PENA E GARANTIAS
SALO DE CARVALHO
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PENA E GARANTIAS
SALO DE CARVALHO
www.lumenjuris.com.br EDITORES João de Almeida João Luiz da Silva Almeida CONSELHO EDITORIAL Alexandre Freitas Câmara Amilton Bueno de Carvalho Cezar Roberto Bitencourt Cesar Flores Cristiano Chaves de Farias Carlos Eduardo Adriano Japiassú Elpídio Donizetti Fauzi Hassan Choukr Firly Nascimento Filho Francisco de Assis M. Tavares Geraldo L. M. Prado Guilherme Peña de Moraes Gustavo Sénéchal de Goffredo J. M. Leoni Lopes de Oliveira José dos Santos Carvalho Filho Lúcio Antônio Chamon Junior Manoel Messias Peixinho Marcellus Polastri Lima Marcos Juruena Villela Souto Nelson Rosenvald Paulo de Bessa Antunes Paulo Rangel Ricardo Máximo Gomes Ferraz Salo de Carvalho Victor Gameiro Drummond Társis Nametala Sarlo Jorge
CONSELHO CONSULTIVO Álvaro Mayrink da Costa Antonio Carlos Martins Soares Augusto Zimmermann Aurélio Wander Bastos Elida Séguin Flávia Lages de Castro Flávio Alves Martins Gisele Cittadino Humberto Dalla Bernardina de Pinho João Theotonio Mendes de Almeida Jr. José Fernando de Castro Farias José Ribas Vieira Luiz Ferlizardo Barroso Luiz Paulo Vieira de Carvalho Marcello Ciotola Omar Gama Ben Kauss Rafael Barretto Sergio Demoro Hamilton
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Advogado Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito Professor Titular de Direito Penal e Criminologia da PUCRS Professor Convidado do Doutorado ‘Derechos Humanos y Desarrollo’ da UPO (Sevilha) Coordenador de Pesquisa do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais
PENA E GARANTIAS 3a edição, revista e atualizada A CRISE DO DIREITO E DO PROCESSO PENAL O GARANTISMO JURÍDICO AS TEORIAS DA PENA OS SISTEMAS DE EXECUÇÃO A LEI DE EXECUÇÃO PENAL OS CONFLITOS CARCERÁRIOS OS DIREITOS (DE RESISTÊNCIA) DOS PRESOS
EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro 2008
Copyright © 2008 by Salo de Carvalho
Categoria: Processo Penal 1a edição: 2001
Esta edição tem o apoio do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC)
PRODUÇÃO EDITORIAL Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra.
É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características
gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei no 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil Printed in Brazil
Mas, quando os príncipes, por se tornarem soberanos, espezinham, sem remorso ou vergonha, os mais sagrados direitos do povo, a atenção é desperta pelo menor dos objetos, e mesmo a voz de um homem tão isolado como eu pode produzir algum efeito sobre os pensamentos do público. Se ao reunir num só ponto de vista, sob vossos olhos, as medidas perversas preparadas pelo Príncipe para alcançar o império absoluto, e as cenas lúgubres sempre associadas ao despotismo, puder vos inspirar o horror da tirania e reavivar em vossos peitos a chama sagrada da liberdade que queimava em vossos antepassados, poderei considerar-me o mais feliz dos homens. Jean Paul Marat Chains of Slavery
Nota do Autor à 1a Edição
O presente trabalho é fruto de pesquisa realizada entre os anos de 1995 e 1999, antes e durante a realização de curso de Pós-Graduação. A tese foi defendida no Doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná, em março de 2000. Intitulado originariamente Garantismo e Sistema Carcerário: crítica aos fundamentos e à execução da pena privativa de liberdade no Brasil, foi apresentado à banca examinadora composta pelos Professores Dr. Jacinto Coutinho (UFPR), Dr. Luiz Alberto Machado (UFPR), Dr. Lenio Streck (UNISINOS/RS), Dr. Sérgio Salomão Schecaira (USP) e Dr. Nilo Batista (UERJ), sendo aprovado com nota máxima e, ainda, atribuído voto de louvor ao signatário e à tese. Em decorrência do volume, inúmeros cortes foram realizados, sem descaracterizar, contudo, a essência do trabalho. Importante ressaltar, de imediato, a profunda colaboração do Professor Dr. Jacinto Coutinho (orientador), bem como da Professora Dra. Aldacy Coutinho, no resultado final ora apresentado ao público. No entanto, outras vozes silenciosas devem ter aqui a devida, e justa, menção. Contribuíram de forma substancial ao trabalho os Professores Drs. Lenio Streck e Geraldo Prado, os Mestres Alexandre Wunderlich e Ney Fayet Jr. e o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho. Registrese, pois, meu profundo agradecimento e gratidão. O problema abordado na tese pode ser expressado na afirmação de que o debate atual sobre o sistema carcerário no Brasil consensualiza uma falsa idéia. É corrente, nos meios acadêmicos e profissionais, ouvir que o grande nó existente na execução penal é decorrente da inadimplência do Poder Executivo, ou seja, de que a violação aos direitos fundamentais dos presos decorre, exclusivamente, da incompetência da administração pública em cumprir sua legalidade. Parte-se do pressuposto de que, se o Estado prestasse seus serviços (infra-estrutura material), os direitos dos apenados estariam plenamente garantidos. O objetivo da tese é desmistificar tal afirmação, procurando perceber o nível de (co)responsabilidade do jurista na barbarização da execução da pena, viabilizando mecanismos prático-teóricos que justifiquem as ações de resistência dos presos no resgate de seus direitos. vii
Os argumentos que compõem o trabalho pendem entre a deslegitimação do modelo ressocializador e a incapacidade garantidora do processo de execução moldado pela Lei de Execução Penal (LEP). São objetivados, assim, em três hipóteses: (1a) a ideologia do tratamento (discurso que perpassa a LEP) não apresenta conteúdo mínimo que possa afirmar sua harmonia com os valores e princípios constitucionais; (2a) o processo de execução penal não possui instrumentalidade adequada para efetivar os direitos dos apenados; e (3a) da falta de instrumentalidade processual para assegurar os direitos exsurge, quando da constatação de situações de violência institucional, o direito de resistência como manifestação legítima de desagravo pela massa carcerária. A opção científica é pela teoria do garantismo jurídico-penal. Procurou-se, desde esse marco doutrinário, construir um discurso coeso, revificando os princípios ilustrados da secularização e da tolerância – concebidos como justificação antropológica e racionalista à intervenção estatal –, e negando o falso ‘humanismo’ que recobre o mito da recuperação. Assim, o instrumental adotado encontra-se em perspectiva diametralmente oposta ao modelo ressocializador, intentando deslegitimar os fundamentos jurídicos da pena para, num segundo momento, direcioná-la ao seu local de origem: a esfera política, como ensinava Tobias Barreto. Após conjugar os argumentos apresentados, conclui-se que a estrutura da execução da pena privativa de liberdade em regime fechado no Brasil é inquisitorial, visto que impõe ideologicamente ao condenado tratamento ressocializador; impede a ‘massa carcerária’ usufruir direitos primários; e criminaliza qualquer manifestação contrária a esse estado de coisas. O discurso garantista proporciona desconstituir o fundamento terapêutico, diagnosticar as falhas de instrumentalidade processual e, ao relocar o problema da pena à esfera política, legitimar atos de rebeldia dos presos quando da reivindicação de seus direitos sonegados. Dessa forma, a intenção do trabalho é possibilitar, ao jurista comprometido com os direitos humanos e com a radicalização da democracia, uma nova visão sobre o fenômeno da sanção penal, intentando, na esteira waratiana, desvendar as falácias que encobrem o visível aparente. Porto Alegre, verão de 2001. viii
Nota do Autor à 2a Edição
Aprendi com Ruth Gauer que todo texto é datado. Desta forma, me senti legitimado a efetuar inúmeras alterações no livro apresentado em 2001. Em realidade, procurei, com a nova versão, deixar a redação ‘menos tese’ (acadêmica) e mais livro, suavizando a leitura de uma temática em si extremamente desgastante. Todavia, as alterações não foram apenas de cunho formal, mas, sobretudo, no conteúdo. As (inúmeras) modificações que o leitor encontrará foram fruto de um processo de amadurecimento que me obrigou a reler meu próprio pensamento. Este processo, sempre doloroso e fatigante, é decorrência de inúmeras causas. Uma delas foi a militância, nos últimos quatro anos, na advocacia criminal, com o precioso ‘compañero’ de luta Alexandre Wunderlich. Aliou-se ao cotidiano da advocacia o período na presidência do Conselho Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul e os profundos debates realizados nos Programas de Pós-graduação da PUCRS, UNISINOS e UPO (Universidad Pablo de Olavide – Sevilha). Neste período, foi possível visualizar o impacto da tese na realidade, verificando ingenuidades e defeitos, bem como algumas virtudes que possui. O leitor encontrará, portanto, um texto relativamente novo, diverso daquele publicado na primeira edição e, esta é a minha esperança, mais consciente de seus limites e possibilidades. A trajetória que finda nesta segunda edição teve inúmeros interlocutores que merecem a devida homenagem e o imenso agradecimento. Antes de tudo, fundamental para conclusão das ‘revisões’ o apoio do ‘pessoal do escritório’. Assim, meus agradecimentos aos Wunderlich’s, e à tolerante e paciente equipe de trabalho formada por Rogério Maia Garcia, Camile Eltz, Rita de Cássia Branco Silveira, Lizete Flores e Eduardo Sanz de Oliveira e Silva. Natalie R. Pletsch e Liliana Carrard, muito embora componham o grupo do escritório, merecem uma referência diferenciada, não apenas pela constante cobrança na finalização desta edição, mas pelo primoroso trabalho de revisão e crítica do ‘rascunho’. ix
Amilton Bueno de Carvalho, Jacinto Coutinho, David Sánchez Rubio, Lenio Streck, Geraldo Prado, Ruth Gauer, Aury Lopes Jr., Maria Palma Wolff e Miriam Guindani continuam sendo minha referência primeira, meu ‘socorro’ nos momentos em que teoria e prática parecem inconciliáveis. Imprescindível, também, o apoio de Paula Gil Larruscahin, Natália Gimenez, Lenora Oliveira, Rainer Hillmann, Mariana de Assis Brasil e Weigert, Rafael Rodrigues da Silva Pinheiro Machado, Roberta Longoni de Vasconcellos, Renata Jardim da Cunha, Raffaella Pallamolla, Eduardo Rauber, Roberto Rocha Rodrigues, Fernanda Juliano Pasquali e Caroline Eskenazi, integrantes do grupo de pesquisa em Criminologia e Execução Penal da PUCRS, que realizaram inestimável trabalho de investigação, o qual, aliado aos férteis debates, deu consistência a inúmeras mudanças presentes nesta edição. Alexandre Wunderlich, Felipe Cardoso Moreira de Oliveira, Gustavo de Moraes Trindade, Daniel Gerber e José Carlos Moreira da Silva Filho, amigos valiosíssimos que, pela proximidade e intenso convívio, sempre auxiliam de forma pertinente com críticas e sugestões. De igual modo Gabriela Koetz da Fonseca, que acompanhou este processo. Liane Pessin continua fornecendo o necessário apoio psicanalítico. Por fim, Gabriela de Carvalho, Amilton Bueno de Carvalho, Néder Lopes da Rosa e Diego de Carvalho continuam sendo elementos de sustentação do meu cotidiano, auferindo sentido à caminhada. Porto Alegre, outono de 2003.
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Nota do Autor à 3a Edição
A presente edição é lançada após modificações significativas na legislação punitiva brasileira. O diagnóstico, infelizmente, é o do brutal enrijecimento das modalidades de sanção, demonstrando a adequação do Brasil ao que a literatura social denominou Estado penal. A institucionalização do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) pela Lei 10.792/03 poderia, portanto, exigir mudanças no texto da 2a edição do livro. Contudo, o que foi possível constatar desde 2003 foi a potencialização da idéia de disciplina prevista na Lei de Execução Penal com a adoção explícita do sentido retributivo e neutralizador da pena, típico do pensamento penal autoritário contemporâneo refletido nas teorias funcionalistas do direito penal do inimigo. De outra parte, a Lei 10.792/03 revogou a necessidade do exame criminológico para que o apenado alcançasse os direitos previstos nos incidentes de execução, notadamente progressão de regime e livramento condicional. Contudo, apesar de revogado o requisito subjetivo, a jurisprudência – amparada por parte substancial da doutrina –, a partir de interpretação nitidamente inconstitucional, reviveu o texto, restabelecendo o antigo critério. Assim, são mantidas na integralidade as críticas direcionadas aos fundamentos e à execução das sanções judiciais e administrativas, ao trabalho do corpo técnico criminológico na legitimação do sistema punitivo e ao suplício gótico que constitui o universo carcerário nacional. Neste quadro, entende-se que a manutenção do conteúdo da 2a edição é justificada. Todavia, para que o leitor possa ter compreensão detalhada do entendimento do autor sobre as recentes alterações no quadro punitivo, fato que atinge os principais problemas tratados no livro, foi acrescido, em posfácio, artigo específico sobre o tema. Importante referir, ainda, o apoio da Pró-reitoria de Pesquisa e Pósgraduação, da Faculdade de Direito, do Departamento de Direito Penal e do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia xi
Universidade Católica do Rio Grande do Sul no financiamento e no estabelecimento das condições materiais que possibilitaram o prosseguimento da investigação. Porto Alegre, agosto de 2007. Salo de Carvalho
Sumário
Prefácio....................................................................................................... xvii Introdução.................................................................................................. xxiii Capítulo I – A Constituição do Paradigma Garantista.......................... 1.1. Garantismo e inquisitorialismo: modelos paradigmáticos em tensão .................................................................................................. 1.2. O paradigma da intolerância: o modelo jurídico inquisitorial...... 1.2.1. Esclarecimento necessário: o porquê do medievo ............... 1.2.2. Antecedentes históricos do modelo inquisitorial ................. 1.2.3. A instrumentalização dos Tribunais ...................................... 1.2.4. A estrutura jurídico-penal ....................................................... 1.2.5. A barbárie jurídica: os mecanismos do método inquisitorial . 1.3. O processo de secularização e a invenção da tolerância .............. 1.3.1. A conquista do homem e do mundo ...................................... 1.3.2. A natureza liberta: oposição à servidão ................................ 1.3.3. O pacto e os direitos do homem............................................. 1.3.4. O direito à perversidade.......................................................... 1.3.5. Os fundamentos do direito de resistência.............................
xii
1 1 4 4 6 10 14 19 22 22 24 28 33 36
Capítulo II – O Garantismo Jurídico-Penal: Gênese e Crise(s) ............ 2.1. Recepção do contratualismo pelo direito penal.............................. 2.1.1. Unidade e existência da ‘Escola Clássica’ ............................ 2.1.2. A Accademia dei Pugni ........................................................... 2.1.3. A versão revolucionária do contratualismo........................... 2.1.4. O contratualismo no direito penal brasileiro......................... 2.2. O refluxo do pensamento garantista................................................ 2.2.1. O paradigma etiológico e a estética do mal ......................... 2.2.2. A matriz etiológica no direito penal brasileiro e o saber defensivista colonizado(r)............................................................ 2.2.3. O defensivismo contemporâneo: a Nova Defesa Social .......
39 39 39 42 45 50 54 56
Capítulo III – As Razões do Garantismo ................................................ 3.1. O Programa político-criminal garantista ......................................... 3.1.1. Garantismo: reivindicação ou superação do iluminismo jurídico-penal? ............................................................................. 3.1.2. Regressão irracionalista: desregulamentação dos procedimentos, pluralismo de fontes e inflação legislativa .............
77 77
62 68
77 79 xiii
3.1.3. Direito penal mínimo e direito penal máximo....................... 3.1.4. Direito penal mínimo e princípio da legalidade.................... 3.1.5. Teoria garantista da lei penal: critérios de deflação legislativa .......................................................................................... 3.1.6. O Projeto Minimalista: A Lei do Mais Fraco.......................... 3.2. A teoria geral do garantismo ............................................................ 3.2.1. Garantismo e teoria crítica do direito: a validade das normas e o papel do jurista .......................................................... 3.2.2. Garantismo e Estado de direito: as visões da democracia . 3.2.3. Garantismo e filosofia política: teoria heteropoiética: tolerância e resistência à opressão .............................................. Capítulo IV – O Modelo Garantista de Limitação do Poder Punitivo.. 4.1. A pena nas sociedades modernas: introdução ............................... 4.2. Esboço dos modelos justificacionistas da ilustração.................... 4.2.1. As justificações retributivistas ............................................... 4.2.2. O modelo intimidatório ............................................................ 4.2.3. A perspectiva política de prevenção social .......................... 4.3. A justificativa etiológica de prevenção especial: fundamentos e programa político-criminal ................................................................ 4.4. A crítica garantista ao modelo periculosista e à subjetivação processual ........................................................................................... 4.5. O garantismo e a negação da legitimidade jurídica da pena ...... 4.5.1. Da necessidade de uma teoria da pena ................................ 4.5.2. A proposta garantista de limitação do poder punitivo........ Capítulo V – Os Sistemas de Execução e o Garantismo Penal............ 5.1. Valores e princípios penalógico-constitucionais............................. 5.1.1. O condenado e o status ‘apátrida’ ......................................... 5.1.2. As instituições totais e a Constituição de 1988 ................... 5.1.3. Valores constitucionais informadores .................................... 5.1.4. Princípios constitucionais informadores................................ 5.1.5. Princípios penalógico-constitucionais ................................... 5.1.6. A ‘Constituição penal’ e a restrição de direitos fundamentais do preso ............................................................................. 5.2. Sistemas de execução penal ............................................................. 5.2.1. Sistemas de execução penal: escorço histórico.................... 5.2.2. O sistema de execução instituído pela LEP.......................... 5.2.3. Os princípios relativos aos sistemas processuais e o diagnóstico do processo de execução penal brasileiro ............... 5.3. Direitos versus Disciplina(s): o controle do indivíduo e da ‘massa carcerária’............................................................................................ xiv
82 84 89 93 95 98 104 108 115 115 117 118 122 126 128 137 140 140 145 151 151 151 153 155 157 159 160 162 162 166 170 175
5.3.1. Fundamentos ideológicos da LEP e suas conseqüências normativas ................................................................................ 5.3.2. A retórica disciplinar ............................................................... 5.3.3. O controle da identidade do preso: laudos e perícias criminológicas: discurso oficial ....................................................... 5.3.4. O controle da identidade do preso: laudos e perícias criminológicas: funções reais .......................................................... 5.3.5. O controle da ‘massa carcerária’: regime meritocrático ...... 5.4. Garantismo e execução penal: proposições .................................... 5.4.1. A volatilidade da pena ............................................................ 5.4.2. As relações entre os discursos disciplinar e jurídico: processo penal e procedimentos executivos .............................. 5.4.3. A função dos técnicos (criminólogos) .................................... 5.4.4. O controle do tempo das decisões judiciais: resolução ficta. 5.4.5. Da necessidade de recodificação ........................................... 5.4.6. A cominação penal em abstrato............................................. 5.4.7. A responsabilização dos agentes públicos pela violação dos direitos fundamentais dos apenados.............................. Capítulo VI – Garantismo e Conflitos Carcerários: Fugas, Rebeliões e Motins............................................................................................... 6.1. As novas funções da pena ................................................................ 6.1.1. A crise do Estado social e a emergência do Estado penitência: mirada ao centro.......................................................... 6.1.2. O carcerário: perspectiva periférica ....................................... 6.2. A ilicitude dos conflitos carcerários ................................................. 6.2.1. A admistrativização dos conflitos carcerários ...................... 6.2.1.1. Falta grave: previsão legal......................................... 6.2.1.2. Falta grave: sanção..................................................... 6.2.2. A criminalização dos conflitos carcerários............................ 6.2.2.1. Evasão violenta........................................................... 6.2.2.2. Motim........................................................................... 6.2.2.3. Fuga e motim: análise crítica .................................... 6.2.2.3.1. Crítica de lege lata .................................... 6.2.2.3.2. Crítica de lege ferenda.............................. 6.3. Conflitos carcerários e direito de resistência.................................. 6.3.1. A ineficácia do modelo liberal-legal para resolução dos conflitos contemporâneos ....................................................... 6.3.2. Direito de resistência: notas conceituais............................... 6.3.3. Direito de resistência, legítima defesa e estado de necessidade: aproximações e diferenças ........................................... 6.3.4. Direito de resistência: condições de possibilidade da descriminante supralegal ..............................................................
176 179 182 184 189 192 193 197 201 204 205 207 209 213 213 213 218 220 224 224 225 227 227 229 231 231 234 235 235 239 242 248 xv
6.3.5. Direito de resistência: efeitos jurídicos .........................................
251
Conclusões .................................................................................................
257
Referências Bibliográficas.......................................................................
265
Posfácio Tântalo no Divã .........................................................................
