro de 1986.
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daquilo de que são feitas as vias da cristologia e da ma neira como foram, progressivamente, traçadas ao lon go da história. Para descobrirmos as etapas que vão organizar este percurso e dar dele a primeira visão global, sugerimos que comecemos por ler as primeiras palavras do Evan gelho de Marcos, considerado o mais antigo de todos. Marcos leva-nos imediatamente à fonte do testemunho apostólico pelo simples título do seu Evangelho: «BOA-NOVA DE JESUS CRISTO FILHO DE DEUS» (Mc 1,1) Este simples enunciado contém o essencial acerca da fé cri’tã. Boa-Nova: estas palavras, que inauguram o Evangelho, exprimem o carácter inesperado deste acon tecimento. Podemos descobrir nelas três dimensões: a histórica, a salvífica e a ontológica. Esta Boa-Nova tem, antes de mais, uma dimensão histórica, pois diz respei to a Jesus, um Homem situado, que tem um nome ju deu, cujos pais são conhecidos, e que viveu num lugar e momento precisos da história dos homens. Ao falar mos deste Homem, não podemos recusar a Sua condi ção humana, mas ainda menos limitar a ela o nosso olhar. A fé vai mais longe! Com efeito, o Evangelho de Marcos acrescenta ao nome de Jesus o título de «Cristo». palavra esta que. em grego, quer dizer «ungido» e, em hebraico, «messias». Este nome, que evoca a unção com azeite recebida pe los reis de Israel, apresenta Jesus como a figura do Mes sias, que Deus envia para salvar o Seu povo e estabelecer no mundo o Seu Reino, te nome de Jesus Cristo só por si, um programa. izer de Jesus que é Cristo sig nitica dizer que toi reconhecidomo o Desejado, aquele que Israel esperava, o qual lhe ia permitir realizariiTa 9
vocação, isto é, anunciar o nome de Deus a todas as na que quer dizer que o nome de Jesus Cristo é uma boa nova para o mundo e tem por isso uma dimen são salvadora, um alcance salvífico ou, para falarmos como os teólogbs, soteriológico. Eis-me, porém, perante um verdadeiro caso de es pantar, que nos obriga a dar mais um passo. Como é possível que a história de um Homem possa trazer ai dãhumanidade a salvação de Deus? A resposta cristã éuma resposta de fé. Ela ronhece que, neste Homem Jesus, é o pr6jio Deus que Se insere na nossa história.. Ãó dizer deste Jesus que é Filho de Deus, dizemos qual quer coisa que pertençe à própria essência de Cristo. Por outras palavras, afirmamos a propósito do homem Je sus não somente que Ele é o enviado de Deus para sal var, mas que ele próprio é Deus. O que quer dizer qiie toda a palavra sobre Jesus Ciito tem igualmente uma dimensão ontológica no sentido de que.enuncia alguma õia sobro serde Jesus Cristo identificado, enquanto Filho, não somente com o dom da salvação que Deus nos concede n’Ele, mas também com o dom que Deus nos faz de Si mesmo._ Entre os itinerários possíveis, quereríamos que o nos so percurso fosse mostrando, progressivamente, estas três. dimensões ao mesmo tempo que se mantém fiel, o mais possível, à caminhada da fé dos cristãos através dos séculos. Estas três dimensões são inseparáveis, mas cada uma delas oferece um ponto de vista particular. Tratá-las-emos pela ordem seguinte: 1. Na primeira etapa, ficar-nos-emos pela dimensão histórica. Uma vez que a fé dos cristãos se apoia na fé dos Apóstolos, começaremos por recolher os testemu nhos que estes deram de Jesus, conforme estão consig nados nos escritos apostólicos (N.T.). Por que vias chegaram os discípulos à afirmação de que o seu Mes lo.
tre estava de novo vivo? É esta experiência que consti tui a matriz do cristianismo. Pelo que é muito importante que, numa primeira parte, estejamos atentos à experiên çia pascal dos discípulos, a qual os levou a reconhecer, no rosto do seu Mestre ressuscitado, a glória de Deus. 2. Numa segunda etapa, veremos como os primei ros cristãos descobriram a dimensão ontológica de Je sus. Eles reconheceram n ‘Ele o Filho Eterno de Deus. A Páscoa fez com que os discípulos vivessem uma es perança de salvação, que lhes revelou o papel único e decisivo de Jesus no desígnio de Deus. Foi esta expe riência que guiou os Padres da Igreja, que guiou, de pois, as grandes testemunhas da tradição teológica até aos nossos dias, sempre que procuraram mostrar, com precisão, a misteriosa identidade de Jesus. Todos dão conta da mesma fé, resumida na seguinte fórmula: a pes soa de Jesus é em si mesma a «imagem do Deus invisí vel» (Cl 1,15). 3. A nossa terceira etapa ocupar-se-á da obra da sal vação, levada a cabo por Deus em Jesus Cristo, ou se ja, da dimensão salvífica. Será o momento de aprofundar o sentido que tem para nós esta Boa Nova da salvação. Para o fazer, ter-nos-ia sido possível partir das nossas próprias indagações humanas. Mas pareceu-nos prefe rível seguir o caminho escolhido por Deus, que é um caminho paradoxal: sendo um caminho de vida, passa pela morte na cruz, «escândalo para os judeus, loucura para os pagãos» (iCor 1,23), como dirá S. Paulo. Pre cisaremos então de clarificar, de uma forma especial, a ideia de redenção, que tanto marcou a cultura ociden tal, e manter-nos fiéis ao sentido da figura do crucifica do. Ficará sempre a pergunta, que não se pode iludir: quem é esse Deus que Se revela numa morte destas? li
1 «NÓS VIMOS À SUA GLÓRIA» A experiência pascal dos Apóstolos o Verbo Se fez carne e habitou entre nós e nós vimos a Sua glória» Jo 1,14
«Quem é, para mim, Jesus Cristo?» Antes de aceitar o percurso que propomos, poderá o leitor aceitar o ris co de responder a esta pergunta à sua própria custa. Dis porá, assim, de uma primeira confissão de fé, que poderá ir ampliando e corrigindo à medida que for realizando a sua progressão (Ver Anexo 1). O itinerário que lhe é proposto aqui não parte, porém, desta experiência pes soal. Caminhando através das Escrituras, estará sempre atento aos discípulos de Jesus para poder acolher o seu testemunho acerca do Ressuscitado bem como a leitura que eles próprios fizeram da sua experiência de Jesus de• Nazaré, cujos passos e vida decidiram seguir. A nossa fé nasceu na Páscoa com um grito de ale gria: Cristo ressuscitou! Que terá acontecido para que os discípulos do Pro feta de Nazaré se tenham posto a proclamar que o seu Mestre estava vivo, viveria para sempre e n’Ele todas as promessas de Deus haviam de ser cumpridas? «Cris to ressuscitou !» E escutando este anúncio pascal e deixando-nos guiar pela sua força organizadora que po deremos compreender como nasceu a fé dos Apóstolos. As raízes desta fé mergulham na história de Israel. Te mos de o demonstrar. Mas temos, sobretudo, de dar con ta, neste livro, dos grandes momentos que viveram com 15
Jesus e recolher a sua mensagem destinada ‘s cristãos de todos os tempos. O anúncio da ressurreição de Jesus exprime-se, no Novo Testamento, de diversas maneiras: confissões de fé, relatos de aparições, exposições bem documentadas, como iCor 15. Uma das formas mais desenvolvidas deste anúncio é o discurso missionário, também chamado «que rigma». termo de uso profano. que designava a procla mação oficial das novidades nas cidades gregas. Nos Actos dos Apóstolos, podem ler-se seis destes discur sos. Cinco são de Pedro (1,14-39; 3.13-26; 4,9-12; 5,30-32; 10,34-43). e um de Paulo (13,16-41). Lucas apresenta-os sob a forma de esquemas cuja estrutura se pode ver muito facilmente no esboço da página seguinte: No coração da mensagem, há o anúncio da res surreição d’Aquele que foi crucificadó. Em torno deste anúncio fundamental (círculo central do desenho) estão dispostos certos traços do ministério de Jesus, assim co mo os sinais que acompanharam a Sua ressurreição (cír culo intermédio). Este acto de Deus, que, em Jesus, sai vitorioso da morte, ocupa lugar numa história da salvação: men ção do desígnio de Deus, recordação dos textos da Es critura que apresentam a Páscoa como a realização deste desígnio e a inauguração dos últimos tempos, os tem pos do Espírito. Desta maneira, o acontecimento pas cal, alargado ao conjunto da vida de Jesus, faz parte de um círculo muito mais amplo, para manifestar que este acontecimento se situa no desígnio criador e salvador de Deus. Esta primeira leitura do esboço, de acordo com o eixo horizontal, que mostra a dimensão histórica, deve ser completada com uma leitura vertical de cima a baixo, ao longo do esboço (A-B-C), a qual manifesta a dimen são trinitária do acontecimento. A partir deste primeiro
Estrutura do anúncio pascal
A
DEUS
ANTES
1’
—
JESUS B
SENHOR
4, DEPOIS
—
—
ESPÍRITO
C
—
16
A: O desígnio de Deus ((Os profetas dão testemunho de Jesus» “facto Jesus» Começo, na Galileia Condenação à morte: Eles eliminaram-n’O» Ressurreição: ((Deus ressuscitou-O» ((Deus designou-O Juiz e Salvador)> 4. Testemunho: «E nós somos testemunhas disso» «Nós comemos e bebemos com Ele, após a ressurreição»
B: O 1. 2. 3.
C: Iniciou-se o tempo do Espírito O perdão foi concedido em nome de Jesus o Espírito derramou-Se Coordenar os discursos dos Actos dos Apóstolos com os capítulos 2, 10 e 13.
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olhar sobre a estrutura da confissão pascal é possível in dicar o itinerário que vamos seguir. 1. O tempo das promessas. Na Páscoa, Jesus é pro clamado Cristo porque n’Ele se realizam as promessas de Deus feitas ao Seu povo, O que quer dizer que a fé pascal radica numa esperança geral, culminada, aliás, na esperança específica da ressurreição dos mortos. Es ta esperança tomou corpo de uma forma literal na pes soa de Jesus. Só nos resta perguntar de onde vem esta esperança. 2. O tempo de Jesus. A fé pascal refere-se à obra realizada por Jésus de Nazaré, reconhecido como Aquele pelo qual veio a Boa-Nova da Paz (Act 10,36). Os dis cípulos, que viveram com o Mestre durante meses, fi caram marcados profundamente, como o prova muito bem o seu desapontamento no dia a seguir à morte de Jesus (Lc 24,19-24). O lugar dos relatos evangélicos na vida da Igreja testemunha a importância desta referên cia à vida de Jesus para se compreender verdadeiramente quem era o Ressuscitado. 3. Reconhecer o Crucificado. A esperanças que vi via no coração dos discípulos e que, como filhos de Is rael, eles partilhavam com o seu povo, bem como o encontro que tiveram com Jesus na Sua vida terrestre, permitir-lhes-ão compreender melhor as dimensões ‘es senciais da experiência pascal.
4. A mensagem pascal. Após a análise desta expe riência dos discípulos, estaremos em condições de per ceber o alcance da mensagem pascal, mensagem sem a qual, no dizer de S. Paulo, «a nossa fé não teria conteú do e a nossa pregação seria vã» (1 Cor 15,14). 18
1. O tempo das promessas Se quisermos recapitular a totalidade do tempo das promessas, temos de evocar todo o Antigo Testamento. Obrigados a escolher, fixaremos a nossa atenção sobre três dados essenciais: as traves mestras da fé de Israel, a fé na ressurreição dos mortos e a situação do Povo deDeus na época deJesus. 1. Escuta, Israel! Estas duas palavras «escuta, Israel!» constituem o começo de uma oração que o Judeu piedoso recitava vá rias vezes por dia, e que se chamava o «shemá» (Dt 6,4-9; 11,13-21; Nm 15,37-41). A alma do Povo eleito expri mia-se inteiramente nesta oração, Um povo que tinha a consciência de ser um povo escolhido e, por isso mes mo, chamado por Deus. Israel nasceu da Aliança que Deus fez com ele, ao tirá-lo da servidão do Egipto para fazer dele um povo de filhos. A este povo deu Deus a Sua Palavra (a Lei), na qual devia discernir a vontade divina, uma Terra que era preciso pôr a dar fruto, um Templo no qual esse povo podia encontrar-se com Deus. Toda a esperança de Israel nasceu desta iniciativa divi na e desta história de amor (Os 2), sem que as outras nações sejam por isso postas de parte. Para correspon der à sua vocação, Israel deve, com efeito, «escutar o seu Deus», mas igualmente testemunhar diante de todos os outros povos o amor que Deus lhe tem (Gn 12,2-3). O que quer dizer que a história de Israel está em ten são para o pleno cumprimento. No entanto, esta espe rança foi, ao longo dos séculos, evoluindo sempre. No reino de Judá, no Sul, foi a dinastia real que se tornou instrumento de Deus para realizar o Seu desígnio. Só que a infidelidade dos reis, a destruição do país, a deporta19
ção das populações levaram à esperança num Messias. que o próprio Deus mandaria, e num outro mundo. á que a salvação não podia nascer deste vale de lágrimas. Também se esperava uma última testemunha de Deus, semelhante a Moisés e as Profetas, a qual realizaria a profecia feita por Moisés: «Será um profeta como eu que o teu Deus suscitará no meio de ti de entre os teus ir mãos» (Dt 18,15). Por esta razão se esperava em Israel que, no termo da história, Deus Se revelasse e manifes tasse a Sua glória. Então, o Espírito seria dado ao povo e infundido no coração de cada um. 2. «Deus reclama a Tua vida na tumba» (Salmo 103.4) Só muito tardiamente o povo de Deus chegou à fé na ressurreição dos mortos. Para o israelita, o hõrizon te da vida com Deus limitou-se, por muito tempo. à vi da terrena. No limiar da morte, o rei Ezequias (7 16-687) exclamava: «Não mais verei a Deus na terra dos vivos !» (Is 38,11). O que quer dizer que, até por volta do ano 200 antes de Cristo, os judeus não acreditavam numa ressurreição pessoal dos mortos. No tempo de Jesus, os Saduceus, partido de chefes religiosos, ainda não tinham aderido à fé na ressurreição. Uma vez que a fé na ressurreição é, para Jesus e para os.cristãos, algo de muito importante, há toda a conveniência em procurar descobrir como esta fé apa rece(’). Duas experiências fundamentais levaram os crentes a esta conclusão: • primeiro, foi a experiência colectiva do regresso do exflio (séc. VI a.C.): De um povo morto, disperso, exilado, afastado da sua terra, sem rei nem templo, Deus (1) Cadernos Évangiie, n.° 3: uma excelente apresentação dos con tributos bíblicos para o esclarecimento dos textos referentes à ressur reição de Cristo.
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fez um povo ressuscitado, que regressa à sua terra para aí adorar o seu Deus e viver segundo as Suas leis. Tes temunho desta fé é a extraordinária visão de Ezequiel dos ossos ressequidos (Ez 37) que voltam à vida pelo sopro de Deus. depois, foi a experiência das perseguições no tem po dos Macabeus, no século II antes de Cristo. Come çou, então, a parecer impossível que o justo que morria mártir por causa da sua fidelidade a Deus ficasse, pela morte, separado de Deus definitivamente (2Mc 7 e Dn 12,2). Assim surgiu a ideia de que o justo devia voltar a viver após a morte. Esta lei é, na essência, baseada em Deus como parceiro da Aliança. Os semitas não consi déram o homem como um composto de alma e corpo, com aquela a sobreviver à desaparição deste. Se chega ram ao ponto de acreditar na ressurreição, foi por causa desta Aliança com Deus: sendo Deus vivo e justo, pode restituir a vida àqueles que enfrentaram o martírio. A fé na ressurreição alimenta-se, assim, da relação pre sente e viva com Deus já neste mundo. Esta ressurrei
ção é mais do que uma vitória sobre a morte: é a vitória sobre a injustiça. Eis um aspecto importante, que nos ajuda a compreender o testemunho dado pelos discípu los acerca da ressurreição de Jesus.
3. Um tempo de crise Na época de Jesus, parecia que os céus estavam fe chados: há muito tempo que os profetas se tinham cala
do e o Espírito de Deus já Se não manifestava. Era na Escritura (a Torah) e na prática dos mandamentos que os Judeus piedosos redescobriam Deus e viviam com Ele a sua relação filial. Ocupada pelos Romanos, Israel es tava, em todo o caso, em plena efervescência. O ardor 21
religioso de certos estratos da população era atiçado pela aspiração à liberdade: Deus havia de vir! • Um Messias Rei, ou talvez dois, havia de surgir. Deus em pessoa purificaria a Sua própria terra. Essé nios, fariseus e baptistas, cada um deles desenvolvia esta esperança de acordo com o seu próprio guião ou argu mento preferido. E foi neste clima de expectativa e de crise que Jesus apareceu.
II. O tempo de Jesus (2) Jesus vem da de Jerusalém por causa dos resíduos de presença pagã que ali continuavam. Filho de Israel, surge na órbita de João Baptista, que atrai as multidões com o anúncio do A mensagem de João é o mais simples possível: procla ma um baptismo para a remissão dos pecados (Mc 1,4-8), sem exigir 05 Custosos sacrifícios do Templo. Jesus apa rece neste contexto onde está bem viva a esperança do fim dos tempos. No entanto, depois de ter baptizado du rante brevíssimo tempo, Jesus vai mudar o Seu compor tamento. Enquanto João levava as pessoas para fora das cidades na direcção do deserto Jesus andava de cidade pregando a vinda de Deus para rnuitob 1. O reino de Deus está no meio de vós Exactamente como João Baptista, Jesus a uncia a ma stS sgie, em vez degar um Deus terrível, faz com que as pessoaidescubram (2)
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P. M. Beaude, Jésus de Nazareth, Desclée, 1983, p. 130.
um Deus misericordioso, que Se ocupa dos pobres e mar ginalizados, que vai em busca daqueles que se perdem, dos que não têm esperança. Neste sentido, o tempo de Jesuséum tempo novo, radicalmente novo. No fundo da sua prisão, João Baptista sentiu-se confuso (Mt 11,2-6) e precisou que Cristo o esclarecesse. Jesus fez-lhe com preender que as promessas feitas aos profetas se tinham tornado realidade (Lc 4,16-2 1): os cegos vêem, os pre sos são libertados, etc. Testemunha da vinda do Deus da Aliança e da recõnciliação, Jesus quer preparar os corações para acolherem a Boa-Nova. Opõe-se a tudo aquilo que separa os homens de Deus e os homens uns dos outros. E este o sentido da Sua mensagem como o demonstram os milagres que faz e o modo como vive.
Os milagres de Jesus Os milagres de Jesus np ervç prja Isagem; o._io sim, para a ilustrar concretamente (Mc 2fi). E tocante verificar que os Seus adversá rios chegam a censurá-l’O por não fazer milagres sufi cientemente convincentes. Mas Jesus recusa o espec táculo. A originalidade dos Seus milagres (3) está em que eles são, na sua essência, jiLais do Reino de Deus em Com Jesus e através d’Ele, Deus re1iãas pro messas que fez, socorre os pobres, liberta os doentes, reintegra na comunidade aqueles a quem a doença afas tou, por via das interdições que a lei fazia pesar sobre eles. A salvação que o milagre manifesta respeita a ne cessidades fundamentais como comer, ter saúde, viver. Os milagres não pretendem provar nada: são sinais do Reino de Deus. Anunciam, através da solicitude de Deus (3) Cf. René Latourefle, Miracles de Jésus et théologie du mi racle, ParisfMontréal, Cerf/Bellarmin, 1986. Ou então, mais fácil: Jean-Pierre Charlier, Signes etprodiges. Les Miracles dans I’évan gile, Paris, Cerf, 1987.