285
Prefácio
A estrutura da Pós-graduação no Brasil ganhou um grande alento nos últimos anos. A criação de um sistema sofisticado e bastante rigoroso de avaliação de Cursos e Programas, em um primeiro momento, assim como, depois, a exigência de um certo percentual de professores titulados compondo o corpo docente dos Cursos de Graduação e a insuportável ampliação do número deles levou, entre outros motivos, ao glamour em que se encontra. Surgiu, como era sintomático, a corrida pelos títulos. Quem não tem um deles, hoje, da Pós-graduação stricto sensu (mestre ou doutor), tem sido objeto de discriminação, porque o status ganhou a ordem do dia, o patamar de regra do jogo. Certo ou errado (é despicienda a discussão), a verdade é que se tem grandes professores sem qualquer título, mas não é menos verdade que eles, salvo exceções, são autodidatas, não raro dotados de um dom que se não pode obter por estudo ou treinamento, ou seja, algo incompatível com as exigências de um país carente, muito carente, de bons professores. Prepará-los, então, satisfatoriamente, é uma das missões da Pósgraduação, o que tem sido obtido com um sucesso surpreendente, em face das parcas condições, materiais e pessoais, com as quais tem-se operado. Tem o país, assim, um bom motivo para orgulhar-se, mormente porque o modelo segue um tanto quanto na contramão da história recente, marcada pela impiedosa destruição neoliberal de uma certa inteligência nacional muito propícia a tudo questionar, dado ser necessário, que siga lutando pelo espaço democrático de todos, não só dos incluídos. Além do mais, o modelo tem sido referência internacional (são poucos os países com uma estrutura semelhante e em alguns tem servido de suporte a mudanças), inclusive pela sua produção, embora uma avaliação mais segura e sem muitos riscos de erro só se vai poder ter em um lapso temporal mais longo, quando os egressos dos Cursos e Programas comecem, em larga escala, a fazer eco na vida, por seus alunos. A produção jurídica, sem um pé na realidade, é feu follet. A questão, agora, passa do bônus ao ônus, projetando o calcanharde-aquiles da estrutura. Não basta, sabe-se bem, produzir; é preciso que seja com qualidade. Para tê-la, faz-se mister um apurado sistema de orientação, ainda não alcançado no país. Em primeiro lugar, os proxvi
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Salo de Carvalho
Pena e Garantias
fessores mais antigos, que não vieram dos Cursos e Programas de Pósgraduação, têm visível dificuldade na condução da operacionalização das dissertações (de mestrado) e das teses de doutorado. É difícil, reconheça-se, ensinar, o que se não teve a possibilidade de aprender. Depois, pela falta de um corpo docente mais amplo, não se tem uma maior especialização, o que obriga a um esforço muito maior, com freqüência fazendo do orientador um cúmplice do orientando nas descobertas e decepções. Além do mais, o sistema, por vários motivos, um mais absurdo que o outro, transformou o mestrado em passagem obrigatória para o doutorado, confundindo conceitos de um modo inaceitável; e o reflexo disto projeta-se como um raio na produção. Afinal, tem-se pleno domínio do sentido de recapitulação – e em que pese a originalidade de muitas delas – ensejado pela dissertação, fato de extrema relevância quando em questão está a formação de um professor. À tese, porém, não se reserva, nem se pode reservar, uma hipótese do gênero, porque seria a sua banalização, desde que seu escopo é um texto originário, inovador, calcado na alteração da base principiológica e, portanto, voltado, pelo menos no seu ponto de partida, às causas. Em suma, não se trata de produzir uma monografia ou manual qualquer, desses que tiranizam o saber dos alunos da Graduação, robotizando-os sem dó, mas um trabalho marcado pelo conhecimento mais amplo – e lastreado nas disciplinas fundamentais e básicas – desde o ponto de partida para, paulatinamente, seguindo-se um fio condutor e em constante afunilamento, chegar-se a um marco específico, por certo inovador. Se não se levar a sério tais premissas, aqui alinhavadas de modo primário, logo ter-se-á, pelas dificuldades individuais (para não radicalizar e dizer mediocridade, porque seria injusto dado não ser geral), doutores sem viço, massificados pela produção em série, just-in-time. A tese de doutoramento do Salo de Carvalho no Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal do Paraná que agora, seguindo a recomendação da Banca Examinadora (Professores Doutores Nilo Batista, Sérgio Salomão Schecaira, Lenio Luiz Streck, Luiz Alberto Machado e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), chega às livrarias com o título “Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil”, não só é um motivo de orgulho para o Programa como, também, há de servir de exemplo do que é, em verdade, uma tese; e de inestimável valor. Nela, expurgada de alguns excessos quando em questão está a publicação de um livro (garantismo e conjuntura político-econômica
atual: resistência à globalização; as reformas penais atuais e a descaracterização do garantismo penal: a falácia das “penas alternativas” e a continuidade do projeto defensivista; a crítica do abolicionismo ao sistema de penas: resposta negativa ao ius puniendi, entre outros de muita importância, mas que cabem perfeitamente em textos isolados), aterra, pela primeira vez no mundo jurídico-criminal brasileiro de forma sistemática, o pensamento de Luigi Ferrajoli, tomado como marco teórico. Por evidente, não se pode desconhecer a primorosa tese de doutoramento do Prof. Sergio Cadermatori, apresentada e aprovada, em 1998, na Universidade Federal de Santa Catarina, com o título “Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista”, entre outros trabalhos quiçá de menor fôlego. Faltava, porém, pouco mais de dez anos após a primeira edição de Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale (Laterza, Roma-Bari, 1989, 1034p.), que alguém tivesse a ousadia de destrinchar o garantismo de Ferrajoli e ler a pena e sua execução, no Brasil, a partir daquele lugar. Pois foi o que fez Salo de Carvalho; e de forma primorosa. Está o texto estruturado em duas partes, respondendo a primeira pelas fontes e razões da teoria garantista. Tem-se, aí, o necessário para entender-se o que Ferrajoli quis dizer quando afirmou que “il modello penale garantista, benché recepito nella Costituzione italiana come in altre Costituzioni quale parametro di razionalità, di giustizia e di legitimità dell’intervento punitivo”, para concluir que “L’orientamento che da qualche anno va sotto il nome di ‘garantismo’ è nato in campo penale come una replica allo sviluppo crescente di tale divario [refere-se à divergência entre a normatividade do modelo em nível constitucional e sua ausência de efetividade nos níveis inferiores] nonché alle culture giuridiche e politiche che l’hanno avallato, occultato e alimentato, quase sempre in nome della difesa dello stato di diritto e dell’ordinamento democrativo” (Diritto..., p. 891). No que toca com as fontes, em um primeiro momento estuda a secularização (já observada de modo brilhante em outro livro, recémlançado em conjunto com Amilton Bueno de Carvalho sob o título “Aplicação de pena e garantismo”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, onde escreve sobre a “Aplicação da pena no Estado Democrático de Direito e garantismo: considerações a partir do princípio da secularização”) e a tolerância, ambas tomadas como valores estruturais do paradigma garantista. Em seguida, mergulha na recepção da teoria contratual pela nascente ciência penal, onde o resgate de Jean Paul Marat parece ser o ponto alto, mormente por seu “Disegno di legislazione cri-
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Salo de Carvalho
Pena e Garantias
minale. Trad. de Marco Antonio Aimo, Milano-Varese: Cisalpino, 1971, 184p.), talvez propositadamente esquecido, como “forma de combate de suas idéias pelo ‘ostracismo’”, como sustenta a tese. Depois, os fundamentos da teoria garantista ganham espaço; e se compreende o porquê da formulação de Ferrajoli. Desde essa base, parte o autor à crítica aos fundamentos e à execução da pena privativa de liberdade no Brasil; e o garantismo assume um sabor verde e amarelo. Primeiro, pela avaliação crítica do modelo penalógico. Segundo, pela execução penal brasileira enquanto sistema, diante do modelo garantista. Por fim, o encontro com a realidade nacional onde, como não podia deixar de ser, eclode a tese, com respostas fortes, porque não poderia ser diferente. Soube o Salo, de maneira privilegiada, ler o garantismo de Ferrajoli, tornando-o palatável à racionalidade jurídico-penal brasileira que se não seduz com espelhinhos teóricos. A questão, neste aspecto, é simples: ou se trata de domesticar o pensamento eurocentrista ou a igreja não se faz povo, como disse Boff. Assim, a tese percebe a recomendação que Roberto Bergalli havia feito em um texto precioso, “Fallacia garantista nella cultura giuridico penale di língua ispanica”, publicado quiçá no melhor trabalho sobre a teoria de Ferrajoli, “Le ragioni del garantismo: discutendo con Luigi Ferrajoli (Letizia Gianformaggio (Org.). Torino: Giappichelli, 1993)”: “Così l’esame che dovrà compiersi nell’ambito giuridico ispanico-latino-americano per verificare se le tesi di Ferrajoli sono trasferibili alla critica dei sistemi penali di queste culture, consisterà nel constatare se i principi costituzionali, le tradizioni legislative e la prassi applicativa che li caratterizzano contengano quei tratti che Ferrajoli indica come propi dei sistemi di Stato di diritto... Ma alcuni dei lavori che ho citato sopra hanno avuto il mérito di abbraciare se non tutti almeno una buona parte degli aspetti del sistema penale spagnolo e di altri paesi latino-americani; e sulla base di questi lavori è possibile dubitare della capacita di quegli Stati di assicurare ai loro cittadini un diritto penale conforme al modelo normativo ‘garantista’” (p. 197). Não cabe, todavia, uma postura maniqueísta embora, em tempos de globalização, mais do que nunca o escopo seja, como não poderia ser diferente diante da sua lógica, um “pensamento único”, segundo Ignacio Ramonet, que parte do axioma de Paul Watzlawick: “De todas as ilusões, a mais perigosa consiste em pensar que não existe senão uma só realidade”. Não há espaço, portanto, para deslizar no imaginário. Nesta dimensão, a tese agiganta-se, porque não
perdoa o status alienado do jurista, atribuindo-lhe parcela de responsabilidade – com toda razão – pela barbarização da execução da pena. Por outro lado, é refinada a interpretação que dá o Salo ao “utilitarismo penal reformado” de Ferrajoli, argutamente percebido por Norberto Bobbio: “Le proposte di riforma avanzate, particolarmente innovative quelle riguardanti la pena, sono una diretta conseguenza della teoria liberale dei rapporti fra individuo e stato, e lo stato non è mai un fine in se stesso perché è, o deve essere, soltanto un mezzo che ha per fine la tutela della persona umana, dei suoi diritti fondamentali di liberta e di sicurezza sociale” (Prefácio de Diritto e ragione..., cit., p. XIII). Com isto, torna-se possível, na tese, um retorno da pena ao espaço político para, a partir dele, reconhecer direitos dos presos que estão escamoteados na verborréia jurídica, sem dúvida ideológica. Em suma, tem muito claro o Salo, mais que ninguém, ser o garantismo de Ferrajoli e sua proposta de direito penal mínimo não uma teoria da pena mas, sobretudo, uma doutrina normativa sobre os limites da pena. Deste patamar, a tese é de uma coragem ímpar, na melhor tradição de um bom gaúcho, justo porque, ao invés de transitar por um tema docilizado pelo senso comum, a começar por aqueles que levam o “de acordo” do egrégio Supremo Tribunal Federal, vai ao cerne do tumor do direito penal, ou seja, a pena e sua execução. Para quem não abre mão dos direitos humanos e da radicalização democrática, é imprescindível, como faz o Salo, pensar nas estruturas não por aquilo que elas têm de mera maquilagem. Vai daí que, a partir do modelo-limite garantista, chega, entre outras coisas, à conclusão de que “Em matéria penal/penitenciária, o legado ainda presente da concepção administrativista de execução na qual o detento é visto como mero objeto e não cidadão, aliado à dificuldade de percepção dos direitos transindividuais, inviabiliza solução pacífica dos conflitos. A conseqüência desta miopia da dogmática brasileira, cuja estrutura teórica não permite conceber os detentos como sujeitos de direitos, é o resgate crítico do direito de resistência como possibilidade estratégica de curto e médio prazo para o resgate de sua cidadania”. Com esta tese – e seu livro – o Salo insere-se, em definitivo, na história dos grandes nomes do direito penal do Rio Grande do Sul, tradição de ponta no Brasil que passa por Salgado Martins, Alberto Rufino, entre tantos outros. Com ele – é impressionante – há um grupo de jovens penalistas gaúchos de extrema qualidade e um futuro que vai dar ainda muitos frutos e orgulho ao mundo jurídico-penal brasileiro. Em larga escala vinculados ao !TEC (Instituto Transdisciplinar de
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Estudos Criminais), têm no Salo um pouco a figura do Captain, e não é desmerecido, embora ele nunca tenha sonhado em admitir tal hipótese, pelo respeito incondicionado que tem pela diferença e pelos amigos da “chusma”. Lugar do gênero, sabe-se pela psicanálise, conquista-se, domando-se, no que for possível, o Nome do Pai de Lacan, com muita sublimação, ou seja, o preço a pagar. Para produzir trabalho de tamanha qualidade foi necessária uma pesquisa imensa (incluindo nela um estágio entre Roma e Camerino, nos rastros de Ferrajoli, que se mostrou sempre muito solícito, é bom reconhecer), com muita meditação e a imprescindível humildade para escutar as vozes discordantes, ou seja, o passaporte necessário para a entrada no rol daqueles que se quer ouvir. Veio à luz, assim, um livro que é um primor, do qual a leitura é tarefa inarredável. Quem conheceu o Salo na “aborrescência” sabe existir Algo mais a mexer no destino, mormente quando a encruzilhada se apresenta. Poderia ter pensando nele Helena Kolody, nossa grande poeta, quando escreveu Gestação: “Do longo sono secreto na entranha escura da terra, o carbono acorda diamante”. Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Coordenador eleito do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR
Introdução ...não pensem que, só porque estou em silêncio, fui suprimido. Estou bem vivo e atento a tudo que se passa. Não se iludam nem por um momento. Não é porque pareço indiferente que meus sofrimentos cessaram. Não. Samuel Becket All That Fall
01. No prefácio da obra Fundamentos da Sociologia do Direito, publicada em 1912, Eugen Ehrlich afirma que deve ser possível resumir o sentido de um livro em uma única frase.1 Ao enfrentar a difícil tarefa proposta pelo autor, tem-se que o conteúdo do presente trabalho pode ser sintetizado no seguinte enunciado: a inquisitorialidade (fática e normativa) do processo de execução penal estabelece uma relação perversa, na qual os direitos e as garantias dos apenados acabam reféns dos discursos clínico-criminológico e administrativo-disciplinar. 02. Antes, porém, de iniciar a abordagem central, algumas observações são importantes. Se fosse possível mensurar o grau de civilidade de determinada comunidade, tarefa irrealizável empiricamente e inconcebível cientificamente, um dos principais critérios utilizados seria a avaliação do sistema penal em sentido amplo. A pauta de pesquisa poderia ser definida a partir do processo de seleção legal de condutas (criminalização primária), passando pelo índice de incidência do sistema nos desviantes e no decorrente processo de rotulação (criminalização secundária) para, finalmente, direcionar o estudo ao ponto culminante do controle social formal: o sistema penitenciário. Todavia, além do mecanismo formal de controle, sua relação com o senso comum do ‘homem da rua’ seria fundamental, especialmente porque o processo de criminalização primária inexoravelmente advém das representações deste público consumidor em relação simbiótica 1
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Ehrlich, Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 07. xxiii
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com a imprensa (marrom). Umberto Eco, ao problematizar sobre as novas maneiras de formação do consenso, bem como sua relação com o público espectador, adverte que, cada vez mais, são produzidos analfabetos lobotomizados pelo mass media.2 Ensina Gizlene Neder que, muito além de deflagrar processos formais de controle (criminalização), o mass media vincula procedimentos informais: esta imprensa sensacionalista está a cumprir um papel inibidor-repressivo, exibindo um horror cotidiano. Com a produção imagética do terror apresentando diariamente mutilações e com a presença de um discurso minudente, detalhista, das atrocidades sofridas pelo ‘condenado’, a banca de jornal como a praça oferece às classes subalternas, comprovadamente consumidoras preferenciais desta imprensa sensacionalista (de mau gosto para as elites), elementos de controle social informal, de alguma forma eficaz.3 No Brasil, é possível afirmar que ambos níveis de resposta (controle formal e informal) aos fenômenos crime e violência estão envoltos por atmosfera doentia. As respostas político-criminais à violência têm sua gênese invariavelmente ligada a fatos e situações-limite, contingenciais. A discussão sobre a realidade carcerária é freqüentemente precedida de situações de enorme violência nas instituições – v.g. fugas, rebeliões e motins. Propagados e explorados fervorosamente pelos meios de comunicação de massa, tais fatos pulverizam discursos estruturados em pressupostos maniqueístas e segregadores, quando não belicistas. O debate, inequivocamente, é povoado pelo trivial: da banalização festiva da violência decorre a vulgarização rústica da resposta estatal. Observe-se que, em última instância, sob o argumento dos altos custos de manutenção do presidiário, da descrença em sua recuperação, apóiase veladamente o extermínio.4 O efeito da miserabilização do tema violência, ofuscando as possibilidades de seu controle pacífico, é a barbarização do cotidiano, a confusão entre política pública de segurança e vingança privada, obtendose, como subproduto trágico, o vilipêndio do núcleo rígido da Constituição que são os direitos e garantias fundamentais. A proliferação desses desejos ébrios de vingança, do sadismo coletivo mascarado, sobrepõe o sentimento individual emotivo ao pro-
cesso público de racionalização dos conflitos, invadindo, inclusive, o imaginário dos operadores do direito. Estes, formados para solucionar razoavelmente os litígios, neutralizar o ímpeto de vendeta e sublimar a retaliação, acabam por internalizar e intermediar o ódio comunitário, sendo cooptados por disciplina social extremamente autoritária, legitimadora de verdadeira política criminal do terror. O jurista, neste cenário, transforma-se cada vez mais em vingador privado, negando seu papel de prestador público de justiça. A afirmação transparece no principal momento da intervenção estatal na sociedade: o processo de execução penal. Se o operador do direito, narcotizado pelo discurso defensivista, exigiu o máximo da legalidade até a sentença condenatória, neste momento crucial se cala, esquece o direito positivo como se acometido de terrível amnésia técnica. E, assim, por ignorância, ingenuidade ou má-fé, torna-se (co)responsável pelo genocídio em massa produzido nas instituições carcerárias; transforma-se em agente legitimante e (re)produtor da selvageria gótica que assola a execução da pena privativa de liberdade, principalmente aquela cumprida em regime fechado. A tese obtém comprovação no tratamento acadêmico da Execução Penal. Ao avaliar os programas das Faculdades de Direito, nota-se que sequer existe previsão da disciplina no currículo mínimo da grande maioria dos cursos jurídicos do país. Logo, se a tendência na esfera da execução da pena é a invasão de inúmeras ciências diversas, cada uma com seus signos e linguagens próprias, consolidando verdadeira ‘torre de Babel’, aos juristas a tarefa passa a ser extremamente árdua, visto que sequer conhecem razoavelmente o tema. Como conseqüência, a prática jurídica passa a ser superficial pois, ao ignorar a matéria, os problemas são mal colocados e as respostas, logicamente, inexistentes, irrisórias ou ineficazes. A ingenuidade do operador do direito em sede de execução penal determinou premissas que impedem a efetiva busca de soluções. A principal é a afirmação de que o problema da execução reside exclusivamente no Estado-administração, ou seja, de que a violação aos direitos dos presos decorre da incompetência do Estado ao não cumprir a Lei de Execução Penal. Sustenta-se que, se o Executivo prestasse seus serviços, os direitos dos apenados estariam plenamente garantidos. Entende-se, porém, que a utilização deste recurso retórico serve para neutralizar omissões. Direcionando toda responsabilidade ao Estado-administração, o operador do direto redime sua (enorme) parcela de responsabilidade.
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Eco, Postile a ‘Il nome della rosa’, p. 537. Neder, Em Nome de Tânatos, p. 20. Neder, ob. cit., p. 14.
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Evidente que a afirmação é válida quanto ao aspecto material (infra-estrutural), isto é, efetivamente a Administração Pública coloca os apenados em situação de violência permanente ao não cumprir com o dever de assegurar o mínimo de dignidade durante o período de expiação da pena. Alerta-se, contudo, que os direitos do apenado vão muito além dessa proclamada ‘qualidade de vida doméstica’ consignada no ‘Estatuto Social do preso’ (normas de execução que regulam seu ‘bem-estar’). No momento da condenação de uma pessoa ao sistema penitenciário exsurge uma série de direitos e garantias processuais que permitem a diminuição do período de cumprimento da pena e, por óbvio, de permanência no sistema: são os chamados incidentes da execução. Há uma série de direitos primários, exclusivos da condição de apenado, que devem ser respeitados pelo Poder Público, principalmente pelo Judiciário (v.g. remição, progressão de regime, substituição de pena, detração, livramento condicional, comutação, indulto et coetera). No entanto, a efetividade desses direitos somente é possível se houver instrumentalidade processual (garantista), se o artesão do direito possuir conhecimento mínimo para exigir a prestação jurisdicional. O déficit de saber técnico-dogmático, porém, predomina, e as críticas acerca da inefetividade dos direitos são, invariavelmente, direcionadas ao Poder Executivo. A postura do jurista identificado com a perspectiva crítica, entretanto, não pode ser de ocultação dessa cruel realidade; pelo contrário, sua função é denunciar as ilegalidades do sistema, sejam normativas ou referentes à prática cotidiana. Nesse sentido, imprescindível desenvolver severa crítica à ‘falácia politicista’, pensamento predominante na esfera da execução penal baseado na idéia de que é suficiente a ação do Poder Público, ou seja, de que basta um ‘poder bom’ para satisfação dos direitos. Como adverte Ferrajoli,5 é ilusório pensar que pode existir um ‘bom poder’ capaz de tutelar direitos sem a mediação de complexos sistemas normativos de garantias com capacidade de limitá-lo, vinculá-lo, instrumentalizandoo e, se necessário, deslegitimá-lo e neutralizá-lo. Não obstante, alerta importante não incorrer-se em uma ‘falácia garantista’, ou seja, na construção de um discurso baseado na idéia de que a existência de um ‘bom direito’, dotado de sistemas avançados e atualizados de garantias
constitucionais, é idôneo para conter o poder e pôr os direitos fundamentais a salvo dos desvios. Frise-se, pois, que os sistemas jurídico e político não podem, por si só, garantir absolutamente nada. Lembra Ferrajoli que a experiência ensina que nenhuma garantia jurídica pode sustentar-se somente sobre normas; que nenhum direito fundamental pode concretamente sobreviver se não é sustentado por uma atuação por parte de quem é seu titular, e pela solidariedade das forças políticas e sociais para com essa atuação.6
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Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 985.
03. Para fundamentar uma prática emancipatória, que compreenda o apenado como sujeito de direitos, optou-se pela matriz teórica do garantismo jurídico-penal. O discurso garantista tem sua gênese no movimento do uso alternativo del diritto, surgido na década de sessenta/setenta no interior da Associação da Magistratura Italiana. É desenvolvido a partir da crítica ao direito penal, adquirindo atualmente pretensões generalistas, isto é, nasce como discurso de deslegitimação do sistema penal e alça seu potencial à estruturação de nova concepção sobre a teoria geral do direito e do Estado (teoria política). O primeiro e mais sensível efeito da adoção do modelo penal de garantias é a negação, a priori, das teorias de prevenção especial positiva (ressocializadoras) como argumento justificacionista da pena, e, posteriormente, das próprias justificações jurídicas às sanções. A legitimidade da pena é o epicentro do problema jurídico-penal e, por que não dizer, da fundamentação política do Estado moderno. No entanto, se em seu nascedouro a sanção penal obteve justificativa utilitarista, desde as teorias retributivas e os modelos de prevenção geral negativa sob a égide do discurso contratualista, com o advento da Escola Positiva italiana passa a ser moldada pela ideologia do tratamento. A concepção profilática da pena perpassou todo o século XX e ainda demonstra fortes sinais de manutenção, principalmente pela relegitimação operada pelo neo-positivismo criminológico da corrente político-criminal da (Nova) Defesa Social. O discurso garantista, porém, encontra-se em perspectiva diametralmente oposta ao modelo ressocializador, procurando deslegitimar os fundamentos jurídicos da pena, direcionando-a ao seu local de origem: a esfera política. Constrói seu arcabouço teórico a partir dos princípios ilustrados da secularização e da tolerância, concebendo justifiFerrajoli, ob. cit., p. 986. xxvii
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cação antropológica à intervenção estatal, desmistificando o falso ‘humanismo’ que recobre o mito da recuperação. Assim, o garantismo apresenta-se como modelo interpretativo do sistema penal, como recurso heurístico de legitimação e/ou deslegitimação das normas e práticas do controle social formal. Ao fundar sua doutrina na secularização e na tolerância, e desconstruir o argumento ressocializador da resposta penal ao desvio punível, a teoria do garantismo impõe uma série de condições necessárias ao discurso jurídico, isto é, deriva inúmeras implicações teóricas que devem ser respeitadas. Assumindo, pois, a perspectiva garantista, procurou-se tensionar seu discurso ao máximo, utilizando como objeto de análise a execução da pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado no Brasil. O trabalho não recai, pois, somente sobre as teorias da pena mas, e sobretudo, sobre a estrutura normativa e a realidade da execução penal. Trabalhou-se com a hipótese de que o modelo de execução da pena configura um sistema totalitário inquisitivo, devido ao fato de, na esfera pública, reduzir o acesso à jurisdição, e, na esfera privada, impor um padrão moral como forma de justificar um sistema meritocrático. Portanto, os argumentos que perpassam o trabalho oscilam entre a deslegitimação do modelo ressocializador e a incapacidade garantidora do processo de execução penal. São objetivados em três premissas: (1a) o modelo da ressocialização, além de inviabilizar no cotidiano da execução o gozo pleno dos direitos pelos apenados, não apresenta conteúdo mínimo que possa afirmar sua harmonia com os valores constitucionais da secularização e da tolerância; (2a) o processo de execução penal, muito longe de estar preparado para garantir os direitos dos apenados, não possui instrumentalidade mínima em decorrência de sua subordinação à estrutura do direito penitenciário; e (3a) da falta de capacidade processual do direito em assegurar os direitos, quando da constatação de situações de violência institucional (lesão aos direitos fundamentais), exsurge o ius resistentiae como manifestação legítima de desagravo pela massa carcerária. Agregando os argumentos, advoga-se que a estrutura da execução da pena no Brasil adquire feições inquisitoriais, visto que impõe aos apenados reforma moral, impede a massa carcerária de usufruir direitos primários positivados no ordenamento jurídico e, finalmente, sanciona (administrativa ou penalmente) qualquer manifestação contrária a este estado de coisas. O discurso garantista proporciona desconstituir o fundamento terapêutico, diagnosticar as falhas de instrumentalidade processual e,
ao relocar o problema da pena à esfera política, legitimar atos de resistência dos apenados (se presentes requisitos mínimos), visto que, como afirma Gizlene Neder, as prisões (em todo o país) escancaram uma podridão que ressalta a arrogância e o descaso das elites e dos governantes em relação aos direitos (em geral), mas, sobretudo, aos direitos humanos das classes subalternas.7
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04. A constante publicização do abuso do poder público nas instituições penitenciárias permite a visualização das hipótese elencadas. Eduardo Galeano, observando a realidade de um ‘mundo ao avesso’, percebe nele a existência de cárceres imundos, nos quais os prisioneiros, em sua grande maioria pobres e sem condenação, são mantidos como ‘sardinha em lata’ – se se comparasse, o inferno de Dante pareceria algo de Disney. Continuamente estalam motins nessas prisões que fervem. As forças da ordem liquidam a balaços os desordeiros e, de quebra, matam todos que encontram pela frente, atenuando o problema da falta de espaço.8 O jornalista uruguaio abdica, contudo, de escrever sobre o irreal e constata que, em 1992, houve mais de cinqüenta motins (segundo cifras oficiais extremamente otimistas) nos presídios latino-americanos, cujo saldo foi de, no mínimo, novecentos mortos, quase todos executados a sangue-frio. Todos estes presídios padeciam de graves problemas de superlotação. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, só no ano de 1997 ocorreram 195 rebeliões nas instituições carcerárias. No ano anterior, tinham sido constatadas 71. Em 1996, houve 589 evasões, com 3.957 foragidos; em 1997, 3.663 pessoas deixaram as cadeias em 638 fugas; foram registrados, em 1996, 341 casos de tentativa de fuga contra 417 em 1997. O advento de fugas, rebeliões e motins (conflitos carcerários), aliado à ampla cobertura da imprensa, transforma o tema em pauta diária de discussão. É, pois, nas significações dos conflitos na esfera do direito que se procurará comprovar a tese de que, tanto em nível normativo quanto executivo, o universo da execução da pena privativa de liberdade no Brasil é regido por modelo inquisitorial. A partir dos discursos (sobretudo jurídicos) sobre a maior violação aos direitos humanos em casas prisionais no país, o ‘massacre do 7 8
Neder, ob. cit., p. 12. Galeano, De pernas pro ar, p. 94. xxix
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Carandiru’, surgem algumas indagações, pois o massacre do Carandiru é uma forma figurada de se falar sobre outras coisas: é uma metáfora de questões candentes, e não resolvidas, na construção truncada de um Estado Democrático de Direito que formalizou-se juridicamente sem assegurar cidadania efetiva. A intensa cobertura jornalística ressaltou os conflitos humanos e os terrores mal articulados no imaginário da sociedade: das mulheres que junto ao portão do presídio gritavam nomes dos presidiários na esperança de uma resposta dos internos sobre sua vida ou morte de seus filhos e parentes até o terror de contaminação dos policiais pelo sangue que jorrava de presos supostamente aidéticos. No centro da discussão da imprensa permanecia latente a questão: É justo se exterminar excluídos que foram tidos como perigosos ou rebeldes? Ou o Estado se torna delinqüente quando policiais militares massacram presos?9 A grande questão oculta que permeia o debate jurídico sobre os casos de conflito carcerário no Brasil relaciona-se ao fato de ser ou não o Estado responsável pelo zelo da integridade física e moral do apenado e de, ao descumprir esta obrigação constitucional, dever ou não arcar com as responsabilidades decorrentes. Muito mais que um motivo para debate, os conflitos carcerários refletem o sentir (sentido/sentimento) sobre a pessoa presa, sobre seus direitos e, principalmente, sobre a forma de exercê-los. Mais, se se pode conceber e garantir aos detentos, no caso de violação sistemática aos seus direitos fundamentais (casos emergenciais), mecanismos de (re)ação legítima. Infelizmente, a conclusão que sobressalta no universo jurídicopolítico é negativa, pois parece que suas vidas não importam; seus direitos (humanos) também não. O ‘Massacre do Carandiru’ é a prova eloqüente disto.10 Luis Fernando Veríssimo, notável crítico do cotidiano, percebe que a situação carcerária no Brasil é um teatro de permanente purgação, uma realidade construída aos poucos por homens conscientes – ‘obra de gerações’ –, resultado de anos e anos de decisões adiadas, de omissões e desconversas. Cenário de martirização na carne cuja fatalidade é o álibi; a fatalidade é a desculpa; a fatalidade, no fim, é a explicação de tudo – só um fatalismo congênito, ou uma cultura fatalista, justifica
o inferno carcerário como o que persiste no Brasil, uma das nossas tantas emergências sem solução.11 Procurou-se, pois, construir possibilidades de resgate dos direitos dos apenados neste cenário no qual a fatalidade, que também invade o discurso jurídico, tudo explica e justifica. Buscou-se resgatar, na medida das limitações, tanto pessoais como impostas pelo muro da prisão, a fala destes sujeitos esquecidos; a preocupação é dar voz aos diferentes sujeitos que fazem parte desse espaço prisional.12
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Caldeira, Caso Carandiru, p. 55. Neder, ob. cit., p. 23.
Veríssimo, Os Usos da Fatalidade, p. 03. Guindani, Violência e Prisão, p. 147. xxxi
Capítulo I A Constituição do Paradigma Garantista
1.1. Garantismo e inquisitorialismo: modelos paradigmáticos em tensão Para realizar uma digressão histórica com intuito de fundar os pressupostos do modelo jurídico-penal de tutela dos direitos fundamentais, é mister preocupar-se com a afirmação de alguns valores e categorias que serão lapidares no processo de construção dos direitos humanos, entendidos estes, desde uma perspectiva garantista, como elementos de legitimação externa dos Estados democráticos de direito. Os valores elencados para o estudo ora proposto são a secularização e a tolerância, frutos da concepção ilustrada do direito e do Estado a partir da laicização do saber filosófico e jurídico. É necessário ressalvar, todavia, que tal eleição fornecerá elementos justificadores de um modelo jurídico-penal contratualista e liberal, tendo em vista que a especificidade histórica da ilustração é caracterizada pela intensa busca de limites ao Estado frente à liberdade individual, bem como pela elaboração de critérios de participação do cidadão no espaço público. Assim, pode-se afirmar que as principais manifestações do direito no câmbio do Ancien Régime à modernidade encontram-se no direito e processo penal e nos direitos políticos. Nesse contexto, o direito penal e o direito processual penal atuariam como parâmetros de tutela à liberdade, sendo que os direitos políticos possibilitariam os canais de acesso do cidadão às decisões sobre as ‘regras do jogo’. Este rol de direitos e garantias asseguradas pelo pensamento ilustrado propiciou a noção contemporânea de direitos de primeira geração (direitos individuais), estruturando a base de legitimidade do garantismo jurídico.1 1
Registre-se, de imediato, que, muito embora seja utilizado em alguns momentos do texto a divisão Direitos Humanos em gerações (eras), compartilha-se da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, principalmente da perspectiva desenvolvida nas investigações do Programa de Doutorado Derechos Humanos y Desarrollo, da Universidad Pablo de Olavide 1
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Para caracterizar os fundamentos destes direitos incipientes, comungou-se da tipologia proposta por Luigi Ferrajoli em sua obra Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale, a qual fornece dois modelos dicotômicos de Estado e de direito, por meio dos quais formular-se-ão estruturas paradigmáticas de direito e processo penal.2
Ferrajoli opõe o Estado democrático de direito ao Estado autoritário e, como conseqüência, o modelo jurídico garantista ao modelo inquisitorial. O autor cria, a partir da terminologia weberiana, tipos ideais de Estado e de direito, ou seja, recursos heurísticos tendenciais e irrealizáveis, que servem de parâmetros à (des)legitimação e/ou (des)construção de sistemas de saber/poder.3 Tomar-se-ão, pois, as categorias fornecidas por Ferrajoli para construir um modelo paradigmático de direito cuja denominação será direito de garantias ou simplesmente garantismo. A ênfase no penal não decorre unicamente do interesse acadêmico na disciplina mas, e sobretudo, devido às manifestações de vanguarda que este ramo jurídico proporcionou no período da ilustração. Leciona Carnelutti que el primado histórico pertenece al derecho penal. Cuando el derecho nace, nace como derecho penal.4 Pode-se afirmar, portanto, que um dos principais motivos da racionalização e humanização do direito foi a resistência imposta pelo pensamento filosófico-jurídico às manifestações de barbárie dos Tribunais do Santo Ofício da Inquisição. Neste processo de (re)construção do garantismo como possibilidade de fundar um modelo de tutela dos direitos fundamentais, a avaliação da matriz iluminista é por demais importante, visto que la crítica al derecho penal y processal en el siglo XVIII, que ocupa una buena parte de los esfuerzos de la filosofia ilustrada, puede hoy presentarse como un de los capítulos principales de la génesis ideológica de los derechos fundamentales.5 Dessa forma, a aparição do penal/carcerário no corpo deste texto viabiliza manifestações paradoxais de paradigmas em construção e em crise.
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(Sevilha/ES) coordenado por Joaquín Herrera Flores e David Sánchez Rúbio. Neste sentido, conferir Sánchez Rúbio, Acerca de la Democracia y los Derechos Humanos, pp. 63-99; Herrera Flores, Hacia una visión compleja de los Derechos Humanos, pp. 19-78; e Senent de Frutos, Notas sobre una Teoría Crítica de los Derechos Humanos, pp. 117-129. Sobre a intersecção da matriz garantista com a perspectiva crítica dos Direitos Humanos, conferir Wunderlich, Sociedade de Consumo e Globalização, pp. 41-61. A opção pela teoria dos paradigmas advém do fato de entender inexistir ‘a’ ciência como atividade unívoca e homogênea para todas as épocas e sociedades. Partilhou-se do ensinamento de Thomas Khun no qual a realização, produção e reprodução da ‘ciência’ está sempre restrita ao consenso ou conjunto de compromissos teóricos básicos existentes numa comunidade científica. Há ciência apenas quando um pesquisador (sujeito comprometido com um paradigma) utiliza os instrumentos de pesquisa oferecidos pelo modelo vigente, compartilhando de seu objeto, métodos e fins: um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham. E, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que compartilham de um paradigma... Um paradigma governa, em primeiro lugar, não um objeto de estudo, mas um grupo de praticantes da ciência (Khun, A Estrutura das Revoluções científicas, pp. 219-224). Ao estar consolidado no universo da comunidade, o paradigma passa a ser irrefletidamente repassado aos demais pesquisadores por meio de um específico modo de produção do saber. Essa ‘ciência normal’ acaba por determinar o que é lícito ou ilícito, o que é ou não admissível em determinada disciplina, dirigindo e impondo os resultados finais, bem como constituindo as formas e os campos possíveis do conhecimento (Foucault, Vigiar e Punir, p. 30). Todavia, a partir do momento em que a comunidade científica identifica objetos estranhos que não deveriam ali estar sendo estudados ou que suas respostas não correspondem às expectativas do grupo, estamos diante de uma ‘crise paradigmática’. A crise se processa no interior do universo de análise pré-constituído, pois se percebe que elementos que deveriam ser objeto de pesquisa estão fora da lupa deste parâmetro oficial de realização de ciência que não mais consegue responder satisfatoriamente aos interesses da comunidade (científica). Há crise paradigmática neste momento intermediário em que o paradigma vigente não consensualiza mais a comunidade científica e o novo modelo instrumental ainda não logrou plena aceitação (ou não atingiu aceitável maturidade). A atividade de identificação dos elementos externos não absorvidos, ou internos desconfortantes, no paradigma vigente é fruto de verdadeira atividade subversiva, marginal e sediciosa desde a perspectiva da ciência normal, configurando, pois, uma ‘ciência extraordinária’, alternativa. Logicamente, o objetivo da ciência extraordinária é impor novos limites, métodos e fins à ciência, isto é, instaurar-se como o novo paradigma dominante. Tal processo é definido por Khun como ‘revolução científica’ e é o que permite a eterna modificação e o constante aperfeiçoamento da humanidade em uma verdadeira ‘ciranda da ciência’. Ressalve-se, porém, que da crise não resulta necessariamente a substituição de um paradigma por outro, podendo ocorrer redimensionamentos e relegitimações do modelo que anunciava sinais de enfermidade. Registre-se ainda que, muito embora a estrutura khuneana seja pensada para as ‘ciências naturais’, existem possibilidades de sua apropriação pelas ‘ciências sociais’. Assim,
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as críticas não apenas são possíveis como necessárias. Neste sentido, importantes as colocações de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciências, pp. 36-58. Importante lembrar o ambicioso processo de poder inserido nesta disputa pelo locus da fala científica. Para Foucault, a imposição de um saber delega às demais análises sobre o mesmo fenômeno o posto de ‘saberes dominados’, saberes desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou cientificidade (Foucault, Genealogia e Poder, p. 170). A propósito, reitera Foucault que temos que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (Foucault, Vigiar e Punir, p. 30). Carnelutti, Cuestiones sobre el Processo Penal, p. 45. Sanchís, La Filosofia Penal de la Ilustración, p. 288. 3
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A partir destas considerações, o trabalho é desenvolvido na configuração do saber (paradigma) inquisitorial e do saber (paradigma) garantista, identificando suas características, princípios e valores fundamentais, o processo de crise e substituição paradigmática, bem como seu legado à teoria do direito e às relações de poder existentes em sua conformação e declínio. Paralelamente, procurou-se demonstrar que esta mudança de paradigmas na esfera jurídica correspondeu também a uma mudança paradigmática nas ciências em geral, especificamente na filosofia e na política, já que a substituição do paradigma teológico pelo paradigma antropológico descentralizou, descobriu, conquistou e ‘humanizou’ o homem.
Sabe-se que inúmeras leituras são possíveis da estrutura jurídicopolítica do medievo. A complexidade desse período histórico indica a riqueza e a pluralidade da matéria. Segundo Francisco Bethencourt,6 as Inquisições são estudadas, geralmente, não como um problema, mas como tema consagrado de pesquisa, permitindo todos os cortes espaço-temporais e todas as apropriações discursivas. Por isso Umberto Eco, antes de tematizar as inúmeras formas de conceber o medievo, ensina que como todos os sonhos, também o da Idade Média corre o risco de ser ilógico, e fonte de admiráveis deformidades. Muitos no-lo disseram, e talvez isto bastasse para não induzir-nos a tratar de modo homogêneo o que não é homogêneo.7 No direito, a doutrina tradicional limita as questões do modelo inquisitorial às (importantes) modificações processuais (do modelo acusatório-ordálio privado ao modelo inquisitivo) ou à criação da prima scuola, a denominada ‘Escola Clássica’ do direito penal, marco genealógico da ciência criminal moderna (direito penal, processo penal, criminologia e política criminal). No entanto, fundamental observar que sempre houve, e sempre haverá, um determinado saber sobre o crime e a criminalidade, ou seja,
cada estrutura de pensamento político elabora formas de compreensão sobre o desvio, o delito, o juízo e a pena. Percebe Zaffaroni que cada ‘jusnaturalismo’ histórico tuvo su criminología, o sea, su sistema de ideas acerca de lo que se debe ser el delito y la pena; toda sociedad tuvo su discurso criminológico que explicaba el poder y el delito.8 Todavia, o complexo de idéias nascidas a partir do modelo contratualista do iluminismo funda a estrutura do direito penal moderno, da política criminal contemporânea e da atual criminologia, estruturando os pressupostos científicos e ideológicos conformadores do saber ocidental sobre a criminalidade, transnacionalizados historicamente desde o centro à periferia. Logo, lo que surge con el Iluminismo no es la criminologia misma, sino la criminologia europea moderna, es decir, la presentación de la criminologia en la forma que los europeos la conciben y a partir de entonces la difundem por el mundo.9 A afirmação é de fundamental importância, pois revela a estrutura do saber-poder eurocentrista imposta ao Novo Mundo desde a descoberta, matriz cuja base permanece inabalada, ainda que modificada em alguns aspectos de sua apresentação ao público consumidor do sistema penal. A tradição acadêmica, diversamente, reconhece o estudo do iluminismo penal tão-somente a partir das promessas de racionalidade (legalidade e certeza) e proporcionalidade das penas, conformando os ideais de ‘segurança jurídica’. Agora, se é decisivo o pleno entendimento da estrutura penal e filosófica do iluminismo sob pena de incompreensão das funções do sistema jurídico-penal da modernidade, a exclusão do status quo ante impossibilita a avaliação das conseqüências dos discursos jurídicos fragmentadores do modelo clássico. Olvidar o modelo jurídico do medievo significa, fundamentalmente, ignorar as possibilidades e as armadilhas geradas pela assunção de saberes opostos e conflitantes ao garantista. Existe um saber construído e consolidado no período da Baixa Idade Média cujas características indicam a formação de um núcleo mínimo de elaboração paradigmática. Este saber não é ingênuo nem aparente, mas real e coeso, fundado em pressupostos lógicos e coerentes, nos quais grande parte dos modelos jurídicos autoritários contemporâneos, alguns ainda em vigor, busca(ra)m inspiração. Mais, em
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1.2. O paradigma da intolerância: o modelo jurídico inquisitorial 1.2.1. Esclarecimento necessário: o porquê do medievo
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Bethencourt, História das Inquisições, p. 09. Eco, Dez Modos de Sonhar a Idade Média, p. 74.
Zaffaroni, Criminología, p. 101. Zaffaroni, ob. cit., p. 101. 5
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matéria penal e processual penal, a elaboração desta matriz foi tão genial que permanece vigente nos tempos atuais.10 Assim, caracterizar o ‘paradigma inquisitorial’ não representa mero exercício lúdico de academia, mas sim identificar possibilidades concretas de sistemas jurídicos desvirtuados (autoritários) – mudam os sinais, mas não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer diferença.11 Para tanto, propõe-se a (re)construção genealógica do modelo para, em momento posterior, caracterizá-lo em sua principiologia, pois na Inquisição está o modelo ideal da implantação de regimes totalitários, dos seus métodos de tortura, de como são tratados dissidentes políticos e sociais, de como isolar milhares de pessoas proibidas de conhecer suas origens culturais, da miséria dos condenados ao silêncio e à incomunicabilidade, do racismo mascarado em novas ideologias e da apropriação de bens como fiança desses crimes.12 O medievo representa, pois, segundo Umberto Eco, a infância da civilização, à qual é necessário sempre retornar para fazer anamnese.13 Dito de outro modo, a Idade Média representa o crisol da Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todas as coisas com as quais ainda estamos ajustando as contas.14 Se a afirmação é verídica, ou seja, de que o olhar sobre o medievo possibilita aos europeus diagnóstico de problemas atuais em decorrência das constantes tendências de retorno à infância civilizatória pela retomada de práticas bárbaras, na realidade periférico-marginal latinoamericana tal análise, mais que diagnóstico de possibilidades de retorno histórico, afirma e desnuda relações vivas e pulsantes, caracterizadoras de uma sociedade na qual coabitam práticas sociais e institucionais pré e pós modernas (trans-modernidade).
penal material. Segundo o processualista argentino, tal constatação pode ser observada plenamente no processo histórico de construção do modelo processual inquisitivo. Apesar de ser um sistema processual cujos primeiros vestígios apareceram no Império Romano, posteriormente desenvolvido pelo Direito canônico e recebido na legislação laica da Europa continental através do fenômeno conhecido como ‘recepção’ do Direito romano-canônico, verifica-se que su nacimiento, desarrollo y recepción fueron el resultado de la necessidad política concreta de apoyar un poder político central y vigoroso, cuya autoridad y fundamento no podía discutirse (autoritarismo). Para ello resultó necesario postergar los intereses individuales y elevar a principio el aforismo salus publica suprema lex est.15 As primeiras manifestações do processo inquisitorial ocorreram na Roma Imperial, após a introdução dos delitos de laesae maiestatis (subversão e conjura), nos quais o ofendido era o soberano. Na Grécia e na Roma republicana, porém, o processo era fundamentalmente acusatório, dado o caráter privado da acusação (nos delitos nos quais o Estado não era ofendido/interessado) e a natureza arbitral do juízo.16 Esclarece Tornaghi que na Antiguidade a forma de processo conhecida foi a acusatória, cujo princípio orientador pode ser observado no fato de que ninguém poderia ser levado a juízo sem acusação.17 No sistema da República romana, o processo iniciava com a accusatio do ofendido ou do seu representante. Após a accusatio havia o procedimento de pesquisa da materialidade e autoria pelo acusador na presença do acusado. A legitimidade da investigação era fornecida pelo magistrado através de uma lex que delegava poderes para proce-
1.2.2. Antecedentes históricos do modelo inquisitorial
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Julio Maier, ao avaliar o processo penal como fenômeno da cultura, afirma que entre o sistema político imperante e o conteúdo do direito processual penal existe uma direta e imediata relação, de visibilidade mais intensa, inclusive, que o nexo entre história política e direito 10 11 12 13 14 6
Nesse sentido, conferir Coutinho, Jurisdição, Psicanálise e Mundo Neoliberal, p. 47. Boff, Inquisição: um espírito que continua a existir, p. 20. Novinsky, Inquisição: Rol dos Culpados, p. XI. Eco, Postile a ‘Il nome della rosa’, p. 537. Eco, Dez modos de sonhar a Idade Média, p. 78.
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Maier, Derecho Procesal Penal, p. 261. Segundo Geraldo Prado, o prestígio do modelo ateniense de persecução penal derivou exatamente do sistema de acusação popular, em relação aos crimes públicos, faculdade deferida a qualquer cidadão, de um modo geral pela Assembléia do Povo, para em nome do próprio povo sustentar a acusação. Assim, o ofendido ou qualquer cidadão apresentava e sustentava a acusação perante o Arconte e este, conforme se cuidasse de delito público, convocava o Tribunal, cabendo ao acusado defender-se por si mesmo (em algumas ocasiões era auxiliado por certas pessoas). As partes apresentavam suas provas e formulavam suas alegações, não incumbindo ao Tribunal a pesquisa ou aquisição de elementos de convicção. Ao final a sentença era ditada na presença do povo (Prado, Sistema Acusatório, p. 79). A forma acusatória adotada na época era dominada integralmente pelo contraditório, cumprindo às partes pesquisarem e produzirem as provas de suas alegações. Tratava-se de um modelo de processo público e oral, cujos debates formavam o eixo central, dos quais derivava o fundamento da decisão. Neste paradigma processual as partes tinham, via de regra, a disponibilidade do conteúdo do processo (Prado, ob. cit., p. 82). Tornaghi, Instituições de Processo Penal, pp. 470-471. 7
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der à busca das provas (inquirição de testemunhas, exame de documentos et coetera). O acusado, ou seu comesmis, podia fiscalizar os atos do acusador de modo que este não podia sequer pensar coisa alguma que ao outro não fôsse conhecida.18 Logo, o processo acusatório caracterizou-se, desde o princípio, como actus trium personarum, público, oral e contraditório, no qual o juiz não tomava a iniciativa de apurar coisa alguma, e onde o réu aguardava, em regra, a sentença em liberdade. Importante lembrar que a ação popular (pública) nasceu posteriormente, com a introdução dos delitos contra a coletividade. O processo inquisitório foi subsidiário ao acusatório, coexistindo durante muitos séculos com este e tomando gradualmente as feições atualmente conhecidas. Ressalta Julio Maier que a mudança da estrutura acusatória para a inquisitiva se operó gradualmente, penetrando siempre al antiguo sistema a las instituciones posteriores y adquiriendo el nuevo sistema, al comienzo, carácter de excepción frente al anterior, como intento natural de subsanar deficiencias de la antigua fórmula en la práctica o según las necesidades proprias de la nueva organización política, que termina por imponerse y ordinarizarse.19 Em sua instrumentalização, a inquisitio se dividia em duas fases. Na primeira, chamada de inquisitio generalis, o fato era pesquisado em sua materialidade, sem atentar à autoria. Apurada a existência do fato, passava-se à investigação da culpa, perquirindo-se sobre o autor. Este segundo momento era denominado de inquisitio specialis.20 Nasceu assim – afirma Ferrajoli –, com a cognitio extra ordinem, o processo inquisitório, realizado e decidido ex officio, em segredo e com documentos escritos por magistrados estatais delegados pelos príncipes (os irenarchi, os curiosi, os stationanii), baseado na detenção do acusado e na sua utilização como fonte de prova, e acompanhada imediatamente pela tortura.21 Durante a Alta Idade Média, o processo retomou sua característica acusatória de natureza privada, sendo que o sistema inquisitivo reaparece na Baixa Idade Média, mais precisamente no século XII. As práticas acusatórias medievais (iudicium Dei), fundamentadas em procedimentos ordálios como o iudicium ferri candentis, eram direcionadas contra a constância dos procedimentos causais.22 Junto às
ordálias, praticadas nos ‘baixos níveis sociais’, eram presentes os duelos, procedimentos típicos para resolução dos conflitos com e contra a nobreza. Todavia, como nota acuradamente Franco Cordero, o século XII é um século burguês, aberto a desencantados interesses intelectuais, sendo intoleráveis máquinas judiciárias tão rudimentares.23 A modificação do ambiente do século XIII provoca uma profunda alteração na consciência social e na estrutura organizacional: tudo era relativamente fácil (aos que faziam parte da elite, é claro); cada pessoa era um ser segundo sua classe e seu sobrenome, uma ‘virtus’ medida pelas ações heróicas; a economia monetária desorganizou os valores introduzindo uma variável insensata; o ser constituía um dado estável; o haver flutua; agora, cada um é aquilo que possui... Estamos em um século de alto nível cultural: não é mais o tempo do êxtase fantástico; pesquisadores indagavam sobre os mecanismos causais; muito úteis os contatos com o mundo árabe, evoluído em relação à Europa feudal; da alquimia à psicologia, florescem interesses experimentais; Aristóteles oferece mapas enciclopédicos. Esse gosto sofisticado rejeita os processos-espetáculo onde um único e agonístico ato liquida todo o jogo: duelos, juramentos, ordália, não dizem o que aconteceu; muito menos respondem a um conhecimento histórico adequado os vereditos emitidos pelo petty jury, como vox patriae ou voix du pays. O saber técnico imposto pelas fontes romanas exige novas máquinas instrutórias; se alguém deve ou não ser punido é assunto cientificamente regulável; em primeiro lugar, devem ser reexaminados os fatos, com métodos adequados à cultura dominante; depois conhecedores do Corpus Iuris ou dos cânones dirão quanto vale in iure o acontecido. Os antigos rituais não distinguiam as duas questões, facti e iuris.24 Durante o Concílio de Verona (1184), a Igreja conclui necessárias providências contra qualquer manifestação cismática, sendo gestado o discurso de fundamentação dos futuros tribunais repressivos do clero (Tribunais do Santo Ofício da Inquisição). Em Verona, o Papa Lúcio III e o Imperador Frederico Barbaroxa, impressionados com os crimes dos cátaros no sul da França (onde eram conhecidos como albigenses) e na Itália setentrional, decidiram ordenar aos bispos que visitassem uma ou duas vezes por ano as paróquias de sua diocese, pessoalmente ou por
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Tornaghi, ob. cit, pp. 470-471. Maier, ob. cit., p. 273. Tornaghi, ob. cit., pp. 474-475. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 577. Leciona Magalhães Gomes Filho que os mecanismos de prova utilizados (duelos, juramentos, ordálias etc.), herdados dos costumes judiciários germânicos, submetiam os con-
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tendores a uma espécie de jogo, através do qual se manifestava a interferência divina na solução do conflito (Gomes Filho, Direito à Prova no Processo Penal, p. 20). Cordero, Guida alla Procedura Penale, p. 40. Cordero, ob. cit., pp. 43-44. 9
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intermédio de legados, e investigassem quando houvesse suspeitas de malefícios ou conspirações e punissem os culpados.25 A Bula Vergentis in senium (1199), de Inocêncio III, propicia o início das modificações processuais. Seu papado (1198-1216) é marcado pelo militarismo e dedicação às Cruzadas, sendo durante seu mandato que a repressão canônica prepara a equiparação das heresias aos crimes de lesa majestade,26 visto o fracasso das medidas repressivas contra os albigenses. No ano de 1215, as deliberações do Concílio de Verona são reafirmadas pelo Concílio de Latrão, o qual estabelece a obrigatoriedade da confissão privada, o caráter supérfluo da acusação formal e a supervalorização das suspeitas e dos indícios. Em 1231, o Imperador Frederico II promulga editos de perseguição aos cátaros, receando divisões no reinado. Em resposta à ação do Imperador, o Papa Gregório IX nomeia inquisidores e reivindica a tarefa repressiva. Neste ano é instituído, sob o cuidado da recém-criada ordem dos Dominicanos, o Tribunal da Inquisição, exsurgindo como modelo refinado e severo de controle social. Após, o Tribunal obtém novos impulsos e legitimações em diversos documentos pontifícios, para ter sua consolidação na Bula Ad Extirpanda, de Inocêncio IV – as estruturas emergem lentamente: no princípio são os delegados do Papa que inquirem; depois entram em cena os dominicanos; primeira aparição em Firenze, 20 de junho de 1227; quando Inocêncio IV emite a bula ‘Ad extirpanda’, 25 de maio de 1252, o aparato assume figuras definitivas.27 Com a Bula de Inocêncio IV institucionaliza-se a arte da tortura como mecanismo de prova. Desta forma, adquirida ao arsenal judiciário, a tortura aí permanece durante cinco séculos.28 Assim, a estrutura inquisitorial origina-se no seio da Igreja Católica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que se convencionou chamar de ‘doutrinas heréticas’. Trata-se, sem dúvida do maior engenho jurídico que o mundo conheceu, e conhece.29
força no final do século XII e início do XIII, fundamentalmente com a eclosão dos movimentos dos cátaros e valdenses.30 Mas é a partir de 1232 que se inicia o processo formal de controle do pensamento ‘herético’, sobretudo com a legitimação fornecida pelos consigli da Igreja Católica. As versões otimizadas do modelo inquisitorial ocorreram principalmente na Península Ibérica no final do século XV, quando da formação do Império de Espanha sob o reinado de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, sendo que as últimas manifestações de processos inquisitoriais ‘puros’, no sentido de sua relação primária com os anseios eclesiásticos, ocorrerão somente do século XIX – Portugal (1821) e Espanha (1834). Na versão espanhola, destina-se aos procedimentos de ‘limpieza’, nome que utilizaram para justificar as perseguições contra mouros e judeus.31 O Tribunal Inquisitorial de Castela e Aragão, representado pelas figuras clássicas de Antônio de Torquemada e Bernardo Guido, foi instrumentalizado pelo Directorium Inquisitorum (1376), redigido pelo inquisidor-geral, o dominicano Nicolau Eymerich – sua edição foi revisada e ampliada, em 1578, por Francisco de La Peña – o qual, agregado ao Malleus Maleficarum (1489), representou uma verdadeira diretriz doutrinária de aplicação do Corpus Iuris Canonici.32 A importância destes dois manuais clericais é imensurável. O Directorium Inquisitorum foi, duran-
1.2.3. A instrumentalização dos Tribunais Mister lembrar que mesmo antes da edição das Bulas Papais existiam esforços no incremento da repressão às doutrinas que ganhavam 25 26 27 28 29 10
Tornaghi, ob. cit., p. 487. Coutinho, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, p. 37. Cordero, ob. cit., p. 46. Idem, p. 50. Coutinho, ob. cit., p. 36.