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pelos abandonados, um mundo «onde deixará de haver morte, gritos e lágrimas» (Ap 21,4). O modo de viver de Jesus Como os milagres, o modo de viver de Jesus incar na a Sua mensgm. Ao comer com os pecadores, por exemplo, Jesus dá uma ideia do perdão de Deus. Nesta época, as refeições eram lugar e tempo de divisão: as regras de pureza ritual não permitiam aos membros de certas seitas comer à mesma mesa com aqueles que eram considerados impuros. Ora a mesa de Jesus deixou de ser a mesa da separação para ser a mesa da reconcilia ção, uma mesa aberta a todos. Mesmo com o risco de passar por «glutão e bebedor» (Mt 11,19), testemunha, ao comer com os pecadores, que os abandonados se transformaram em hóspedes de Deus. Esta opção de Jesus poderia também ser ilustrada ob servando como Jesus escolhe os Seus discípulos. Nesse tempo, os que se dedicavam ao estudo da Torah é que escolhiam os seus mestres. Jesus, ao contrário, escolhe os Seus discípulos por Si mesmo e, entre esses discípu los, algumas mulheres, o que era contrário aos costu mes da época. E não só pede que O sigam como exige também que deixem tudo para o poderem fazer, sem qualquer ideia de voltar atrás. Entre os Seus discípulos, há um fiel cumpridor da Lei, Natanael, um judeu pie doso, Simão, o Zeloso, partidários da violência, Tiago e João, para não falarmos de Judas e de Pedro, um pu blicano, Mateus (os publicanos eram, nesse tempo, con siderados como •pecadores), um helenista, Filipe, originário de uma cidade fronteiriça, etc. Nada chama va estes discípulos a viver em comum a não ser a escolha -convite de Jesus. Um grupo com elementos tão diferentes não podia deixar de ser um sinal vivo de re conciliação. 24
2. As pretensões de Jesus A mensagem de Jesus, os Seus milagres, o Seu mo do de vida, suscitam entusiasmo; mas suscitam também a oposição de fariseus e chefes religiosos. De onde virá esta hostilidade? Vem, claro, de vistas deiasiado cur mas deve, essencialmente, às pretensões inaudi tas que eles vislubravam nos propósitos e gestos do profeta de Nazaré. Em tudo aquilo ,ue Jesus vi senteeéde Deus tudo aquilo que rnamfD aueseti-atrata. Três debates essenciais o demonstram: A relação de Jesus com os pecadores Fariseus e sábios, que consideram Jesus um homem justo e recto, ficam escandalizados com as Suas compa nhias. Pressentem, através do Seu comportamento, a pre tensão invulgar de ser, entre os homens, a presença de Deus, que, pelo £dão, Se reconcilia com os pecado res. O próprio Jesus não deixa que subsistam quaisquer dúvidas sobre esse assunto: Quem não é por Ele é con tra Deus; quem O contesta contesta a Deus; quem O aco lhe acolhe a Deus. Os homens serão julgados em função da atitude que tiverem a Seu respeito (cf. Mc 8,38). O problema põe-se com toda a crueza. Quem é Jesus para ligar desta forma a vinda de Deus e a concessão do Seu perdão à simples presença da Sua pessoa? Uma tal pretensão lança a confusão em todas as representa ções religiosas. A maneira de agir de Jesus torna cadu cas todas as mediações instimídas para assegurar a ão entre o homem e Deus no mundo judeu: a To rah, o Templo, etc. Jesus aparece ciio uma ameia para a ordem da salvação con !da pelos homens religiosos da época. • A relação entre Jesus e a Lei
Torah o modesprezo. Não veio aboli-la, mas dar-lhe cumpri25
mento em todos os seus aspectos. A Torah revestia, nessa época, duas formas: a Torah escrita (identificada com os cinco primeiros Livros da Bíblia) e a Torah_oral, trans mitida pelos sábios e qualificada de «tradiçâõ dos anti gos», igualmente atribuída a Moisés. Ora Jesus situa as Suas palavras ao nível desta «tradição dos antigos» e mes mo acima dela, o que quer dizer que Ele pretende, cla ro está, ultrapassar Moisés. E neste sentido que devemos ler textos como aquele em que Ele afirma: «Ouvistes o que foi dito aos antigos... Eu, porém, digo-vos...» as sim como todos os textos que sublinham a Sua autori dade (Mt 7,29). A menção da autoridade de Jesus não aparece como uma nota temperamental. Para um Judeu, isto tem um significado muito preciso: um mestre, quando fala, dá as suas referências; ora Jesus fala da Sua própria auto ridade, o que quer dizer que Se substitui à tradição oral, enunciando em Seu próprio nome a vontade de Deus, o que, para os Judeus, é intolerável. Jesus não Se situa entre Deus e o povo, como intérprete da Lei, mas enun cia a Lei e exige aos que O ouvem que sejam Seus dis cípulos porque aSua autoridade foi-Lhe dada por Deus (Mt 11,27-30). E portanto n’Ele que se deve acreditar, a Ele que se deve seguir, porque Ele é «o caminho, a verdade e a vida»! Jesus manifesta, com esta liberdade, «a Sua consciência do reino soberano de Deus em Si e através de Si» (4). • Jesus e o Templo O comportamento de Jesus em relação ao Templo vai no mesmo sentido: o Templo é op o lugar no qual se oferecem os sacrifícios pelo perdão dos pecados, o (4) W. D. Davies, Pour comprendre Je serrnon de Ia montagne, Paris, Seuil, 19.70, pp. 155 e ss.
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centro das peregrinações que celebram os feitos notá veis de Deus na história de Israel. Jesus frequenta o Tem plo, ensina nos seus átrios; mas assume uma atitude de relativo distanciamento em relação ao Templo e ao Sa cerdócio que o serve. Basta reler a parábola do «Bom Samaritano» (Lc 10) em que os levitas e os sacerdotes não são lá muito exemplares! Ou o episódio dos nego ciantes expulsos do Templo: as palavras que Jesus pro nuncia nesta ocasião serão o pretexto principal para Ele ser preso e condenado à morte (Mc 14,53-65). Mas a atitude de Jesus vai mais longe. Não Se con tenta com criticar o sacerdócio de Jerusalém. Outros, como os Essénios, também criticavam este sacerdócio. Só que Jesus, pura e simplesmente acaba com ele. E neste sentido que se deve ler o episódio dos negociantes ex pulsos do Templo: «Jesus não permitia a ninguém trans portar um objecto através do Templo» (Mc 11,16). Objecto quer dizer material do culto. O sentido do epi sódioé claro: Jesus detém o processo do culto sarifi cial. Jesus sente-Se no Templo como em Sua casa (Lc 2,46-49). Considera-se acima das regras, suspendendo o culto. «Facilmente se compreendem a emoção e as con sequências que irão seguir-se» (5). Com esta crítica, Jesus toma o lugar do Templo e apresenta-Se a Si próprio como aquele que abre cami nho para Deus e manifesta o Seu perdão. E neste senti do que devemos ler os episódios que põem em cena os Samaritanos opostos aos Judeus precisamente no que diz respeito ao Templo. Jesus faz compreender à Samarita na que, daí para diante, a Sua presença, que transcende aquestãoda loca çolo Templo (Jo 4,21-21), torna o Templo inútil. Quando reliam estes episódios, os pri meiros cristãos compreenderiam que Jesus era por Si o (5)
Charles Perrot, Jésus et I’histoire, Paris, Desclée. 1979, p.
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novo Templo, que garantia a permanência de Deus en tre os homens (Jo 1,14; Ef 2, etc.) Com Ele, o Templo vivo de Deus, nós temos alguém que é «mais que Salo mão», que construiu o Templo de Jerusalém (Mt 12,42). 3. Então quem é Jesus? As pretensões de Jesus mostram que se trata de fac to da vinda de Deus, mas de uma vinda que, cumprindo muito embora as promessas, as subverte e ultrapassa. Mais que testemunha de Deus, Jesus é Aquele pelo qual Deus torna presente o Seu perdão. O espaço onde o per dão é concedido não é o do Templo, mas o espaço quo tidiano dos homens, onde Jesus Se situa (Mt 5,23-24). O espaço do culto, como o espaço da Lei, alargou-se ao outro, sem excepção, porque o outro, seja ele quem for, deve tornar-se o próximo (Lc 10,29-37). Uma tal irrupção de Deus não responde de imediato às expectativas das multidões. Por isso se compreende bem que Jesus tenha sido incompreendido e rejeitado. As multidões, que esperavam uma libertação política, entusiasmavam-se por uns momentos, mas, depois, afastavam-se d’Ele. A Sua famiia, pensando que Ele perdera o juízo, inquietava-se. Os fariseus rugiam, con siderando uma blasfémia a pretensão de Jesus de Se si tuar entre Deus e a Lei. Os Saduceus tinham medo d’Ele, já que Jesus punha em causa o Templo, que era a fonte dos proventos deles. Os chefes viam n’Ele um pertur bador, que se arriscava a irritar o ocupante romano que lhes dava protecção; numa palavra, Jesus pôs contra Si a opinião pública. Nem os discípulos se mantêm unânimes. Alguns separam-se d’Ele (Jo 6,66). Um deles atraiçoa-O. Cla ro que Pedro, como outros, aliás, reconhecia em Jesus o Messias prometido: a Sua acção traz a assinatura di vina que liberta aqueles que vivem na servidão (Mc 28
8,27-29). Mas Pedro ainda não sabe a quem ou a quê deu a sua palavra. Recusa o caminho do sofrimento, que se abre diante de Cristo e vai renegar o Mestre, uma vez que julga indigno do Messias o caminho que Jesus escolheu (Mc 8,32-33;14,66-72). O que quer dizer que os discípulos estão divididos sobre o assunto. Ao fim e ao cabo, quem é Jesus? Que diz Ele de Si mesmo? Jesus não Se pregou a Si próprio nem declinou a Sua própria identidade. Pregou o Reino de Deus e deu-Se a conhecer pelas obras que fez (Jo 5,36; 10,25-37). Mas o que as Suas obras deixam pressentir é de tal modo inau dito que a maior parte fecha-se na recusa. Jesus não re cusou certos títulos, como «Mestre» e «Profeta»; e, na verdade, ao apresentar-Se como mensageiro decisivo de Deus, deixa pressentir que é o Profeta esperado dos úl timos tempos, anunciado em (Dt 18,15). Mas, ao mes mo tempo, é mais do que um profeta. Um dos tftulos que melhor O revelam é sem dúvida o do «Filho do Ho mem)>, essa personagem misteriosa que aparece no li vro de Daniel (7,13-14) e à qual é confiado o julgamento dos homens. Este título, posto sistematicamente pelos evangelistas nos lábios de Jesus, surge como o nome que Ele deu a Si próprio. Seja como for, o certo é que Jesus não diz em parte alguma de maneira peremptória «Eu sou o Messias», «Eu sou o Filho do Homem», «Eu sou o Filho de Deus». Não Se identifica com nenhum modelo do passado. Se o re ferirmos a outros modelos preexistentes, correremos o risco de «passar à margem daquilo que Ele é, no essen cial; no essencial porque aquilo que Ele é não se revela rá plenamente senão mais tarde, quando o Seu destino se confirmar»( ). Mas porquê estas reticências de Jesus, 6 (6) J. Doré, no artigo «Jésus-Christ”, Diction.naire des Religions, Paris, Puf, 1984, p. 853. Para o uso evangélico do título de Filho do homem», ver P. M. Beaude, op. cit., cap. 12, e Ch. Perrot, op. cit.. cap. 7.
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quando se trata de Se definir? Se Ele não Se define, é porque Se quer totalmente transparente a um outro, a Deus, a quem chama «Pai» de uma maneira única (ab ba) (Mc 14,36). Pelo modo de viver a relação com o Pai, na oração, e pela relação de serviço que mantém com todos, Jesus dá testemunho de um Deus de Amor.
4. A esperança de Jesus Jesus viverá «até às últimas consequências» (Jo 13,1) este radical serviço de Deus e dos homens. E terá de o viver na fé e na esperança, rejeitado por todos, entre gue por um dos Seus, aparentemente abandonado por Pedro. Apesar do fracasso, a esperança de Jesus nunca será desmentida. Esperará pela Sua ressurreição «no ter ceiro dia», ou seja, no dia em que Deus há-de ressusci tar todos os justos, esperando que, desta maneira, a Sua obra venha a sobreviver, como o testemunham as pala vras e os gestos da Ultima Ceia. Morreu, por isso, nu ma atitude de fé, como o justo que, abandonado de todos, se entrega a Deus e d’Ele tudo espera, mau grado o si lêncio que O cerca. A morte de Jesus parece uma vitória dos Seus inimi gos. Preso e interrogado, no decurso de um processo desonesto, onde o direito judaico nem sequer é respei tado, é entregue à autoridade romana como se fosse um agitador, e condenado ao suplício da cruz. As razões dadas para a Sua morte são reveladoras. O Sinédrio julga que Ele merece a pena capital porque ousou falar con tra o Templo e fazerSe igual a Deus; o motivo oficial da Sua condenação, gravado no letreiro da cruz, é, no entanto, político: pretendeu ser rei no império de Cé sar. E, desta maneira, Jesus é despojado até do sentido da Sua própria morte. Queria morrer em Jerusalém, co-
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mo um profeta que era para dar testemunho de Deus. cujo Reino anunciava (7); mas foi crucificado fora da ci dade; depois de ter sido condenado como um agitador, morreu como um escravo entre dois malfeitores. E teve de viver a esperança, nestas difíceis condi ções. O tempo de Jesus termina com um fracasso. Mas no próprio fracasso da Sua missão, Jesus conserva a Sua esperança em Deus. Na hora da morte, recita a oração do justo perseguido (Salmo 22), recapitulando assim toda a esperança do Antigo Testamento. A Sua morte revela um homem que viveu até ao fim o abandàno de Deus, na confiança e na esperança, à maneira dos justos que investiram em Deus toda a sua vida. Nessa noite escura em que a morte O submerge, Jesus é todo Ele uma ofe renda ao Pai, Mas a revelação não fica por aqui.
ifi. Reconhecer o Crucificado De facto, o percurso de Jesus não pára na Sua mor te, que é o triunfo dos Seus inimigos e mostra que Jesus é o Justo fiel até áo fim. Esse caminho vai desembocar na ressurreição. Ao grito de Jesus moribundo responde Deus com a ressurreição, pela qual Jesus entra na gló ria do Pai. Como foi recebida esta boa-nova da Páscoa? Está no cerne de que experiência? Para responder a es tas perguntas, é preciso examinar, antes de mais, as «nar rativas das aparições» em que são 4adas as dimensões essenciais da experiência pascal. Deve igualmente levantar-se o problema da historicidade dos factos que nos são relatados. (7) Ver J. Sch}osser, Le Dieu de Jésus, estudo exegético, Pa ris. Cerf, 1987, pp. 203-209.
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Um reconhecimento
1. As componentes da experiência pascal As narrativas das aparições do Ressuscitado são bem diversas. S. Paulo evoca uma aparição «a mais de qui nhentos irmãos ao mesmo tempo» (iCor 15,6). No fim dos Evangelhos, temos várias narrativas. Não se trata de relatos jornalísticos, mas de meditações sobre uma experiência, e que se ocupam do esseniil. Quando re cordamos acontecimentos que nos marcaram a vida, po demos enganar-nos sobre os pormenores, mas o sentido profundo, o fundamental, conserva-se sempre e, algu mas vezes, com o tempo, ainda mais se aprofunda. As sim acontece com as narrativas das aparições de Cristo. Através da sua diversidade, podemos distinguir quatro aspectos fundamentais: • Uma revelação divina Todas as narrativas sublinham o carácter inesp1do do encontro com Jesus Ressuscitãdo, o que é uma maneira de dizer que a iniciativa do encontro nada tem a ver com os discípulos, mas parte de Jesus: aparece quando «todas as portas estão fechadas» ou vem juntar-Se inesperadamente a dois discípulos no caminho de Emaús. Várias vezes se diz que Ele «Se mostrou» (em grego, ofté: iCor 15,3-8; Lc 24,34; Act 9,17;13,31; 26,16). Ora este vocábulo, que é uma alusão às teofa nias (manifestações) de Deus no Antigo Testamento, quer dar a entender que as manifestações do Ressuscitado têm uma íntima relação com uma manifestação de Deus, tra zem, digam irn, a Sua assinatura: Deus manifesta-Se na glória (divindade) «no facto de Se identificar com ). O Res 8 o Crucificado, trazendo-O da morte à vida»( suscitado fica, a partir de então, habitado pela glória de Deus (Rm 6,4). (8)
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W. Kasper, Jésus le Christ, Paris, Cerf, 1976, pág. 211.