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Como atacavam dogmas muito respeitados, a primeira resposta que lhes deram foi jogálos na fogueira... Os habitantes de Mérindol e Cabriéres, até então desconhecidos, eram culpados, certamente, por terem nascidos valdenses; era sua única iniqüidade (Voltaire,Tratado sobre a Tolerância, pp. 20- 21). Blaya Pérez, O Castigo do Crime versus o Crime do Castigo, p. 53. Leciona Nilo Batista que, até a reforma gregoriana, a estrutura descentralizada da Igreja produzia um direito eclesiástico inorgânico, pois as compilações de leis eclesiásticas do período consistem em justaposições de materiais normativos. O Corpus Iuris Canonici começa a ser composto no século XII, em Bologna. A alusão à obra de Justiniano é uma das simbolizações do processo histórico de ‘recepção’ do direito romano, dada a (re)descoberta dos livros do Imperador. O Corpus Iuris Canonici é, pois, integrado pelas seguintes coleções: (1) Decretum Gratiani (1140); (2) Decretais de Gergório IX ou Liber Extra (1234); (3) Liber Sextus (1298); (4) Constitutiones Clementinae (1317); (5) Extravagantes de João XXII (1325); (6) Extravagantes Comuns (1484). Lembra Nilo Batista que as primeiras edições privadas do Corpus Iuris Canonici são do início do século XIV, porém a versão impressa oficial data de 1582, vigorando até o século XX, com sua substituição, por Pio X, em 1917, pelo Codex Iuris Canonici (Batista, Matrizes Ibéricas do Sistema Penal brasileiro, pp. 189-193. Michel Foucault demonstra que a reativação do Direito Romano no século XII foi o grande fenômeno em torno e a partir do qual reconstruiu-se o edifício jurídico desagregado após a queda do Império. A ressurreição do Direito Romano forneceu um dos instrumentos técnicos e constitutivos do poder monárquico autoritário, administrativo e, finalmente, absolutista (Foucault, Soberania e Disciplina, pp. 179-191). 11
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te o século XVI, depois da Bíblia (o livro dos salmos data de 1457), um dos primeiros textos a serem impressos. Há edição em Barcelona (1503), seguida de reedições em Roma (1578, 1585 e 1587) e Veneza (1595 e 1607), tornando-se livro de referência. O Malleus Maleficarum, aprovado por Bula de Inocêncio VIII, é direcionado às regiões da Alemanha do Norte e aos territórios que margeavam o Reno, visto serem os locais de atuação da Inquisição romana. Entretanto, para além de um mero instrumental jurídico, os Tribunais forneceram, ao saber oficial, um aparato político otimizado – quando o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, a questão virou política33 –, visto que a excomunhão dos ‘diversos’ ocorria via procedimento inquisitorial. Em realidade, o fato revela a conotação política do processo penal no medievo. Se politicamente o incremento da máquina inquisitorial ganha funcionalidade com a popularização de doutrinas pagãs e do calvinismo e luteranismo, maximizando a persecução daqueles que contrariavam o modus vivendi católico, juridicamente o modelo inquisitorial estrutura uma nova economia de poder cujas manifestações são presentes até os dias atuais, sobretudo por ser um sistema fundado pela busca de uma ‘verdade real’. A ausência de freios à investigação da verdade (real) gera uma verdadeira obsessão do inquisidor; daí ser natural, nessa perpectiva, a utilização do saber do próprio acusado como fonte de informação.34 No Brasil, o Tribunal do Santo Ofício iniciou sua atividade em 1572, permanecendo ativo até a Independência. Apesar de centralizar a persecução no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraíba, chegou a proceder prisões até no Amazonas – na verdade, o Santo Ofício interferiu profundamente na vida colonial, durante mais de dois séculos, perseguindo portugueses, brasileiros, índios e africanos nos quatro cantos do Brasil.35 O fato é explicado pela instalação deste aparato judiciário-clerical em Portugal no ano de 1536, tendo lá perdurado até 1821, com a ruptura imposta pela revolução constitucionalista. Gestada na Lei da Boa-Razão (1769), que seculariza o direito pela restrição à soberania das fontes do Direito Canônico, e na reforma pombalina, que cria condições de formação de um novo caldo de cultura,36 a cisão com o mode-
lo inquisitorial nas terras lusitanas culmina com a insurreição do Porto de 1820 e o início do processo codificador. Com o ‘achamento’37 e a colonização, nota-se claramente a transposição desta máquina judiciária para o Brasil, a qual possibilitou não apenas a repressão política dos ‘hereges’, mas o controle dos dissidentes políticos e das classes subalternas,38 inclusive com o genocídio dos povos nativos.39 Se as Ordenações Afonsinas (1446) e Manuelinas (1521) não tiveram ampla aplicação na terra brasilis, as Ordenações Filipinas (1603) representaram o complexo legislativo do modelo jurídico-penal da Inquisição. No Livro V das Ordenações Filipinas encontra-se a codificação penal e processual penal da Colônia, que refletia o espírito présecular de ausência de distinção entre direito, moral e religião.40 A palavra pecado abunda nos tipos penais e os crimes contra a fé católica eram penalizados pelo Estado sem ter uma separação efetiva entre as atribuições de um ou de outro no que diz respeito ao ato de punir.41 Mister notar a força do estatuto repressivo inquisitorial que perdura, mesmo após a proclamação da Independência (1822) e a outorga da Constituição de 1824, até o Código Penal de 1830 e o Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832 – em 1823 foi editada Lei que mantinha a vigência das Ordenações Filipinas. A ruptura com o jusnaturalismo teológico, que ocorreu em 1830 com a publicação do estatuto liberal, representa o amadurecimento do processo de reforma penal que o século XIX vai dinamizar no Ocidente.42-43 Fundamental frisar que as fragmentações históricas aqui realizadas sobre a Inquisição, o inquisitorialismo e os Tribunais do Santo Ofício têm como única função a elaboração de um motivo histórico-con-
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Boff, Leonardo, ob. cit., 13. Gomes Filho, ob. cit., p. 21. Fernandes, A Inquisição e as etnias, p. 232.” Sobre o tema, conferir Gauer, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772, pp. 63-86.
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O termo é utilizado por Bornheim, A Descoberta do Homem e do Mundo, p. 18. Nesse sentido, conferir Novinsky, Inquisição: rol dos culpados, pp. VII-XIX; e Novinsky & Carneiro (orgs.), Inquisição: Ensaios sobre Mentalidades, Heresias e Arte, pp. 03-10, 97159, 337-439. Ver Silva Filho, Da ‘Invasão’ da América aos Sistemas Penais de Hoje, pp. 279-329. Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, p. 56. Silva, Do império da Lei às Grades da Cidade, p. 82. Silva, ob. cit., p. 85. Sobre a evolução histórica do direito penal e processual penal brasileiro, seu vínculo com a estrutura inquisitiva, bem como a influência do pensamento liberal lusitano nas reformas, conferir Pierangelli, Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas, pp. 21212; Pierangelli, Códigos Penais do Brasil: evolução histórica, pp. 41-93; Thompson, Escorço histórico do Direito Criminal Luso-brasileiro, pp. 77-132; Batista, ob. cit., pp. 163270; Neder, Iluminismo Jurídico-penal Luso-brasileiro, pp. 101-200; Gauer, A construção do Estado-nação no Brasil, pp. 147-198. 13
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ceitual, um recurso interpretativo sem qualquer pretensão de estabelecer uma linearidade histórica razoavelmente estável. Até porque, como foi sublinhado desde o início, o medievo, e a Inquisição como o principal foco de análise no texto, constitui um terreno volátil de alta complexidade, não podendo ser enclausurado em modelos academicistas cerrados. Sequer os Tribunais do Santo Ofício e o próprio ‘pensamento oficial’ da Igreja Católica são passíveis desta redução, visto a heterogeneidade e a falta de harmonia das práticas e das doutrinas. Importante aqui é ressaltar, na construção deste modelo processual persecutório de investigação e busca (conquista) da verdade juridicamente válida, sua proliferação em dimensões extraordinárias,44 muito em decorrência de uma característica trans-histórica e de sua alta funcionalidade para manutenção/legitimação de máquinas judiciárias autoritárias fundadas no signo do defensivismo.
fato (pré)determinado pela lei penal válida mas, ao contrário, seria dirigida à personalidade da pessoa classificada como perversa, perigosa, herética. A conduta imoral ou anti-social e o resultado produzido seriam frutos da exteriorização da maldade do autor. Esta concepção foi traduzida na história da humanidade em inúmeras versões, das doutrinas moralistas que identificam no crime um pecado às naturalistas que vêem no crime um sinal de anormalidade ou patologia psicofísica do sujeito, até aquelas pragmáticas e utilitaristas que a este conferem relevância somente quando se mostra como sintoma especial e alarmante da periculosidade do seu autor.46 No medievo, o instrumental normativo de definição do desvio é construído com a coligação entre as noções de direito e moral, perfazendo uma estrutura híbrida de ilícito parcialmente civil (terreno) e parcialmente eclesiástico, cuja ofensa manifesta-se simultaneamente contra Deus e o Príncipe.47 Desta natureza ‘mista’ do desvio punível obtém-se o tipo de lesa-majestade divina. A classificação do desviante como herege indica a tendência de criminalização do ser do ‘Outro’ que se recusa a repetir o discurso da verdade. Assim, o herege passa a ser fundamentalmente um opositor de consciência, um divulgador de verdades inadmissíveis, pois geradas fora da concepção teocêntrica e monoteísta. Nas palavras de Francisco de La Peña, comentando a obra de Eymerich, o crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma.48 Na configuração dos elementos indicadores da incidência do sistema repressivo sob o desvio, a concepção substancialista é conseqüência lógica desta fusão entre direito e moral e/ou entre direito e natureza. Reduzem-se os níveis de garantias fornecidos pela proibição formal da conduta representada pelo princípio da legalidade (mala prohibita), substituindo-o pela noção de autor/conduta intrinsecamente mau/má (mala in se). No interior do modelo antigarantista toda e qualquer conduta perversa é tida como ilícita, visto que as zonas de valoração moral e jurídica são simétricas. Logo, se a sanção no modelo garantista é uma resposta jurídica à violação da norma (quia prohibitum), no modelo inquisitivo traveste-se em resposta quia peccatum, punindo-se o infrator
1.2.4. A estrutura jurídico-penal A aproximação entre o incipiente Estado moderno e a Igreja, esta fornecendo legitimidade (jusnaturalismo teológico) ao poder do soberano e aquele proporcionando a utilização dos quadros burocráticos e administrativos, consolida um modelo jurídico-político no qual a intolerância – modelo de eliminação da alteridade pela submissão do ‘Outro’ ao ‘Um’ – é uma das principais características. A estrutura totalitária do modelo penal inquisitivo possibilita a conformação de um paradigma verificável em inúmeros modelos de direito e processo penal: dos esquemas pré-modernos da Inquisição às modernas teorias da prevenção especial, ou da defesa social, ou do tipo normativo de autor, nas suas múltiplas variantes eticistas, antropológicas, decisionistas, eficientistas.45 Ferrajoli, para caracterizar a epistemologia inquisitiva, propõe a identificação de elementos assimétricos ao da epistemologia garantista que poderiam ser encontrados na definição normativa (direito penal), na comprovação judicial do desvio penalmente relevante (processo penal) e nas formas de sanção (execução da pena). O primeiro aspecto da epistemologia inquisitiva seria uma concepção ontológica de delito. A análise do sistema penal não recairia sobre
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Nesse sentido, fundamental verificar Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 5378 e Coutinho, ob. cit., pp. 36-39. Ferrajoli, ob. cit., p. 13.
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Ferrajoli, ob. cit., p. 14. Segundo o Malleus Maleficarum, a heresia não poderia ser tratada como crime puro e simples, mas de crime parcialmente eclesiástico e parcialmente civil (Kramer & Sprenger, O Martelo das Feiticeiras, p. 444). Eymerich, ob. cit., p. 138. 15
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não pelo resultado danoso produzido, mas por quão perigoso ou perverso é. Da conduta comissiva ou omissiva exterior, o sistema repressivo invade a interioridade e a alma do autor. O segundo elemento da epistemologia inquisitiva é o decisionismo processual, tanto no que diz respeito ao juízo quanto à execução da pena. O juízo inquisitorial abdica da cognição e, como efeito da falta de critérios objetivos, subjetiva a decisão e a aplicação/execução da pena desde uma perspectiva potestativa. Segundo Ferrajoli,49 o efeito desta subjetivação é a perversão do processo, dirigindo-o antes da comprovação de fatos objetivos à análise da interioridade da pessoa julgada; antes da constatação processual sustentada empiricamente a convencimentos incontroláveis do julgador sustentados por signos de ‘verdade material’. Em matéria processual penal, a tensão entre os tipos ideais indica a dicotomia entre os sistemas acusatório e inquisitivo. No que diz ao direito penal material, os modelos capacitam versões de direito penal do fato-crime e direito penal do autor, tendendo a direcionar políticocriminalmente a construção de modelos minimalistas e maximalistas. A caracterização dos modelos processuais será realizada de acordo com a posição do magistrado no processo. No sistema acusatório, regido pelo princípio do juiz espectador, o magistrado é um sujeito passivo tanto no que concerne à iniciativa da ação quanto à gestão da prova, estando, em conseqüência, rigidamente separado das partes, principalmente do órgão acusador, para assegurar a imparcialidade.50 Neste juízo oral e público, a decisão cabe ao juiz segundo seu livre convencimento, sendo impossível, pois, qualquer manifestação ex officio para instauração do processo e/ou investigação de fatos a serem valorados futuramente como prova. Assim, a radical separação entre juiz e acusação é o mais importante de todos os elementos do modelo acusatório. Por outro lado, o sistema processual no qual o juiz procede à busca e valoração das provas, chegando à decisão após instrução escrita e secreta, denomina-se sistema inquisitivo.51 Alerta Tornaghi52 que, apesar de no modelo ideal o sistema inquisitório ser caracterizado pela forma escrita e sigilosa, essas formas não
lhe são essenciais, pois o que distingue a forma acusatória da inquisitiva é que, na primeira, as funções de acusar, defender e julgar estão atribuídas a três órgãos diferentes (acusador, defensor e juiz), sendo que no segundo modelo as três funções estão confiadas a um mesmo órgão – en el proceso inquisitorio se considera al juez como una triple persona.53 Todavia, apesar da importância de um processo de partes na adjetivação dos sistemas, a gestão da prova ainda é o elemento que melhor o define. Claus Roxin, avaliando a posição jurídica dos sujeitos processuais, sustenta que o processo inquisitivo é baseado en el principio de que la investigación de la verdad está em manos del juez: él reúne, desde el principio en material probatório, interroga al imputado, dirige el juicio y dicta la sentencia.54 Barreiros,55 ao traçar as características dos sistemas, sustenta que no sistema acusatório o julgador é representado por assembléia ou corpo de jurados populares; o juiz é árbitro sem iniciativa na investigação; a ação é popular (delitos públicos) ou compete ao ofendido (delitos privados); o processo é oral, público e contraditório; a prova é valorada livremente; a sentença faz coisa julgada; e a regra nas medidas cautelares é a liberdade do argüido. Na antípoda, o julgador é permanente; o juiz investiga, dirige, acusa e julga numa posição de superioridade face ao imputado; a acusação procede ex officio, admitindo-se denúncia secreta; o processo é escrito, secreto e não-contraditório; a prova é legalmente tarifada; a sentença não faz coisa julgada; e a característica das medidas de cautela é o aprisionamento. Dessa forma, enquanto ao sistema acusatório convém um juiz espectador, voltado sobretudo à objetiva e imparcial avaliação dos fatos, e portanto mais sábio que ilustrado, o rito inquisitório exige um juiz ator, representante do interesse punitivo, e por isso legalista, versado nos procedimentos e dotado de capacidade investigativa.56 Trata-se, como frisa Ferrajoli, de uma opção entre juízescidadãos e juízes-magistrados, respectivamente. O sistema inquisitivo, portanto, exclui o contraditório, limita a ampla defesa e obstaculiza, quando não inviabiliza, a presunção de inocência, cuja comissividade é o postulado básico do garantismo processual.57 Recorde-se que no processo penal inquisitório a insuficiência
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53 54 55 56 57
51 52 16
Ferrajoli, ob. cit., pp. 15-16. Segundo Luigi Ferrajoli, a postura imparcial dos julgadores nos modelos acusatórios resulta caracterizada pela sua posição fora do sistema político e pela sua posição fora dos interesses particulares das pessoas em causa (Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, p. 293). Interessante descrição dos sistemas em Lima, A Tradição Inquisitorial, p. 68. Tornaghi, ob. cit., p. 465.
Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 372. Roxin, Derecho Procesal Penal, p. 122. Barreiros, Processo Penal, p. 12. Ferrajoli, ob. cit., p. 588. Sobre a importância do princípio da presunção de inocência no processo penal garantista, conferir Ibáñez, Garantismo y Proceso Penal, pp. 52-55. 17
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de provas e sua conseqüente dubiedade não gerava imperiosa absolvição; mas, ao contrário, o mero indício equivalia a uma semi-prova, que comportava um juízo de semi-culpabilidade e uma semi-condenação.58 De forma mais elaborada, seguindo a trilha do processualista italiano Franco Cordero,59 pode-se identificar o estilo inquisitivo a partir de duas constatações: (1a) a sobrevalorização da imputação em relação à prova, configurando o primado das hipóteses sobre os fatos; e (2a) a conversão do processo em psicoscopía, ao estabelecer rito fatigante e isento de forma rígida. O modelo estabelece, pois, no magistrado, quadros mentais paranóicos e tendências policialescas, visto que, ao invés de o juiz se convencer através da prova careada para os autos, inversamente, a prova servia para demonstrar o acerto da imputação formulada pelo juiz-inquisidor.60 Conclusão idêntica é a de Roxin, para quem a desvantagem fatal do processo inquisitivo, resultado da união dos papéis processuais de perseguidor penal e sentenciante na pessoa do juiz, significa uma sobreexigencia psicológica: el que por si mismo há reunido el material de cargo, por lo general, ya no resulta tan imparcial frente al resultado de la investigación como es indispensable para dictar una sentencia fundada em valoraciones equitativas.61 Assim, o réu, longe de ser um sujeito (de direito) processual, é um mero objeto de investigação: o imputado detém com exclusividade a verdade histórica (material) – o inquisidor investiga, procurando buscar signos do delito, e trabalho sobre os acusados, porque, culpados ou inocentes, sabem tudo o que se requer para decisões perfeitas; tudo se resume a fazê-lo dizer.62 E se é o único detentor de uma ‘verdade’ não mais passível de experimentação empírica, ou ainda de uma verdade unicamente sua, necessária seja exposta, sem reservas – o estilo inquisitório multiplica os fluxos verbais: é preciso que o imputado fale; o processo se transforma em sonda psíquica. O inquisidor trabalha livremente, indiferente aos limites legais, mas recolhe toda sílaba: a obsessão micro-analítica desenvolve um formalismo gráfico; nenhum fato é realmente um fato enquanto não figure no papel.63
Os dois extremos da resposta processual penal descritos apresentam, inexoravelmente, escopos diferenciados. O modelo garantista acusatório vincula-se à racionalidade do juízo, tendo como objetivo principal a máxima tutela das liberdades contra os poderes. O modelo irracionalista inquisitivo é isento de instrumentos de contenção à intervenção do poder punitivo, gerando sistema incerto e ilimitado. A finalidade das diferentes sistemáticas é relativa à opção em sacrificar ou não a liberdade individual frente à possível inaplicabilidade da lei penal. O pensamento penal clássico antecipou as assertivas do garantismo penal contemporâneo com as lições de Pietro Verri, cujo ensinamento demonstrava que mais valeria perdoar vinte culpados do que sacrificar um inocente,64 e de Cesare de Beccaria, ao propor que um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida [contrato social].65 A propósito, quando se trata de confrontar a composição dos sistemas com o núcleo de garantias, urge lembrar as pertinentes e instigantes observações de Montero Aroca, para quem el denominado proceso inquisitivo no fue y, obviamente, no puede ser, un verdadero proceso. Si éste se identifica como actus trium personarum, en el que ante un tercero imparcial comparecen dos partes parciales, situadas en pie de igualdad y con plena contradicción, y plantean un conflicto para que aquél lo solucione actuando el Derecho objetivo, algunos de los caracteres indicados como propios del sistema inquisitivo llevan ineludiblemente a la conclusión de que ese sistema no puede permitir la existencia de un verdadero proceso. Proceso inquisitivo se resuelve así en una contradictio in termins.66
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Quanto ao regime probatório da Inquisição e a formulação de juízos de semi-culpabilidade pelos indícios, verificar Foucault, Vigiar e Punir, pp. 11-61. Cordero, ob. cit., p. 51. Jardim, Ação Penal Pública, p. 24. Roxin, ob. cit., p. 122. Cordero, Procedura Penale, p. 580. Cordero, ob. cit., p. 329.
1.2.5. A barbárie jurídica: os mecanismos do método inquisitorial A percepção do mundo até o século XV, fundamentalmente até o ‘achamento’ e conquista do Novo Mundo, é caracterizada pelo eurocentrismo, estruturada desde uma perspectiva teocêntrica, difundida no jurídico pelos jusnaturalismos de Tomás de Aquino e Agostinho. 64 65 66
Verri, Observações sobre a Tortura, p. 106. Beccaria, Dos Delitos e das Penas, p. 65. Montero Aroca, Princípios del Proceso Penal, pp. 28-29. No mesmo sentido, Montero Aroca, El Derecho Procesal en el Siglo XX, pp. 106-107. 19
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Bartolomé Bennassar percebe que no final dos quatrocentos existia uma visão ‘científica’ do mundo, cujos detentores eram os geógrafos, matemáticos e filósofos, a qual foi progressivamente corrigida pela experiência dos marinheiros e cartógrafos; e uma visão ‘mítica’, elaborada a partir dos textos sacros, fornecida principalmente pelas leituras literais e não-simbólicas da Bíblia e por um conjunto de lendas e relatos fantásticos de tradições que constituíam uma chave de leitura do mundo.67 A crença na divindade e o misticismo, aliada às difíceis condições de vida, propicia a dicotomização da realidade entre o sagrado (santo, puro, límpido e saudável) e o profano (demoníaco, perverso, negro e pestilento). Tal fragmentação maniqueísta institucionaliza e legitima um modelo político de controle social estruturado em termos de eliminação, estabelecendo verdadeira ‘guerra santa’ contra a heresia. O processo judiciário envolto pelas idéias confessionais conforma um corpo unívoco altamente eficaz à persecução, singularmente operacionalizado na busca da regina probatio: a confissão – a confissão é prova privilegiada e resolve pela raiz qualquer conflito probatório.68 Considerada a prova suprema, a confissão assemelha-se ao ato privado no qual o pecador admite a falta, sujeitando-se aos seus efeitos visto o escopo de redenção. O processo, pois, na incessante conquista da verdade histórica cujo detentor é o herege, transforma-se em um afazer terapêutico.69 Diferentemente do modelo acusatório, qualquer informação sigilosa poderia gerar um processo. Lembra Feuerbach que na estrutura inquisitiva quatro poderiam ser as fontes para obtenção de uma base de investigação: a percepção do julgador; a denúncia oral ou escrita (testemunhos, suspeitas ou indícios); o rumor público; e a auto-denúncia.70 Desta forma, o magistrado, dotado da informação, assume uma postura persecutória e atua na produção da prova, daí serem, por exemplo, os interrogatórios sugestivos, monótonos e cansativos. O processo inquisitivo é infalível, visto ser o resultado previamente determinado pelo próprio juiz. A sentença é potestativa e plena, e, na maioria das vezes, não admite recurso, pois, se sua legitimidade é divina, não poder haver contradita, ou seja, o ato é insuscetível de erro. Dessa
forma, o Juiz-acusador formula uma hipótese e realiza a verificação. A verdade admitida como ‘adaequatio rei et intellectus’ é atingível e deve ser alcançada. Esta verdade, verdade material, já existente como hipótese na mente do Juizacusador, deve, por outro lado, ser atingida solipsisticamente. O contraditório perturba esta investigação. A poluição da prova daquela verdade já postulada é o maior de todos os perigos. Daí resulta o sigilo do processo, a ausência do indiciado ou do seu defensor na aquisição da prova que poderá servir para fundamentar a sentença de condenação.71 Percebe Pietro Verri72 que a lógica orientadora das práticas inquisitoriais pode ser expressa pelo princípio no qual é plenamente aceitável sacrificar ao horror dos males um homem apenas suspeito em prol da defesa social. A identidade entre juiz e acusador e a sacralização do procedimento em sigilo minimizam sobremaneira as garantias do imputado. Desta forma, aliado à ausência de plena defesa e à necessidade da confissão, o acusado é reduzido a objeto privilegiado do saber – o instrumento inquisitório desenvolve um teorema óbvio: culpado ou não, o indiciado é detentor das verdades históricas; tenha cometido ou não o fato; nos dois casos, o acontecido constitui um dado indelével, com as respectivas memórias; se ele as deixasse transparecer, todas as questões seriam liquidadas com certeza; basta que o inquisidor entre na sua cabeça. Os juízos tornam-se psicoscopia.73 Desde esta lógica defensivista, o labor jurídico importa clara manifestação de profilaxia social: os juízes, que no século passado condenavam as feiticeiras e os magos à fogueira, também acreditavam estar limpando a terra de muitos inimigos ferozes.74 O modelo estruturado na negação do contraditório e na fusão dos papéis de acusação e julgamento desenvolve, como salientado, um primado das hipóteses sobre os fatos. Dotado de uma hipótese, o inquisidor procede à busca incessante de sua afirmação, independentemente do material fático que lhe é apresentado – a solidão na qual trabalham os inquisidores, nunca expostos ao contraditório, alheios à dialética, pode ser útil ao trabalho policialesco, mas desenvolve quadros mentais paranóicos. Poderíamos chamar ‘primado das hipóteses sobre
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71 72 73 74
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Bennassar, Dos Mundos Fechados à Abertura do Mundo, p. 86. Bettiol, & Bettiol, Instituzioni di Diritto e Procedura Penale, p. 130. Cordero, Guida alla Procedura Penale, p. 47. Feuerbach, ob. cit., pp. 373-374.
Bettiol, & Bettiol, ob. cit., p. 129. Verri, ob. cit., p. 06. Cordero, ob. cit., pp. 48-49. Verri, ob. cit., p. 06. 21
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os fatos’.75 Lembre-se que o trabalho do inquisidor era orientado por regras do Direito canônico que impunham instrumentos de gerenciamento, produção e valoração da prova, cujo resultado é apenas a ratificação das hipóteses previamente acordadas. Eficiente e cômoda, portanto, a utilização da tortura como mecanismo de cognição. A propósito, convém assinalar que a Inquisição não inventou a tortura, mas o meio quase perfeito para justificá-la: os mecanismos do sistema inquisitivo.76 Este sistema de distribuição de dor, no qual a tortura é instrumento configurador, será transnacionalizado por todos os povos de cultura jurídica romano-germânica, inclusive a América Latina com processos de evangelização.77
de, o descentramento do homem e inexoravelmente o questionamento de Deus – se o homem é feito à Sua imagem e semelhança, deveria ocupar papel privilegiado na geografia universal. Não obstante a revolução copernicana, Colombo, chancelado pela própria Igreja, comprova a tese heliocêntrica e revela a existência de culturas cujos mitos demonstravam um modus vivendi totalmente outro. Alheios à servidão tirânica imposta pela ordem medieval, nascem povos em pleno ‘estado de natureza’. Para Novaes, o momento das descobertas foi também o momento das rupturas. Ao lado das invenções técnicas, que permitiram as aventuranças dos navegantes, transformações nas estruturas materiais e mentais deram início ao que a filosofia e a história chamam de ‘libertação do indivíduo’, tirando-o do anonimato medieval: ‘divinização do homem e humanização de Deus’. Com o nascimento da idéia de indivíduo, surge um novo homem que se pretende autônomo. É essa autonomia que permite a construção, por meio da experiência, de uma nova ordem econômica e política [e jurídica] que se contrapõe, no plano das idéias, ao caráter ideológico dominante.79 A experiência é altamente relevante, pois o homem, ao voltar-se a si mesmo, adquire novas concepções sobre sua existência, iniciando gradual abandono da metafísica cosmológica e teológica. O pensamento hipostasiado, voltado para além de physis, é questionado. No direito, o jusnaturalismo teológico começa a ceder terreno a uma justificativa antropológica, num verdadeiro giro interpretativo.
1.3. O processo de secularização e a invenção da tolerância 1.3.1. A conquista do homem e do mundo Até o final do século XV, os signos do mundo ocidental eram definidos desde a perspectiva teo e eurocêntrica; a terra figurava como centro do universo e o homem, centro de todas as coisas, vislumbrava-se como imagem e semelhança de Deus. O saber era (re)produzido no interior dos monastérios, sendo acessado apenas pelos iniciados, e a cultura era devota à divindade, cuja existência era concebível como una/indivisível. Todavia, o processo de conhecimento, fruto da experiência do Novo Mundo, corrompe as sólidas bases nas quais a estrutura do poder estava alicerçada. A primeira ferida narcísica da cultura ocidental – o descentramento da Terra operado por Copérnico78 –, indica, em realida75 76 77 78
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Cordero, ob. cit., p. 51. Coutinho, ob. cit., p. 39. Gerd Bornheim indaga o que buscava a ‘evangelização’. Sugere que os procedimentos evangelizadores abrigavam métodos calculados de ‘descaracterização’, sendo plenamente passíveis de sinonímia com a palavra genocídio (Bornheim, ob. cit., p. 24). Freud, em um ensaio publicado em 1917, na Hungria, enunciou as graves ofensas que a investigação científica produzira no narcisismo geral (amor próprio da Humanidade). Segundo o autor, o homem, seguindo suas impressões sensoriais, acreditava que a Terra, sua sede, se encontrava em repouso no centro do Universo, e o Sol, a Lua e os planetas giravam ao seu redor – la situación central de la Tierra le era garantia de su función predominante en el Universo, y le parecia muy de acuerdo con su tendência a sentirse dueño y señor del Mundo (Freud, Una Dificultad del Psicoanalisis, p. 2.434). Com os trabalhos de Copérnico, ocorre a destruição desta ‘ilusão narcisista’, e o amor proprio humano sufrió su primera ofensa: la ofensa cosmológica (Freud, ob. cit., p. 2.434).
79
Ao longo da evolução cultural, o homem, segundo o psicanalista, auto-intitulou-se soberano de todos os seres que habitavam a Terra, negou-lhes razão e atribuiu-se uma alma imortal e uma origem divina que lhe permitiu romper os laços com a animalidade. No entanto, as investigações de Darwin puseram fim à ‘exaltação do homem’: el hombre no es nada distinto del animal ni algo mejor que él; procede de la escala zoológica y está proximamente emparentado a unas espécies, y más lejanamente, a otras. Sus adquisiciones posteriores no han logrado borrar los testimónios de su equiparación, dados tanto en su constitución física como en sus disposiciones anímicas. Esta es la segunda ofensa – la ofensa biológica – inferida al narcisismo humano (Freud, ob. cit., p. 2.434). A última, e segundo Freud mais sensível, ferida narcísea seria a de natureza psicológica. Com a noção de inconsciente, o reduto da superioridade humana, a consciência, é destronado. Para Freud, a consciência não é soberana na estrutura psíquica do indivíduo e o eu não seria autônomo no funcionamento psíquico. Desta maneira, o descentramento do sujeito implicaria pelo menos três descentramentos: o descentramento da consciência para o inconsciente; o descentramento do eu para o outro; e o descentramento da consciência, do eu e do inconsciente para as pulsões (Birman, Estilo e Modernidade em Psicanálise, pp. 19-20). Novaes, Experiência e Destino, p. 10. 23
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Apesar da heresia metodológica, visto que a afirmativa foi elaborada para outro período histórico em conseqüência de outra ‘revolução copernicana’, ousa-se colocar na boca dos humanistas e racionalistas da época: tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado.80 Na redescoberta do homem como medida de todas as coisas, com o ingresso do ‘Novo Mundo’ no cenário histórico, e com a visualização de um novo estado de coisas no qual liberdade e igualdade se opõem à servidão, o impulso da laicização das ciências torna o processo secularizador inevitável. Da exclusão do diverso nasce a idéia de tolerância, da barbárie inquisitiva afloram teorias civilizatórias. Surge o racionalismo, e a capacidade crítica do homem é revelada. Segundo Adauto Novaes, o mundo das descobertas mostra, de alguma maneira, que a política européia, dominada pela Escolástica, pensava de olhos fechados: por meio da experiência concreta, além da descoberta do mundo, o homem também se descobre, funda a filosofia da autoconsciência, isto é, põe no lugar do ser ‘unicamente pensado’, no lugar de Deus, do ser supremo e último de toda a filosofia escolástica, o ser pensante, o Eu, o espírito autoconsciente. A revolução inaugurada no século XVI consiste na derrocada da ‘bela unidade medieval’, que tinha no divino o mediador de todas as coisas.81
relações sociais e de poder numa verticalidade descaracterizante decorrente da divisão e da estratificação. A pluralidade, o politeísmo e a heterodoxidade cultural colocam o homem diante do seu próprio ‘eu’, pois, se a descoberta da ‘liberdade natural’ abre novos horizontes e perspectivas, representa também a constatação da condição servil, covarde, de doação total ao ‘Um’. Proporciona, fundamentalmente, a percepção de que a estrutura social vigente não era natural e eterna como queriam os advogados da ordem, e fatalmente, sendo artificial, poderia ser modificada. Na construção da metodologia da ‘transparência’, como um dos efeitos proporcionados pela experiência das descobertas, Bornheim desvenda o impacto do encontro com a alteridade: o contraste é o outro da sociedade, no reverso que constrói a utopia; e é o outro do homem, no reverso que cria o bom selvagem.83 Salutar neste momento perceber a importância histórica de O Discurso da servidão voluntária ou O contra Um (1548), do jovem estudante de direito Etienne la Boètie. No artigo notam-se as primeiras manifestações da modernidade contra os regimes autoritários, com como a presença da idéia que será revolucionária e propulsora dos movimentos iluministas: a liberdade inata do humano. Em Boètie procurar-se-á identificar o sentido moderno do termo liberdade: liberdade em sentido negativo, que reflete um estado que se opõe a qualquer forma de escravidão; liberdade como recusa à servidão, como ausência de impedimentos externos para satisfação dos desejos. Não obstante a trans-historicidade do pensamento boètiano,84 impossível seria deslocá-lo da influência de seu século: a primeira metade dos quinhentos. Pierre Clastres, ao comentar a obra do filósofo, visualiza com perfeição o impacto da ‘experiência’ no pensamento do homem europeu e, em conseqüência, na estrutura doutrinária daquele que lançou as bases filosóficas da teoria do direito de resistên-
1.3.2. A natureza liberta: oposição à servidão Se a conquista do ‘paraíso terrestre’ – expressão utilizada por Colombo em sua terceira viagem à América – gerou profunda crise no pensamento medieval, proporcionou, outrossim, o nascimento de idéias direcionadas à construção do processo civilizatório. O descobrimento representou não somente a criação de uma experiência inédita de universalidade mas, inclusive, uma universalidade que soube deixar-se perpassar pela prática da invenção de um espírito crítico também ele inédito.82 A descoberta das Índias Ocidentais possibilita o renascer da liberdade do homem em seu estado primitivo. O velho homem europeu, sujeitado à opressão, depara-se com uma nova postura deontológica que, apesar de conhecer o sentido da autoridade, não estrutura suas 80 81 82 24
Marx, & Engels, Manifesto do Partido Comunista, p. 63. Novaes, ob. cit., p. 08. Bornheim, A Descoberta do Homem e do Mundo, p. 20.
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Bornheim, ob. cit., p. 36. Pierre Clastres, Claude Lefort e Marilena Chauí, nos comentários ao Discours, sustentam a trans-historicidade do pensamento de Boètie. Afirma Clastres que a história local e momentânea é, quando muito, para Boètie, oportunidade e pretexto, visto colocar uma questão totalmente livre porque absolutamente desprendida de sua territorialidade social e política – a construção de Boètie impede qualquer tentativa de aprisioná-lo no século; não é um pensamento familiar, na medida em que se desenvolve precisamente contra o que há de tranqüilizador na evidência naturalmente inerente a todo pensamento familiar. Pensamento solitário, pois, esse do Discours, pensamento rigoroso, que só se nutre de seu próprio movimento, de sua própria lógica (Clastres, Liberdade, Mau Encontro, Inominável, p. 118). 25
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cia à opressão. Lembra Clastres que parece-nos esquecer com muita freqüência que se o século XVI é o da Renascença da cultura da Antigüidade greco-romana, ele também assiste à produção de um acontecimento que, por seu alcance, vai transformar radicalmente a figura do Ocidente, a saber, a descoberta e a conquista do Novo Mundo. Retorno aos antigos de Atenas e de Roma, é claro, mas também irrupção daquilo que até então não existia, a América. Pode-se medir a fascinação que a descoberta do continente desconhecido exerceu sobre a Europa ocidental pela extrema rapidez de difusão de todas as notícias provindas de ‘além-mar’.85 E é em forma de indagação que Boètie, ao aludir à América, nomina ‘o’ problema, fazendo-se um homem de seu tempo: a propósito, se porventura nascesse hoje alguma gente novinha, nem acostumada à sujeição, nem atraída pela liberdade, que de uma e de outra nem mesmo o nome soubesse, se lhe propusessem ser servos ou viver livres, com que leis concordaria?86 A condição natural do homem seria a liberdade. Sustenta o autor que não haveria dúvida na aceitação espontânea da liberdade em detrimento do servir. Aliada à sua natureza livre, ao homem corresponderiam as virtudes da igualdade e da fraternidade.87 Desta forma, no pensamento de Boètie estão presentes os pilares fundamentais da modernidade. No entanto, questiona o autor que fascínio, que imperfeição, que infortúnio é esse a cujo jugo o homem, mesmo sendo livre em sua natureza, se submete, enfeitiçado e encantado pelo nome de apenas ‘Um’, no mais das vezes o mais fraco e covarde da nação. Que mal induziria o ser humano a recusar sua própria liberdade, colocando-se em posição de submissão, sendo que não é preciso sequer rebelar-se para (re)conquistar sua condição88 – decidi não mais servir e sereis livres; não pretendo que o empurreis ou sacudais, somente não mais o sustentai, e o
vereis como um grande colosso, de quem subtraiu-se a base, desmanchar-se com seu próprio peso e rebentar-se.89 Ao sustentar a historicidade da servidão, o jovem instaura o germe de um pensamento político revolucionário, radicalmente oposto ao do estado de coisas imperante. A naturalidade do servir advinha, segundo a tradição, da divisão social hierarquizada. O homem nascia servo e assim morreria porque estava determinado pela Igreja, detentora do local da fala interpretativa das palavras do Senhor. Ao reconhecer o sentido histórico da dominação, Boètie indica sua momentaneidade e abre espaço para o rastreamento do ponto de conversão da liberdade em servidão; e aqui, novamente, encontra-se sedimentada a base da ilustração, mais especificamente a noção de estado de natureza. Com entendimento extremamente peculiar, Boètie avalia o processo de desnaturação. Os homens, como os animais, nasceriam livres, iguais e fraternos entre si. Entretanto, há o momento da ruptura, da substituição do estado ideal de liberdade pelo servil: que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?90 A perda do estado natural é representada no ‘mau encontro’ do homem com o Estado, notadamente na estrutura hierarquizada dos governos monárquicos. Boètie intui a noção de estado de natureza, pois somente na avaliação da ausência do Estado é que se visualiza sociedades primitivas igualitárias, isentas de relações formais de poder. Interessante, portanto, a percepção do autor quanto à estrutura social e à virtude do homem, visto ser desde esta ótica a fundação dos pressupostos basilares do garantismo clássico: livre-arbítrio e o direito de resistência.91 Esquecido por longo tempo – e o ‘ostracismo forçado’ é uma das mais pérfidas formas de combate –, o Discours de Boètie voltaria ao cenário político da França às vésperas da Revolução, transformado em panfleto por Jean Paul Marat e recebendo versões pacifistas com Tolstói.
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26
Clastres, ob. cit., p. 119. Boètie, Discurso da Servidão Voluntária, p. 19. Mas, por certo se há algo claro e notório na natureza, e ao qual não se pode ser cego é que a natureza, ministra de Deus e governante do homem, fez-nos todos da mesma forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para que nos entreconhecêssemos todos como companheiros, ou melhor, como irmãos (Boètie, ob. cit., p. 17). Nota Novaes que Boètie mostra como o povo é parte do poder, como atua na fabricação do tirano, e que entre o tirano e o povo não existe necessariamente uma relação de antagonismo pois o povo faz corpo com o tirano (daí vem sua força), produzindo e reproduzindo a dominação (Novaes, ob. cit., p. 13).
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Novaes, ob. cit., p. 16. Clastres, ob. cit., p. 19. Apesar de ser considerado um dos maiores ícones na estruturação teórica do direito de resistência, alguns autores da época já levantavam o problema da desobediência. Entre eles, pode ser citado o pensador italiano Colucio Salutati (1331 – 1406). Em seu tratado Sobre o Tirano, já indagava se é lícito insurgir-se contra o senhor ou o príncipe que, ainda tendo direito de governar, tenha por soberba começado a abusar do poder (Salutati, O Direito de Resistência, p. 76). 27
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Mister ainda, para encaminhar a próxima tese, verificar, desde outro local, um mito fundante do discurso da modernidade: o ‘bom selvagem’. O método da transparência permite corrigir o erro que denuncia o homem moderno como bom selvagem: o homem moderno não é o bom selvagem, mas ele se deixa medir a partir do selvagem, o selvagem é o que lhe falta e por isso configura um certo paradigma. De certo modo, todo esse imaginário vive da negação do outro que o gerou.92 A consciência, mesmo mitológica, do diverso (selvagem) é que possibilita nova justificação do homem e das relações de poder.
Afirma que, para atingir plena compreensão sobre o poder político, deve-se considerar o estado natural dos homens, um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem.95 Trata-se de um estado de igualdade plena cujos poderes e composições (resoluções dos conflitos) são exercidos pelos próprios indivíduos. Tal liberdade, contudo, não representaria ‘licenciosidade’; apesar de natural, é determinada por uma lei que obriga a todos: a razão. A razão ensinaria aos homens que nenhum deles deve prejudicar a vida, a saúde, a liberdade ou as posses de outrem. É um estado ideal de seres racionais comandados pela lei natural sem o auxílio ou tutela das leis civis. Neste estado pleno de realização da liberdade e da igualdade, a preservação dos direitos contra as moléstias se encontraria nas mãos de todos os homens; assim, qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei em tal grau que lhe impeça a violação, pois a lei da natureza seria vã, como quaisquer outras leis que digam respeito ao homem neste mundo, se não houvesse alguém nesse estado de natureza que não tivesse poder para pôr em execução aquela lei e, por esse modo, preservasse o inocente e restringisse os ofensores.96 O poder/direito de execução das sanções não seria, porém, um poder absoluto ou arbitrário, mas restringido pelos ditames da ‘razão calma e da sã consciência’, ou seja, desde um critério de proporcionalidade entre a transgressão e a penalidade. Locke, conforme as lições de Bobbio,97 encontrara-se frente a frente com duas soluções possíveis sobre o estado de natureza. A primeira, hobbesiana, na qual o estado de natureza é estado de guerra caracterizado pela violência, pois dominado pelas paixões, pelos instintos e pelo egoísmo.98 A segunda, derivada do pensamento de Pufendorf, em
1.3.3. O pacto e os direitos do homem Se o pensamento político do século XVI acrescentou ao saber a possibilidade de rememorar a natureza perdida do homem, questionando toda a estrutura do medievo, impossível à ordem permanecer sustentando um sistema de poder repressivo sacrificialista e intolerante direcionado ao sancionamento do ‘ser’. Como sustentar uma filosofia teocêntrica calcada em um direito natural metafísico se o homem exsurge como parâmetro? A liberdade, valor inato ao homem, deveria ser recuperada e tutelada contra qualquer forma de violação irracional, pública ou privada. A noção de estado de natureza, encontrada no pensamento de Boètie, é uma variável constante em todos os pensadores da Ilustração, sobretudo porque sustenta o mito contratualista. Em assumindo a postura garantista de direito e processo penal, a leitura do contrato que mais interessa ao trabalho é aquela formulada por Locke, visto que o Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1690) pode ser considerado como a primeira e mais completa formulação do Estado Liberal,93 em que pese a ciência da inversão ideológica em relação aos Direitos Humanos produzida pelo autor.94 Locke, diferentemente de Boètie, não compartilha da tese quanto ao momento de transição do estado de natureza à formação do Estado (entidade artificial) pelo contrato. Em conseqüência, o escopo, os direitos e os deveres das partes são diversos. Não aceita, pois, a tese do ‘mau encontro’. 92 93 94 28
Bornheim, ob. cit., p. 36. Bobbio, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, p. 37. Hinkelammert, La Inversión de los Derechos Humanos, pp. 79-113
95 96 97 98
Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil, p. 35. Locke, ob. cit., p. 36. Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 179. Segundo Hobbes, os ‘desejos’, em confronto com a escassez dos bens da vida, fazem com que os homens estabeleçam convívio bélico. Agostinho Ramalho Marques Neto, avaliando a concepção de direito em Hobbes, percebe que, se os homens são iguais quanto à capacidade, são iguais também quanto à esperança de atingir seus fins, ou seja, todos podem desejar igualmente os mesmos fins e os meios para sua obtenção. Dessa forma, a luta para a obtenção desses meios (considerando-se que os desejos são ilimitados) leva inevitavelmente os homens a competir uns com os outros. Logo, a guerra de todos contra todos é inevitável e decorre sobretudo do caráter infinito do desejo, articulado à necessi29
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que o estado de natureza corresponderia a um estado de paz, embora de pobreza. A saída encontrada pelo autor foi percebê-lo como estereótipo, especificando seus inconvenientes, pois ontologicamente não seria mau.99 Para explicar a passagem do estado de natureza para o estado civil, Locke distingue aquele do estado beligerante: o estado de guerra é um estado de inimizade e destruição, porque os homens não estão subordinados à lei comum da razão, não tendo outra regra que não a da força e a da violência.100 O estado de natureza, que tenderia a ser um estado de ‘paz perpétua’,101 acabaria resultando num ‘estado de guerra’ pois, devido à falta de poder hierarquicamente postado, a resposta às lesões dos bens da vida caberia ao indivíduo que assume papel de juiz em causa própria. Não havendo imparcialidade, ou seja, distanciamento da contenda, o indivíduo reagiria emotiva e vindicativamente. Portanto, o estado de natureza não se confunde com o estado de guerra, este seria a adulteração daquele pela necessidade de resposta à violação da lei natural. Tem-se, desta forma, a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra que, muito embora certas pessoas tenham confundido [provável alusão a Hobbes], não estão distantes um do outro
como um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação de um estado de inimizade, malícia, violência e destruição mútua. Quando os homens vivem juntos conforme a razão, sem um superior comum na terra que possua autoridade para julgar entre eles, verificase propriamente o estado de natureza. Todavia, a força, ou um desígnio declarado de força, contra a pessoa de outrem, quando não existe qualquer superior comum sobre a terra para apelar, constitui um estado de guerra... A falta de um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza; a força sem o Direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra não só quando há como quando não há juiz comum.102 Posto desta forma, o raciocínio de Locke desenvolve-se em quatro assertivas: (1a) as leis naturais podem ser violadas; (2a) as violações das leis naturais devem ser punidas e os danos reparados; (3a) o poder de punir e de exigir reparação cabe, no estado de natureza, à própria pessoa vitimada; e (4a) quem é juiz em causa própria habitualmente não é imparcial e tende a vingar-se em vez de punir.103 Para evitar a corrupção do estado de paz pelo estado beligerante, a única solução razoável seria a criação da sociedade política e, conseqüentemente, do estado civil: evitar o estado de guerra – no qual não há apelo senão para o céu – é a razão decisiva para que os homens se reúnam em sociedade deixando o estado de natureza; onde há autoridade, poder na Terra do qual é possível conseguir amparo mediante apelo, exclui-se a continuidade do estado de guerra, decidindo-se a controvérsia por aquele poder.104 A passagem do estado de natureza para o estado civil representaria a transferência do poder privado ao poder público, designando a saída da barbárie e a opção pela civilidade, visto que o gozo incontrolado dos direitos e privilégios da lei da natureza acabaria por lesar os direitos do outro. Na renúncia ao exercício das próprias razões, e na constituição do Estado (civil), exsurge o pensamento iluminista consagrado no consenso, sepultando o velho paradigma do medievo. O que diferencia substancialmente os dois estados é o (re)conhecimento da Lei, livremente consentida e tutelada por um sujeito que, ao abdicar das paixões, torna-se racional na resolução do conflito.105 O
dade de garantir, de uma vez por todas, os meios para realização dos desejos futuros (Marques Neto, A Concepção de Direito em Hobbes, p. 564). Hobbes esclarece o estado de guerra com a seguinte formulação: se dois homens desejam a mesma coisa, que ao mesmo tempo é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E, no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou para subjugar um ao outro (Hobbes, Leviatã, pp. 74-75). Assim, durante todo o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos o respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida (Hobbes, ob. cit., p. 75). Em decorrência, a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo de que não há garantia do contrário (Hobbes, ob. cit, p. 76). 99 Para Hobbes, o estado de natureza é um estado de guerra (ontologicamente mau) devido ao fato de a maldade ser inerente ao homem. Hobbes, nos primeiros parágrafos do De Cive (apud Bobbio, ob. cit., pp. 172-174), sustenta que a igualdade, na natureza, é considerada como desejo recíproco de fazer o mal, tornando o estado de natureza instável e penoso. Ao negar os postulados hobbesianos, sustentando o estado de natureza como estado de paz sujeito aos inconvenientes da falta de autoridade, Locke desloca a natureza do homem ‘para além do bem e do mal’. Parece, pois, que Locke ‘humaniza’ a natureza do homem, distanciando de qualquer visão substancialista, concebendo-o apenas como humano, sujeito com virtudes e perversões. 100 Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil, p. 40. 101 Bobbio, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, pp. 37-38. 30
102 103 104 105
Locke, ob. cit., p. 41. Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 181. Locke, ob. cit., p. 42. Segundo Locke, sempre que, portanto, qualquer número de homens se reúne em uma sociedade de tal sorte que cada um abandone o próprio poder executivo da lei de nature31
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que funda o status civitas é a renúncia do gozo ilimitado, a imposição de limites e a sanção da violência ao outro. O custo da renúncia em fruir e dispor ilimitadamente seria minimizado/compensado pela promessa de segurança. Consagra-se, portanto, um Estado com o fim precípuo de assegurar a preservação da dignidade e das propriedades do homem contra os poderes passionais ilimitados. O Estado, racionalizador imparcial do desejo de vendeta (direito natural do homem quando lesado em seus direitos), apropria-se do poder de autotutela, tomando para si o direito de punir, com escopo de assegurar a proporcionalidade na resolução da contenda. A perspectiva contratualista, portanto, fornece o solo fértil ao pensamento garantista, visto que assentada na limitação dos poderes pela legalidade: a tutela dos direitos do homem contra os poderes privados com a negação do estado de natureza e a opção pelo estado civil; a proteção dos direitos do cidadão contra o abuso dos poderes públicos, desde uma perspectiva limitadora do exercício da violência estatal. A transferência do poder privado à violência ao Estado é o pressuposto de ordem, típico do pensamento ocidental fundado no mito. Por isso, em se tratando de mito (motivo conceitual),106 sua constatação empírica, ou mesmo sua possibilidade de ocorrência, é absolutamente irrelevante.