Este Jesus que aparece aos discípulos é, ao mesmo tempo, diferente d’Aquele que eles conheceram e,to davia, continua o mesmo; o que é sublinhado pelos si iEempiulhes aparece: os vestígios dos cravos, a fracção do pão. Estes pormenores não só que rem estabelecer uma relação de identidade entre Aque le que morreu e Aquele que Se mostra vivo, como pretendem sublinhar que Aquele que ressuscitou é exac tamente O que foi rejeitado por todos e como tal conde nado à morte. Euma maneira de dizer que o próprio Deus ratifica a obra de Jesus. Ressuscitando-ÓDis revê o processo que O condnou, garantindo a vitória de Jesus não só sobre a morte como sobre a injustiça da Sua condenação. E toda a existência de Jesus que é, no fim e ao cabo, ratificada por Deus. -
• Uma tarefa da fé A ressurreição de Jesus não foi imposta aos discípu 1os, foi algo que se ofereceu à sua livre decisão. Eles reconheceram-n’O com os olhos da fé. A comunicação do Ressuscitado com os Seus situa-se a um nível radi calmente novo. As narrativas sublinham este aspecto de muitas e variadas maneiras. Já não estamos perante o mesmo tipo de relato que fala de Jesus ao longo dos ca minhos da Galileia. A partir de então, nada se opõe a esta comunicação: nem o temor, nem as portas fecha das. Mas também nada os obriga a ela: ela acontece na fé; os olhos vêem, mas não reconhecem imediatamen te; a dúvida permanece. E mesmo quando são dados si nais, como é o caso de Tomé, mesmo nessa altura, é necessária a adesão do coração (Lc 24,16; Jo 20,24-29; 21,4; Mt 28, 16-17; Mc 16,11-14). 33
Uma experiência missionária Os textos que se referem ao encontro com o Ressus citado são muito sóbrios, não usam o estilo das teofa nias, como acontece, por exemplo com a narrativa da Transfiguração, mas surgem como gestos de quem en via outrem em missão (Mc 16,7.15; Mt 28,7.18; Lc 24,49; Jo 20,17,21-23; Act 1,8). E assim os discípulos podem verificar que a Palavra de Jesus, sepultada com Cristo, deve surgir de novo com um testemunho autónomo. A missão é o sinal de que Jesus está vivo. Aos discípulos compete ressuscitar-Lhe a palavrã e anunciá-la ao mundo. 2. Vestígios históricos do Ressuscitado Poderemos ir além do testemunho dos discípulos de Jesus, os quais «viram» o Ressuscitado? Haverá porven tura um «vestígio histórico» do acontecimento? O Res suscitado manifestou-Se aos discípulos, que acreditaram n’Ele, mas não Se manifestou ao mundo, que «não vol tará a vê-l’O» (Jo 14,19-22). O nimulo vazio não é uma prova em favor da ressurreição; foi, isso sim, entendi do, a posteriori, como um sinal no qual a fé reconhece, retrospectivamente, o facto pascal. O verdadeiro vestí gio histórico é o grupo dos discípulos, que testemunhou que Jesus tinha de facto ressuscitado. Com toda a razão dirá Paulo que a Igreja é o Corpo de Cristo, a Sua pre sença no mundo. E este o facto que se pode assinalar, no qual se ins creve de uma maneira visível a acção de Deus que res suscita Jesus, Podemos explicitá-lo do seguinte modo: Este acontecimento dá aos discípulos uma nova vida, ressuscita-os, por assim dizer, ao juntá-los de no vo e ao arrancá-los às garras do desespero. Este regres so acontece por obra e graça da ressurreição do Mestre. —
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Será a ressurreição de Jesus um acontecimento histórico? Se a Ressurreição de Jesus é a Sua entrada no
mundo de Deus, esta escapa à condição de aconte
cimento histórico. E que o historiador não podé tar senão aquilo que é Imanente ao nosso mundo. No entanto, este mundo de Deus, que não se rege pelas leis do nosso mundo, está em relação com ele, como podemos ver pelas narrativas de aparições. Só que esta relação só com a fé se pode apreender. Para exprimir esta transcendência do Ressusci tado em relação ao mundo em que vivemos, o Novo Testamento utiliza uma dupla linguagem: a da ressur reição, que faz apelo ao esquema antes/depois (antes, está morto; depois, está vivo); mas também ao da exal tação, que recorre ao esquema em baixo/no alto (Jesus é exaltado, é elevado à glória de Deus). En quanto a primeira destas linguagens sublinha a Iden tidade da pessoa de Jesus, antes e após a morte (é a mesma pessoa que morreu e agora está viva), a se gunda sublinha a passagem a uma vida que não pode ser medida pelos mesmos parâmetros com que me dimos a vida que se deixou (a Sua vida de ressusci tado é outra, radicalmente diferente daquela que era a Sua neste mundo). A ressurreição de Cristo é sem dúvida um acon tecimento real e, neste sentido, é um facto histórico, pois diz respeito ao destino do homem histórico de Nazaré. Mas não se pode dizer que seja um aconte cimento histórico no sentido de que, na Sua nova con é acessível que transcende a história dição através dos vestígios deixados na História, vestígios esses que podem ser udos e decifrados pelos histo riadores. Pertencendo, desde então, ao mundo de Deus, a Ressurreição escapa à ciência histórica e só é acessível por uma relação estabelecida através da fé. O único vestígio histórico é este: a existência de uma comunidade que testemunha que Ele está vivo. —
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A aventura de Jesus ressurge nas suas vidas. A ressur reição de Jesus fá-los passar da dúvida ao espanto e do espanto à fé. O acontecimento pascal é uma experiência do per dão de Deus. Eles, que tinham abandonado Jesus, des cobrem que estão reconciliados com Ele e tornam-se testemunhas da Sua misericórdia (Jo 20,19-23). As apa rições não são apenas uma identificação de Jesus, mas a experiência na própria vida deste perdão que caracte rizava Jesus na Sua atitude para com os pecadores. O acontecimento pascal é, finalmente, fonte de libertação. Os discípulos passam do desespero à espe rança, do medo ao júbilo, do temor ao testemunho. Quem Se lhes manifesta é, sem dúvida, o Deus da Aliança, li bertador do Seu povo: descobrem n’Ele o Deus salva dor já actuante na existência pré-pascal de Jesus, cuja aventura prossegue neles e por eles, já que a missão de les consiste em fazer aquilo que Ele fez: curar os doen tes (Act 3,6-8), ensinar, convidar à comunhão, partir o pão (Act 2,42). —
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IV. A mensagem pascal Os discípulos proclamam aquilo que experimentaram na Páscoa, preferindo obedecer a Deus a obedecer aos homens (Act 5,32). Estamos agora em condições de iden tificar o último elemento desta pregação: com a Páscoa inaugurou-se um tempo novo. Que espécie de tempo? Os sinais indicadores essenciais são-nos dados por três afirmações do Credo:
1. O terceiro dia ou o tempo do Espírito Jesus ressuscitou porque chegou o «30 dia» ou seja, porque começou a ressurreição geral dos mortos. Vi mos que a esperança de Jesus se tinha exprimido em ter36
mos que evocavam o fim do mundo: o 3.° dia. Se Jesus ressuscitou, foi porque a força do Espírito surgiu no mun do para o levar ao seu termo. Jesus é o «primogénito», o mais velho de uma multidão de irmãos», o «primeiro de uma humanidade acabada» (Cl 1,18; Rm 8,24; ICor 15,20-27,45-50). A Sua ressurreição inaugura a ressur reição dos mortos. Eis a razão pela qual ela é o aconte cimento salvador por excelência. De onde se conclui que em Jesus se cumprem as Es crituras (Lc 24,27 e 44). Só relacionando todos os fac tos da Escritura é que podemos descobrir, de uma vez por todas, que «tudo fora criado para Ele» (Co! 1,16). N’Ele Deus «deu-nos a conhecer o mistério da Sua von tade, segundo o beneplácito que n’Ele de antemão esta belecera para ser realizado ao completarem-se os tempos: reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas no céu e na terra» (Ef 1,9-10). O que é atribuído a Jesus, investido na Sua qualida de de «Filho de Deus em poder» (Rm 1 ,4) diz respeito a toda a humanidade. «Príncipe da vida» recebeu o Es pírito, mas para d’Ele fazer os outros participarem (Jo 20,22). Encontramos aqui um dos aspectos importantes da experiência pascal: a ressurreição de Jesus manifesta-se na vida de um grupo ressuscitado, o que quer dizer que há na ressurreição de Jesus um duplo movimento: Ele passa com todo o Seu ser movimento para o Pai ao mundo de Deus e movimento para os Seus irmãos, para os fazer entrar neste mundo de Deus. Jësus, em bora tenha entrado nesse mundo, continua, no entanto, com os Seus discípulos até ao fim dos tempos. (Mt 28,18-20). —
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2. Subiu aos céus Nos escritos do Novo Testamento, a imagem da su bida aos céus tem um duplo alcance teológico. 37
Por um lado, exprime a ideia de uma vitória total de Cristo sobre todas as forças que se opõem a Deus Esta ideia anda ligada à da descida aos infernos: na Sua morte, Jesus venceu até ao fim a condição mortal. Os infernos representam o destino mais trágico, o abando no mais absoluto. Cristo traz a salvação a todos os ho mens, seja qual for a aflição em que se encontrem. «A descida aos infernos convida a reconhecer até que pon to Jesus Cristo desceu nas profundezas da morte, ou se ). 9 ja, até que ponto a Sua ressurreição foi vitoriosa»( Nenhuma das potestades que pretendem dominar o uni verso resiste ao Seu avanço vitorioso; nada poderá «separar-nos do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, Nosso Senhor» (Rm 8, 38-39; Act 2,24; Rm 10,6; Ef 4,8-9; lPd 3,18-20). Morte e ressurreição são coi sas inseparáveis. Por outro lado, a subida aos céus inaugura o tem po da Igreja. Demorando, entre a Ressurreição e a As censão, um lapso de tempo de quarenta dias, durante os quais Jesus instruiu os Seus discípulos, os Actos que rem responder a uma pergunta essencial dos cristãos: como pode explicar-se que, apesar da vitória de Jesus, o mundo continue por mudar? A narrativa da Ascensão esclarece esta pergunta. E preciso lê-la à luz de 2Rs 2, 9-12, em que o profeta Elias diz ao seu discípulo Ehseu: se tu me vires quando eu for separado de ti, terás o meu espfrito e a minha força para prosseguires a mi nha missão. O mesmo acontece com a Ascensão: Jesus deixa os Seus, mas Lucas menciona três vezes que eles O vêem. A lição é evidente: uma vez que viram Jesus partir têmo sinal anunciador de que receberão o Seu Espírito. E o tempo da Igreja que se inaugura. isto realça um outro aspecto do mistério pascal: a —
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J. Doré, no artigo «Descida aos infernos» do Dictionnaire des Religions, op. cit., p. 393. (9)
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discrição. Há uma profunda unidade no comportamen to de Jesus antes e depois da Páscoa: antes, manifesta-Se como servo, propõe sem impor, recusa qualquer actuação espectacular; depois, conserva exactamente a mesma discrição: não confunde aqueles que O conde naram à morte, refugiando-Se por assim dizer, na co munidade; são os gestos evangélicos dos cristãos, como a partilha e a fracção do pão, que devem permitir que O reconheçam (Act 2,42). 3. Há-de vir julgar os vivos e os mortos A Páscoa acontece no silêncio e inaugura entre os primeiros cristãos uma espera, por vezes ímpaciente, apoiada na promessa de uma vinda do Senhor. Esta vinda (não se trata de um «regresso»!) ou esta «parusia» (ter mo profano que designava a visita de um rei a uma das suas cidades) é evocada de variadas maneiras (lo). O mo delo bíblico implícito é o da manifestação da glória de Deus no Sinai (Ex 19). No fim dos tempos, completar-se-ão os acontecimentos iniciados no Exodo: Cristo virá buscar o Seu povo e levá-lo-á ao Pai. «Assim estaremos sempre com o Senhor» (lTs 4,17). A salvação tem uma dimensão colectiva. A Páscoa inaugura um tempo novo e contém uma promessa de salvação. E por isso que não convém limi tar a salvação à dimensão individual. O tempo que se segue à Páscoa não é um tempo vazio: é um tempo em que, apesar do silêncio e das não evidências de Deus, se constrói a história colectiva da salvação dos homens. E verdade que a Parusia realizará o desígnio do Cria (lO) Ver Ch. Perrot, «A vinda do Senhor», em Le Retour du Christ, obra colectiva, Publicação das Fac. Saint-Louis, Bruxelas, 1983, pp. 17-50.
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dor mas também se requer que a Promessa inaugurada com a Ressurreição de Jesus se verificou à escala do mundo criado para que, finalmente, se acendam no mun do a luz da Sua vida e a verdade da Sua vitória. Teremos mesmo de imaginar, no fim de tudo, um juízo, que manifeste de uma forma clara, a omnipotên cia de Deus? (11) Há duas perspectivas. Segundo S. João, o juízo da História faz-se desde já (Jo 3,19) na recusa ou na aceitação da luz de Cristo. Mas outros textos situam-no no fim dos tempos. Estas duas posições não são contraditórias: a Parusia revelará a verdade do juí zo já em acção desde agora. Releia-se Mt 5,21-46: a pa rábola chamada do juízo final exprime a identidade entre a causa do homem e a causa do Messias de Deus. (12)
atravessar a Tradição viva segundo uma ordem crono lógica. A primeira etapa põe-nos, sobretudo, em con tacto estreito com a Escritura. A segunda situar-nos-á mais ao nível da Igreja dos Padres, que elaboraram a tradição dogmática da mesma. Ao passo que a terceira nos fará descobrir a teologia medieval e da época da Re forma e conduzir-nos-á até aos nossos dias.
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No começo desta busca, fizemos notar que toda e qualquer reflexão cristológica devia ter três dimensões: histórica, soteriológica e ontológica. A primeira parte deste percurso situou-nos na fonte da fé em Jesus Cris to, Filho de Deus. Teremos de prosseguir a nossa refle xão em duas direcções. Por um lado, perguntar como é que a fé em Jesus, nascida historicamente da experiên cia pascal dos discípulos, foi sendo explicitada até re conhecer em Jesus o Filho eterno do Pai (dimensão ontológica). Por outro lado, perguntar como foi com preendida a dimensão soteriológica deste acontecimen to, isto é, a percepção de Jesus como Salvador do mundo. A lógica exigirá que a reflexão sobre Jesus Salvador precedesse a outra sobre Jesus Filho de Deus. Escolhen do a ordem inversa, fazemos uma opção pedagógica: (li) Ver Ch. Duquoc, Christologie Ii. Le Messie, Paris, Cerf, 1972, pp. 281-317. (12) Ibidem, p. 317.
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II IMAGEM (OU ÍCONE) DO DEUS INVISIVEL A fé em Cristo, Filho de Deus Deus que disse que das trevas resplandecesse a luz, é que brilhou nos nossos corações para que irradiássemos o conhecimento da glória de Deus. que se reflecte na face de Cristo.
2Cor 4,6
No decurso desta nova etapa, que nos fará atraves sar toda a história do Cristianismo, tentaremos perce ber como foi descoberta e expressa a identidade de Jesus, confessado como Filho Eterno de Deus, Seu Pai, e co mo esta confissão de fé, transmitida de geração em ge ração, chegou até nós. Esta segunda parte vai dividir-se em três secções: 1. A fé da Igreja: A Igreja elaborou a sua fé na di vindade de Jesus de uma maneira.progressiva. Apoiada na experiência pascal, esta elaboração tem as suas raí zes nessa mesma experiência e culmina nas definições dos primeiros Concílios ecuménicos e será comentada pela teologia medieval. 2. Uma tradição contestada: A expressão eclesial da fé foi sendo contestada no decurso dos séculos. Retere mos dois momentos importantes desta contestação: a Re forma e o Racionalismo, cuja influência ainda hoje se exerce no Ocidente. 3. Aberturas actuais: Numa última secção, tentare mos discernir os caminhos actuais da cristologia, as suas aberturas a novas posições, as formas que reveste hoje o testemunho eclesial a respeito de Jesus, Filho de Deus. 45
Esta retrospectiva, que, algumas vezes, parecerá ár dua, não pode ser evitada. E indispensável recuperar esta memória da Igreja, Descobriremos, então, que a fé não é um sistema de ideias anónimas, mas uma realidade ela borada na confrontação, de rosto descoberto, em que se põem em jogo pessoas e culturas, e num diálogo cons tante entre a Palavra de Deus e a inteligência humana, que sempre tentou e tenta recolher daquela a riqueza de que vive e que comunica aos outros. Só que a memória não basta, A segunda secção mostrará como a aparição de desafios novos, inéditos na época do racionalismo, obrigou a fé a novos esforços de inteligência. O nosso propósito não é, por isso, «fazer história», mas preparar-nos para compreender certas interrogações contempo râneas que nos são feitas por esta história.
1. A fé da Igreja Desde os começos da Igreja(’) que a reflexão sobre o mistério de Cristo se foi fazendo em referência às tra dições culturais e religiosas das diferentes comunidades que a compunham. A existência de quatro Evangelhos, que não se podem reduzir a um só, é de tudo isto a ilus tração mais clara. Não queremos apresentar o desenvol vimento integral que levou da fé pascal inicial à fé trinitária; mas será muito útil propor alguns pontos in dicadores, que sejam a garantia de um percurso balisa do, que nos leve de Jerusalém a Niceia e, depois, de Niceia a Calcedónia.
(1)
Fresco sugestivo dos primeiros movimentos cristãos é o que se
propõe em F. Vouga, A 1 ‘aube du christianisme, une surprenante di versité, Aubonne, Suíça, edit., du Moulin, 1986.
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1. De Jerusalém a Niceia A
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O TESTEMUNHO APOSTÓLICO
O testemunho apostólico, conforme dissemos já, as sumiu formas diversas, conforme a situação das comu nidades. Foi-se afeiçoando a partir da meditação das Escrituras, tendo como referência a vida de Jesus, sem pre em ligação com a vida da Igreja e a sua missão. Não queremos ser exaustivos. Mas não queremos deixar de evocar dois pontos que a Igreja precisou, muito cedo, de clarificar: a preexistência de Jesus e a Sua designa ção como Filho de Deus. A preexistência
A preexistência exprime a transcendncia de Jesus em relação à História. «Preexistir» significa, etimologi camente, existir antes. Esta noção sublinha a ideia de que Jesus não tem a Sua única fonte de existência na his tória, mas que a transcende não só pelo facto de ter sido elevado à direita do Pai, como pelo facto da Sua nature za. Esta preexistência é afirmada de várias maneiras, no Novo Testamento, por S. Paulo, por exemplo, quando afirma de Jesus que Ele é «o Filho bem-amado do Pai», a Imagem ou Icone do Deus invisível, «em quem por quem e para quem» todas as coisas foram criadas (Cl 1,13-20); mas também por S. João, por exemplo no Pró logo do seu Evangelho (Jo 1,1-18). Entre os dados que permitiram chegar a estas prodi giosas afirmações, está, antes de mais, a experiência pas cal. Esta experiência é a experiência da salvação. Se em Jesus se realiza o desígnio de Deus, não é porque Ele Se encontra em pessoa na origem deste desígnio? Entre começar e acabar, entre o alfa e o omega, deve existir alguma correspondência. Quando os pagãos, adorado47
res que eram dos poderes celestes, descobrem em Jesus o caminho para Deus, compreendem que este Jesus está acima dos seres invisíveis que eles adoravam e que lhes serviam, até então, de mediadores para chegarem a Deus. Um outro dado é a vida de Jesus. Ao reler esta vida de Jesus à luz da Páscoa, os discípulos compreenderam que a Sua pretensão de Se situar acima da Lei e do Tem plo, como representante do Deus único que perdoa, exi gia, naturalmente, identidade divina. A autoridade de Jesus antes da Páscoa manifesta que já então actuava n’Ele o poder de Deus. Finalmente, um último dado, que permitia aos dis cípulos chegar à ideia da preexistência: o Antigo Testa mento. A meditação do Antigo Testamento permitiu-lhes descobrir uma linguagem apropriada para expri mir esta transcendência de Jesus. Pensemos na figura do «Filho do Homem» e, sobretudo, na da «Sabedoria» apresentada nos grandes Textos Sapienciais como uma personagem que goza da intimidade de Deus e preside aos destinos do mundo. Os discípulos não tiveram grande dificuldade em identificar Jesus com estas figuras e em compreendê-l’O a partir delas. A filiação divina Como se chegou à designação de Jesus como Filho de Deus? Nos Actos, este título aplicado a Jesus ressus citado aparece en simultâneo com outros títulos igual mente prestigiantes: «Senhor» (2,36,10,36), «Príncipe da Vida» (3,15;5,31), «Salvador» (5,31 ;13,23), «Profe ta» (3,22), «Santo» e «Justo» (3,14). Paulo, pelo contrá rio e, depois, os Evangelhos, dão ao título «Filho de Deus» uma importância considerável; a ponto de poder designar, em João, o próprio mistério de Jesus na Sua relação com Deus. Lembremos, antes de mais, que este título não é re 48
servado a Jesus. No Antigo Testamento, a qualidade de Filho de Deus é reconhecida, por vezes, aos anjos e, sobretudo, ao povo de Israel (Ex 4,22; Os 11,1) e ao rei que incarna o mistério deste povo; depois, ao Mes sias (Sl2,7, Act 9,20 e 22). Jesus nunca reivindicou para Si este título. Mas não podemos deixar de ser tocados pela afinidade que existe entre o anúncio do «Reino» de Deus, até ao cerne da Sua pregação, e este título de Fi lho. Faltava compreender que o Rei Messias é «Filho» num sentido diferente dos outros reis porque o reino cujo centro Ele ocupa se identifica com o reino decisivo de Deus. Já não se trata de qualquer reino terrestre» (2). Esta particularidade da filiação de Jesus enriqueceu-se no decurso do acompanhamento dos discípulos pelo seu Mestre, cuja vida lhes testemunhava em todos os por menores uma relação privilegiada com Deus. As narra tivas evangélicas são, neste ponto, sem ambiguidades: situam Jesus muito claramente entre os anjos e o Pai (Mc 13,32) e notam como algo de muito singular Jesus cha mar a Deus «Abba» (meu Pai !), coisa que nenhum ju deu piedoso ousaria fazer, nessa altura. Seria preciso reler também a bênção de Mt 11,25-27: os discípulos percebem que existe entre Deus e Jesus uma relação úni ca, e que, ensinando-os a chamar por Deus nos mesmos termos em que Ele O chama, lhes revela que também eles participam desta relação radicalmente nova. Têm tal consciência desta oração que a atribuem ao Espírito Santo (GI 4,6; Rm 8,15). O estudo dos dois pontos que acabamos de esboçar mostra como os discípulos chegaram à confissão do ca rácter único e transcendente da relação de Jesus com Deus. Ele não é somente o justo e exaltado à direita de Deus, mas é o Filho que, desde toda a eternidade, vive a própria vida de Deus. Mais que o representante do povo (2)
E. Morin, L ‘événement Jésus, Paris, Cerf. 1978,
p.
145.
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eleito e da humanidade diante de Deus, Ele é o próprio dom de Deus ao Seu povo e à humanidade. «Na plenitu de do tempo, Deus enviou o Seu Filho, nascido de uma mulher» (GI 4,4). «Ele que era de condição divina não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, mas despojou-Se a Si mesmo assumindo a condição de ser vo, tornando-Se semelhante aos homens» (FI 2,6-7). B
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CULTURA JUDAICA E CULTURA GREGA
O testemunho apostólico é único, já que repousa so bre uma experiência privilegiada e intransmissível. Com o período dos «Padres da Igreja», inaugura-se o tempo daqueles que não viram. A partir de então, ninguém po derá contentar-se com proclamar a mensagem. Ao está dio da pregação pura sucede-se o da «argumentação e mesmo da demonstração: Ele foi visto e nós podemos acreditar porque. » (3). Para testemunharem o mistério cristão, os cristãos dos séculos II e III terão de argu mentar numa dupla frente (a do judaísmo e a do hele nismo), os dois meios em que se desenvolvem as jovens Igrejas. . .
Contacto com o judaísmo Uma primeira confrontação foi a que se produziu en tre cristãos que tinham vindo do judaísmo e cristãos oriundos do mundo pagão. Levantou-se, de facto, grande polémica pelo facto de as comunidades cristãs continua rem a viver segundo a Lei judaica. Que significado tem esta referência? Os que vêm do judaísmo tentarão inter pretar o mistério do Ressuscitado a partir de figuras e mediações bíblicas. Será neste contexto que aparecerão alguns desvios. (3) J. Doré, As cristologias patrísticas e conciliares», em Initia tion à la pratique dela théologie, tomo 2, Paris, Cerf. 1982, p. 194.
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Contentar-nos-emos com apontar três: o adopcionis mo, o modalismo e o patripassionismo. O adopcionis mo concebe Jesus como um homem adoptado por Deus, no baptismo ou aquando da Sua Ressurreição. O moda lismo, ao contrário, vê em Jesus uma simples forma na qual o Pai Se manifesta: Jesus não passaria de um modo de ser do Pai. O patripassionismo entende que não teria sido Jesus mas o Pai a sofrer a Paixão na cruz. Confrontação com o helenismo Uma segunda confrontação vai produzir-se no con tacto com o helenismo pagão e terá uma dureza invul gar. Ao contrário do Judeu, que concebe a intervenção de Deus na História de maneira concreta através de in termediários que Deus escolheu (os Patriarcas, Moisés, os Profetas, etc.), o Grego, que tem uma concepção hie rarquizada do mundo (o mundo material é uma emana ção degradada do mundo imaterial e invisível), estabelece uma nítida diferença por uma figura mais abstracta, que se chama Lógos. Noção filosófica, usada pelos pensadores gregos, será largamente usada a partir do Evan gelho de João. Precisamos de medir bem toda a distância que existe entre este Lógos grego, Razão do Universo e a Palavra de Deus, tal qual a concebe o Judaísmo, uma Palavra que conduz a História até incarnar nela. Para a sabedoria grega, que concebe a carne como a prisão da alma, a incarnação é uma coisa difícil de conceber. E neste contexto grego que se desenvolve um esforço novo para pensar a unidade de Jesus com Deus. Mais afastados da sensibilidade bíblica, os cristãos de cultura grega lançarão’ mão de outras esquemas de explicação para exprimirem a unidade de Jesus com Deus. E muito cedo aparecerão os desvios. O gnosti cismo, de inspiração grega, tem uma concepção dualis ta do mundo (oposição ente matéria-má e espfrito-bom). 51
«Homem-Deus» (teantropos), expressão que irá manter-se, na terminologia teológica. Desenvolveu uma teoria completa sobre a preexistência da alma hu mana de Cristo, procurando ligar a doutrina do Lógos à doutrina do Jesus Incarnado.
Algumas grandes figuras da cristologia antiga INÁCIO DE ANTIOQUIA. Condenado às feras no reinado de Trajano (98-117), Inácio, Bispo de Antio quia, de quem nos ficaram Cartas, insistiu na novida de cristã, afirmando, face ao judaísmo, a realidade da humanidade de Cristo. JUSTINO (por volta de 100-164/165). Filósofo ori ginário da Palestina, mas domiciliado em Roma, este apologista deixou um Diálogo com Trifão, que tem como interlocutores os Judeus, bem como uma du pla Apologia, dirigida ao imperador romano em defe sa dos cristãos. Procurou conciliar a filosofia pagã e o cristianismo, afirmando, para isso, que o Logos di vino só na pessoa de Cristo apareceu plenamente. IRENEU (por volta de 130-202). Originário da Ásia Menor, onde conheceu S. Policarpo e, através des te, o próprio S. João, foi, mais tarde, Bispo de Lião. O seu Adversus haereses é dirigido contra os Gnós ticos. Nele, tenta descobrir, de uma maneira espe culativa, a verdadeira relação entre o Filho e o Pai e apresenta o Filho como Aquele que recapitula toda a criação (Ver Anexo II). TERTULIANO (155-220). Nascido em Cartago, é o primeiro escritor cristão de língua latina. Escreveu numerosas obras contra toda a espécie de adversá rios. Na sua cristologia, dá realce especial e isto contra os docetas ao carácter real e verdadeiro da carne humana de Cristo e da ressurreição do corpo resgatado por Cristo. —
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ORÍGENES (por volta de 185-252/253). Originá rio de Alexandria, consagrou a vida ao estudo cientí fico da Escritura. Foi o primeiro a utilizar a expressão
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ATANÁSIO (298-373). Patriarca de Alexandria, tornar-se-á um ardente defensor da fé de Niceia con tra os erros de Ano, cujos partidários conseguirão, por cinco vezes, exilar o patriarca. CIRILO DE ALEXANDRIA (por volta de 380-444). Patriarca de Alexandria, vai defender com toda a ener gia a fé católica contra Nestório. Vai ser o animador do concílio de Efeso, no qual a sua teologia triunfará. LEÃO MAGNO (+ 461). Bispo de Roma (Papa) a partir de 440, desempenhou um papel decisivo nas controvérsias cristológicas, nos tempos que se segui ram ao Concílio de Efeso. A sua Carta a Flaviano, pa triarca de Constantinopla, foi aceite como norma de fé (449), ou seja, como expressão autêntica da fé ca tólica.
Trata-se de um movimento religioso que propõe a sal vação através do conhecimento: para se salvar é preci so evadir-se deste mundo mau. Um pensamento destes contraria frontalmente a salvação cristã, inaugurada pela vinda de Deus na carne e que se completa na ressurrei ção do corpo. Para os gnósticos, Cristo ter-Se-ia limi tado a assumir a aparência de carne, o que levou a que a sua posição fosse qualificada de docetismo, do verbo latino «docere», que quer dizer ensinar ou parecer. A gnose encontrará um adversário terrível em S. Ire neu de Lião. Se Cristo não assumiu uma carne verda deira, nós não fomos salvos, porque só foi salvo o que foi assumido por Ele. «O Verbo de Deus fez-Se o que 53
nós somos, escreve ele no seu Tratado contra as here sias, para que nós fôssemos o que Ele próprio é» (Con tra as Heresias, V. Prólogo).
Duas posições contrárias sobre o Mistério de Cristo Mas Santo Ireneu não trava sozinho esta luta da fé. A sua argumentação será retomada constantemente pe los Padres da Igreja. Mas, depois de Ireneu e para além dele, sobretudo no século IV, o debate cristológico vai conhecer ainda outros progressos. Vão surgir então duas posições contrárias sobre o conhecimento do mistério de Cristo, posições essas que se vão desenvolver, uma em Alexandria e outra em Antioquia. Em Alexandria, para apresentar a unidade de Cris to com Deus, considera-se o mistério de Cristo a partir da Sua origem divina, o Verbo, embora se corra o risco de atenuar, senão de esquecer, a Sua realidade humana (perspectiva «Verbo-carne»). Em Antioquia, pelo contrário, põe-se a tónica na humanidade de Jesus. Esta cristologia do «Homem-Verbo», que privilegia a autenticidade humana de Je sus, não está suficientemente preparada para dar conta da Sua união com Deus e da Sua divindade. —
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O problema fundamental posto por estas duas posi ções contrárias é o da vinda de Deus à história dos ho mens para partilhar plenamente a condição carnal da humanidade. Como é possível afirmar, a um tempo, a transcendência de Deus em relação ao mundo, e a Sua imanênciana história, tal qual acontece pelo Verbo fei to carne? E a crise ariana que vai obrigar a Igreja a pre cisar a sua linguagem a fim de salvaguardar uma fé ameaçada pelo racionalismo grego. 54
C
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A FÉ DE NICEIA (325)
A crise rebentou em Alexandria. Ário, um sacerdo te de Alexandria, propõe uma doutrina bastante simples, segundo a qual era impossível que Cristo fosse Deus. O esforço de Ano pode ser considerado como uma ten tativa de helenizar o cristianismo: Deus, segundo ele, não pode comunicar-Se ao mundo de uma forma autên tica. Por isso mesmo o Filho não pode ser considerado como Deus que toma carne humana. E uma criatura hu mana, criada por Deus, que, desde o momento em que é criada, não passa de uma substância criada. Por isso Ano afirma que «houve um tempo em que Deus ainda não era Pai; depois é que Se tornou Pai. O Filho nem sempre foi Filho (...) O próprio Verbo de Deus foi criado do nada». Uma tal concepção põe em causa de uma for ma radical a salvação cristã. Reunidos em Niceia, lugar de residência de Verão do Imperador Constantino, 318 Bispos orientais vão res ponder ao desafio ariano e propor uma definição da fé elaborada a partir de um credo já existente. Adoptaram esse credo, ao qual acrescentaram algumas fórmulas des tinadas a suprimir a ambiguidade que surgira, ligada a certas passagens bíblicas, ao longo das controvérsias. Eis o referido texto: Cremos em um só Deus-Pai, todo-poderoso, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, único gerado do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Dus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial ao Pai (também se pode traduzir a palavra grega homoús sios por «da mesma natureza») 55
por quem todas as coisas foram feitas no céu e na terra, que por nós, os homens, e pela nossa salvação desceu e Se fez carne, tornou-Se homem, sofreu, ressuscitou ao terceiro dia, e subiu aos céus, de onde virá julgar os vivos e os mortos. E no Espfrito Santo. Sem pretendermos separar do resto o contributo deste Concilio, achamos importante reter alguns pontos fun damentais: A linguagem da Escritura, que exprime a salvação cristã sob a forma de relato das intervenções de Deus na história dos homens revela-se insuficiente para ex primir o dom da fé. Teve, por isso, de integrar vocábu los técnicos pedidos de empréstimos à cultura grega e explicitar-se através de um «ou sei a» (4). • Os Padres do Concilio completaram a linguagem descritiva da Escritura acrescentando-lhe a linguagem ontológica. Fixaram e basearam o que Deus fez por nós por e em Jesus Cristo naquilo que Ele é em Si mesmo. Por outras palavras, na «relação ontológica» que liga o Pai com o Filho. Desta maneira se salvaguarda a trans cendência de Deus em relação à história. • Os Padres conciliares quiseram, de uma vez por todas, face à ameaça ariana, afirmar, de forma clara, que Jesus, esse Homem que sofreu sob o poder de Pôn cios Pilatos, por nós e pela nossa salvação, faz parte do próprio ser de.Deus, o que é expresso pela palavra «con substancial». Sublinham, déste modo, a transcendência (4) CÍ.B. Sesboüé, Jésus-Christ dans Ia tradition de 1 ‘Église, Pa ris, Desclée, 1982, pp. 97-98.
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absoluta de Deus em relação ao mundo, mas mantendo, em todo o caso, a compatibilidade desta transcendência com a sua comunicação absoluta aos homens em Jesus Cristo. 2. Os Concilios cristológicos Não se deve limitar o trabalho de Niceia à questão cristológica. Mas nem por isso ela deixa de ser essen cial. Na sequência do Concilio, desenvolveu-se, na Igre ja, uma intensa reflexão sobre Deus e o conhecimento que podemos ter d’Ele, sobre o estatuto trinitário do Es pírito Santo, etc. Sobre a pessoa de Cristo, restavam em suspenso, depois de Niceia, dois pontos importantes: • Se Jesus é Deus, como salvaguardar integralmen te a Sua humanidade? • Como se conjugam n’Ele, sem se exclufrem, a rea lidade divina e a realidade humana do Seu ser? Sobre estas questões, Antioquia e Alexandria tinham visões diferentes, conforme vimos atrás. Por causa desta diferença de perspectiva irá ressurgir a questão cristo lógica. Apolinário de Laodiceia assume a defesa da úni dade de Cristo, recusando, porém, que Ele tenha urna alma humana: «A natureza incarnada do Verbo Divino é uma só», proclamará ele. Irá ser denunciado por San to Atanásio, no Concilio de Alexandria, (362) e conde nado pelo Papa Dâmaso, em 377. CONCÍLIO DE ÉFESO (431) Da tendência de Antioquia (homem/Verbo), vai nas cer uma outra posição radical por volta dos anos 428-429, com Nestório, novo Patriarca de Constantinopla, que re 57
cusa dar a Maria o título de «Mãe de Deus» (teotókos). Para Nestório, Maria não é «nem mãe apenas do homem, nem mãe de Deus; é mais propriamente mãe de Cristo, isto é, mãe do homem em quem Deus habita». Para ele, o ser de Cristo não é verdadeiramente uno: se Ele é ho mem, deve ser então uma pessoa humana; não pode, por isso, ser uma pessoa divina: a Sua humanidade é posta em relação com o Verbo por uma graça particular, Não chegando a pensar na unidade da humanidade e da di vindade em Cristo, Nestório introduz um terceiro ele mento, ou seja, uma graça particular, encarregada de «negociar» esta unidade. Será Cirilo de Alexandria que se tornará, face a Nes tório, o paladino da fé: em Cristo, não é o Verbo que assume o homem, mas é o Verbo em pessoa que é ho mem; é o próprio Deus que é encontrado. O Concilio de Efeso (431), reunido para acabar com estas discus sões que ameaçavam a unidade do império, não produ ziu nenhuma nova definição. Reforçou, porém, com a sua autoridade, certos escritos de Cirilo, condenando e depondo Nestório. Foi o triunfo da teologia de Alexan dria: em Jesus, o Verbo tornou-Se verdadeiramente ho mem, e Deus aproximou-Se autenticamente dos homens. CONCÍLIO DE CALCEDÓNIA (451) Apesar do pacto de unidáde assinado pelas duas par tes, Antioquenos e Alexandrinos continuaram a opor-se entre si. Por volta de 448-449, um monge mais teimoso, Eutiques, retomou, sem discernimento, certas fórmulas de Cirilo e começou a defender que, após a união da humanidade com a divindade, apenas se man tém em Jesus a natureza divina. O problema que se pu nha era real: Se Jesus é Deus, como pretender que Ele seja ainda um homem autêntico? Se Lhe reduzimos a humanidade, comprometemos toda a mensagem cristã: 58
Definição de Calcedónia (Ler o texto segundo a ordem dos números)
Segundo os ensinamentos dos Padres da Igreja, confessamos e ensinamos unanimemente
1 um só e mesmo Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo 2 o mesmo 3 perfeito em dMndade 5 verdadeiramente Deus
o mesmo e o mesmo
4 perfeito em humanidade 6 verdadeiramente homem (constituido) por uma alma raclonai e um corpo consubstancial a nós
7 consubstanclal ao Pai segundo a divindade
8 segundo a humanidade, o mesmo
9 gerado do Pai
em tudo semelhante a nós, excepto rio pecado
10 mas nos últimos dias,
antes de todos os séculos, segundo a divindade
11 um só e mesmo Criato
para nós e para a nossa salvação gerado da Virgem Maria, segundo a humanidade
Filho, Senhor, Monogénlo ( = Único) reconhecido em duas naturezas
12 sem confusão nem mudança
13 sem divisão nem separação
14 não sendo a diferença
15 e juntando-se numa
das naturezas suprimida pela união; mas, pelo contrário, ficando salvaguardadas cada uma das duas naturezas
só pessoa e numa só hipostase. não (um ser) partido ou dividido em duas pessoas
16 mas um só e mesmo Filho, Monógeno. Deus, Verbo. Senhor. Jesus Cristo como os profetas, outrora, no-lo disseram acerca d’Ele, como Ele próprio, Jesus Crlsto, no-lo ensinou, como o simbolo dos Padres da Igreja no-lo deu a conhecer.
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Deus não é realmente o «Deus connosco». Para salva guardar a unidade da fé, o Papa Leão escreveu a famo sa Carta a Flaviano, patriarca de Constantinopla, na qual reafirma os grandes dados da cristologia. Em 451, reúne-se um novo concilio, perto de Cons tantinopla, em Calcedónia, para realçar um novo enun ciado da fé. A definição de Calcedónia é um modelo de equilíbrio, como se pode notar pela disposição do texto que acrescentamos em local próprio. Nele se afirma cla ramente a unidade de Cristo («um só e mesmo»), mas insiste-se igualmente na distinção das naturezas, ou se ja, na autentidade da divindade e.da humanidade de Cris to. Este texto continua a ser uma referência fundamental para todas as Igrejas, desde a ortodoxa, à católica e à protestante; isto, apesar de ter, de facto, certos limites. Com efeito, ao insistir «exclusivamente na constituição íntima do sujeito divino-humano», conforme escreve W. Kasper, ele «separa este problema de todo o conjunto do destino e da história de Jesus», e em particular da relação que Ele tem com o «Seu Pai».( ) 5 SEGUNDO CONCÍLIO DE CONSTANTINOPLA (553) Com o Concilio de Calcedónia, a cristologia dogmá tica atinge o auge. Faltava garantir a estabilidade, amea çada pelos Alexandrinos, que procuravam, a todo o preço, conciliar a definição de Calcedónia com as fór mulas de Cirilo. Convocou-se um Concflio, em 553 (Constantinopla II), para dar uma interpretação autori zada das formulações de 451. Este Concilio reafirma com vigor a unidade das naturezas na pessoa concreta de Je sus: o Filho eterno de Deus e o homem Jesus são uma (5) W. Kasper. Jésus le C’hrist, Paris, Cerf, 1976, pp. 356-357. Para o texto da carta de Flaviano, ver P. Th. Camelot, Ephèse et Chal cédoine, Paris, Orante, 1962, pp. 216-223.
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só e mesma pessoa. Por outras palavras, toda a história humana de Jesus, incluindo a Sua morte, tem por agen te o Filho Eterno. Na cruz, quem morre é realmente «um da Trindade» (Unus de trinitatepassus est, conforme afir mam os monges chitas dessa época). O que quer dizer que a incarnação de Deus não foi representação. TERCEIRO CONCÍLIO DE CONSTANTINOPLA (680-68 1) As querelas, porém, não tinham acabado. Em Ale xandria, alguns recusaram os Concílios precedentes e começaram a professar que em Cristo não havia senão uma natureza, a natureza divina: é o monofisismo. Por espfrito reconciliador, certos teólogos orientais puseram-se então a proclamar que em Cristo só havia uma von tade, a vontade divina: é o monotelismo. Mas, ao recusar a Cristo a vontade divina, estes últimos punham em causa a autenticidade humana de Jesus, reduzida a um instru mento passivo da Sua natureza divina. Um novo Concí lio ecuménico, reunido em 680-68 1 (Constantinopla 111), reafirma o dado de Calcedónia, mas alargando-o até às vontades. «O mesmo e único Cristo tem uma vontade divina e humana, que concorre em conjunto para a sal vação do género humano». Ao afirmar a liberdade hu mana de Jesus, o Concílio quer sublinhar que a nossa salvação, fruto da acção de Deus, é levada a cabo na liberdade humana de Jesus e através dela. Que é que está em jogo em todos estes debates? Os Concílios sempre tiveram a preocupação de definir com exactidão a identidade de Jesus: Ele é verdadeiramente Filho eterno de Deus (Niceia) e por Ele Deus tornou-Se autenticamente «Deus connosco» (Efeso). Se há alguma diferença radical a manter entre Deus e a humanidade, ela não se opõe, em Deus, à comunicação com o ho mem: Ele é verdadeiramente Deus e autenticamente ho 61
mem (Calcedónia). Na vida ena morte de Jesus, é Deus em pessoa que actua (Constantinopla II) e a salvação que nos é oferecida n’Ele e por Ele, envolve também e ple namente a sua liberdade humana (Constantinopla III). *
*
*
Estes debates mostram até que ponto os Padres da Igreja tiveram o cuidado de exprimir a fé utilizando ex pressões da sua própria cultura. A sua busca, porém, foi sempre guiada pelo acolhimento do dado fundamen tal da fé: tratou-se, para eles, de comunicar o dom da salvação, oferecido por Deus nesta singular figura de Jesus de Nazaré, «crucificado por nós sob Pôncio Pilatos». Todavia, em comparação com as três dimensões re feridas (ontológica, soteriológica e histórica), que nós distinguimos, é, sobretudo, a dimensão ontológica que sai honrada. Teremos, porém, o cuidado especial de não esquecer que o argumento da salvação foi o apoio cons tante desta busca, já que um dos argumentos mais fre quentes, nestes debates, era de natureza soteriológica: o que não foi assumido não ficou salvo. Desta maneira se torna presente, de forma implícita, a dimensão histó rica, o facto Jesus Cristo.
II. A Tradição contestada Não é propósito deste nosso livro expor toda a his tória da fiem Jesus, mas proporcionar aos cristãos dos nossos tempos a assunção da fé como coisa própria. Pa ra isso, é muito importante que entendamos o que está em jogo nos momentos essenciais em que se foi cons truindo a regra da fé das Igrejas. Antes de abordar os 62
debates contemporâneos, precisamos de evocar ainda dois momentos que marcaram de forma decisiva a con frontação sobre o mistério de Cristo: a Reforma e o sé culo das Luzes. As duas contestações não são, porém, idênticas. A Reforma, por exemplo, nunca rejeitou a fé cristã; quis apenas renová-la. Quanto ao Século das Luzes, contes tou toda e qualquer autoridade que não fosse a sua, a começar pela autoridade da fé. Estas contestações vão inaugurar os tempos modernos, nos quais lança raízes o nosso século. Percorrendo estes dois séculos, podere mos medir todo o esforço que uma verdadeira compreen são da fé exige do crente. 1. Em nome da Escritura: Lutero (1483-1546) Lutero não é um contestatário da tradição cristoló gica; no entanto, a sua teologia tem uma tonalidade no va, que ressoa ainda muito fortemente na teologia protestante dos nossos tempos. Para situar correctamente o seu contributo, convém recordar algumas traves mes tras da sua teologia. A teologia de Lutero não aceita ou tras fontes para além da Escritura: sola scriptura. Homem profundamente religioso (), Lutero colhe na Escritura um acutilante sentido da transcendência e da glória de Deus e, ao mesmo tempo, uma viva consciência da sua condição de pecador. Dá-se conta, deste modo, da total incapacidae do homem para alcançar por si próprio a salvação. Ninguém pode consegui-la pelas obras. En quanto pecador, o homem só merece a cólera divina. Se quiser ser salvo, só pela fé o pode conseguir, pela (6) Ver M. Lienhard, Luther. témoin de Jésus-Christ. Les étapes et les thèrnes dela christologie du Réformateur, Paris, Cerf., 1973; bem como D. Olivier, La foi de Luther. La cause de l’Evangile dans I’EgIi se, Paris, Beauchesne. 1978. cap. 5.