za, passando-o ao público, nesse caso somente nela haverá uma sociedade civil ou política... Por esse meio autoriza a sociedade ou, o que vem a dar no mesmo, o poder legislativo dela a fazer leis para ele conforme o exigir o bem público da sociedade, para a execução das quais pode-se pedir-lhe o auxílio, como se fossem decretos dele mesmo. E por este modo os homens deixam o estado de natureza para entrarem no de comunidade, estabelecendo um juiz na terra, com autoridade para resolver todas as controvérsias e reparar os danos que atinjam a qualquer membro da comunidade; juiz esse que é o legislativo ou os magistrados por ele nomeados (Locke, ob. cit., pp. 67-68). 106 Sobre a importância do ‘mito’ na cultura ocidental, Jacinto Coutinho, fundado em Claude Lévi-Strauss, Carlo Ginzburg, Sigmund Freud, Jacques Lacan e Pierre Legendre, leciona: sempre se teve presente que há algo que as palavras não expressam; não conseguem dizer, isto é, há sempre um antes do primeiro momento; um lugar que é, mas do qual nada se sabe, a não ser depois, quando a linguagem começa a fazer sentido. Nesta parca dimensão, o mito pode ser tomado como a palavra que é dita, para dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, não pode ser dito. Daí o big-bang à física moderna; Deus à teologia; o pai primevo a Freud e à psicanálise; a Grundnorm a Kelsen e um mundo de juristas, só para ter-se alguns exemplos. O importante, sem embargo, é que, seja na ciência, seja na teoria, no principium está um mito; sempre! (Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro, pp. 26-27). 32
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1.3.4. O direito à perversidade No rito de passagem do estado de natureza para o estado civil, os indivíduos, segundo a matriz filosófico-política exposta, não renunciariam seus direitos naturais, muito menos permitiriam ao Estado ingerência plena nas esferas de sua liberdade. Bobbio percebe esta questão ao diferenciar o pensamento de Locke e de Hobbes. O ponto de controvérsia encontra-se no fato de que em Hobbes há ampla renúncia e alienação total dos direitos naturais ao Estado, ao passo que, para Locke, o estado civil e a nomeação da autoridade teria como fim a garantia daqueles direitos naturais, não havendo renúncia. Em Hobbes o estado civil coloca-se acima do estado natural, suprimindo-o; para Locke, o estado de natureza é conservado e melhorado com o estado civil, representando sua plena e eficaz consolidação. Isso explica por que Hobbes elabora uma teoria do Estado absoluto, e Locke, a de um Estado limitado; o Estado de Hobbes precisa cancelar os últimos resíduos do estado de natureza, enquanto para Locke o Estado é pura e simplesmente uma instituição com o objetivo de tornar possível a convivência natural entre os homens. Como na concepção de Hobbes o mal é radical, o remédio deve ser igualmente radical: o estado de natureza deve ser suprimido e, em lugar da lei natural, deve vigorar a lei positiva. Na concepção de Locke, contudo, o estado de natureza deve ser pura e simplesmente corrigido e posto em condições de continuar vivendo, com todas as suas vantagens, no estado civil, mediante um aparelho executivo que tenha condições de obrigar a respeitar as leis naturais.107 Ao pactuar, o indivíduo não aliena todos os seus direitos à entidade garante, mas mantém uma esfera de liberdade na qual a interferência do Estado é ilegítima: a esfera da liberdade de pensamento e de consciência. Desta maneira, o pacto se constitui como instrumento de deveres e de direitos recíprocos. Ao poder do soberano de regular a sociedade com suas leis corresponde o dever de garantir a ‘segurança’ dos bens. Ao dever de obediência às leis por parte do cidadão corresponde o direito de exigir as garantias pactuadas. Ressalte-se o fato, porém, de que a liberdade de consciência e a vida, bem como a plenitude da liberdade de locomoção (ir, vir e permanecer), não estão entre os bens dis107 Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 183. 33
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poníveis ao indivíduo pactuar, visto serem inalienáveis, anteriores e não suscetíveis de pacto, pois são o seu pressuposto. É que um pacto efetuado sobre estes bens e nesses termos (restrição ou ampla suspensão da vida e das liberdades) não seria realizado pelo cidadão, pois não traria benefícios e vantagens maiores ao indivíduo do que as que ele já possui no estado de natureza.108 Assim, deslegitimadas na esfera penal as sanções cruéis, dado ao fato de que não há disposição, por parte do cidadão, de seus bens fundamentais. O consenso limita o poder estatal, vinculando-o ao princípio da legalidade e garantindo ao cidadão direitos supra-estatais. Nesses termos, a violação dos direitos do cidadão por parte de outrem permite ao Estado a punição legítima. De outra parte, a violação desses mesmos direitos por parte de um dos três poderes constituídos (exercício além do direito que configura a tirania) deslegitima a entidade garantidora, nascendo novos direitos e obrigações sob pena de retorno ao estado de natureza. O Estado é, pois, poder que não tem outro objetivo senão a preservação e, portanto, não poderá ter nunca o poder de destruir, escravizar ou propositalmente empobrecer os súditos.109 Em não sendo pactuada a liberdade de pensamento (foro íntimo das convicções, paixões e emoções) permanece o ‘ser’ como núcleo inviolável, como reserva de direitos do cidadão na qual o Estado não pode interferir. Os limites estabelecidos pelo consenso não permitem a ingerência e a lesão desse direito. A consciência permanece liberta mesmo se direcionada ao ilícito. A propósito, Schopenhauer110 sustentará que o Estado não pode impedir ninguém de nutrir, por exemplo, um constante propósito de homicídio ou de envenenamento. Ao Estado, o que interessará é o fato correspondente à lei. As intenções e vontades não serão consideradas senão como explicativas da natureza e do significado do fato ilícito. Nasce, nesse momento de concepção altamente limitada do Estado, uma das teses fundamentais do pensamento político da histó-
ria da humanidade: a tolerância, identificada com a secularização – ruptura entre os juízos individuais internos (moral) e externos (direito). O conceito tolerância tem como precursor Marcílio de Pádua (Defensor Pacis, 1324), onde admitia que os infiéis e hereges deveriam ser punidos pelos tribunais seculares se transgressores da lei civil, mas nunca pelos juízos eclesiásticos.111 É Locke, no entanto, assentado num dos principais temas políticos da época (liberdade religiosa) que, ao sustentar a radical separação entre as funções do Estado e da Igreja, rompe os vínculos entre direito e moral. Em conseqüência, cinde a noção híbrida, prevalente no modelo inquisitorial, de delito (mala prohibita) e pecado (mala in se), instituindo a tolerância como fundamento dos processos de laicização. Na Epistola de tolerantia (1689), o autor afirma os limites da atuação da intervenção estatal, advogando que a violação das leis civis deve ser reprimida somente pelo Estado. A resposta ao delito consistiria não na punição generalizada com escopo de salvar almas, mas na privação dos bens civis dos quais o indivíduo podia e devia dispor. Logo, em contraponto à concepção inquisitiva, ilícita a pretensão estatal de ingressar na esfera da consciência individual, da alma, dos desejos e das paixões (foro interno), pois barreiras intransponíveis. Esclarece que a intervenção do magistrado civil não pode ocorrer na esfera da interioridade devido ao fato do seu poder consistir tãosomente na coerção, ou seja, ser ‘deste mundo’. Apenas atuação sacerdotal é baseada na persuasão do espírito.112 Lançada a base teórica da tolerância desde a Europa insular, a idéia encontrará guarida e difusão no continente com Voltaire. O pensador, após permanência na Inglaterra, inflama-se com o respeito à diversidade de religiões, encontrando em Locke a fundamentação necessária para sua prática política denunciatória. Locke será o grande inspirador pelo qual Voltaire nutrirá profunda admiração.113
108 Locke advoga que, embora supremo, o legislativo não poderia ser absolutamente arbitrário sobre a vida e a fortuna das pessoas, porquanto o direito cedido não pode ser mais do que essas pessoas tinham no estado de natureza, porque ninguém pode ceder a outrem mais poder do que possui, e ninguém tem poder arbitrário e absoluto sobre si mesmo ou sobre outrem, para destruir a própria vida ou a propriedade de outrem (Locke, ob. cit., pp. 86-87). 109 Locke, ob. cit., p. 87. 110 Apud Ferrajoli, ob. cit., p. 485. 34
111 Apud Bobbio et alli, Dicionário de Política, pp. 1.245-1.247. 112 Sustenta o autor: poderão afirmar, porém, que, sendo a idolatria um pecado, não pode ser tolerada. Se disserem que a idolatria é um pecado e, portanto, deve ser escrupulosamente evitada, esta inferência é correta; mas não será correta se disserem que é um pecado e, portanto, deve ser punida pelo magistrado. Não cabe nas funções de magistrado punir com leis e reprimir com a espada tudo o que acredita ser um pecado contra Deus (Locke, Carta Acerca da Tolerância, p. 18). 113 Como Locke, Voltaire é ardente defensor do processo secularizador e da precisa definição dos papéis da Igreja e do Estado. Alguns autores, porém, sustentam sutil, mas substancial, diferença entre os pensadores. Ao tratar dos limites hierárquicos entre os poderes temporais e eclesiásticos, Locke diferencia a comunidade política e a sociedade reli35
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Como ressalva René Pomeau,114 Voltaire não foi propriamente um filósofo, pois detestava a especulação abstrata e a reflexão analítica. Limitava-se à (brilhante) exposição e defesa do pensamento dos outros. Diferentemente de Locke, que redigiu sua Epistola em latim, Voltaire popularizaria as idéias do pluralismo religioso, direcionando críticas incisivas e nominais à Inquisição. Em Tratado sobre a Tolerância (1763), Voltaire, assim como fez Pietro Verri no caso das unções pestíferas de Milão, critica as funções, o método, o procedimento e o desiderato do sistema inquisitivo, a partir de um processo judicial condenatório. Ao descrever a forma de manipulação probatória pelo magistrado, Voltaire percebe o irracionalismo do ‘direito da intolerância’,115 encontrando guarida nos membros da Academia dei Pugni, principalmente em Beccaria, cuja tradução da obra Dei Delitti e delle Pene será prefaciada e comentada pelo autor.116 Parece, pois, ressalvada a ousadia na sustentação, que Locke e Voltaire estão para a filosofia política iluminista, pelo conteúdo e pela estrutura metodológica das obras, como Beccaria e Verri estão para o direito penal ilustrado. Todos, contudo, conformando o universo teórico-prático denominado garantismo ilustrado.
natureza – os dois estados, natural e civil, estão intimamente interligados: um é o remédio do outro.117 Demonstra Locke que três seriam os casos em que haveria rompimento do contrato e retorno ao estado de natureza: usurpação, tirania e dissolução do governo – excetuando-se os casos de degeneração da sociedade civil por fatores externos (v.g. conquista). A usurpação (tirania ex defectu tituli) consistiria numa conquista injusta desde dentro do Estado, uma alteração interna decorrente de um golpe ou revolução. Nos casos de tirania (tirania quoad exercitum), haveria uma corruptela no exercício do poder soberano, quando este não mais direciona a ação estatal à satisfação das necessidades fundamentais da comunidade. Em ambos os casos, haveria ruptura obrigacional e o respeito ao poder instituído pelo cidadão não seria mais obrigatório: a tirania é o exercício do poder além do Direito, o que não pode caber a pessoa alguma. E esta consiste em fazer uso do poder que alguém tem nas mãos, não para o bem daqueles que lhes estão sujeitos, mas a favor da vantagem própria, privada e separada.118 Para além da usurpação e da tirania, outro motivo de desagregação do Estado civilmente constituído seria a alteração do poder legislativo pela ação centralizadora do executivo ou a ação isenta de razão do poder legiferante. Para Locke, a constituição do legislativo é o primeiro e fundamental ato da construção racional e civilizada da sociedade. Assim, se o Príncipe chamar a si a elaboração das leis ou obstruir sua plena execução, ou se o legislativo atuar além de sua limitação genealógica, restringindo direitos aos quais não lhe é lícito intervir, o governo civil declararia guerra contra a sociedade que o constituiu, rompendose, pois, os basilares fundamentos da civilidade.119 Idêntico o processo em relação ao executor das leis que age contra a vontade da sociedade.
1.3.5. Os fundamentos do direito de resistência Como sucedâneo lógico da teoria limitada do poder estatal, a filosofia ilustrada fundamenta a teoria do direito de resistência como mecanismo de garantia do cidadão contra o Estado, visando a impedir o abuso dos poderes Executivo (tirania), Legislativo e/ou Judiciário. Leciona Bobbio que o estado de natureza e o estado civil não são momentos definitivos na história da humanidade (a história não tem momentos definitivos). Assim, como da crise do estado de natureza nasce o estado civil, a crise deste torna possível o retorno àquele: a falência do estado civil faz com que o homem retorne ao estado de giosa, separando a competência funcional de Estado e Igreja, ao passo que Voltaire vê na subordinação da Igreja ao Estado a única como forma de tutelar a tolerância. 114 Pomeau, Introdução ao Tratado sobre a Tolerância de Voltaire, p. XXIV. 115 O Direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o Direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos (Voltaire, Tratado sobre a Tolerância, p. 35). 116 Voltaire, Comentários Políticos, pp. 117-176. 36
117 Bobbio, Locke e o Direito Natural, p. 239. 118 Locke, ob. cit., p. 113. 119 Segundo Locke, sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão sob poder arbitrário, entram em estado de guerra com ele, quefica assim absolvido de qualquer obediência mais, abandonando ao refúgio comum que Deus providenciou para todos os homens contra a força e a violência. Sempre que, portanto, o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade, e por ambição, temor, loucura ou corrupção procurar apoderar-se ou entregar às mãos de terceiros, o poder absoluto sobre a vida, liberdade e propriedade do povo perde, por esta infração ao encargo, o poder que o povo lhe entregou para fins completamente diferentes, fazendo-o voltar ao povo, que tem o Direito de retomar a liberdade originária e, pela instituição de novo legislativo, conforme achar conveniente, prover à própria segurança e garantia, o que constitui o objetivo da sociedade (Locke, ob. cit., p. 121). 37
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Após conceituar e deslegitimar as formas de lesão ao estado civil, Locke indaga se nestes casos o cidadão poderia opor-se às ordens do Príncipe, se poderia resistir-lhe tantas vezes julgasse agravado pela injustiça. Responde que a resistência é legítima se os atos do detentor do poder forem exercidos à revelia da lei. Neste instante, cria duas categorias diversas, apesar de similares: desobediência e resistência. A resistência implicaria uma conduta comissiva de manifestação contra o poder, ao passo que a desobediência caracterizar-se-ia por uma atitude passiva, um nãofazer. Os conceitos, apesar de diversos, não são opostos; pelo contrário, as manifestações seriam simbióticas na deslegitimação do poder abusivo. Conclui: quem quer que use força sem Direito, como o faz todo aquele que deixa de lado a lei, coloca-se em estado de guerra com aqueles contra os quais assim a emprega; e neste estado cancelam-se todos os vínculos, cessam todos os outros direitos, e qualquer um tem o Direito de defender-se e de resistir ao agressor... Nem toda resistência ao príncipe é rebelião.120 Quando da ruptura e quebra dos vínculos originários, o homem retomaria os direitos alienados ao Estado; colocar-se-ia, como no princípio, em estado natural, recuperando os poderes legislativo, judiciário e executivo. Como percebe Bobbio,121 as últimas páginas do Segundo Tratado constituem uma fervorosa defesa dos oprimidos contra os opressores, em favor da liberdade contra a ordem, numa afirmação da soberania do povo. Poder-se-ia, inclusive, sustentar que se trata de uma clara manifestação de prevalência hierárquica dos direitos contra os poderes. Muito embora Locke seja considerado o idealizador do Estado liberal (limitado), podendo fundar um discurso coeso de tutela dos direitos fundamentais, errôneo seria desprezar sua historicidade, trabalhando seu discurso como se de ruptura fosse. Lógico que o discurso exposto vincula-se a um determinado locus, como forma de legitimar determinadas práticas, ou seja, não se está a trabalhar desde uma perspectiva romântica do texto. Sabe-se que, na relação entre o poder europeu e os das ‘colônias’, a fala de Locke proporcionou, como antecipado, uma ‘inversão ideológica’ do discurso dos direitos fundamentais, legitimando práticas bárbaras, assim como aquela de Ginés de Sepúlveda em sua célebre discussão com Bartolomé de las Casas.122 120 Locke, ob. cit., p. 125. 121 Bobbio, ob. cit., pp. 244-245. 122 Sobre o debate de Valladolid (1550), além da leitura de Las Casas, O paraíso destruído; verificar Dussel, Bartolomeu de las Casas; Dussel, Núcleo simbólico lascasiano como crítica profética ao imperialismo europeu; e Dussel, Cristandade moderna frente ao outro, pp. 135-161. 38
Capítulo II O Garantismo Jurídico-Penal: Gênese e Crise(s)
2.1. Recepção do contratualismo pelo direito penal 2.1.1. Unidade e existência da ‘Escola Clássica’ A doutrina tradicional comumente opõe ao pensamento jurídicopenal do medievo um ‘período humanitário’ consagrado pela chamada ‘Escola Clássica’ do direito penal. Dita ‘escola’ teria gênese no pensamento filosófico-penal de Beccaria, seguida de um momento sistematizador sustentado por Francesco Carrara, principal ícone da fase jurídica. Indubitavelmente, a fase ‘deliciosamente filosófica’1 é marcada pelo advento da obra Dei delitti e delle pene; e não é lícito questionar sua importância como elaboração doutrinária do direito penal, da política criminal e da criminologia moderna. Todavia, parece errôneo reduzir período tão fértil de construção do discurso sobre o delito, o juízo e a pena à obra exclusiva do autor, e procurar enquadrar bruscamente todo o pensamento penal ilustrado sob o rótulo de ‘Escola Clássica’. Tal encaminhamento pressuporia, no mínimo, uma unidade metodológica, o que não parece ser possível sustentar. No entanto, se inexiste no interir do ‘classicismo’ consenso sobre alguns temas basilares da questão penal,2 percebe-se nítida aproxima1 2
Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 26. Lembra Zaffaroni: es necesario señalar que estas ideologías, más otras en las que no nos detenemos ahora, jamás pueden ser colocadas bajo el rótulo de una ‘escuela’, porque la ‘escuela clásica’ nunca existió, sino que la inventó Enrico Ferri, como denominación común para todo lo que fue anterior al positivismo. En varias ocasiones hemos demonstrado que no puede ser una ‘escuela’ el conjunto de opiniones de los pensadores del tema político-criminal durante más de un siglo, vertidas desde las ideologías más dispares (kantismo, hegelianismo, idealismo romántico, utilitarismo, vueltas parciales al aristotelismo, pensamiento iluminista, etc.). Además, la circunstancia de que estos autores, justamente, hayan sido quienes al plantear la cuestión político-criminal dieran origen a la presentación actual de la criminología, nos exime de cualquier comentario acerca de su tradicional asignación al terreno del derecho penal. Más aún: consideramos que su ubicación en el ámbito 39
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ção teórica quanto à fundamentação filosófico-política do Estado. Tal agregador, até a antecipação do tecnicismo por Francesco Carrara, será a teoria do contrato social. Desta forma, compartilha-se da perspectiva de Zaffaroni3 quando identifica ‘movimentos penais ilustrados’ sob a égide do contratualismo. Da transposição das mais diferenciadas idéias contratuais, do plano filosófico-político à esfera do jurídico, pode-se propor uma relativa categorização dos movimentos da época. Notórias, pois, algumas considerações de ordem preliminar com intuito de caracterizar o núcleo de tal pensamento. Como visto, a teoria do contrato social representa a possibilidade de alteração na imutável ordem estabelecida pelo medievo. Ao propor que a sociedade seria composta artificialmente por um pacto simbólico e fundante, os teóricos dos setecentos e oitocentos sustentam a capacidade modificadora e crítica do homem. Se o contrato é artificial, o homem livre e autônomo pode a qualquer momento questionar sua validade. A concepção organicista da sociedade, reveladora de papéis pré-definidos por Deus, justificava a hegemonia e o poder político da nobreza, sendo que a este discurso legitimador de la posición hegemónica de la nobleza en función de la concepción de la sociedad como organismo ‘natural’, la burguesia debía oponer otro discurso, que atacase esa concepción de la sociedad. Esse fue el discurso contratualista. En tanto que el organismo es algo ‘natural’, el contrato es ‘artificial’, hecho por el hombre. Si la sociedad es una creación ‘artificial’ – contractual – la nobleza puede ser desplazada de su posición hegemónica por una modificación del contrato.4 De uma postura contemplativa e coadjuvante perante o poder do Estado, o homem passa a ser protagonista de outro modus vivendi. O pólo de legitimidade externa do poder é deslocado do teológico ao antropológico. A vida terrena passa a ser estabelecida nas relações harmônicas convencionadas pelos homens, e não mais como transposição de vontades metafísicas hipostasiadas. O homem é autônomo, o poder é ‘deste mundo’. A autonomia e a liberdade são, portanto, conceitos inerentes à teoria do contrato social. A possibilidade do pacto pressupõe capacida-
de e livre manifestação da vontade do homem. Inexistindo tais condições fáticas, o pacto é nulo. Estabelecidas as regras de convivência social e os papéis (direitos e deveres) das partes (cidadão e Estado), a norma penal é externamente limitada, de forma negativa (excludente), pela moral. Decorrente do processo de secularização implícito às teorias contratuais, não cabe ao Estado ingerência alguma na esfera interior. A intervenção é legítima somente quando a conduta (ativa ou omissiva) causar perceptível dano externo. Com a laicização do Estado e do direito, o crime não corresponde mais à violação do divino, mas à livre e consciente transgressão da norma jurídica promulgada pelo Estado, submetendo o infrator à penalidade retributiva decorrente do inadimplemento: para os clássicos o crime é um fato do homem, não no seu pensamento (de internis non curat praetor) ou no seu modo de ser (periculosidade do indivíduo que comete um crime).5 Os fundamentos do direito penal moderno são lançados em bloco pela Ilustração, tendo em vista a coerência de suas proposições: a lei penal – geral, anterior, taxativa e abstrata (legalidade) – advém de contrato social (jusnaturalismo antropológico), livre e conscientemente aderido por pessoa capaz (culpabilidade/livre arbítrio), que se submete à penalidade (retributiva) em decorrência da violação do pacto por atividade externamente perceptível e danosa (direito penal do fato), reconstituída e comprovada em processo contraditório e público, orientado pela presunção de inocência, com atividade imparcial de magistrado que valora livremente a prova (sistema processual acusatório). Assim, percebe-se claramente um programa de intervenção penal limitada cuja centralidade é a tutela dos direitos individuais contra os poderes irracionais, públicos (Estado) e/ou privados. Sem embargo, tal concepção possibilita um entendimento, ainda que não explícito, pessimista do poder estatal, pois geneticamente propenso à violação dos direitos fundamentais da pessoa humana. Decorrente do pressuposto liberdade, fundante da teoria obrigacional, existiriam canais de ruptura e resistência às violências ilimitadas. No caso de o cidadão ser sujeito passivo de violência privada, restar-lhe-ia unicamente o direito à legítima defesa, tendo em vista a ausência do Estado em sua função tutelar. O Estado consentiria, valorando a conduta como lícita, quando o indivíduo, em situação de violência, resistisse à ação ilegítima com força (proporcional), como se em
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exclusivo del derecho penal con un rótulo unitario – y su consiguiente exclusión del ámbito criminológico – es un modo de minimizar su importancia y de prevenir-se contra el efecto deslegitimador que puede tener el discurso contractualista (Zaffaroni, Criminología, p. 128). Zaffaroni, ob. cit., pp. 99-130. Idem, p. 113.
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Bettiol & Bettiol, Instituzioni di Diritto e Procedura Penale, p. 23. 41
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estado de natureza estivesse.6 Na hipótese de violência pública ilegítima, da ação lesiva nasceria o direito de resistência. Logo, se o(s) sujeito(s) em situação de violência, na qual o sujeito ativo é o poder estatal, resiste(m), é(são) amparado(s) por nova descriminante genérica: o ius resistentiae. Se a finalidade do Estado é tutela e garantia dos direitos, inadmissível ato (comissivo ou omissivo) lesivo. Esta é, no entender de Zaffaroni, la clave central de la teorización contratualista: los hombres devenían libres para contratar, con derechos anteriores a los de la sociedad y que no podían ser negados por esta. El burgués ‘libre’ podría oponerle a la nobleza sus derechos anteriores al contrato y modificar el contrato desplazando la nobleza. Aún podía llegarse más lejos y oponerle a la nobleza un derecho de resistencia y hasta un derecho a la revolución.7 Percebe-se, juntamente com Vera Andrade,8 uma unidade ideológica no inequívoco significado liberal e humanitário do paradigma, pois a problemática central que preside seus momentos fundacionais e atravessa seu desenvolvimento é a dos limites do poder de punir face à liberdade individual, empreendendo uma vigorosa racionalização do poder punitivo em nome da necessidade de garantir o indivíduo contra toda intervenção arbitrária. Daí por que a denominação de ‘garantismo’ é a que melhor espelha o seu projeto racionalizador.
Faziam parte desse seleto grupo milanês, dentre outros, Giuseppe Visconti di Saliceto, Luigi Lambertenghi, Antonio Menafoglio, Alfonso Longo, Giovan Battista Biffi, Pietro Secchi-Comnemo (‘il signore filosofiche’), a bela Antonia Belgioioso e, logicamente, Cesare de Beccaria e os irmãos Alessandro e Pietro Verri. Essa agremiação de pensadores da vida cultural e civil, organizada pelo fundador Pietro Verri, embriagada pelo enciclopedismo de Diderot e d’Alambert e pelas obras de Montesquieu, Voltaire e Rousseau, passa a divulgar surpreendente produção literária, entre as quais estão Meditazioni sulla felicità (1763), de Pietro Verri; Dei delitti e delle pene (1764), de Beccaria; e Il Caffé, periódico criado e dirigido por Pietro Verri, publicado entre os anos de 1764 e 1766, cujo intuito era fazer uma guerra perene e incessante para melhorar as pessoas.9 A base teórica compartilhada pela École de Milan demonstra a aceitação da matriz contratualista, estando presente a idéia da construção do processo civilizatório como superação de um ‘estado de guerra’.10 Para os acadêmicos, o contrato social simbolizaria o ato de alienação da liberdade individual ao Estado em troca de segurança, sendo que o conjunto destas ‘pequenas porções de liberdade’ fundamentaria o ius puniendi. A formulação filosófica dos pensadores no que tange à disciplina penal encontrará, inexoravelmente, guarida na concepção liberal do Estado moderno. Ao fundir princípios utilitaristas com a teoria da limitação dos poderes, objetiva-se a construção de uma filosofia da dor, do prazer e da felicidade, temas clássicos na filosofia setecentista. Pietro Verri, além de Meditazioni sulla felicità (1773), publica no mesmo ano Idee sull’indole del piacere e, em 1781, apresenta as edições definitivas de Discorso sull’indole del piacere e del dolore e do Discorso sulla felicità. É também no ano de 1781 que edita Meditazioni sulla economia politica, considerado ‘capolavoro’ dos estudos italianos sobre economia no século XVIII. A temática fundamental das meditações é a conquista, sob a chancela da razão, de uma renovação capaz de mudar
2.1.2. A Accademia dei Pugni O pensamento jurídico-penal do maior representante da ‘Escola Clássica’, Cesare de Beccaria, não nasce de forma afoita ou desvinculada de um imaginário sobre o direito penal. Beccaria, laureado em direito no ano de 1758 pela Universidade de Pavia, foi, e aqui se expressa toda a sua qualidade, o maior divulgador das idéias penais dos ‘reformadores lombardos’, coletivo de jovens idealistas que se autoproclamavam Accademia dei Pugni. 6
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La agresión antijurídica funda el derecho de defensa y cancela inmediatamente todo derecho en el agresor, su lesión es una condición necessaria para la conservación de los proprios derechos del agredido. Pero, dado que el ciudadano necessariametne ha transferido al Estado su derecho al uso de la fuerza privada, dentro del estado la adecuación a derecho de la defesa propria presupone, además de las condiciones de la defensa en general, un caso que no pueda haber quedado abarcado dentro de la enajenación de la fuerza privada hecha al Estado. Dicho caso es cuando el poder público no puede proteger (Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 72). Zaffaroni, ob. cit., p. 113. Andrade, Dogmática e Sistema Penal, pp. 109-110.
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Cerpa, Introduzione: Lettere al fratello e agli amici, p. 09. As leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados, sobre a superfície da terra. Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo (Beccaria, ob. cit., p. 32). 43
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os costumes e a cultura, isto é, que opere nas raízes da convivência humana,11 na busca da felicidade e da igualdade possíveis. Notória, pois, a presença do utilitarismo, cujo entendimento penal fundamentará o mínimo sacrifício necessário da liberdade do cidadão que violou o contrato social. O sucesso da produção literária (econômica, social, política, jurídica e de costumes) dos autores da Accademia levou-os ao merecido reconhecimento intelectual, fundamentalmente pelos pensadores franceses que, em 1766, convidam os intelectuais a dirigirem-se a Paris para divulgação de suas publicações. Essa importante viagem na história do pensamento jurídico-penal provavelmente explica o porquê da ausência do intelectual (‘dificilmente classificável’) Pietro Verri dos livros de direito penal. Diferentemente de Beccaria, Verri sempre se ocupou de intenso trabalho jornalístico e político-econômico aplicado à construção viável de um projeto de reforma da Administração do Estado milanês, acompanhando as transformações em andamento na Europa ocidental tendentes a desmantelar os resíduos feudais que impediam a plena afirmação de uma sociedade industrial e dinâmica.12 Por uma inqualificável coincidência histórica, no ano de 1766 é nomeado funcionário da administração austríaca com escopo de reestruturar a política econômica milanesa. Percebe, assim, a possibilidade de colocar em prática suas idéias. Nega o convite dos enciclopedistas e envia seu irmão menor, Alessandro Verri, também articulista do Il Caffé, para acompanhar Beccaria. Todavia, organiza e dirige minuciosamente toda a viagem, desde os contatos e despesas à hospedagem. Apesar de a gloriosa peregrinação13 de Beccaria e Alessandro Verri representar um dos marcos fundamentais no processo de difusão do iluminismo lombardo, significa também o momento da ruptura entre os pensadores. Beccaria é ovacionado pelo público e inflama-se pela transpiração filosófica parisiense, instigando o processo de separação com Verri que passa, inclusive, a questionar a originalidade de Dei Delitti e delle Pene.14 Independentemente das disputas sobre a origina-
lidade da obra, é Dei delitti e delle pene que representará a Escola de Milão, pois o livro de Verri sobre a questão penal (Osservazioni sulla tortura) somente será publicado, por questões pessoais, alguns anos após sua morte, em 1797. A obra de Beccaria apresenta não somente uma incisiva crítica do grupo ao status quo ante, mas sobretudo um plano de construção de um novo modelo jurídico-penal. Como acentua Vera Andrade,15 não se tratava mais de combater a antiga justiça penal, mas de consolidar juridicamente os princípios básicos do novo direito penal já positivado ou em vias de positivação. O impacto do pensamento milanês é perceptível nos processos de codificação europeu dos séculos XVIII e XIX,16 bem como pela forma de interpretação destes textos divulgada pela nascente Escola da Exegese.