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fé em um Deus que o declara justo sem que para isso haja qualquer mérito da sua parte. A partir de aqui são fáceis de compreender as orien tações cristológicas de Lutero. Não rejeita as definições conciliares; a sua contestação é, essencialmente, sote riológica. E conhecido o texto célebre: «Cristo tem duas naturezas; e daí em que é que isto me diz respeito?» O que Cristo é «em Si» pouco importa; importa tudo o que Cristo é «para nós»: o Seu amor, a redenção que Ele ga rante à humanidade. A cruz, que ocupa um lugar cen tral na sua teologia, é, ao mesmo tempo, a expressão deste amor de Deus, o qual, apesar da cólera contra o pecador, entrega o Seu Filho, e a expressão da solida riedade de Cristo com os pecadores, já que toma sobre Si esta mesma cólera para também dela libertar os homens. A teologia de Lutero é uma reacção contra a Esco lástica, que especula sobre o modo de incarnação e o modo da união das duas naturezas em Cristo, mas es quece a história concreta de Jesus e o Seu empenhamento na história dos homens. Lutero tem realmente em conta a humanidade de Cristo, a Sua realidade corporal e psi cológica, a consciência que Ele tem da Sua missão (cf. Anexo 11). Como em S. Paulo, o drama da cruz é de novo situado no coração da cristologia: Deus não Se re vela no poder, mas na fraqueza. «Ele confunde a sabe doria dos inteligentes» (lCor 1,18-31). Acontece ainda que, sem prestar muita atenção à dimensão ontológica (o que Cristo é em Si), a soteriologia corre o risco de se evaporar por falta de fundamento. E um regresso aos problemas dos Padres da Igreja. 2. Em nome da Razão (século XVffl-XIX) Dados os limites do nosso projecto, vamos contentar-nos com evocar, a propósito do século das Luzes, ai64
guns aspectos indispensáveis para compreender as problemáticas cristológicas actuais. Como poderemos ca racterizar esta época filosófica? Emancipação da razão De modo geral, esta «idade da razão» identifica-se com o século das Luzes, o século XVIII, chamado, na Alemanha, Aufkliirung. Esta filosofia nasce de várias fontes: o Renascimento e a Reforma, as grandes desco bertas e o desenvolvimento do comércio, o nascimento da ciência, para não falarmos das guerras de Religião, que servem para desvalorizar a própria ideia de religião. Em relação ao Mundo Antigo, assiste-se a uma verda deira subversão coperniciana, no que diz respeito à vi são do mundo. Enquanto, no mundo antigo, o Universo era entendido como um cosmos organizado, reflexo de um mundo imaterial e imutável, protegido por um de sígnio de Deus, a que se dá relevo, o mundo moderno concebe-se como um mundo autónomo em que o mun do tira a sua consistência e as suas leis de si mesmo e depende única e simplesmente do homem. E é a este tí tulo que pode tornar-se objecto de ciência. Já não é al go para ser contemplado, mas para ser transformado. Deus não é necessariamente rejeitado neste mundo que tem o homem por centro. Mas, se a existência de Deus não é negada como tal, torna-se incompreensível para a própria razão. Apenas sobrevive o Deus do co ração, da piedade, da emoção, um Deus que já não está ao lado dos objectos mas na insondável profundidade humana; alguns, como Feuerbach, chegam mesmo a pensar que Ele não é mais que a projecção desta pro fundidade. Quanto a Jesus Cristo, surgem então muitas e variadas rupturas cujos efeitos se fazem sentir até às problemáticas do século XX. 5
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Um primeiro divórcio aparece logo no fim do sé culo XVII entre Escritura e Dogma. O estudo científico da Bíblia aparece, com Baruch Spinoza (1632-1677) e Richard Simon (1638-1712), e pretende emancipar-se da tutela do dogmatismo: a interpretação da Escritura não compete à autoridade eclesiástica, mas a discipli nas científicas. Um outro divórcio aparece com Lessing (1729-1781) entre história e razão. A história deixou de ser um lugar de verdade. Embora permitisse à razão pro gredir em direcção à verdade, a história não passou, no entanto, de um andaime, que a razão, uma vez alcança da a sua própria maturidade, pode dispensar; deve mes mo fazê-lo, já que os factos contingentes da história não podem ser fonte de verdades necessárias. De onde re sulta que a vida de Jesus, contingente, como toda e qual quer vida humana, não pode tornar-se o lugar de nenhuma verdade sobre Deus, que é, como se sabe, um ser necessário. Nestas condições, Jesus é, no máximo, um sábio, um mestre de moral (Kant). Dá-se então uma ruptura essencial: o mistério de Cristo é esvaziado do seu sentido. Enquanto Lutero en fraquecia consideravelmente, sem, no entanto, a negar, a dimensão ontológica da fé em Cristo, a razão do sécu lo XVIII faz muito mais do que isso, faz desaparecer a dimensão soteriológica. A insistência unilateral de Lu tero na pessoa de Cristo «para nós» tinha como resulta do pensar o homem como determinado por Deus. Com o racionalismo, é Deus que é pensado como determina do pelo homem, não passando mesmo de uma projec ção deste. Tal é a tese de Feuerbach (1804-1872), o qual escreveu: «Não me pergunto o que foi ou o que pode ser por ventura o Cristo real e natural oposto a este outro Cris to sobrenatural, que é o resultado de uma ficção ou de —
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um devir; aceito, pelo contrário, este Cristo religioso, mas mostro que este ser supra-humano não passa de um produto e um objecto dos sentimentos sobrenaturais do homem». (7) Revalorização da história No século XIX, a teologia protestante, na Alema nha, vai reagir a esta situação que socavava os alicerces da fé em Cristo; fá-lo-á através da reintrodução da di mensão histórica. Para dar conta do facto cristão e da sua pretensão à universalidade, vai revalorizar a histó ria, sem nada negar das exigências da razão. Chegará, por isso, a resultados bastante contestáveis. Para quali ficativo deste esforço, prosseguido em nome da razão e à revelia de todo o dogmatismo, vai falar-se de «teo logia liberal». Pensamos que basta referir três tentati vas neste sentido. Schleiermacher (1768-1834): Schleiermacher con siderava o cristianismo como «a mais eminente religião do mundo». Pensa reconduzir a ela a sua época e, para isso, regressa à figura concreta de Jesus. «A especifici dade do cristianismo, escreve ele, consiste inteiramen te no apego a Jesus de Nazaré e à salvação de que Ele é portador. A especificidade de Jesus, por sua vez, tem a ver, toda ela, com a intensidade e eminência da Sua «consciência de Deus». Estando em comunhão total e constante com Deus, Jesus foi salvo, por assim dizer, na Sua essência, e, não tendo necessidade de salvação para Si mesmo, pode ser salvador em benefício dos ou(7) L. Feuerbach, L ‘essence du Christianisme, Paris. Maspero, 1968. Prefácio da segunda edição. Ver ainda: X. Tilliette, La christo logie idéaliste, Paris, Desclée, 1968 e Marcel Neusch, Aux sources de I’athéisme contemporain, em Cem anos de Debates sobre Deus, Cen trurion, 1977; particularmente o capítulo sobre Feuerbach.
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tros: não somente imagem ( Vorbild), como também ar quétipo (Urbild). A quem aceitar seguir a via religiosa por Ele aberta, Jesus revela como e porquê a essência humana se realiza nesta unidade com Deus, que a reli gião tem por função servir». (8) • As Vidas de Jesus: Numerosos autores tentaram reencontrar, através da história, os alicerces mais fun dos do cristianismo e, deste modo, verificar e fundamen tar o seu apego à personalidade de Jesus. Puseram-se então a estudar cientificamente, isto é, à margem das interpretações doutrinais já propostas no Novo Testa mento. Estes trabalhos trouxeram para o primeiro pia no a dimensão histórica rejeitada por Lessing. Fracassaram, porém, como iria demonstrar Alberto Schweitzer, na sua História da pesquisa sobre as vidas de Jesus (1913). Em boa verdade, cada autor criava pa ra si um rosto de Jesus. • Um mito concreto: D. F. Strauss (1800-1874) te ve o cuidado, na sequência de outros, de regressar à his tória. Não via, porém, nos Evangelhos senão a con cretização da ideia, obra da comunidade cristã, subli nha o afastamento que há entre o Jesus histórico e o Cris to da fé, portador da Ideia. Ao passo que, na perspectiva anterior, era o autor a projectar a sua ideia sobre Jesus, agora, é a comunidade crente que se projecta; e a tarefa da história consiste em reencontrar, através do estudo, a situação desta comunidade. A escola da História das formas (Formgeschichtschule) virá confirmar esta toma da de posição pelas comunidades na elaboração dos evan gelhos, mas sem, por isso, concluir que Cristo não passa de uma Ideia, um mito criado pelas comunidades. (8) J. Doré, artigo Schleiermaeher no Dictionnaire des Religions, Paris, Puf, 1984, p. 1547.
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No decurso do período em que se elabora a tradição dogmática da Igreja, os Padres tentaram exprimir o mis tério começando por acolhê-lo como uma revelação e vivendo-o, depois, como uma experiência salvadora. Com os tempos modernos, porém, o homem torna-se senhor do próprio mundo e toma consciência de si e das suas próprias possibilidades. Vêm, então, as reivin dicações de uma razão que se pretende autónoma e re cusa toda e qualquer autoridade exterior. Já Lutero deslocara a tónica para o homem e a sua salvação. Só que a sua fé continuava viva e submissa à Palavra de Deus. No século das Luzes, pelo contrário, Deus não passa de uma palavra que recusa o homem. Deixa de haver cristologia no sentido estrito, uma vez que a Pa lavra de Deus foi despojada de toda a autoridade. A partir de então, a dualidade inerente a todo o dis curso sobre Jesus Cristo muda de lugar. Aparece uma dupla bipolarização, que opõe quer História (Jesus)/Ideia (Deus), quer História/Senso (fé). Estas novas bipolari zações exprimem-se, as mais das vezes, sob a forma de oposições: E a história ou a fé, o Jesus da História ou o Cristo da fé. No decurso desta travessia da modei ni dade, a cristologia foi sendo despojada, sucessivamen te, de todas as suas dimensões: ontológica, soteriológica e histórica, A cristologia contemporânea irá esforçar-se por recompor este conjunto, tentando assumir a no va cultura dominada pela Razão. Esta tarefa será assumida sobretudo pelo protestan tismo. Enquanto o catolicismo, recusando o divórcio en tre a fé e a razão, perpetua as problemáticas centradas sobre o modo de união da divindade e da humanidade do Verbo Incarnado, o protestantismo entra de rompante na problemática moderna, O catolicismo, que acumula69
ra atrasos sobre atrasos, sofre o verdadeiro choque da modernidade no começo deste século com a crise mo dernista. A partir dos anos 60, a teologia católica entra em diálogo permanente com a teologia protestante; e os gran des teólogos protestantes (Bultmann, Pannenberg e ou tros) não têm cessado de a influenciar.
ifi. Pesquisas contemporâneas Como haveremos de assumir, hoje em dia, a confis são de fé em Jesus, Filho de Deus? Será possível con
tinuarmos fiéis à tradição dos grandes Concflios cris tológicos, apesar da diferença cultural que nos separa deles? Estas perguntas devem merecer toda a nossa aten ção. Trataremos, no entanto e em primeiro lugar, das vias actuais da cristologia, marcada pelo debate da teo logia liberal ao menos no Ocidente. Faremos, depois, duas propostas, uma respeitante ao ser filial de Jesus, e outra relativa ao conhecimento de Cristo, à Sua cons ciência e à Sua liberdade, numa palavra, ao Seu agir filial. 1. As vias da cristologia
A crise modernista O cerne do Modernismo consiste no seguinte: homens inquietos, com os atrasos acumulados pela Igreja, face ao progresso da ciência; homens (histo riadores, críticos, teólogos) impressionados com a fi losofia alemã, sobretudo a de Kant, segundo a qual já não é possível atingir a ordem metafísica, e a dos seus sucessores, discípulos e intérpretes, fundado res do Idealismo alemão (Fichte, Schopenhauer, Shel ling, Hegel), também eles impressionados com os grandes textos místicos da India antiga, alimentados também pela tradição neoplatónica...; homens muito ao corrente dos esforços do positivismo, que não ad mite senão os factos da experiência e afasta a busca das causas; e as descobertas das ciências auxiliares da História, que levam a pôr em causa o conteúdo his tórico dos Livros Sagrados. Estes homens perguntam-se a si mesmos se o sobrenatural não teria sido excluído pela filosofia e escorraçado pela história. (Extracto de Y. Marchasson, art. Modernisme, in Dictionnaire des Re ligions, Puf, 1984, p. 1123.
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Nos começos do século XX, a cristologia estava, con forme vimos, de algum modo deslocada. Podem assi nalar-se vários cortes mortais: Corte entre o estudo bíblico e o estudo cristológi co, que vinha da Idade Média, que era resultado de uma certa hegemonia da reflexão metafísica e, mais tarde, do aparecimento das ciências bíblicas, que, desde que apareceram, sempre se posicionaram de uma forma re lativamente autónoma. Corte entre uma Revelação em que Deus Se dá por e em Jesus Cristo e uma procura humana que não aceita outra autoridade senão a sua e que tem tendência para reduzir Deus a uma projecção que o homem faz de si mesmo. Corte, finalmente, entre o Jesus da história, Deus-connosco e fonte de salvação, e o Cristo da fé, que tem uma significação universal e actual. Estes «cortes», porém, não devem ser interpretados apenas num sentido negativo. E que eles puseram em relevo alguns aspectos, que nenhuma cristologia pode ignorar. Os debates da cristologia do século XX foram suscitados pelas exigências da modernidade. Desenvol —
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veram-se, primeiro, em terreno protestante, mas, a partir da década de cinquenta, atingiram também o mundo ca tólico. Por ocasião da celebração do 15.0 centenário do Concilio de Calcedónia, em 1951, a renovação da cris tologia católica demonstrou estar em plena vitalidade, embora viesse a ser preparada de longa data, sobretudo pela renovação dos estudos bíblicos e patrísticos e, no terreno, pelas renovações missionária e litúrgica. A oferta de Deus (Karl Barth) Pode ser considerado pioneiro desta renovação o teó logo Karl Barth (1886-1968). Logo a seguir à Primeira Guerra Mundial, começou a expurgar as pesquisas da teologia liberal e a trazer para primeiro plano a Palavra de Deus, opondo «a determinação teológica irreversí vel do homem por Deus à determinação filosófica libe ral de Deus pelo homem». A Aufldirung nascida da razão opõe ele a Aufklãrung do Evangelho( ). A fé em Deus 9 tem não outro fundamento que não seja a Palavra do mes mo Deus. Assim se proclama uma teologia que recusa todo o compromisso com o mundo ou com a razão hu mana. E verdadeiramente Deus que retoma a Palavra. Karl Barth escreve: «E a partir de Jesus Cristo e só d’Ele que podemos tentar ver e compreender aquilo de que se trata na ópti ca cristã, quando abordamos o grande problema que não deixa nunca de nos espantar e que nós não pode mos formular sem correr os mais graves riscos de erro da relação entre Deus e o homem. Só temos uma res posta: Jesus Cristo. Da mesma maneira não podemos compreender a relação entre a criação, a criatura e a exis tência, por um lado, e a Igreja, a redenção e Deus, por —
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A busca do homem (Rudolf Bultmann) Enquanto Barth encara com alguma negligência as vias humanas que nos conduzem a Deus, incluindo o per curso histórico de Jesus, R. Bultmann (1884-1976) põe em muito maior relevo a dimensão antropológica da fé. A tal ponto que não faltou quem o acusasse de regresso à teologia liberal e racionalizante do século XIX. Mas, tanto em Bultmann como em Barth, a busca humana é de si incapaz de se apoderar da fé. Só que, diferente mente de Barth, que sublinha a objectividade da Pala vra de Deus, Bultmann, pondo-se do lado do sujeito, ouvinte desta Palavra, faz esta pergunta: é possível ao homem do século XX crer nesta Palavra? Este cuidado de apresentar a Palavra de Deus de tal maneira que possa ser compreendida pelos nossos con temporâneos leva Bultmann a fazer uma dupla opera ção: por um lado, julga ele que é preciso interpretar a Escritura com novos cuidados, separá-la das reresen tações demasiado ligadas a uma visão pré-científica do mundo: é !quilo a que ele chama a «desmitologização»; por outro lado, acha que é preciso prestar uma enorme atenção às condições da compreensão: o homem só po de acolher a Palavra de Deus a partir da compreensão que tem da sua própria existência. E sobre o horizonte de uma vida confrontada com a morte e o absurdo que a Palavra de Deus podé ter, para o homem, um sentido. Estamos em presença de um esforço teológico que faz lembrar Lutero. Eo homem que interessa, não o Cris to em Si, a Sua natureza ou até a Sua história concreta,
P. Corset, Une Aufkhirung à Ia lumière de I’Evangile: K.
Barth», Recherches de Science Reiigieuse, 72 (1984), pp. 483-526, p. 495.
outro, partindo da história das religiões; só partindo da relação que a pessoa de Jesus Cristo exprime o pode mos conseguir.» (10)
(10) Cf. Karl Barth, Esquisse d’une dogniatique, Genebra, Labor et Fides, e Paris, Cerf, 1984, p. 101.
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mas o «Cristo para mim». Por isso se realça uma oposi ção já descoberta no século XIX entre o Jesus da histó ria e o Cristo da fé. Entre a história e a mensagem opera-se um divórcio. A dimensão salvífica, a única que interessa realmente ao homem, elimina, de algum mo do, a dimensão ontológica (o que Cristo é em Si) e a dimensão histórica (o que Cristo fez e viveu em concreto). Do lado católico poderia encontrar-se um ensaio com parável na cristologia de Karl Rahner (1904-1984), ainda que em contexto muito diferente. KarI Rahner também se preocupa, naturalmente, com o homem e a sua sal vação e interroga-se sobre as condições que preparam o homem, enquanto tal, para acolher esta salvação. E possível resumir deste modo a mais notável das suas in tuições: «Antes de Se revelar na figura histórica de Je sus, Deus oferece-Se em silêncio como o absoluto, o mistério sagrado. E esta presença silenciosa de Deus no homem que permite ao mesmo homem perceber a men sagem última ou definitiva sobre a existência, quando ela, por fim, se manifesta em Cristo». (11) Teremos oca sião de reencontrar Karl Rahner, quando falarmos do ser filiar de Jesus.
neste homem». (12) A análise exaustiva do facto históri co Jesus Cristo deveria, em última análise, permitir o acesso directo à fé. Censuraram a Pannenberg ter atin gido a gratuidade da fé e a sua liberdade. E com toda a razão. Mas a pesquisa teológica dá-lhe a sólida arti culação entre aquilo que Jesus viveu e o que viveu a co munidade apostólica. Estas duas dimensões são insepa ráveis. E necessário que cada uma destas perspectivas con tinue aberta às outras. A primeirã (Karl Barth) tem o mérito de sublinhar a gratuidade e a liberdade absoluta da oferta de Deus, que a segunda (a de Rahner) tem ten dência para atenuar. Em compensação, Rahner introduz uma ideia forte, na medida em que sublinha que Deus, ao criar o homem, já inscreveu nele o desejo de conhe cer o Rosto divino. E por causa desta busca de sentido, que é a razão de ser da sua existência, que o homem pode reconhecer em Jesus o dom ou oferta de Deus. O aprofundamento da existência concreta da figura de Jesus, que constitui preocupação da terceira perspec tiva (de Pannenberg), também é muito importante. E que é no contacto com a figura concreta de Jesus Cristo que o desejo desperta e Deus Se revela. Só nos falta mostrá-lo.
A figura de Jesus Faltava reintroduzir no cerne mesmo da reflexão cris tológica a história de Jesus. W. Pannenberg, protestan te, é o teólogo que mais fez neste sentido, mesmo tendo em conta que foi demasiado longe, na medida em que parece pôr a fé na dependência da investigação históri ca. Para ele, «a tarefa da cristologia é apoiar na história de Jesus o verdadeiro conhecimento da sua significação, que pode resumir-se nestas palavras: Deus revelou-Se
Ao apresentar as definições conciliares, já sublinhá mos que elas integram pouco a ordem do devir e a ex periência de Jesus de Nazaré, atenuando, assim, pelo menos ao nível da expressão, o empenhamento de Deus na história. Não se trata de um defeito. Só que o que está em jogo é uma mudança de sensibilidade e de cul
(‘‘) Cf. Marcel Neusch. Aujourd’hui Dieu. Paris, Desclée de Brou wer, 1987, pp. 85-88.
p. 26.
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2. O ser filial de Jesus
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W. Pannenberg, Esquisse d’une christologie, Paris, Cert 1971,
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tura. Pelo que nos resta dizer de outro modo a mesma verdade. Para exprimir o ser filial de Jesus, partiremos do empenhamento de Deus na história, tal qual o expri me a teologia contemporânea. Este nosso propósito su põe que entendemos o discurso actual acerca da «passibilidade» de Deus, a que convém regressarmos ainda. Falar de passibilidade, a propósito de Deus, é admi tir que Ele pode, seja de que modo for, «sofrer», que Ele pode ser «afectado» no Seu empenhamento na his tória humana no que ela tem de mais íntimo, em suma, que algo de novo Lhe pode ainda acontecer. Todas es tas expressões são tiradas de um documento da Comis são teológica internacional, cujo estatuto no seio da Igreja romana é mais que oficial. Deus é o Absoluto; mas é um Absoluto que pode sujeitar-Se, humilhar-Se e sofrer, e isto por amor e com toda a liberdade. Tem a possibili dade de sair de Si mesmo. Karl Rahner foi neste senti do. (13) Partindo de João 1,14 («o Verbo fez-Se carne») e vendo a incarnação como o ponto mais alto da criação Karl Rahner toma muito a sério o facto de Deus Se tira daí as consequências. Eis o ter tornado homem essencial. Aquele que em Si mesmo é imutável, Deus, tem a capacidade de «Se tornar», estabelecendo o outro com a Sua própria realidade. Por um acto de livre despoja mento de Si, Deus constitui o que é distinto d’Ele (o ho mem) como sendo algo de Seu (Jesus homem é Deus). —
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(13) Para o documento da comissão teológica, ver: Thologie, chris tologie, anthropologie», in Doc. Catholique, número 1844, de 16 de Janeiro de 1983, p. 121. Foi neste sentido que Karl Rahner tentou si tuar a incarnação do Filho na economia criadora e salvadora de Deus, vista no seu conjunto. honrando assim a busca de uma leitura contem porânea de Calcedónia. Ver, sobretudo: Ecrits théologiques 1, Paris, DescléedeBrouwer, 1959,pp. 148-161: II, ibidem. 1963. pp. 81-101: Traité fondamental dela foi, Paris, Centurion, 1983, pp. 241-258: Ai nier Jésus. Paris. Desclée. 1985. pp. 40-54.
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Esta maneira de compreender as coisas torna-se clara à luz da criação. Criando, Deus constitui o outro a criatura como radicalmente distin.to d’Ele. Embora este Outro esteja dependente d’Aquele que o criou, per manece todavia autónomo. Quanto mais radical é a de pendência em relação a Deus, como é o caso do homem criado à imagem e semelhança d’Ele, mais a criatura é autónoma e livre. Com a Incarnação, atingimos o ponto mais alto da obra criadora: temos, ao mesmo tempo, pro ximidade radical já que Jesus é Deus, e, no entanto, au tonomia não menos radical, dado que Jesus é um homem livre que fala em Seu próprio nome: «Eu, porém, digo-vos !» Desta maneira, na Incarnação, Deus constitui aqui lo que é distinto d’Ele como a Sua própria realidade. Esta perspectiva, que nem vislumbrada foi pelos Padres da Igreja, demasiado presos à expressão da nião na pes soa de Jesus do divino e do humano, tem o mérito de reunir o que a teologia clássica separava, ou seja, a cria ção, a incarnação e a salvação. Permite exprimir, de uma forma real, o «sofrer» de Deus bem como o Seu envol vimento na história da salvação. Voltando a ligar, deste modo, criação e incarnação, Rahner abriu um caminho que nos leva a uma melhor compreensão do devir de Deus e da Sua «passibilidade»; o que, porém, não apa rece lá muito bem na sua teologia é a união concreta do Filho ao Pai, tal qual a evocam os Evangelhos. (14) So bre este ponto precisamos de aprofundar a sua reflexão. Para evocar o mistério do Filho, tal qual Jesus o pô de viver concretamente, podemos partir de uma intui ção de Karl Rahner, a qual estabelece uma correspon —
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(14) CI. Ch. Duquoc. (‘hristologie 1. L honlInc Jéus. Paris. Cerf. 1968. p. 282: «Jesus homem é Deus porque é Filho: existe divinamente sobre o modo filial. Jesus define-Se por referência a Alguém que Ele chama Seu Pai’.
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dência entre o facto de ser homem e o de ser filho. Ser homem é receber-se do Criador como um ser diferente e autónomo, mas reconhecendo esta origem. Do mes mo modo que ser filho é receber-se de um Pai como ser autónomo. Ser criatura é assumir a relação de origem procedente do Criador. E nesta relação que Jesus vive como homem, que Ele vai exprimir a Sua relação eter na com o Pai. Para um homem, a relação com o Cria dor manifesta-se na condição de criatura, que só pela morte atingirá a sua plenitude. O que Jesus é como Fi lho eterno revela-se e realiza-se na Sua história de ho mem e é na Páscoa que se manifesta definitivamente e em plenitude o Seu ser-filho. Não introduzimos estas perspectivas por pretender mos procurar a novidade a qualquer preço. Trata-se, isso sim, de honrar as novas tentativas contemporâneas dando razão à história e à experiência de Jesus. Nasce de tudo isto uma visão dinâmica da Incarnação. Incarnar, para Deus, não é somente atingir a humanidade em determi nado ponto; é assumir uma história, entrar no tempo hu mano e participar no seu devir. «Como todo e qualquer homem, Jesus também está, no decurso da Sua vida, a caminho da realização efectiva do Seu ser de Filho, que traz inscrito em Si... O ser-Filho de Jesus devia ter o carácter de tornar-se-Filho». (15)
3. O agir filial de Jesus As reflexões precedentes são um bom começo para abordarmos a questão relativa ao agir filial de Jesus, pro blema difícil, já que muitos cristãos continuam, impli citamente, docetas, pois não tomaram inteiramente a (15)
D. Wiederkehr, .Esquisse d’une théologie systématique. em
Mysreriurn saluris, XI. Paris, Cerf, 1975. pp. 123-125.
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sério a humanidade de Jesus. Ora a Escritura diz-nos que Ele é «em tudo igual a nós, excepto no pecado» (Hb 4,15). Se alguma perfeição se pode procurar na huma nidade de Jesus, essa perfeição não está certamente ao nível da Sua «natureza humana», como pensavam os es colásticos, já que não existe uma «natureza humana» per feita; perfeito só Deus. A Sua perfeição está ao nível da Sua santidade, na perfeita obediência ao Pai. A este respeito, há dois problemas que merecem atenção: a consciência de Jesus e a Sua liberdade. A consciência de Jesus
Este problema da consciência de Jesus é um proble ma moderno, que deve distinguir-se do problema do co nhecimento de Jesus. Apenas este último interessou à teologia clássica. (16) Deduzia ela a psicologia de Jesus da união hipostática. Pelo simples facto de que Jesus era de natureza divina logo O dotavam de um saber perfei to e atribuíam-Lhe, desde este mundo, a visão dos bem-aventurados, criando, assim, o impasse sobre os limites da Sua humanidade. A teologia moderna, muito mais modesta, pensa que, se queremos falar da consciência e do conhecimento de Cristo, temos de basear-nos no testemunho evangélico. Ora dos Evangelhos podem tirar-se dois dados: A ignorância de Jesus. Os evangelhos mencionam claramente esta ignorância de Jesus (Mt 24,36 e par.) sobre o assunto da revelação da Sua missão, a saber, «a hora da vinda do Reino». Embora seja o Filho, supe rior aos anjos, Jesus não sabe tudo. E deve pôr-Se nas mãos de Deus numa obediência total (Fi 2,5-11; Hb 5,7-10; 2,10, bem como as narrativas da agonia). Se este (16) Distinção que falta na obra de F. Dreyfus, Jésus savait-iI qu’iI était Dieu? Paris, Cerf, 1984. Ver a posição do Autor em Jésus-Christ chemin de notre foi, Paris, Cerf, 1981, pp. 106-1 15.
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abaixamento de Cristo e a Sua morte na cruz são para nós um escândalo, que prejudicam as nossas ideias acerca de Deus, devem também fazer-nos descobrir o verda deiro rosto de Deus: um Deus-Amor. Jesus é umho mem verdadeiro, que teve de enfrentar o fracasso: Ele próprio declara não poder efectuar certos milagres (Mc 6,5) ou não poder reunir os filhos de Jerusalém (Mt 23,37). Apesar do fracasso e no fracasso, permaneceu fiel, homem de fé, respeitando a condição de homem dependente de Deus, Seu Pai, a quem pertence o Reino e de quem depende e de mais ninguém o desígnio criador e salvador. A autoridade de Jesus. Este primeiro dado sobre a ignorância e o fracasso de Jesus deve conjugar-se com outra atitude do mesmo Jesus: a Sua extraordinária au toridade. Se há momentos de ignorância na vida de Je sus, também há nessa vida uma consciência segura de estar acima de todas as mediações da Antiga Aliança (lei, Templo, Anjos). Sempre Se apresenta como O repre sentante de Deus, O portador da sua Palavra, O privile giado da Sua intimidade (abba). A ausência de conhe cimento pode, portanto, coabitar perfeitamente com a consciência muito viva da Sua missão. Para ter uma cons ciência bem apurada dessa missão, Jesus não tem ne cessidade ser dotado de um conhecimento sobre-humano. Estes dois aspectos contrastantes (ignorância e au toridade), mesmo assim, não se opõem. E preciso considerá-los em conjunto, se queremos prestar justiça ao mistério de Jesus. Como Filho, Ele assume-Se como procedente do Pai, mesmo na angústia e na noite (Get sémani e Calvário). E isto porque Ele é o Filho. A este título Jesus não recebe a Sua autoridade de nenhum me dianeiro humano. Sendo Pessoa divina, quando diz «Eu», é verdadeiramente um «Eu» divino que Se exprime. Mas este «Eu» divino incarnou de verdade, não escapa aos condicionalismos do conhecimento e do querer huma —
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Quatro proposições da comissão teológica internacional sobre a consciência que Cristo tinha de Si mesmo (Dezembro de 1985) 1. A vida de Jesus é testemunha da consciência da Sua relação filial com o Pai. O Seu comportamen to e as Suas palavras, que são as do «Servo» perfei to, implicam uma autoridade que ultrapassa a dos antigos profetas e que Lhe vem de Deus e de mais ninguém. Jesus tirava esta autoridade incomparável da Sua singular relação com Deus, a quem chama «Meu Pai». Tinha consciência de ser o Filho único de Deus e, neste caso, de ser Ele próprio Déus. 2. Jesus conhecia o objectivo da Sua missão: anunciar o Reino de Deus e torná-lo presente desde logo na Sua pessoa, nos Seus actos, nas Suas palá vras, de modo que o mundo se reconcilie com Deus e se renove. Aceitou livremente a vontade do Pai e deu a vida pela salvação dos homens; tinha consciên cia de que o Pai O enviara para servir a multidão e por ela dar a vida (cf. Mc 14,24). 3. Com o objectivo de realizar a Sua missão salví fica, Jesus quis juntar os homens em vista do Reino e reuni-los à Sua volta. Foi em vista deste desígnio que Jesus realizou acções concretas, cuja única in terpretação possível, tomada a coisa no seu conjun to, é a preparação da Igreja, a qual apenas será constituída definitivamente aquando dos acontecimen tos da Páscoa e Pentecostes. Pelo que se impõe a afirmação clara de que Jesus teve intenção de fun dar a Igreja. 4. A consciência que Cristo tem de ter sido en viado pelo Pai com o objectivo de salvar o mundo e
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convocar todos os homens na formação do povo de Deus implica, de modo misterioso, o amor pelos ho mens. De tal maneira que é possível dizer que «o Filho de Deus amou-me e entregou-Se à morte por mim» (GI 2,20). Documentation Cathollque, n.° 1926, de 19 de Outubro, pp. 916-921. (o Documento é, no seu conjunto, um comentário a cada uma destas proposições).
nos, com tudo aquilo que significa não só de possibili dades como também de obscuridade. Lucas diz-nos que Ele «crescia em sabedoria e em estatura» (2,52), estatu ra esta que não tem a ver apenas com o corpo.
A liberdade de Jesus Jesus é um homem plenamentê livre nas Suas deci sões. E do maior interesse realçar que a extrema sub missão de Jesus a Deus harmonizou-se, na Sua vida, com uma soberana liberdade. Jesus não procura o apoio de outras autoridades para sobre elas assentar a Sua; fala como se Ele próprio decretasse a lei. E, ao mesmo tem po, vive apenas da vontade do Pai. Este aparente para doxo mostra o que os Padres da Igreja tinham intuído já no Concílio de Constantinopla ifi: verdadeiro Filho, o Seu querer «recebe-se» totalmente do querer do Pai; mas, homem autêntico, goza também de plena e inteira liberdade, tanto que um teólogo, Cristian Duquoc, pô de apresentar uma cristologia com o título de «Jesus, ho mem livre». (17) E no entanto esta extrema liberdade não faz com que Jesus hesite entre múltiplas escolhas possíveis. Enrai zado na vontade do Pai, nunca hesita diante do caminho a tomar, de tal modo está presente n’Ele a Palavra que (17)
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Edições Paulistas, Lisboa, 2.a cd., 1979.
é preciso actualizar nos factos e nos gestos. Jesus não conheceu o pecado. Sempre atento ao Pai e em comu nhão com Ele, realiza plenamente a vocação de Adão, ou seja, a vocação de todo o homem, apesar do desmen tido dos factos. Por um lado, Ele é o homem diante de Deus, na liberdade e no reconhecimento d’Aquele que Lhe deu a vida; e, por outro lado, Ele é o homem total mente filho, no qual todo o homem pode ler o que Deus espera de cada um, a saber, que seja a imagem deste Filho para «receber» a Sua plena humanidade. E desta maneira que Jesus é o modelo acabado da salvação. *
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Deus assume um rosto na pessoa de Jesus. E este ros to é o de um judeu no qual se realiza a vocação do povo de Israel. Todas as nações são chamadas a reconhecer n’Ele a imagem do Deus invisível. Como poderemos ad mitir um tal paradoxo? Que o Deus invisível, fonte e fim de todas as coisas, Se mostre neste homem de uma forma imediata, neste homem que viveu e morreu du rante o governo de Pôncio Pilatos, este é, de facto, o verdadeiro escândalo para os Judeus; eis o que não po dia deixar de ser, para os Gregos, uma loucura. Para o cristão, porém, é um mistério que é preciso acolher. Os discípulos acolheram-no e entregaram-lhe a vi da, devotadamente. Prescrutando-o, a inteligência cris tã conseguiu «defini-lo», não para o encerrar numa compreensão pretensamente exaustiva e irreformável, mas para fixar as regras da linguagem destinadas a respeitá-lo e a salvaguardar a unidade da fé das diver sas Igrejas. E tendência dos homens transformar o inau dito no muito bem conhecido, quer se trate de regressar à representação do mundo grego, em que os deuses ina cessíveis comunicam com a humanidade através de in termediários, meio deuses, meio homens, quer da 83
representação racionalista, para a qual só o verificível é verdadeiro. Tanto num caso como no outro, apenas temos um deus à imagem dos homens: não um ícone, mas um ídolo, como muito bem presentiu Lutero. O ícone do Deus invisível é o rosto de Jesus: o rosto de um homem autêntico, no qual Se reflecte a ternura de Deus, mas rosto desfigurado, porque foi rosto de cru cificado. E este rosto que precisamos de contemplar, o rosto do Salvador, que, na Sua própria morte, é consti tuído fonte de salvação.
III O MESSIAS CRUCIFICADO Deus salva-nos em Jesus Cristo Nós pregamos um Messias crucificado. Aquilo que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens. iCor 1,23-25
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A dimensão da salvação, abordada nesta última eta pa, já estava presente desde o princípio do nosso per curso.A experiência pascal é, com efeito, na sua es sência, uma esperiência de salvação. Com o dom do Es pírito, temos a garantia de que aquilo que Cristo levou a cabo, como nosso irmão mais velho, há-de desenvolver-se em todos aqueles que O acolherem na realização do Reino de Deus. A Igreja nasceu desta ex periência, que continua a ser o melhor instrumento re gulador de pesquisa da Igreja. Vimos, igualmente, que o argumento da salvação era, para os Santos Padres, o principal apoio, sempre que tentavam definir a identi dade de Jesus na Sua relação com Deus. Por isso a nossa atenção se vai agora concentrar num aspecto essencial, que marca a diferença cristã. Com efei to, a fé cristã pretende que a salvação veio para todos os homens através da morte de Cristo. Esta linguagem é «escândalo para os Judeus, loucura para os pagãos», mas, para os cristãos, expressão da sua mais profunda fé: «Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores» (Rm 5,8; iCor 1,18-25). Preocupados com dar conta desta fé, a nossa reflexão vai desenvolver-se à volta de três termos-chave, os quais exprimem a salvação: re conciliação, redenção e revelação (Anexo II).
1. Reconciliação O cristianismo propõe-se, como aliás acontece com outras religiões, fazer um percurso de salvação, isto é, 87
dar uma resposta às aspirações humanas mais fundamen tais. A salvação evoca, antes de mais, a libertaçãoe um perigo grave. Supõe também a ipiejveçãp de um outro, intervenção essa considejpda, porveze. mira culosa. Quem fala de salva ão fala mente da ui lquesa va como d’Aquele que salva. No entanto, a noção de salvaçao cristã não se limita ao rimeiras Imp ica, sem duvida, a libertação de ai uma coi sa, mas, so re o, a 1 ertação através de Alguém. A salvação salvação no singular porque é apreendida como uma realidade absoluta e inultrapas sável traz em si o desejo de uma plenitude tal que o homem não a pode alcançar por si mesmo: donde o apelo a .um outro; mas não pode renunciar a essa pleni tude sem se renegar a si próprio como ser de desejo e de ultrapassagem. Estas aspirações humanas não estão, porém, livres de ambiguidade: um homem pode sonhar-se como um «ser pleno», recusando a sua condição de «ser inacaba do», marcado pela finitude e pela morte. A salvação que ele espera pode depender deste sonho insensato, que o ateísmo contemporâneo não cessa de denunciar como uma ilusão. Por outro lado, o recurso a um outro para se completar mesmo que pelo recurso à alteridade de Deus comporta o risco de reduzir o outro a um ser «utilitário», que o homem pretenderia manipular, numa palavra, a uma espécie de ídolo. Estas ambiguidades de vem ser reconhecidas no exacto momento em que pro curamos definir o lugar essencial que Cristo ocupa lá bem no cerne da interrogação humana. -
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1. Jesus, caminho de Deus para a humanidade Na revlaçãojqdeo-cristã, o caminho da salvação não parte do homem, começa no próprio Deus. Eimportan
te sublinhar isto, face à suspeita dos que vêem na ideia iãiima projecção dos sonhos humanos. Ao criar o homem, Deus dá-Se livremente e por amor a um com parsa, que Ele convida a selar com Ele a Aliança que lhe propõe. Desde logo, a aspiração irreprimível à trans cendência e à plenitude pode ser compreendida como sinal gravado no homem pelo acto criador de Deus de uma «vocação» à comunhão com Aquele cuja imagem ficou gravada no coração do ser humano (Gn 1,27-28). p1.- Para Se unir a esta humanidade, chamada a partici par da Sua vida divina, Deus abre um caminho para Si próprio, cujo percurso histórico o Antigo Testamento nos relata. Escolhe um povo determinado, dá-lhe uma terra e um rei, cujadinastia se dirige, por pura escolha divina, para a vinda do Messias. Confia-lhe instituições, como um Templo e uma Lei, com as quais exprime, con cretamente, a Sua aliança. Através deste povo escolhi do, Deus quer fazer aliança com todos os homens, seja qual for a sua raça ou nação. Neste povo particular Deus abre um caminho para chegar a todos os povos. Esta oferta de Deus à humanidade vai «tomar cor po»ffnitivameniiiste homem Jesus de Nazaré. cujo nome significa «Deus salva». N’Ele se completam e se ãbam todas as mediações, já que Ele é o dom de Deus, a Sua comunicação sem reservas, a Sua Palavra (Ver bo), o Seu Filho, Aquele que recebe totalmente do Pai. Jesus é, ao mesmo tempo, «Deus recebido» e «Deus co municado», Emanuel (Deus connosco). Ao definir a au tenticidade da divindade e da humanidade de Jesus, os Padres da Igreja quiseram dar conta da salvação como um encontro com Deus em pessoa, neste ser de carne, homem da nossa raça, Jesus de Nazaré. Só que o encontro entre Deus e os homens não é ai de automáfiëõPara que ele aconteça e préiiqiie gp sejam suprimidos diniausejpëcãEffihiïgarsco —
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lher Deus, a humanidade pode recusá-l’O ou escolher outras salvações diferentes da que Deus oferece. E é p6r isso que o dom da salvação é ao mesmo tempo liberta ção das escravidões e das cadeias que a humanidade pôs nos próprios pulsos. O êxodo do povo judeu, qe Deus arrancaàservidão do Egpp, é a figura priiordjld todas as libertações, levadas a cabo or Deus em favor do homem e em vista e uma comunhão perfeita com Ele. Na vida de Jesus, este dom da salvação também to ma forma: a forma de uma luta contra as alienações; e será isso que O levará à cruz. Assim se traça uma Drimeira linha, aliás fundamen tal, da salvação que Cristo trouxe à humanidade. via «descendente», um caminho de abaixamento, de que o hino da Carta aos Filipenses (2,5-11) é uma das mais belas expressões. Abaixando-Se, Deus «esvaziou-Se de Si próprio», como diz o hino, coisa que a teologia irá exprimir com o termo «Kênose». Na tradição, este as pecto da salvação aparece em variadas noções tais co mo libertação, perdão, justificação, iluminação, divi nização; esta última é particularmente cara à tradição oriental.
e n’Ele recebe a resposta que espera da humanidade: urna resposta livre de um Homem que nada reserva para Si. Vivendo num mundo que recusa Deus, a resposta de Jesus não será possível sem combate. A ilustração des ta luta em que teve de envolver-Se e que O levará ao Calvário é dada na narrativa das tentações. (1) O Seu sim a Deus contrasta com o não dos homens em favor dos quais Ele veio ao mundo e pelos quais oferece a Sua vi da, mas é seu advogado diante de Deus, manifestando, pelo perdão que concede, que não se quer dessolidari zar dos homens. Até na renúncia e no despojamento mais absoluto Ele é solidário dos homens, enquanto «filho mais velho de uma multidão de irmãos (Rm 8,29). E aqui que surge a outra linha da salvação, também esicial, e que vai do homem para Deus. percopçjp aminho que o próprio Deus abriu. Na tradição, esta Viã «ascendente» no seguimento de Cristo, que morreu por nós e em nosso nome, exprime-se em noções como sacrifício, mérito, satisfação, expiação, representação. Estes termos são particularmente frequentes na tradição ocidental e deverão ser esclarecidos, já que a sua me mória está carregada de más interpretações. (2)
2. Jesus, caminho da humanidade para Deus
3. Aquele que nos reconcilia
O encontro entre Deus e a humanidade atinge o seu ponto culminante na existência de Jesus de Nazaré. Quan do Se faz carne, o Verbo de Deus torna-Se história, mo mento decisivo da nossa história humana. Efectiva e completa a salvação na medida em que realiza em ple nitude a vocação de Adão: n’Ele se revela uma humani dade totalmente filia]. E verdadeiramente homem se gundo o coração de Deus e no qual Deus pode, por isso mesmo, pôr a Sua complacência (Mt 3,17). Toda a Sua vida é modelada pela Sua relação com o Pai que d’Ele
Estas duas vias, ascendente e descendente, exprimem orTstério de Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro ho mem e no qual se efectua a reconciliação de Deus e da
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(1) Ver B. Rey. Les tentations ei le ehoix de Jésus. Paris. Cerf. 1986. A escolha de Jesus é a escolha do Pai, no seio de um mundo que recusa a imagem de Deus proposta por Jesus. Isto explica que a morte de Cristo já se anuncia de algum modo nestes textos. (2) As principais noções que moldaram a linguagem da salvação cristã são apresentadas de forma sistemática por B. Sesboüé, em Notes sur Ia théologie de Ia Rédemption, Document Episcopal, no seu náme ro 18 de Dezembro de 1983.