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Cerpa, ob. cit., p. 05. Cerpa, ob. cit., p. 21. Expressão usada por Verri em carta a Beccaria datada de 13 de novembro de 1766. Em carta a Paolo Frisi (21 de janeiro de 1767), escreve Verri: Beccaria mostra-se claramente não apenas desinteressado em fazer por nós aquilo que cordialmente fizemos por ele, mas com uma constante disposição de ânimo para usurpar-nos aquele pequeno louvor ou aquela pequena glória que de direito são nossos. Caro Frisi, o senhor que sabe ser justo e
2.1.3. A versão revolucionária do contratualismo Sem desmerecer a importância já acentuada das obras de Verri e Beccaria, procurar-se-á otimizar o pensamento penal da ilustração em autores que melhor potencializaram os valores de formação do núcleo originário do garantismo. Secularização e tolerância, e a admissibilidade do ius resistentiae, serão intrumentalizados neste marco conceitual por uma série de princípios do direito e do processo penal da modernidade. Sob este entendimento, inevitável o direcionamento das atenções às propostas de Feuerbach e Marat. Feuerbach e Marat, diferentemente dos demais autores elencados como representantes da prima scuola, explicitam o entendimento do
bom amigo, sabe que depois de ter eu conhecido esta funesta verdade não posso mais ter por ele os sentimentos que tinha antes. Se eu tivesse vindo a Paris em triunfo como veio Beccaria (por um livro cujo projeto lhe foi dado por mim, cujo início, desenvolvimento e fim, a publicação e até a cópia feita pela minha mão são efeitos da minha infatigável amizade), eu não teria certamente perdido a ocasião de fazer conhecer, com meus discursos, o amigo obscuro que havia deixado na pátria; ele, bem longe disso, na sua volta não me trouxe senão os cumprimentos do senhor Watele, que tive a honra de conhecer por mim mesmo em Milano (Verri, Lettere al Fratello e Agli Amici, pp. 51-52). Andrade, ob. cit., p. 115. Lembremos que a publicação da Riforma della legislazione criminale toscana, também conhecida como Reforma Leopoldina, eis que promovida pelo Granduca Pietro Leopoldo di Lorena, data de 30 de novembro de 1786. Esta legislação, segundo Fabrizio Ramacci, representa o primeiro sinal de realização dos ideais iluministas. A Leopoldina, prossegue Ramacci, ainda representa o coágulo legislativo de um fermento de idéias inspiradas na escola do direito natural e na filosofia do iluminismo (Ramacci, Corso di Diritto Penale, p. 47). 45
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poder estatal como intrinsecamente mal, como (pré)destinado à violação dos direitos fundamentais, sendo necessária sua limitação. Feuerbach representou importante corrente garantista para o pensamento penal e filosófico do final dos setecentos e início dos oitocentos, simbolizando a doutrina racionalista germânica. Autor de AntiHobbes (1797), militou pelos processos de codificação, elaborando a parte geral do Código Penal do Reino da Baviera (1813), texto que puede considerarse la primera estructuración de una parte general del derecho penal en sentido moderno.17 Ao sistematizar o pensamento penal alemão, Feuerbach aderiu radicalmente ao processo de secularização do direito penal, impondolhe atualíssimo sentido antropológico ao defender a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão – Feuerbach fundó los derechos de modo totalmente separado de la moral, pretendiendo echar las bases de una ciencia o saber de los derechos naturales separado de ésta. Aquí se observa la incuestionable influencia del pensamiento revolucionario francés, traducida praticamente en la defensa que hace del derecho de resistencia, rotondamente negado por el pensamiento ilustrado de Kant.18 O autor opõe-se totalmente à matriz do pensamento kantiano,19 viabilizando nova versão ao contratualismo tedesco.20 Assinala Zaffaroni21 que a burguesia alemã necessitava, ao contrário do que propugnava Kant, uma teoria que fosse contratualista (para questionar a
hegemonia senhorial), mas que admitisse o direito de resistência (para ameaçar a classe senhorial) e concebesse o delito como ação livre (para eliminar toda atenuante que dificultasse o controle e a disciplina das classes marginais). Os direitos (subjetivos) para Feuerbach seriam externos, ou seja, direitos naturais anteriores ao Estado e que com ele não desapareceriam. Assim, cria condição para o seu respeito e garantia, ficando a possibilidade de resistência como alternativa em caso de sua violação por parte do ente público. Na trilha de Locke, os ‘direitos naturais’ não estariam, como em Hobbes, Kant e Rousseau, totalmente alienados ao Estado pelo rito de passagem da natureza à civilização. Tanto em Feuerbach, como em Marat, os indivíduos preservam a esfera da personalidade que, além de impedir a ingerência do Estado (v.g. a liberdade de consciência religiosa), permite o rompimento do contrato caso este descumpra sua função. Se do delito, descumprimento contratual por parte do indivíduo, surge o poder do Estado em punir, evitando assim o mal maior da vingança privada, do abuso do poder público nasce o direito de resistência, pois rompido o elo fundante. A tensão do posicionamento de Feuerbach em relação à tradição filosófica germânica situa-se nos efeitos daquilo que Boètie definira como processo de desnaturação: momento de fundação da civilização e o encontro com o Estado. Se em Hobbes, Kant e Rousseau o encontro representa a total perda da independência e da autonomia, para Locke, Feuerbach e Marat, o cidadão preserva direitos naturalmente inalienáveis, daí o direito de desobedecer. O pensamento jurídico-penal encontra neste ponto sua grande divergência, impossibilitando a classificação precipitada sob um único e exclusivo rótulo (‘Escola Clássica’). Contudo, não se encontra em Feuerbach a versão mais revolucionária da teoria contratualista. Apesar de o autor proporcionar justificativa idônea ao direito de resistência, é Jean Paul Marat, l’ami du peuple, que incluirá novos e renovados direitos à teoria contratualista, projetando o garantismo contemporâneo representado pela máxima Estado e direito mínimos na esfera penal, Estado e direito máximos na esfera social. A discussão sobre o direito (penal) contratualista até Marat limitava-se ao plano dos direitos e garantias individuais. O autor propõe uma inversão, um giro metodológico na interpretação do pacto. Figura demonizada, de referência quase inexistente nas letras jurídicas contemporâneas, Jean Paul Marat tem suas idéias combatidas pelo ‘ostracismo’. Trata-se do mesmo fenômeno que assola a teoria político-antropológica de Boètie. O curioso, nesta triste ‘coincidência’,
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Zaffaroni, Anselm v. Feuerbach, p.18. Zaffaroni, ob. cit., p. 20. Em Anti-Hobbes, Feuerbach desenvolve, a partir da indagação em que medida sua obra é também um Anti-Kant?, sua crítica ao kantismo, tendo como motivo a (in)admissibilidade do direito de resistência, tema no qual encontrar-se-ão em frontal oposição (Feuerbach, Anti-Hobbes, pp. 57-81). Não podemos olvidar que para Kant o Estado (direito) é a garantia externa do imperativo categórico (moral) no caso de lesão. No entanto, se o Estado é o violador, impossível é a concepção de um direito de resistência, visto que romperia com a condição instrumental de garantia. O criminoso político, ou o rebelde que se manifesta contra a lei ou a autoridade constituída, corresponde, assim, ao pior dos indivíduos, pois intenta romper com os laços básicos da estrutura social. Os ‘direitos naturais’, ao serem totalmente alienados pelo indivíduo ao Estado na realização do pacto, ficam à mercê da vontade do soberano. Esta concepção gera autoritarismo, concebendo o poder (Estado) como tendente à garantia dos direitos e não à sua violação. Mais, inviabiliza ao cidadão qualquer válvula de escape contra os poderes pois, por malo que fuesse el Estado, siempre sería mejor que el caos, que sería la dissolución del contrato social (Zaffaroni, Criminologia, p. 118). El Estado feuerbachiano es inútil y despreciable quando no garantiza los derechos; el Estado kantiano debe ser respetado, aún cuando no garantice, porque sólo dentro de él poden tener lugar los derechos (Zaffaroni, ob. cit, p. 21). Zaffaroni, Criminología, pp. 118-119.
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é exatamente a sintonia do pensamento de ambos autores, pois é Marat que ressuscitará o texto de Boètie, tornando-o manifesto contra o despotismo no período revolucionário francês. Marat, antes de propor seu Plano de Legislação Criminal (1790) – importantíssimo documento até hoje não devidamente valorizado, como argutamente percebe Ney Fayet Jr.22 – publica dois importantes trabalhos que configurarão seu pensamento político e filosófico. O primeiro, Essay on the Human Soul (1772), indica clara influência do pensamento hobbesiano, recusando a idéia de um estado de natureza inocente e o mito do ‘bom selvagem’.23 Em 1774, publica seu primeiro trabalho político, Chains of Slavery, um explícito manifesto contra o despotismo. A relativa notoriedade alcançada pela obra, aliada à obtenção do título de doutor em medicina pela Universidade de St. Andrew (1775), leva Marat à sua primeira tentativa acadêmica. O ativista redige o Plano de Legislação Criminal (1790) a partir de um concurso público divulgado pelo jornal Gazette de Berne, o qual conclamava a comunidade acadêmica para redigir um projeto de legislação penal sob o ponto de vista dos crimes, das penas e do juízo. Apesar de não ser classificado como vencedor do concurso, seu plano é publicado e adotado pela Assembléia Nacional francesa como projeto do Código dos Delitos e das Penas. Preocupado com a tutela da liberdade individual contra os abusos do poder, cria sistemas taxativos de delitos (princípio da publicidade), precisos de penas (princípio da proporcionalidade, pessoalidade e culpabilidade) e de juízos equânimes (princípio da imparcialidade). Diferentemente das obras tradicionais sobre a justiça penal da época, que privilegiavam a estrutura processual em detrimento da material, o autor centralizará seus estudos na natureza e espécie dos delitos, suas formas de prevenção e sua justificativa em sociedades desiguais.24 Todavia, o projeto não foi transformado em lei. A premissa pactual é quase um imperativo nas obras da época, e desta Marat não se furtou. O autor funda no contrato social sua teoria política, justificando seu modelo penal. A renúncia da vingança privada, da liberdade natural e da comunhão primitiva dos bens advém do
intuito do cidadão em delegar ao poder público o poder punitivo e, ao adquirir o status civil, assegurar a segurança na fruição dos mesmos.25 No entanto, significativa é a virada interpretativa operada na base teórica contratualista. Marat avança no pensamento ilustrado, superando o contratualismo clássico de Beccaria, Verri e Feuerbach, antecipando, inclusive, a crítica da Criminologia Radical dos anos setenta do século XX. Para Marat, a garantia do indivíduo contra os poderes corresponderia àquela atitude omissiva em relação à liberdade individual. E, para garantir igualdade numa sociedade cujos bens da vida são desigualmente distribuídos, seria imperativo ao Estado uma atitude comissiva na prestação de serviços para redução dessas desigualdades. A distribuição desproporcional dos bens da vida pelo Estado constituído, dicotomizando a estrutura social entre ricos e miseráveis, representaria uma violação das obrigações originárias. Logo, o dever de respeitar as leis em situações de profundas desigualdades seria inexeqüível, devido à violação do pacta sund servanda pela inadimplência do poder público na esfera social.26 A sociedade deveria assegurar os meios necessários de sobrevivência dos cidadãos. Se não o faz, instiga-os a serem criminosos, visto que o autor justifica todo ladrão como um ser compelido pela miséria, a qual significa sempre um fracasso da sociedade.27 Daí que o crime contra a propriedade, no interior de uma sociedade corroída pela pobreza, seria legítimo, e a pena, tirânica.28 Desta maneira, se no plano dos
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Fayet Jr., A Evolução Histórica da Pena Criminal, p. 249. Coquard, Marat: o Amigo do Povo, p. 57. Sobre o plano de Marat, seus princípios e a resposta recebida pela comunidade acadêmica, conferir Machado, Direito Criminal, pp. 26-27.
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Os homens não se reuniram em sociedade senão por seu interesse comum; eles não fizeram leis senão para fixar os respectivos direitos, e não estabeleceram um governo senão para assegurar a si mesmos o gozo desses direitos. Se renunciaram a vingar-se pessoalmente, fizeram-no para transferir essa responsabilidade ao braço público; se renunciaram à liberdade natural, fizeram-no para adquirir a liberdade civil; se renunciaram à comunhão primitiva dos bens, fizeram-no para possuir pessoalmente uma parte desses bens (Marat, Disegno di Legislazione Criminale, p. 72). Em uma terra coberta de propriedades alheias e onde não têm possibilidade de se apropriar de nada, ficam reduzidos a morrer de fome. Ora, não pertencendo à sociedade em razão das desvantagens que esta comporta, são estes obrigados a respeitar as suas leis? Indubitavelmente não. Se a sociedade os abandona eles voltam ao estado natural, e quando reivindicam com a força aqueles direitos aos quais renunciaram com a única finalidade de garantir para si maiores vantagens, qualquer autoridade que lhes opõem obstáculos é tirânica e o juiz que os condena à morte não é outro senão um infame assassino (Marat, ob. cit., p. 72). Coquard, ob. cit., p. 96. A sociedade não tem o direito de punir aqueles que violam suas leis, se não tiver se organizado de modo a cumprir as suas próprias obrigações em relação a todos os seus membros... O zelar pela própria sobrevivência é o primeiro dever do homem e os senhores mesmos não conhecem outros deveres acima deste: quem rouba para viver, desde que não 49
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direitos individuais assume nova e agudizada postura, admitindo como lícita a violação da lei, no plano coletivo a conseqüência é o resgate da teoria do direito de resistência – trilhando os passos de Chains of Slavery, sustenta que os delitos de lesa majestade seriam impuníveis, pois a sedição constitui, na maioria dos casos, uma luta do indivíduo contra o despotismo.29 Conclui-se que, ao irromper um giro metodológico na estrutura do pensamento liberal contratualista, incluindo como direitos fundamentais os direitos sociais, e ao sugerir uma práxis republicana e constitucionalista, Marat antecipa o pensamento ‘liberal-socialista’. Representa, portanto, versão otimizada do garantismo clássico, obscurecido, porém, pelas teorias ilustradas moderadas e pelo pensamento etiológico defensivista vindouro. Não obstante, estrutura a primeira versão da criminologia radical.30
Percebe Ruth Gauer32 que os egressos da Faculdade de Direito de Coimbra fomentaram o racionalismo jurídico no Brasil, cujo papel foi decisivo na construção do Estado-nação, visto que vieram a compor a elite pensante e o corpo técnico da burocracia nacional. A reforma do ensino realizada pelo Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, em 1772, resultado direto da Lei da Boa-Razão (1769), possibilitou a ruptura com a tradição acadêmica da intelectualidade portuguesa, e conseqüentemente brasileira, dominada pela formação jesuíta. O ‘atraso’ do pensamento luso-brasileiro em relação às idéias ilustradas que já estavam sedimentadas na Europa explica-se pelos dois séculos de influência canônica no ensino português. A reforma pombalina possibilita a secularização dos currículos e a recepção dos postulados iluministas – a reforma do estatuto da Universidade de Coimbra sintetiza o desenvolvimento do Iluminismo português. Forma as bases do direito positivo moderno que originará os códigos jurídicos posteriores. A reforma abre caminho para a formação de uma cultura jurídica portuguesa e para a aceitação do sopro revolucionário francês.33 Os ventos do iluminismo enciclopédico foram recepcionados em Portugal, transformando-se em ação com Mello Freire, professor da Universidade de Coimbra, nomeado vogal, em 1783, da comissão de notáveis do projeto de revisão do Livro Quinto das Ordenações. O trabalho foi concluído em 1789, quando apresentou dois projetos de reforma legislativa (projeto de Código de Direito Público e Código de Direito Criminal). Submetido a revisão, o projeto foi posteriormente censurado. Todavia, Mello Freire deixa consignado em suas Instituições de Direito Criminal Português o alcance da teoria contratualista no pensamento penal lusitano, apontando como principal influência Beccaria, não obstante citações de Locke, Grócio, Pufendorf, Montesquieu, Tomasius e Filangieri – os debates parlamentares e os textos jurídicos que comentam o Código Criminal de 1830 atestam a penetração deste ideário na formação ideológica brasileira.34 Ao alinhar treze axiomas como súmula dos pontos de vista que perpassaram a elaboração do Projeto de Código Criminal,35 Mello Freire
2.1.4. O contratualismo no direito penal brasileiro Impensável (re)escrever a história do pensamento penal liberal brasileiro sem pensar na influência da reforma pombalina,31 fundamentalmente aquela ocorrida na Administração da Justiça e nos currículos da Universidade de Coimbra – ambas gerando uma nova cultura e um novo modus de operar o jurídico.
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possa agir de outra maneira, não faz mais do que exercer os seus direitos (Marat, ob. cit., pp. 73- 74). No capítulo que versa sobre os Crimes contra o Estado, Marat afirma que a autoridade confiada aos príncipes tem como escopo a realização do bem-comum. Se reinam com eqüidade e respeito às leis, sempre será possível reclamar justiça e protestá-la quando não se a obtém. Entretanto, se as leis promulgadas ou as decisões tomadas são injustas, a autoridade do príncipe e/ou do juiz são ilegítimas, nascendo o direito de resistência à opressão – a desobediência a ordens injustas e a resistência a atitudes ilícitas não podem ser consideradas crimes (Marat, ob. cit., p. 94). Zaffaroni, Criminología, p. 120. Nota Gizlene Neder que, a partir do século XVIII, ocorreu um recrudescimento do rigor do sistema penal da coroa, observável através do aumento da freqüência da aplicação da pena de morte e, sobretudo, na mais visível funcionalização desta aplicação. Decorre daí a necessidade da política iluminista de definir como objetivo a reforma da justiça, para aumentar sua eficácia. Em Portugal, as medidas pombalinas apontavam esta tendência: a certificação das fontes de direito e a disciplina da jurisprudência, através da Lei da Boa Razão de 1769; a sistematização da formação jurídica e a disciplina do discurso dos juristas, impulsionadas pela reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra; sistematização do direito legislativo, através da tentativa do novo Código; a reforma da organização judiciária senhorial de 1790 e 1792 (preparatória de medidas mais amplas de reorganização judiciária, como a da reforma das Comarcas); a criação da Intendência Geral da Polícia (Neder, Iluminismo Jurídico-penal Luso-brasileiro, p. 159).
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Gauer, A construção do Estado-Nação no Brasil, p. 25. Silva, Mozart Linhares. Ob. cit., p. 75. Neder, Absolutismo e Punição, p. 204. “1 – É melhor deixar impune um crime que condenar um inocente; por isso, maior o dano vem à sociedade da condenação dum inocente que da absolvição dum culpado. 2 – Antes da sentença condenatória o réu deve ser tido como inocente. 3 – No foro criminal apenas se deve admitir a prova plena e perfeita. 4 – Quanto maior e mais grave for o delito, tanto 51
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consolida um modelo penal com a estruturação racional codificada, a adoção do princípio da reserva legal, do sentido humanista das penas, sua suavização, o repúdio à aplicação de pena sem culpa, a eliminação dos resquícios de vingança privada, a busca de uma proporcionalidade entre o castigo e a infração, a regra da presunção de inocência comum ao réu não condenado, e a abolição dos tormentos e das ordálias.36 Embora alterada em inúmeros pontos, alguns inclusive essenciais, a obra de Mello Freire orienta o processo de codificação português, notadamente o Código Penal de 1852, a Reforma Judiciária de 1826 a 1837 e a Novíssima Reforma Judiciária de 1841. Indelével, igualmente, sua marca na codificação penal e processual penal brasileira. Lembra Roberto Lyra37 que o artigo 179, no 18, da Constituição de 1824 prometeu um Código Criminal fundado nas sólidas bases da justiça e eqüidade. Em 04 de maio de 1827, Bernardo Pereira de Vasconcellos apresentou um projeto de Código Penal, sendo que, no dia 16 do mesmo mês, outro projeto foi protocolado pelo Deputado Clemente Pereira – ambos autores egressos da Faculdade de Direito de Coimbra, sendo que o responsável direto pelo Código fora aluno de Mello Freire.38 Encaminhados à respectiva Comissão, o projeto de Pereira de Vasconcelos foi aprovado. Assim, o Brazil antecipava-se, com a codificação das leis penaes, a Portugal, a Hespanha e a diversas republicas americanas, e ainda, salientemente, porque, attendendo á época e ao estado da sciencia, o código se destacava como um monumento legislativo, onde até originalmente se crystallisáram principios ora patrocinados pela escola criminal italiana, ou por ella apontados como fundamento da theoria positiva da repressão, taes como a satisfação do damno ex delicto, como matéria própria do juízo criminal, a co-delinquencia considerada em si mesma como aggravante.39
Forjado o modelo legislativo penal material desde a matriz liberal advinda da modernidade portuguesa – apesar da manutenção do regime escravocrata e da incompatibilidade discursiva que tal contradição gerava –, fundamental era a elaboração de estatuto processual que garantisse instrumentalidade à aplicação dos direitos. Redigido por Alves Branco, viu-se logo que era imenso o salto do L. V das Ordenações Filipinas para o liberalíssimo regime do Código de Processo.40 Em vigor com a promulgação da Lei de 29 de novembro de 1832,41 enraíza na codificação processual penal brasileira a influência autoritária do modelo Napoleônico do Code d’Instruction Criminelle de 17 de novembro de 1808, fundamentalmente no que tange à construção de um sistema misto de persecução penal (primeira fase inquisitiva, seguido de procedimento acusatório), cuja estrutura permanece em vigor até os dias atuais – o Código de Processo Criminal do Império adotou o procedimento misto ou eclético, muito embora o submetesse à regra da inquisitividade. Nosso legislador de 1832 ficou, portanto, num meio termo entre o procedimento acusatório, então vigente na Inglaterra, e o misto, adotado na França, este inquisitivo na fase instrutória e acusatório na fase de julgamento, mas, induvidosamente, o nosso Código era muito mais liberal, pois, no modelo francês, o acusado era colocado em uma situação de inferioridade em relação ao acusador oficial e o juiz exercitava uma atividade de produção de prova, valendo-se, para esse fim, até mesmo da tortura.42 Note-se, contudo, que, apesar da alteração no procedimento, fato que desencadeou inúmeros elogios,43 o sistema (misto) napoleônico
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maior deve ser a prova. 5 – A pena a ser inflingida deve ser inteiramente proporcionada à quantidade e gravidade do delito e à maldade do delinqüente. 6 – Não há delito nenhum sem vontade certa de delinqüir. 7 – A sua medida é o mal causado à humanidade. 8 – Na imposição das penas somente se deve olhar à utilidade pública. 9 – As penas foram estabelecidas, não tanto para punir, como para prevenir os crimes. 10 – Somente se devem castigar os verdadeiros delinqüentes ou os quase delinqüentes. 11 – É justa a pena que impede o criminoso de voltar a fazer o mal. 12 – E é, pelo contrário, injusta a que for inútil ou cruel. 13 – A atrocidade das penas gera impunidade e a indulgência do delito, que são as coisas mais funestas que há para a saúde pública” (Apud Thompson, Escorço histórico do Direito Criminal Luso-Brasileiro, pp. 121-122). Thompson, Augusto. Ob. cit., p. 131. Lyra, Direito Penal normativo, p. 42. Gauer, ob. cit., p. 307. Siqueira, Direito Penal brazileiro, p. 10.
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Almeida Jr., O Processo Criminal brasileiro, p. 176. O Código de Processo Criminal de 1832 vigorou até 1841 em todo o território nacional, sendo a primeira realização para federalizar o processo penal (Lyra, Direito Penal normativo, p. 44). Pierangelli, Processo Penal, p. 103. Veja-se, por exemplo, o diagnóstico apresentado por João Mendes de Almeida Jr. em relação ao ‘liberalíssimo’ estatuto: o código de Processo alterou completamente as formas do procedimento criminal. As devassas gerais, que já tinham sido abolidas em Portugal desde 1821, as devassas especiais, as querelas e as denúncias, conforme os requisitos das Ordenações – foram eliminadas: as querelas, tomando nova forma, passaram a denominarse – queixas e a competir sòmente ao ofendido, seu pai, mãe, tutor, curador, cônjuge; a denúncia passou a ser o meio de ação do ministério público ou da ação pública de qualquer do povo; o procedimento ex-officio foi autorizado em todos os casos em que cabe denúncia, ainda que denúncia não houvesse. A formação de culpa, desde o corpo de delito até o interrogatório, foi feita em sumário, a que só podia proceder-se em segredo sòmente quando a ela não assistisse o delinqüente e seus sócios; a acusação e o julgamento, nos crimes de pena maior que seis meses de prisão ou degredo, passaram a ser feitas em processo público e oral perante o júri. O júri era constituído de dois conselhos: o primeiro, para declarar se havia motivo para a acusação; o segundo, que era o júri da sentença. Foram 53
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importado pelo legislador nacional mudou apenas a forma do processo do antigo regime das ordenações, mantendo inalterada a sua essência (inquisitorialidade), fundamentalmente porque, na impossibilidade prática de conjunção dos dois sistemas (inquisitivo e acusatório), a estrutura autoritária prevaleceu sobre a tendência liberal – da maneira como se pretende, os sistemas inquisitório e acusatório não podem conviver não só porque a ‘contaminatio’ é irracional no plano lógico, como também porque a prática desaconselha uma comistão do gênero.44 A propósito, nada melhor para manter a aparência/virtualidade garantista de um sistema jurídico, impedindo o gozo dos direitos fundamentais, que desestabilizar inquisitorialmente o mecanismo processual, não obstante um estatuto material humanitário. Com a elaboração dos Códigos nacionais a partir dos ensinamentos de Coimbra e da influência do pensamento francês, aflora a necessidade de o ‘Brasil independente’ produzir sua própria elite intelectual e burocrática, bem como criar uma identidade jurídico-política autônoma. Assim, em 1826 foi autorizada a instalação dos cursos jurídicos no país: Faculdade de Direito de Olinda (1828), posteriormente transferida para Recife (1856), e Faculdade de Direito de São Paulo (1827). E é da Faculdade de Direito de Recife que surgirão as primeiras elaborações teóricas genuinamente nacionais em matéria penal. Com a formação da Escola do Recife, o pensamento nacional assumirá o discurso penal diverso do liberal, aderindo os cânones da criminologia positivista italiana.
desvincular direito e natureza, legado da primeira grande crise do pensamento garantista decorrente do paradigma etiológico. Como se procurou demonstrar, a formação do paradigma garantista ocorre sob ampla assunção da filosofia iluminista, elevando a razão como instrumento de resistência à barbárie e ao irracionalismo inquisitorial. É claro que o paradigma garantista, em se tratando de tipo ideal, nunca foi (nem será) realizado em sua plenitude. Seu objetivo é demonstrar, e aqui reside sua virtude, a constante tensão entre dois modelos diversos e assimétricos de percepção da realidade jurídica (e política). A função precípua do pesquisador identificado com as razões garantistas, portanto, é a de expor criticamente a diafonia existente entre os modelos (garantistas e inquisitoriais), procurando otimizar ao máximo a estrutura de tutela dos direitos fundamentais, tanto em perspectiva de lege lata, através do ‘uso alternativo do direito’, quanto de lege ferenda, via políticas criminais alternativas. A primeira crise do garantismo ocorre durante a transformação da matriz do Estado moderno, ou seja, no câmbio do Estado Liberal ao Estado Intervencionista, a partir de meados do século XIX, com a consolidação da burguesia no poder. Se o discurso liberal proporcionou o rompimento com a imutável ordem social do medievo, possibilitando a ascensão da burguesia, no momento em que esta se solidifica no poder há clara transposição ideológica do discurso. Busca-se estabelecer uma nova racionalidade que justifique e legitime este poder arduamente conquistado. (Re)Definidos os lugares após a modernidade, renova-se a necessidade de uma legitimidade naturalística da estrutura social. O modelo penal clássico é identificado fundamentalmente como um modelo restrito de intervenção, visto entender de forma limitada as funções estatais. A impossibilidade de conjugar sob o mesmo modelo as diversas correntes do garantismo ilustrado decorre, como visto, da diversidade doutrinária no que diz respeito à sua base estrutural: o contrato social. Assim, se em Marat e Feuerbach se percebe versão otimizada e revolucionária, quiçá subversiva da noção contratualista, na Accademia dei Pugni, principalmente em Beccaria, vislumbra-se um garantismo penal moderado, conservador de noções fragmentárias e maniqueístas da realidade no que tange ao crime e ao criminoso, versão esta que imperou e foi transnacionalizada como ‘o’ modelo penal do pensamento da modernidade. Tal fato explica a razão, mesmo no interior do discurso penal liberal, da ‘demonização’ do delito e do delin-
2.2. O refluxo do pensamento garantista Se o marco do garantismo penal contratualista foi construído sob a égide da laicização do direito e do Estado, rompendo os laços entre o direito (delito) e a moral (pecado), atualmente a teoria garantista intenta realizar outro, e não menos importante, processo de cisão, qual seja,
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regulados os recursos ordinários e o recurso, denominado extraordinário, do habeas-corpus (Almeida Jr., ob. cit., pp. 175-176). Não distante os dizeres de Frederico Marques, para quem o Código de Processo era a sínteses dos anseios humanitários e liberais que palpitavam no seio do povo e da nação, pois, graças a ele, perdurou, nas leis nacionais um acentuado espírito antiinquisitorial que nos preservou o processo penal, de certos resíduos absolutistas que ainda existem nos códigos europeus (Apud Pierangelli, ob. cit., p. 98). Coutinho, O papel do novo juiz no processo penal, p. 41.