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humanidade (2Cor 5,19). Deus concede ao homem o &m de ir ao Seu encontro com uma liberdade renovada pelo Seu perdão, uma liberdade tomada filial, animada pelo Espírito do Filho. Perdoando aos homens os seus pecados, Deus livra-os também das escravidões, para que entre eles possa ser restaurada a reconciliação. Torna-os novamente irmãos no seio de uma criação li bertada. A redenção diz respeito, igualmente, à criação, que os homens, na sua sede de poder, não cessam de pilhar e degradar. Basta pensar nas armas nucleares. Em Cristo, a redenção reencontra o seu destino original ,18-25).
iZui
II. Redenção «Redenção» é um termo medieval, que significa a mesma coisa que salvação ou libertação em linguagem bíblica. Este termo, dominante na tradição latina, im pregnou profundamente a nossa cultura religiosa. Para. lhe descobrir o significado exacto, é preciso começar por lembrar a forma como foi compreendida pelas pri meiras comunidades cristãs a significação da morte de Cristo. 1. Morto pelos nossos pecados Se as primeiras comunidades prestaram atenção, antes de mais, à ressurreição de Cristo, também é verdade que muito cedo começaram a interrogar-se acerca da Sua nçii. Como é que os discípulos conseguiram ultrpassar o escând?jo da cruz e compreender que era obra de salvação? Na peugada de J. N. Besançon( ), po 3 demos distinguir três etapas. (3) O autor inspira-se, para esta passagem, em J. N. Bezançon, Dieu sauve, Paris, Desclée de Brouwer, 1985, reedição, 1987. cap. 5.
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• Numprimeiro tempo, sublinham, sobretudo, ohia to entre a morte ea ressurreição. A. cruz scânda lo, pois é a morte de um inocente; é vivida como um fracasso do desígnio de Deus (Lc 24,19-2 1). Face a es ta morte, que os discípulos não compreendem, a ressur reição surge como um protesto de Deus contra a injustiça. «Este Homem, que vós entregastes e eliminastes, Deus ressuscitou-O» (Act 2,24; 2,36; 13,30). • Numa segunda etapa, a morte é integrada no de sínide Deus. Foi-se, pouco a pouco, compreenden do que, se Deus justifica Jesus desta maneira, é porque dá razão à Sua mensagem e à Sua acção. Jesus é, sem dúvida Aquele pelo qual o Reino de Deus vem. Por isso a Sua morte não pode continuar a ser encarada como um acidente, que apanhasse Deus desprevenido, mas de ve ser integrada no desígnio de Deus. E o que faz Jesus no caminho de Emaús (Lc 24,27 e 44), mostrando co mo as grandes figuras da Torah, os Profetas (o Servo sofredor) ou os Salmos (o justo perseguido, Salmo 22) são anúncios antecipados do Cruçificado. «Não era pre ciso que o Cristo padecesse e que entrasse na Sua gló ria?» A ressurreição deixa de ser uma coisa oposta (mas) para estar associada (e) à morte de Jesus. • Um derradeiro avanço seproduz, entretanto, quan do os discípulos compreendem que esta morte eÏiína Tõgica da existência de Jesus. Não é, de facto, uma fa iiade, mas o resultado das escolhas de Jesus, que ama «até ao extremo» (Jo 13,1) e que entra «livremente na Sua paixão». Vai-se assim criando, pouco a pouco, um laço de causa a efeito entre a morte e a ressurreição. «Humilhou-se a Si mesmo tornando-Se obediente até à morte de cruz; por isso Deus O exaltou» (Fl 2,8-9). A expressão «por isso» une num todo o que o «e» da fór mula precedente se contentara com justapor. 93
Morte e ressurreição, assim associadas, são, a par tir de então, compreendidas como uma única fonte de salvação. E assim se compreende que o Novo Testamento veja na cruz a mais sublime expressão da salvação hu mana. A cruz, para S. João, é uma árvore de vida de que o Espfrito brota (Jo 19,34-37); Paulo e os outros Evangelistas fazem dela o substituto do Templo, o lu gar em que o próprio Deus nos garante a Sua presença. O escândalo da cruz começa a ser vencido a partir do momento em que a morte de Jesus é assim inserida num sistema explicativo, o qual, no entanto, mantém os olhos fixos no que foi historicamente a vida e a morte de Jesus.
2. De uma vez por todas A teologia da redenção tenta explicar o carácter sal vífico da morte de Jesus, tal qual aparece enunciada no Credo: «crucificado por nós sob Pôncio Pilatos», com preendendo aquele «por nós» na sua dimensão univer sal, ao passo que o «sob Pôncio Pilatos» chama a atenção para a particularidade desta morte, que é um aconteci mento datado e situado historicamente. Enquanto acon tecimento particular, a morte de Jesus não voltará a repetir-se: «Morrendo, foi o pecado que Ele matou de uma vez por todas» (Rm 6,10; Hb 7,27; 9,12; 10,10). Só que o seu alcance atinge todos os homens e todas as épocas. Como pode um destino particular dizer respei to a toda a humanidade? Aqui temos nós um dado que desenha os contornos de toda a soteriologia cristã. Insistir exclusivamente na história de Jesus leva a que consideremos a Sua morte, pura e simplesmente, como a morte de um herói: uma morte como outras ou o «fim de um coração generoso», como dizia Bultmann; Insistir exclusivamente no alcan ce universal da morte de Cristo seria outro exagero: fa 94
ria dessa morte algo de abstracto, já que não dava a devida importância às circunstâncias históricas nas quais ela aconteceu. Correríamos, então, o risco de apresen tar o combate de Cristo-como um gigantesco drama em que lutariam Deus e o pecado, sem que esta realidade fosse nomeada. E o papel de Deus na história lá se es fumava pura e simplesmente. Para evitar estes dois extremos, a reflexão sobre a morte de Cristo deve tirar dela o seu sentido universal, mantendo-se o mais possível perto dos motivos que O levaram à condenação; por outras palavras, tendo em conta a Sua vida. Os primeiros cristãos tinham conse guido conservar este equilíbrio. Na era patrística, formulou-se a salvação alcançada por Cristo em dife rentes proposições teológicas, as quais, na peugada de ) 4 H. Turner, podem resumir-se a quatro( A primeira é a de Cristo luz: Cristo salva-nos, co mo mestre de sabedoria que é, mostrando-nos o cami nho, iniciando-nos no conhecimento do Pai. Esta perspectiva siblinha claramente o papel de Deus na sal vação do homem e o papel do homem, que é convidado a acolher a salvação. A morte na cruz aparece aqui co mo o supremo acto de amor, destinado a reconduzir a Deus o coração endurecido do homem. Houve quem vis se nisto uma teologia de inspiração joanina. • Uma outra figura da salvação é a de C’risto vítima. Cristo é, aqui, compreendido como o Cordeiro, que as sume como Seus os pecados do mundo. Esta orienta ção, muito realçada na teologia latina, insiste menos na acção dos homens do que na acção de Cristo. Inspira-se em noções pedidas de empréstimo sobretudo a domínios como o do culto (sacrifício) e do direito (satisfação), etc. (4) H. Turner, Jésus le sauveur. Essai sur Ia doctrine patristique de la Ródempdon, Paris, Cerf, 1965.
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• Outro tema é este: o Cristo vitorioso sobre os po deres do mal. Esta figuração, que assume, por vezes, certo ar mitológico, com a insistência, por exemplo, na vitória sobre os demónios, tem o mérito de sublinhar que a salvação é alcançada através de um combate, o qual retomando a história de toda a humanidade, a «re capitula» para a salvar (Santo Ireneu). A teologia me dieval, que põe a tónica nos méritos de Cristo, sentiu grande atracção por esta maneira de encarar o proble ma. Ainda hoje lhe é sensível a teologia da libertação. • Uma última forma de exprimir a salvação é a divi nização. Comparado com os temas precedentes, este tem a vantagem de orientar o olhar para a perspectiva da sal vação, isto é, para a libertação da escravidão, com o ob jectivode nos tornarmos filhos. Esta vida de filhos é uma vida natural com Deus, que transfigura o homem pecador com o sopro recriador do Espírito.
3. Em nosso nome A tradição latina valorizou sobretudo a segunda pers pectiva. que pensou a salvação como redenção, parti cularmente sob a influência de Santo Anselmo (1033-1109). Este, de facto, estabeleceu um rigoroso laço entre a incarnação e a redenção: se o Filho veio para o meio dos homens, foi para pagar, em Seu nome e em Seu lugar, a dívida que eles tinham contraído, pelo pe cado. Uma vez que os homens não podiam pagar, o Fi lho ocupou o lugar deles. Vulgarizada de forma desajeitada, esta teoria que marcou profundamente a cultura ocidental, que é a nos sa poderia resultar numa verdadeira caricatura de Deus, pois faria d’Ele um monarca ciumento, cioso dos Seus direitos, que reclama que se faça justiça a um pre —
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ço exorbitante, E, nessa altura, as noções tradicionais da teologia da redenção ficam falseadas: o sacrifício de Cristo é, então, entendido como uma oferenda expiató ria, exigida, aliás, por um Deus irritado; o mérito ape receria como um direito, adquirido pelo esforço do homem; e a satisfação não passaria do apaziguamento reclamado pela ira de um Deus vingador. Ora estes desvios não podem fazer com que esque çamos o essencial, a saber, o dom que Cristo fez aos homens, o da Sua própria vida. Grandes teólogos sou beram, através desta teologia da redenção, verter toda a seiva evangélica, sem pactuar com quaisquer desvios. E na sua peugada que nós devemos reexaminar as três noções-chave de sacrifício, mérito e satisfação, consti tuintes indispensáveis de uma teologia da redenção.
• Sacrifício: O sacrifício, que supõe o dom radical por parte de quem o faz, é sempre orientado para o ou tro, como muito bem viram Santo Agostinho e S. To más de Aquino; mas não confere, em si mesmo, essa comunhão, que só pode vir do Outro, Aquele a quem o sacrifício se destina. Toda a vida de Jesus foi uma ofe renda absoluta de Si aô Pai e, neste sentido, foi um sa crifício. Ele «esvaziou-Se» e fez-Se servo, não reivindicando a Sua igualdade com Deus. Quando Cris to morre, dizendo um último «sim» a Seu Pai, o véu do Templo pode rasgar-se de alto a baixo, porque o lugar da comunicação entre o céu e a terra passa, a partir daí, por Aquele que Se fez, em todo o Seu ser, próximo do homem. E neste sentido que se deve ler a parábola do bom Samaritano, em que aparecem, opostos, o serviço do Templo e o serviço da caridade (Lc 10e também Rm 12). O sacrifício de Cristo salva-nos, porque a Sua exis tência abre na história dos homens um espaço em que Deus é reconhecido como Deus de maneira absoluta, sem 97
a menor recusa, sem o menor pecado. «Desta maneira. o sacrifício está ligado à confissão da alteridade divina. à declaração que o fiel faz de ir por ele a Deus e de que. todavia, tudo repousa sobre a gratuitidade soberana de ). Do lado do discípulo, o sacrifício, entendido 5 Deus( no sentido de dom radical de si mesmo ao outro, é ‘ resposta ao dom que, em Seu Filho, Deus Lhe fez, tan to a Ele como a todo o homem. E neste caminho que Cristo compromete os Seus discípulos: onde quer que o homem dê lugar ao outro, abre um espaço para o Ou tro que é Deus (Mt 25,3 1-46). • Mérito: como entender a noção de mérito, que tam bém faz parte da constelação de uma teologia da reden ção, sem cair na perspectiva mercantilista? Com este conceito corremos o risco de desenvolver um cristianis mo comercializado, já denunciado por Lutero, e levar os fiéis a acumular méritos ou a fazer colheitas nos mé ritos dos Santos, A noção do mérito é de muito difícil utilização em teologia, já que é uma ameaça que pode atingir a gratuitidade divina. Tentemos, por isso, com preendê-la de uma maneira correcta. Quando falamos de mérito, estabelecemos um laço sobre a base de um contrato, entre um acto determina do e um fim conseguido. O trabalhador merece o seu salário por causa do contrato entre ele e o empregador este contrato estabeleceu uma relação entre o valor do trabalho prestado e a remuneração devida. Recorrendo a esta noção de mérito para falar de salvação, a teologia da redenção sublinha que a salvação é fruto de uma ac tividade e de um combate humano travado por Jesus. E neste sentido que lemos o «por isso» (FI 2,9), que reo (5) P. Valadier. Jósus-chris ou Dionysos. La ti chrétienne en con fronlation avec Nietzsche, Paris. Desclée, 1979, p. 101.
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Redenção e Libertação Tem pouco sentido opor entre si as noções de re denção e libertação. Redenção é um termo medieval, que significa resgate. Traduz as palavras bíblicas de raiz he braica g’l e pdh, que querem dizer tirar da servidão. Li bertação é, por vezes, suspeita, já que traz consigo conotações políticas. Mas também está presente na re denção e nos seus antecedentes hebraicos. E é tudo o que sabemos! Que uma noção de salvação traga consigo cono tações políticas é mais um sinal de boa saúde cristã. Sig nifica muito simplesmente que a salvação tem uma dimensão colectiva: trata-se da salvação do povo eleito, prometida às multidões, à humanidade e à criação. Que há de espantoso que as noções que exprimem tudo isto tenham sido tiradas do vocabulário social e político? Claro que a salvação cristã tem um âmbito mais vasto e é de uma natureza diferente da das libertações hu manas. Mas nem por isso podemos recusar o vocabu lário social e político. Preferir palavras aparentemente mais «neutras» não é menos «perigoso»: nessa altura, mesmo sem o dizer, daríamos a entender que a salvação não passa de uma coisa pessoal e reduzir-se-ia a sal vação de Deus à salvação do indivíduo. Lembremo-nos do velho cântico «Só tenho uma alma, que é preciso salvar»... Em 1974, os Bispos franceses propuseram esta as sunto à reflexão dos cristãos. Cf. Libérations humaines et salut en Jésus-Crist, Paris, Centurion, 1975, e os es tudos bíblicos aparecidos nos Cadernos «Evangile», n.°’ 7 e 8. Hoje, são os cristãos de outros continentes que dizem aos cristãos dos países ricos que descobriram o Deus salvador através da sua própria luta contra a injustiça. Para uma primeira documentação, ver: Le onardo e Clódovis Boff em Que é a Teologia da Li bertação? Para uma visão mais ampla de todos os continentes, ver Bruno Chenu, em Théologies chré tiennes des tiers mondes, Paris, Centurion, 1987.
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nhece um laço semelhante entre a vitória da ressurrei ção e o preço pago para a conseguir. Na existência cristã, a noção de mérito não deve ser desjua1ificada apriori. Claro que nenhum homem tem direito à salvação. Mas idoutrina católica fãIëfa iiFueus dá aos homens a possibilidade de ticipar na sua salvação. Se há uma relação entre as ac ções humanas e a recomp&i esta relação é estabelecida -
mente por Deus. Nãose co nete por isso,nenhurnaten taiti r 7 atuitidade da salvação. Vê-se isso muito bem na Parábola do Juízo Final (Mt 25). O destino de finitivo de cada um está ligado à sua maneira de viver e de se dar aos outros. E, no entanto, o facto de se de votar ao serviço dos outros não dá qualquer direito. Mas, por causa de Cristo, Deus estabelece um laço entre a nossa forma de viver hoje e a vida que Ele nos oferece em Cristo para sempre. E sobre a base da solidariedade de Cristo connosco que nós cremos que a i5 liberda di, também ela um dom de Deus, pode particjpa construção do nosso ser .e filhos de Deus. • Satisfação: Esta terceira noção é, muitas vezes, compreendida como uma compensação que Deus exigi ria como contrapartida da salvação que nos oferece e que o Filho, «oferecendo-Se em resgate pela multidão» (Mc 10,45), Se teria oferecido em nosso lugar. Uma tal interpretação precisa de ser rectificada. No Antigo Tes tamento, o «resgate» não designa o preço a pagar pela remissão dos pecados; não é uma compra nem uma pa ga; evoca, simplesmente, a grande quantia de dinheiro que era preciso pagar para que fosse poupada a vida a um condenado. Trata-se, portanto, não da exigência de um juiz, mas do dom livremente consentido para que o outro viva. Dizer que Cristo deu a Sua vida em «res gate» quer dizer que Ele Se entregou livremente para
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nos salvar, não para aplacar a justiça vingadoura de Deus, mas por arnor( ) 6 Dizendo que os cristãos devem «satisfazer» pela sua salvação, não se sugere de forma nenhuma que Deus é Alguém que exige que Lhe paguemos as dívidas. A sa tisfação sublinha o facto de que a salvação é onerosa e que é preciso «pôr-lhe um preço». E isto porquê? Por que Deus respeita o hrnm. Ele não exige do ecador que adquira a sua salvação e o re o ço so re- umano, mas dá-lhe o poder de reconstruir oqe destruiu através da sua recusa. Deus respeita suficien temente o homem para o tratar como um ser respon vel. A satisfação, na obra da salvação, é, por isso, •‘bérn ela, um fruto da graça e uma expressão do amor de Deus. Pela satisfação, Deus dá ao homem o poder de «inverter a história que Ele próprio criou» (Ch. Du quoc), tomando parte na libertação alcançada por Cris to na cruz. * *
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Sacrifício, mérito, satisfação três noções ititerli gadas no processo da redenção alcançada por Cristo.O Deus da Aliança concede ao homem o dom de se voltar converter a Ele, radicalmente (sacrifíciol concede-lhe o dom de tomar parte no seu destino eterno a partir des mundo (mérfto); concede-lhe o dom de inverter, des te modo, a histórdoeu pecado (satisfação). Jesus faz iiexista um eS aço para Deus nesta nossa histó ria, que, por si mesma, se cons 1 ui sem eus, quan o (6) Sobre este ponto, ver A. Schenker «Substitulion du châtiment prix de la paix? Le don de la vie du Fils de I’homme en Mc 10.45 OU et par. à Ia Iumière de I’A.T.», em La Pâque du christ mystêre du Sa lur. Paris, Cerf. 1982. pp. 75-90. E ainda: C’hemins bibliques dela non -violence. Chambray-Ies-Tours. CId. 1987. Uma busca rigorosa sobre as noções de expiação. satisfação, substituição, resgate e outras.
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não contra Ele. É o dom de Deus feito ao homem em Jesus Cristo, Seu Filho, que torna possível o dom do homem a Deus, pelo caminho que Jesus abriu.
III. Revelação A cruz resulta do cruzamento de dois caminhos: o caminho de Deus para ÕTiomem e o caminho do hom para Deus. E o eixo a partir do qual a história da huma nidade pode voltar para Deus, seu criador. Mas porque é também a expressão por excelência do dom de Deus aos homens e o objectivo da incarnação, a cruz não é so a «lingua em da salva ão dos homens»; tam ém reve a eus, o Deus de Jesus Cristo. A mensagi da cruz não consiste apenas numa pa1vra sobre al ro do homem; deve ser entendida como uma pala viacerca de Deus, que vem corrigir todas as palavras que os homens religiosos podem dizer acerca de Deus. E é por isso que é uma prova para os que crêem emEus (lCor 1,18-25). Mas será digno de fé o Deus que Se revela na cruz? Seja corno for, é um Deus embaraçoso. Vamos dividir a nossa tentativa em três questões diferentes: como é pos ísj que Deus tenha deixado morrer o Seu Filho? Por i frtjw’ que é que,$e calou no alto do Gólgota? Será que a cruz dá um sentido ao Seu sofrimento? Estas questões são me (Ivitáveis. E são de agora como de todos os tempos. i: atingido pelo mal, sem razão aparente parajsso; ps Ju deus tragados pelos campos nazis (ou a choá) fazem com que o vejamos em toda a sua crueza. Face a tanto sofri mento e a este mal, cego ou cruel, Deus não tem mais resposta que o silêncio? E o rnisté rio do sofriiiento, que surge, nu e cru, ante o mistério de Deus.
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1. O Filho abandonado Tanto Mateus como Marcos sublinharam o facto de Jesus ter gritado, na cruz, o Seu abandono, usando para isso as palavras do Salmo 22: lamentação do justo per seguido. Vários teólogos do nosso tempo, na peugada de Lutero, interpretam este grito no sentido literal: Je sus, identificado com os pecadores, aceita o castigo que Deus lhes destinou e assume o silêncio dos condenados. E cá teríamos nós a expressão extrema do amor de Deus, que Se humilha até ao lugar onde Ele não habita,ito é, os internos, habitados pelos pecadores e os d perados.
Não achamos aceitável esta maneira de dramatizar. o silêncio de Deus. Primeiro, porque dá importância de nasiada, exclusiva mesmo, à citação de um salmo, es 4uecendo as outras palavras do Crucificado, como, por exemplo, a Sua oração confiante (Lc 23,46). Depois, porque o salmo em si não quer dizer isso. Jesus retoma a prece de um justo perseguido; em parte alguma Se iden tifica com o pecador, sendo sempre o inocente tortura do, abandonado por todos. E há outras razões mais teológiças pinda, que nos impedem de concluir gueJe qide facto, abandonado por Deus. Se isso aconte cesse por Jesus ter assumido os pecados do mundo, era porque Deus continuava a ser o Deus do castigo. Será este porventura o Deus anunciado por Jesus? A vida de Jesus revela um rosto de Deus bastante diferente. Pelo perdão e misericórdia, que sempre pra ticou, Jesus revela um Deus de uma extrema ternura. «Quem Me vê, vê o Pai» (Jo 14,9). Os gestos e i vida Je Jesus fazem vislumbrar um Deus totalmente incapaz le abandonar o Seu Filho no exacto momento da Sua maior angústia. Poderá Q Deus de Jesus, que Se põe à procura de quem se perdeu, rejeitar o Seu Filho, no trá 103
gico momento em que Este não passa de um agonizante mergulhado em trevas? E uma perspectiva que se não pode aceitar.Ç, v,s 2. O silêncio de Deus Partamos do princípio que Deus não podia abando nar o Seu Filho. Então porque Se fecha num defensivo silêncio? Atingimos ás fronteiras do mistério. Para o Ju deu que viveu a experiência de Auschwitz( ), o Deus 7 de Jesus Cristo aparece, como nunca, como um Deus silencioso. Limitar-nos-emos, neste capítulo, ao silên cio de Deus no Monte Calvário. Será que Deus podia desfazer esse silêncio e mostrar, face aos pecadores que condenaram o seu Filho, a Sua «temível força»? Deus não costuma proceder desta maneira. Um Deus que interrompesse o silêncio do Calvá.rio deixaria de ser o Deus que Cristo manifestou. E que Deus manifesta-Se gratuitamente, sem condições e sem nada exigir em troca. Não o faz para que a Sua justiça ou a Sua honra seja salvaguardada. Já em Belém Se mani festou num Menino pobre e recusado (Lc 2,12). Nada há mais desarmado que o amor, porque o amor não po de deixar de se expor à liberdade daquele que se ama. Ainda que isso lhe custe, Jesus, na cruz, dá testemunho da gratuitidade de Deus. E por isso mesmo o Pai não intervém. E nem após a ressurreição o Filho ensina aos Seus inimigos o que devem fazer; os próprios discípu los se admiram com esta discrição. Se Deus guardou si lêncio no Calvário, fê-lo para não contradizer o testemunho de Seu Filho, o qual, desta maneira, reve lava um Deus que Se oferêce e entrega. Esta aparente fraqueza de Deus remete para a liber dade e responsabilidade do homem. Um teólogo protes (7)
cap. 3.
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Ver E Fackenheim, Penser après Auschwitz, Paris, Cerf, 1976.
tante, D. Bonhoeffer, executado pelos nazis em 1945, dá a dimensão exacta desta fraqueza. «Perante Deus e com Deus vivemos sem Deus, Deus deixa que O epul sem do mundo e que O cravem numa cruz. Deus éim potente e fraco no mundo e só assim está connosco e fiãs_ajuda.:. Cristo não nos ajuda pela Sua omnjp2ncii, mas pe1iífiiqueza e pelos Seus sofrimentos». (8) Estar diante de Deus e com Deus e viver sem Deus sig nifica aceitar a nossa condição humana e não esperar que Deus ocupe o nosso lugar. «O Deus que está connosco nos abandoni», escreve ainda Bonhoef fer; «deixa-nos viver no mundo sem termos a hipótese de Oencontrar». Ao dizer isto, Bonhoeffer está a assumir a posição teológica de Lutero: a fraqueza do Crucificado é a con dição da Sua revelação. Um Deus fraco não corre o ris co de ser confundido com um Deus fabricado pela mão do homem. Quando os homens inventam deuses para si mesmos, faih-nos omni tentWëinflexíveis. A ciii e esus e, por isso mesmo, bem revel4pçlopçhomens que que m chgáiwveus segumdo sem re as suas rs tivas. cruz e o ugar em que Deus diz o Seu verdadeiro no me, que em nac1se contunde com outrosdeuses; o seu me é amor, amor que se faz próximo, Deus-connosco, até no abandmais absoluto. (9)
3. Deus habita o sofrimento O sofrimento é chocante e desde o princípio que os cristãos têm tentado dissipar-lhe a sombra. E têm gasto (8) Résistance er soumission. Leures de prison, Genebra, Labor et Fides, 1963, p. 162. (9) Cf. J. Sobriflo, ..La mort de Jésus eL la libération de l’histoire»’, emJésus et Ia libération en Arnérique latine, colect. Paris, Desclée, 1986, p. 275.
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somas enorme de sabedoria humana para o conseguir. Conhecemos os discursos dos amigos de Job, que ten tam justificar o sofrimento humano. E, no evangelho, nota-se a mesma atitude (cf. J 0 9,1-4): pretende-se ex plicar o sofrimento como castigo dos nossos pecados. E, ao longo da história, sempre se retomaram as mes mas explicações, que se tornaram um lugar-comum. (10) Ora Jesus, em vez de justificar o sofrimento, fez tu do o que pôde para o minorar. Tem uma atitude prática e sente pressa de aliviar os que sofrem. Enquanto ou tros procuram o culpado, Ele cura o doente (lo 9; Lc 13,2-6). E, deste modo, descobre e denuncia uma asso ciação que se apossara da consciência humana: o sofri mento era o preço a pagar pela falta cometida; uma espécie de salário da culpabilidade. A cruz rompe o cer co. Jesus, que morre na cruz, é inocente, é o homem sem pecado. Se é esmagado, não é certamente por cau sa dos Seus pecados. Assim se vê como é preciso afas tar a ideia de que sobre Ele, o Crucificado, pesa a cólera de Deus. Uma perspectiva destas levará, fatalmente, às velhas explicações, que viam no castigo uma vingança de Deus. Cristo morto na cruz não sofre de facto a cólera de Deus; não é castigado por ser culpado de culpas pró prias ou das nossas culpas. Os que sustentam estas ideias e se exprimem nesta linguagem são precisamente os ini migos de Cristo. Se sofre e morre, é como vftima de uma violência que procede dos homens e não de Deus. A cruz de Jesus bem como o perdão que Ele concede ao morrer são a clara denúncia desta violência. O silên cio de Deus não é cumplicidade com a violência, mas exprime a recusa de participar no círculo infernal violência-repressão (violência do culpado-repressão do
justiceiro). Só o perdão de Jesus quebra o silêncio de Deus. A morte de Jesus naquele extremo despojamento não explica o mal nem o sofrimento; mas mostra um Deus que aceita sujeitar-Se ao sofrimento. E, a partir de então, ficamos a saber que não há miséria humana que Deus não possa visitar e partilhar. A ressurreição não vem dar solução aos dramas que afligem a condição humana, como se Deus exigisse so frimento e morte para fazer deles brotar a vida. Ela ma nifesta, sim, que onde houver sofrimento, Deus pode fazer com que nasça a vida e nasça com abundância. Foi o que fez na Páscoa, pela Sua graça. ***
«Deus amou de tal maneira o mundo que lhe entre gou o Seu Filho único para que todo aquele que acredi ta n’Ele não mais pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16). Estas poucas linhas resumem toda a mensagem da Páscoa. Deus fez-Se solidário com aquilo que estava perdido, desesperado. Pelo que a cruz, mais do que men sagem trágica, é uma mensagem de amor. Criando a hu manidade, o Deus de aliança correu o risco de apostar na liberdade humana: o risco da recusa. O Filho, na cruz, assume este risco. Solidário com todos, Cristo não po dia consentir que o homem fosse desfigurado, já que o Seu Pai é o Deus da vida, é o criador. E assim Jesus continua a ser, até à morte, o «Deus connosco»: Deus que Se entrega aos homens, sem con dições prévias nem outra qualquer razão, pois o Seu no me é amor. Tornando-Se homem, este Deus, para quem o homem está bem cotado, rasga para a humanidade um caminho de vida, que é a sua vida divina posta à dispo sição dos homens (ver Anexo IV.
(lO) Ver J. Delumeau, Le péché et Ia peur. La culpabilitó en Occi dent (séculos XIII-XVIII), Paris, Fayard. 1983, pp. 331-338.
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Conclusão
CRISTO ESTÁ VIVO Como redescobri-1’O?
No termo deste percurso através de todas as épocas da história, ficou bem claro que Jesus Cristo ocupou, ocupa e ocupará sempre um lugar central, na vida dos homens. Quando se trata de esclarecer problemas essen ciais da condição humana, como a vida, o sofrimento, a morte, a salvação, o amor, ainda é junto de Cristo que os cristãos procuram, como sempre procuraram e en contram a indispensável luz. Atentos à tradição, apren demos que a fé em Cristo, que lhes dinamiza a vida, não é coisa que se invente. Tem como base o testemu nho dos Apóstolos, e cada geração a recebe da geração imediatamente anterior. E levanta se, então, um proble ma inevitável: como poderemos, nós que não vimos nem ouvimos Jesus Cristo, encontrarmo-nos com Ele? Certo dia, dois discípulos, que iam de longada até Emaús, falavam um com o outro sobre os factos suce didos; «Jesus em pessoa aproximou-Se e seguiu com eles; só que os olhos deles estavam impedidos de O reconhe cer» (Lc 24, 15-16). E esta a situação do crente. A pre sença de Jesus Cristo não lhe falta; só que ele não tem os olhos suficientemente abertos nem tem uma fé sufi cientemente forte para O reconhecer ao longo do cami nho. Deus está ausente, mas não está longe. Uma vez que na tradição bíblica o número sete é o número per feito, vamos marcar as sete maneiras pelas quais Jesus Cristo, afastando-Se dos nossos olhos carnais, para nos —
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«pregação», muito valorizado pelos Protestantes, englo ba, a um tempo, o anúncio de Cristo (Kerigma) e o en sino da doutrina (Didaké). A pregação é algo de urgente: , o meio de corrigir directamente o mal de que hoje sofremos surge com da 126
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reza. Trata-se, para nós, de estabelecer que, longe de eclipsar o Deus cristão, o Universo, no estado actual das investigações, apenas está à espera de ser transfigurado e completado por Ele. Queremos que os Homens regressem a Deus, transportados pe la mesma força que, na aparência, os afasta d’Ele? Abramos, então, nós próprios, com generosidade, o espírito e o coração às perspectivas e aspirações novas; tomemos posse delas e cristianizemo-las. «Primeiro, apoclererno-nos delas. Façamos, aqui, o nosso exa me de consciência. Não temos continuado a ser, nós os cristãos, pessoas que, na verdade, se mantêm estranhas ao espírito da Hu manidade, que temos obrigação de salvar? (...) Não temos dei xado (e estou a citar) «hipertrofiarem-se, na nossa religião, as noções de pecado e de salvação individual»? Não é verdade que irradiamos, demasiadas vezes, a sombra da cruz, em vez do seu brilho?... «Decerto que nem tudo é mau nesse sopro de optimismo con quistador que move a massa humana; porque haveremos então de defender-nos dele? Não será o Evangelho um fermento que é preciso pôr lá muito dentro do coração do mundo?» Non veni sol vere, sed adimplere». «Consumar é cristianizar. Para operar esta transformação, não pode bastar e sentimo-lo bem — uma crítica puramente inte lectual ou negativa, que elimine os falsos materialismos e os fal sos panteísmos. A nossa missão é voltar a vestir (induere), na sua plenitude natural, a alma religiosa do Mundo actual e vivê -la, plena e sinceramente, no plano cristão. As aspirações reli giosas do Humanismo moderno são, tristemente, vagas e ina cabadas. A nós compete mostrar, verbo et exemplo, que só a realidade concreta de Cristo tem condições para as tornar fir mes, centrá-las e salvá-las. Quando, exactamente em virtude do seu Cristianismo, pela actividade construtiva da sua caridade, pela riqueza operante da sua renúncia, pelo arrojo confiante das suas perspectivas sobrenaturais, os cristãos se mostrarem os pri meiros entre os Homens a espiritualizar os valores terrestres e a caminhar ao encontro do Futuro, então, nessa altura, a me lhor, isto é, a mais perigosa parte da descrença humana ficará desarmada até ao âmago». (1) —
Albert Camus: o divino Resignado opti Camus é um descrente. A sua visão do mundo é menos o com sobretudo chocado, Sentimo-lo mista que a de Teilhard. Crucifi o para Olhando Inocente. do morte com a e sofrimento mas. cado,. Camus reconhece que não é possível acusar a Deus; con Sua a totalmente assume na realidade, o Crucificado, que que vítima, uma mais E realmente. dição humana, não a muda Deus. de silêncio o ainda torna mais escandaloso «Cristo veio resolver dois problemas principais: o problema grandes do mal e o problema da morte, que são precisamente os mais. de antes consistiu, problemas dos revoltados. A sua solução com sofre Deus-homem O própria. em assumi-los como coisa seja imputável ser pode Lhe morte a nem paciência. Nem o mal A morre. e dilacerado é Ele também que já for, de que modo ho dos história noite do Gólgota tem a importância que tem na abando mens exa.ctamente porque. nestas trevas, a divindade, até viveu tradicionais, privilégios nando ostensivamente os Seus morte. da angústia a inclusivamente, ao fim, até ao desespero, Cristo Tentam explicar o «Lamá sabactani» e a dúvida atroz de com a es contar na agonia. Esta seria muito ligeira, se pudesse necessário é homem perança eterna. Para que Deus sejam um que desespere». (2) Um Deus credível através da cruz Se, para o ateu, a cruz é mais um escândalo, para o crente. parti ela revela um Deus que não seria credível se não tivesse 2,6-11). (FI cruz morte de e morte, até à humana lhado a condição América E isto mesmo que sublinha muito veementemente, na Sobrifio: John Libertação, Latina, um teólogo da Teologia da
cruz de Jesus «A impotência de Deus, que se manifesta na na manifestar-se vai que Deus, de poder o credível (...). torna Sua da expressão ressurreição. E que a impotência de Deus é a deabsoluta proximidade dos pobres, a participação no destino Extracto de L’homme révolté, Paris. Gallimard, 1961, p. 40. Cerf Ver o comentário de Jürgen Moltmann, Le Dieu Crucifié, Paris. 259. -Mame, 1974, p. (2)
(i) Extracto de Science et Christ, Obras de Pierre Teilhard de Char din, 9, Paris, Seuil 1965, pp. 152-153.
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les até às últimas consequências. Se Deus estava na cruz de Je sus, se Ele conheceu dessa maneira os horrores da história, então a Sua acção na ressurreição é uma acção credível, pelo menos para o crucificado. O silêncio de Deus na cruz, que escandaliza tanto a razão natural e a razão moderna, não é escandaloso para os crucificados porque o que interessa aos crucificados é saber se Deus estava ou não na cruz de Jesus. E se Ele estava, a apro ximação de Deus em relação aos homens, iniciada na Incarna ção, anunciada e tornada um facto por Jesus, ao longo de toda a Sua vida, consuma-se aqui. O que a cruz diz em linguagem humana, é que, na História, nada foi capaz de impedir que Deus Se aproximasse dos homens’. (3)
Índice
Introdução 7 Quem dizem os homens que Eu sou sou E vós, quem dizeis que Eu 9
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Primeira Parte A SUA GLÓRIA» VIMOS «NÓS dos Apóstolos pascal experiência A Estrutura do anúncio pascal
1. O tempo das promessas 1. Escuta, Israel’ 2. «Deus reclama a Tua vida na tumba» (Salmo 103,4) 3. Um tempo de crise
(3) Extracto de .‘Le Ressuscité et le crucifié. Lecture de la réssur rection de Jésus a partir des crucifiés du monde’., em Jésus et Ia Iibtra tion en Amérique Ititine (Colectj, Paris, Desclée, 1986, pp. 298-299.
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II. O TEMPO DE JESUS 1. O reino de Deus estó no meio de vós Os milagres de Jesus O modo de viver de Jesus
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2. As pretensões de Jesus A relação de Jesus com os pecadores A relação entre Jesus e a Lei Jesus e o Templo
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9 3. Então quem é Jesus
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4. A esperança de Jesus
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25 25 26
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III. RECONHECER O CRUCIFICADO 1. As componentes da experiência pascal Uma revelação divina Um reconhecimento Uma tarefa da fé Uma experiência missionária
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2. Vestígios históricos do Ressuscitado
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Será a ressurreição de Jesus um acontecimento histórico’
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IV. A 1. 2. 3.
MENSAGEM PASCAL O terceiro dia ou o tempo do Espfrito Subiu aos céus Há-de vir julgar os vivos e os mortos
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B
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Cultura judaica e cultura grega Contacto com o judaísmo Confrontação com o helenismo
Algumas grandes figuras da cristologia antiga
C
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Duas posições contrárias sobre o Misté rio de Cnsto A FÉ DE NICEIA (325)
2. Os Conciios cristológicos Concilio de Efeso (431) Concilio de Calcedónia (451) 132
II. A TRADIÇÃO CONTESTADA 1. Em nome da Escritura: Lutero (1483-1546) 2. Em nome da Razão (séc. XVIJI-XIX) Emancipação da razão Revalorização da história Schleiermacher As Vidas de Jesus Um mito concreto A crise modernista ifi. PESQUISAS CONTEMPORÂNEAS 1. As vias da cristologia A oferta de Deus (Karl Barth) A busca do homem (Rudolf Bultmann) A figura de Jesus
Segunda parte IMAGEM (OU ICONE) DO DEUS INVISIVEL A fé em Cristo, Filho de Deus I.AFÉDAIGREJA 1. De Jerusalém a Niccia o testemunho apostólico A A preexistência A filiação divina
Definição de Calcedónia Segundo Concilio de Calcedónia (553) Terceiro Concilio de Constantinopla (680-681)
46 47 47 47 48 50 50 51 52 54 55 57 57 58
59 60 61 62 63 64 65 67 67 68 68 70 70 71 73 74
2. O ser filial de Jesus
75
3. O agir filial de Jesus A consciência de Jesus Quatro proposições da Comissão Teológica inter nacional sobre a consciência que Cristo tinha de Si mesmo (Dezembro de 1985) A liberdade de Jesus
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81 82
Terceira parte O MESSIAS CRUCIFICADO Deus salva-nos em Jesus Cristo 1. RECONCILIAÇÃO 1. Jesus, caminho de Deus para a humanidade 2. Jesus, caminho da humanidade para Deus 3. Aquele que nos reconcilia
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II. REDENÇÃO 1. Morto pelos nossos pecados 2. De uma vez por todas 3. Em nosso nome
92 92 94 96
Redenção e Libertação
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ifi. REVELAÇÃO 1. O Filho abandonado 2. O silêncio de Deus 3. Deus habita o sofrimento
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Conclusão CRISTO ESTÁ vivo Como redescobri-l’O? 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.
A Escritura A pregação Os Sacramentos A Igreja Corpo de Cristo Os ministérios A oração Todo e qualquer rosto humano
112 112 113 113 114 114 115
ANEXOS 1. 2. 3. 4.
134
7 E para mim, quem é Jesus Cristo A humanidade de Cristo e a salvação «Dizer» a salvação com as nossas palavras Jesus Cristo um sentido para a nossa cami nhada
119 121 125
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