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qüente, bem como a exclusão, do universo científico, da crítica incisiva de Marat e Feuerbach. Zaffaroni adverte, portanto, para o fato de que um possível retorno ao direito penal liberal não pode significar revisita ao ‘museu penalístico dos séculos XVIII e XIX’. Advogar os princípios liberais deve ser tomado com cautela, sobretudo como forma de evitar justificações defensivistas presentes em seu discurso.45 O alerta do criminólogo portenho é extremamente pertinente pelo fato de que o pensamento clássico oficial, apesar de romper com o barbarismo do processo penal, instaurar regime de legalidade e ‘humanizar’ a pena, não deixa de apresentar um núcleo ideológico antiiluminista (ou uma confusão pós-iluminista entre direito e moral) calcado nos princípios ideológicos da Defesa Social, representado, principalmente, no que Alessandro Baratta denomina de princípio do bem e do mal’.46 Segundo essa principiologia, a sociedade apresentar-se-ia como um todo orgânico e funcional de indivíduos idôneos e respeitadores da lei, sendo a única disfunção o delito. A infração às normas seria caracterizada como dano social, sendo que o crime representaria uma exceção no convívio. O sistema penal deveria, neste contexto, direcionar sua atuação no sentido de combater/eliminar o crime, concebendo uma política criminal/penitenciária bélica. Assim, no momento em que o modelo penal da Ilustração não cumpre a promessa de diminuição radical da criminalidade, instaura-se a crise, gerando a necessidade de novo discurso legitimante, de uma nova operacionalidade na ‘luta racional contra o delito e o delinqüente’.
Estado leva a uma substancial, e substancialista, mudança no discurso jurídico-penal da periferia. Se a característica do Estado liberal é o absenteísmo, e daí seu programa minimalista, o Estado intervencionista vem afirmar sua atuação, interferindo ao máximo nas esferas de controle social com escopo de combater com eficácia a criminalidade. Embriagada pelo discurso evolucionista das ciências naturais e pela mudança nas funções do Estado, a Escola Positiva agrega os cientistas que pesquisam o fenômeno delitivo. Sob a inspiração de Ferri, sustenta a nova ‘ciência’ que a missão dos ‘clássicos’ de diminuição das penas estava cumprida; todavia, sua atuação no combate à criminalidade tinha sido irrisória devido à excessiva preocupação com o delito (ente jurídico), reduzindo o saber à esfera do direito,47 e olvidando o verdadeiro protagonista na relação delitiva: o homem criminoso – objeto de investigação que intitula a obra de Lombroso, marco teórico do paradigma etiológico (L’uomo delinquente, 1886). Segundo Zaffaroni,48 é praticamente impossível compreender o surgimento deste saber se não se compreende o sentido geral do positivismo e o jogo dos saberes que nutriam os interesses em questão. Sustenta que a hegemonia (status quo burguês) necessitava explicar como natural seu poder em relação ao controle social, apelando aos saberes antropológicos e sociológicos positivistas para retomar o argumento organicista. Do posicionamento revolucionário no período ilustrado, os cientistas burgueses (re)legitimam os postulados naturalistas típicos do inquisitorialismo. Este discurso, porém, não mais estaria solidificado sob a chancela do jusnaturalismo teológico, mas pela nascente ciência: a ‘física social’. O discurso científico da inferioridade bio-psico-antropológica do homem delinqüente advogado pela Escola Positiva italiana, tanto em
2.2.1. O paradigma etiológico e a estética do mal O desenvolvimento da epistemologia positivista, a partir de meados do século XIX, determina profunda crise no pensamento penal. A concepção individualista e racional não corresponde mais às expectativas sociais e empiristas deflagradas por pensadores como Darwin e Spencer. A mudança na racionalidade central (européia) em relação ao 45
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Nota Zaffaroni, ao lembrar a teoria penalógica de Romagnosi, que o grande perigo da volta ao direito penal liberal é o de se retornar esquecendo aqueles germes que ele continha: o que não pode ser feito. Assumamos, dos velhos liberais, os princípios liberais, mas mantenhamos à parte, com todo cuidado, os germes de iliberalismo contidos nas suas teorizações (Zaffaroni, La Rinascita del Diritto Penale Liberale o la ‘Croce Rossa’ Giudiziaria, p. 386). Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, pp. 59-69.
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Significativas as palavras de Ferri ao definir os novos métodos de estudo do delito e da delinqüência: até esses últimos tempos, os criminalistas não estudaram o delinqüente. Concentraram sua atenção e todo o esforço de seus silogismos sobre o estudo do crime que eles consideravam não como o episódio revelador de um modo de existência, mas simplesmente como uma infração às leis. Eles não viam, no delito, senão sua superfície jurídica e não sonhavam em procurar as raízes profundas da degenerescência individual e social (Ferri, Os criminosos na arte e na literatura, p. 29). Prossegue afirmando que a jurisprudência clássica, de Beccaria a Carrara, ocupa-se exclusivamente dos crimes. Ela deixava seus autores na sombra, atribuindo-lhes um tipo único e médio de homem como todos os outros, salvo quando se encontra em presença de circunstâncias evidentemente anormais (Ferri, ob. cit., p. 30). Zaffaroni, Criminología, pp. 131-132. 57
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relação aos povos colonizados da periferia quanto das massas operárias centrais, não permitia duvidar da superioridade branca européia, muito menos da superioridade das classes dominantes e dos trabalhadores disciplinados sobre as classes tumultuosas.49 Muito embora se possa encontrar antecedentes à nascente criminologia – v.g. Quetelet e Topinard, primeiro autor a utilizar a expressão –, o pensamento de Lombroso opera o esperado câmbio epistemológico nas ciências criminais. Ao realizar estudos de anomalia craniana50 nos cárceres italianos, através do método frenológico, Lombroso encontra no cadáver de Villela indicações de formação biológica primitiva: a fosseta occipital média.51 A partir desta constatação, Lombroso desenvolve e populariza, com auxílio de Ferri, a tese do criminoso nato: um ser humano primitivo cuja fisiologia, através de um processo de regressão atávica, assemelhar-se-ia à do selvagem. A tese da degeneração antropológica seria posteriormente ampliada, e ao criminoso nato seriam agregados os epiléticos e os ‘loucos morais’, conformando o conhecido tríptico lombrosiano.52 A afirmação de Lombroso e dos demais pensadores congregados ao paradigma etiológico definiria um ser humano predeterminado organicamente ao delito. Capacita-se, via antropologia e sociologia criminal, a possibilidade de catalogação e identificação de indivíduos ontologicamente perversos, em decorrência de suas anomalias anatômicas e fisiológicas. Em relação antagônica ao pensamento sustentado pelos autores do paradigma contratualista, a concepção da Escola Positiva nega totalmente o livre-arbítrio (pressuposto da culpabilidade), pelo fato de o crime não ser mais o resultado de vontade livre do sujeito, mas sim de (pré)condições individuais, físicas ou sociais – a nossa escola pode
ser resumida na seguinte proposição: as causas do delito são de uma tríplice ordem: individuais, físicas e sociais.53 O princípio da culpabilidade, centrado na responsabilidade moral, torna-se inadmissível frente ao agir condicionado, sendo substituído pela noção de periculosidade, categoria cuja função será demonstrar os níveis individuais de propensão ao delito.54 Portanto, desde o final do século passado está se desenvolvendo uma crise regressiva da categoria culpabilidade, ofuscada ou renegada em diferentes formas, em sede teórica ou normativa, por obra de doutrinas ou de ordenamentos autoritários, que tendem a alinhá-la, integrá-la ou substituí-la pela noção de ‘periculosidade’ do réu ou com outras figuras de qualificação global da sua personalidade, como a capacidade de delinqüir, a culpabilidade de autor e semelhantes.55 Da noção que concebe o sujeito do delito como capaz de compreensão e de opção entre duas condutas distintas (lícita ou ilícita), qualificadas por juízos que versam sobre os liames subjetivos e objetivos em sua realização material, bem como o seu vínculo com o resultado, o sistema penal volta-se à essência (‘ser’) do autor, avaliando sua propensão ao crime, estabelecendo juízos substancialistas relativos ao processo ontológico que determinou seu agir. Juntamente com o princípio da culpabilidade, o princípio da legalidade e da jurisdicionalidade sofrerão sérios abalos. O fato de a criminalidade ser um fator natural, perceptível empiricamente no mundo dos fatos pela experiência da investigação científica, e não uma realidade artificial selecionada pela lei (ente jurídico), demonstra a fragilidade do direito penal em relação à criminologia. A mudança de objeto – da lei ao homem delinqüente – condiciona uma mudança radical de método – do lógico aristotélico (dedutivo) ao indutivo experimental (empirista) –, e do acertamento processual dos casos penais – do modelo cognoscitivista jurisdicional ao decisionismo valorativo substancialista. Do estudo das relações objetivas e subjetivas entre o fato e o resultado, a ciência penal parte para anamnese reconstrutiva da personalidade do indivíduo desde os seus primórdios, julgando e punindo sua história de vida. A um direito penal do fato-crime se sobrepõe um direito penal do autor fundado na periculosidade, independente da
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Zaffaroni, ob. cit., p. 134. Neste sentido, conferir Lombroso, O Homem Delinqüente, pp. 179-211. Em Villella, calabrês, ladrão de muito grande agilidade, que na idade de 70 anos apresentava ainda as suturas abertas, essa fosseta aparecia em dimensões verdadeiramente extraordinárias: comprimento de 34 milímetros, largura de 23, profundidade de 11, e associava-se à atrofia das fossas occipitais e à fusão do Atlas (Lombroso, ob. cit., p. 195). Apesar da classificação lombrosiana, Ferri propõe tipologia diversa: a ciência atual esforça-se para pôr em relevo os caracteres que diferenciam os criminosos entre eles, e exprimir sua individualidade física e psíquica no meio ambiente particular a cada um deles. Ela substitui, enfim, um tipo clássico, único e incolor, pelas diferentes fisionomias dos delinqüentes. Há muito tempo já que eu os agrupei a todos em cinco tipos principais: o criminoso nato, o criminoso por hábito adquirido, o criminoso passional e o criminoso acidental – e minha classificação biossociológica é adotada hoje por quase todos os sábios (Ferri, ob. cit., p. 31).
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Ferri; Lombroso; Garofalo & Fioretti, Polemica in difesa della Scoula Criminale Positiva, p. 288. As formas de graduação da periculosidade criminal são expostas por Ferri, Princípios de Direito Criminal, pp. 287-289. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 492. 59
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relação de proporcionalidade entre a lesão do bem jurídico tutelado e a norma jurídica.56 A um modelo processual acusatório baseado na presunção de inocência e nas possibilidades fáticas de comprovação e refutação de hipóteses, impõe-se um modelo inquisitorial de julgamento da personalidade do réu e suas ‘tendências’.57 A uma estrutura retributiva da pena, cominada com escopo de reprovar a violação da norma, impõe-se a tarefa de influenciar e modificar o ‘ser’ do ‘Outro’. A sobreposição do empirismo ao direito na definição do desvio/desviante gera novo discurso anti-secular, já não mais delineado pelas relações do jurídico com a moral, porém. O novo inquisitorialismo é perceptivelmente visualizado nas relações simétricas entre direito e natureza, em nova concepção substancialista do crime/criminoso.
Agora não mais o herege, mas o perverso; não mais o satânico, mas o selvagem (hediondo), cuja periculosidade rompe com os naturais laços de convivência social. Mariangela Ripoli58 sintetiza a regressão iluminista sustentando a necessidade histórica de criação de um novo modelo de controle penal de modificação do indivíduo adequado ao sistema social da época. Tais tendências seriam instrumentalizadas pelas relações e interações do direito com novas disciplinas criminais: pedagogia, antropologia, sociologia, serviço social e psiquiatria, todas submetidas à matriz científica criminológica. Como ensina Alessandro Baratta,59 a Escola Positiva autonomiza o estudo do delito pois, seja privilegiando fatores bio-antropológicos, seja assumindo posturas sociológicas (ambiente telúrico, clima e temperatura), parte de uma concepção ontológica, de uma realidade pré-constituída ao direito. O organicismo social direciona o sistema penal à eliminação/correção do elemento disfuncional. A anormalidade degenerativa perceptível no delinqüente nato possibilita nova ruptura maniqueísta na estrutura social. Zaffaroni60 sustenta que gradualmente a concepção positivista da antropologia lombrosiana foi gerando uma estética da maldade. Esta estética do mal visualizada na inferioridade genética – degenerações biológicas e psicológicas (geralmente provocada por fome, miséria e condições higiênicas deploráveis, registre-se) – foi delineando o estereótipo do pobre bom (física e moralmente) e do pobre mau (feio por natureza, repugnante e moralmente perverso). Essa gente má, primitiva, inferior e subumana deveria ser feia, porque o mal e o feio quase sempre se identificam. O discurso dominante permitia, assim, desqualificar as massas populares organizadas; inferiorizar os colonizados, pois sua beleza não respondia aos ideais estéticos europeus; e isentar de responsabilidade as classes industriais de grande parte dos delitos patrimoniais cometidos. A nova (anti)ética produz uma nova e perversa estética. A concepção criminológico-positivista inaugura, portanto, a primeira reação anti-ilustrada (inquisitiva) ao garantismo penal, (re)estabelecendo processo anti-secular e intolerante, de cujo solo emerge uma
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Contra as categorias garantistas da culpabilidade e proporcionalidade, Garófalo propôs verdadeira batalha, visto que, segundo ele, eram responsáveis pela impotência da lei penal: responsabilidade moral e proporção penal, eis os dois princípios combatidos pela nova escola naturalista. Muito maltratados estes princípios acham-se, contudo, tão intimamente ligados aos preconceitos filosóficos mais comuns que não pode esperar vê-los rapidamente extirpados da ciência penal. Importa continuar a luta com paciência, apelando não para o vulgo, mas para a aristocracia do pensamento. Como todos os outros progressos intelectuais, este partirá também de cima para difundir-se depois pelas camadas inferiores. E será uma obra útil, esta, porque tais princípios, considerados sem razão a garantias dos direitos individuais, não são na realidade senão a causa da fraqueza e impotência da lei punitiva (Garófalo, Criminologia, p. 185). Anota João Mendes de Almeida Jr. que o intuito da Escola Positiva não era apenas a reforma da noção de crime e pena, mas também da organização juridiária, da ação e do processo penal. Os pontos culminantes da reforma seriam: 1o nada de júri, nada mesmo de magistrados juristas: os jurados são, em geral, pessoas incultas, sem antecedentes, nem hábitos que garantam o acerto de seus julgamentos; os magistrados juristas, ao menos os de hoje, imbuídos das doutrinas espiritualistas, não conhecem os indícios fisiológicos e antropológicos que podem fixar a natureza do delinqüente e a pena. O magistrado deve ter não um diploma do estudo do direito, mas do estudo de sociologia, fisiologia e antropologia criminal. Os jurados são a guarda do direito; entretanto, ‘a guarda nacional foi abolida como uma milícia inútil que não era inofensiva, ao passo que o júri, além de inútil, é extremamente perigoso’, diz Garófalo; 2o relativamente à ação, em caso algum deve-se deixar à parte o direito exclusivo de proceder contra o delinqüente, porque a pena, em caso algum, deixa de ser uma necessidade social, considerado o perigo da reincidência; 3o a instrução deve ser secreta e escrita, limitando-se a publicidade e a oralidade ao caso de contestação sobre o valor das provas do fato, sobre os antecedentes pessoais e hereditários do indiciado e seus sinais antropológicos. Os casos de prisão preventiva devem ser ampliados e os de fiança devem ser restringidos. A última fase do processo, a mais importante e decisiva e de interesse capital para o acusado, consistirá no exame antropológico e na aplicação matemática da eliminação, se o delinqüente apresentar os caracteres de um criminoso nato. Se não é um criminoso nato, será um alienado, que deve ser internado em asilos ou manicômios especiais e entregue ao cuidado e à repressão dos médicos alienistas que os dirige; 4o os recursos devem ser restritos e as jurisdições devem ser menos rigorosas na exigência do cumprimento das formalidades (Almeida Jr., O Processo Criminal Brasileiro, pp. 230-231).
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Ripoli, Diritto e Morale, p. 169. Baratta, ob. cit., pp. 38-40 Zaffaroni, ob. cit., pp. 131-176. 61
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nova concepção substancialista do desvio, não mais aliado metaforicamente à figura do pecado, mas sim à perversidade nata. Como observa Zaffaroni,61 a contribuição lombrosiana, como aporte teórico, pode ser extremamente ingênua, visto sua estrutura científica insustentável. Todavia, não é de forma alguma inofensiva, pelo contrário, seu simplismo resultou altamente justificador e perigoso, sobretudo na América Latina, verdadeiro eldorado da nova escola.62
alienígenas à origem itálica. Na França, é desenvolvido por Morel, Lacassagne e Brounardel; no universo anglo-saxão, o paradigma etiológico é respaldado por Barbara Wootton; no ambiente soviético, o reflexo é percebido nas obras de Pasukanis e Stucka; e, na América Latina, encontra eco nas teorias de Alberto Lamar Schweyer, em Cuba; Tomas Vega Toral e Carlos Salazar, no Equador; Domingos Faustino Sarmiento e Norberto Piñero, na Argentina; e Miguel S. Macedo, no México. Apesar de a nova ciência do Direito Penal ser inaugurada formalmente no Brasil com a obra Criminologia (1896), de Clóvis Beviláqua – mais descortinado em Direito Penal do que em direito civil,64 e cuja pesquisa sobre a distribuição geográfica da criminalidade, em especial no Ceará, inaugura uma nova metodologia de estudo do crime no Brasil –,65 antecederam-no inúmeros adeptos do paradigma etiológico, dentre os quais destacam-se João Vieira de Araújo, lente da cadeira de Direito Criminal, autor de Ensaios de Direito Penal (1884) e Código Criminal brasileiro (1889) e profundo conhecedor de Lombroso; Viveiros de Castro, glosador de Tarde e estudioso de Ferri, autor de A Nova Escola Penal (1894); e o médico higienista Afrânio Peixoto, autor de Epilepsia e Crime (1898), Psicopatologia Forense (1916), Novos Rumos da Medicina Legal (1932) e Criminologia (1933). No entanto, foi Nina Rodrigues, catedrático de Medicina Legal na Faculdade de Direito da Bahia – aliado a Moniz Sodré, igualmente professor da Faculdade de Direito da Bahia e profundo conhecedor de Garófalo e Lombroso –, que se destacou como o principal divulgador das idéias da Escola Positiva, assumindo o discurso central e inaugurando a primeira fase de pregação doutrinária da teoria criminológica. No universo acadêmico da Faculdade de Direito de São Paulo seguiram o modelo Pedro Lessa, adepto da sociologia criminal de Ferri, e Cândido Motta, que produziu a compilação Classificação dos Criminosos (1897), louvada por Lombroso como a mais perfeita obra sobre o assunto.66 Desde o fim do Império e durante a República Velha, autores como Afrânio Peixoto e Clóvis Beviláqua sustentavam a necessidade de impor freios à miscigenação racial, temendo um processo de degeneração social.67 O delinqüente, espécie à parte da humanidade, passa a
2.2.2. A matriz etiológica no direito penal brasileiro e o saber defensivista colonizado(r) Se a geração penalista brasileira de 1820 foi responsável pelo movimento constitucional e pela feitura dos Códigos Criminal e Processual Penal, assumindo a matriz liberal da ilustração européia em decorrência dos ares da reforma pombalina, a partir de 1830, com a instalação dos cursos de Direito no país, objetiva-se a construção de um caldo cultural (e jurídico) nacional que fosse autônomo, mas ao mesmo tempo em sintonia com o saber central. O ‘bacharelismo’ sintetiza tais anseios. Polarizado o saber acadêmico nacional entre Recife e São Paulo,63 é do nordeste que advirá a primeira escola jurídica genuinamente brasileira, sob a forte influência do positivismo criminológico. Assim, o produto das teorias etiológicas não ficou reduzido ao universo científico europeu. O modelo terapêutico-racista propugnado pela Escola Positiva italiana é acompanhado por inúmeros pensadores, nas mais diversas localidades. Não podemos olvidar que o processo de transnacionalização do paradigma etiológico encontra guarida em inúmeros pensadores 61 62
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Zaffaroni, ob. cit., p. 165. Por volta do início do século XX, foi possível fazer um balanço dos progressos realizados durante os dois últimos decênios. Após um período de sucesso, as teorias de Lombroso são por toda parte abaladas pelo surgimento de novas teorias de caráter antropológico ou sociológico, com exceção dos países flamengos, onde a escola positiva conserva sólidas posições, e dos países latino-americanos, verdadeiros eldorados da nova escola (Darmon, Médicos e Assassinos na Belle Époque, p. 110). Apesar de contemporâneas, as escolas divergiam em seu aspecto teórico. A escola de São Paulo era orientada mais pelas tendências liberais e a de Recife, pelas questões de raça. Recife interessava-se pela formação de homens de ciência, teóricos que se preocupavam com a constituição e desenvolvimento da nação. São Paulo preocupava-se com a formação de líderes que dirigissem a nação. Estas duas orientações jurídicas na realidade se completam e caracterizam a peculiaridade da formação jurídica brasileira como um todo (Silva, Do império da Lei às grades da cidade, p. 93).
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Lyra, Nôvo Direito Penal, p. 40. Neste sentido, conferir Beviláqua, Criminologia e Direito, pp. 53-90. Lyra, ob. cit., p. 32. Clóvis Beviláqua, ao estudar os confrontos étnicos e históricos da criminalidade, parte da premissa que a mestiçagem brasileira influi demasiadamente nos índices de violência. 63
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ser diagnosticado pelo atavismo – os criminosos, diz-se neste momento, são basicamente incapazes de realizar um adequado controle moral, como o são as pessoas honestas. Sua anormalidade se manifesta por um excesso instintivo, explicado como um retorno a um estado selvagem, atávico, hereditariamente determinado.68 É em Nina Rodrigues, porém, que se encontra otimizada a recepção do saber criminológico-positivista central, em profícuo trabalho de popularização da tese da inferioridade das raças. No livro As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (1894), o autor, com o intuito de estabelecer um modelo ‘científico’ e harmonioso com sua orientação metodológica (lombrosiana), busca, consoante os estudos de Beviláqua, traçar os perfis da delinqüência no país.69 Após delinear o quadro antropológico e étnico brasileiro e avaliar a responsabilidade criminal de índios, negros70 e mestiços,71 Nina
Rodrigues critica a estrutura legislativa brasileira e propugna um programa político-criminal de defesa social que, em realidade, capacita uma estrutura persecutória de tutela da ‘fraca minoria da raça branca’ contra a degenerescência. Constata Mozart Linhares da Silva que a questão racial, especificamente no que tange à cultura afro-brasileira, tornar-se-á o primeiro inimigo da modernidade brasileira, impedindo, segundo o saber colonizado(r), o desenvolvimento de uma ‘boa’ civilização – é importante notar que o direito que coloca o negro dentro da questão judiciária e penal é o positivo. Somente com o desenvolvimento desta escola é que o negro passou a ser estudado como objeto concreto da ciência. Crendo-se longe das mistificações e mitos da época colonial, o direito ‘ciência’, fortemente influenciado pela criminologia [da escola positiva] e pela medicina legal, montou um projeto social que excluía o negro dos resultados positivos que a sociedade poderia adquirir, pretensão que contrariava o sentido cultural da miscigenação, ou seja, a pluralidade; miscigenação que somente era positiva caso limpasse e jamais criasse.72 O diagnóstico é corroborado por Ruth Gauer, quando constata que os diversos grupos étnicos que compunham a população brasileira passaram a ser avaliados em função da teoria da degeneração, que teve muita importância nos primórdios da psiquiatria brasileira. É importante lembrar que o Brasil era definido pelas suas características raciais, sendo que estas eram tidas como fundamentais quando se tratasse de apontar para as potencialidades do povo e o futuro da nação. Nesse contexto, um analista da realidade nacional, que teve muita importância na passagem do século dezenove para o vinte, foi, sem dúvida, Nina Rodrigues.73 Considerado por Lombroso como apóstolo da antropologia criminal na América do Sul, em As Raças Humanas Nina Rodrigues sustenta haver no Brasil uma criminalidade étnica no sentido da coexistência de inúmeras raças em fases diversas de evolução. Desta forma, afirma que não haveria maior absurdo do que o nosso Código Penal considerar o desenvolvimento do norte do país, situado em zona tórrida e onde predomina o índio, o negro e os seus mestiços, igual ao desenvolvimento mental no sul da República, situado em zona temperada e onde
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Ao partir das três grandes raças que ocasionaram a formação do brasileiro (branca, cabocla e negra), constata que o cruzamento das duas raças inferiores é mais productivo em seres inquinados pelo estigma da delictuosidade do que a mestiçagem de qualquer delas com a raça branca. Assim, percebe que, quando o preto se combina com o branco (mulato), a inclinação criminosa baixa; mas, si há um retorno á fonte negra (cabra), se realça aquella inclinação. Desta forma, as duas raças inferiores contribuem muito mais poderosamente para a criminalidade do que os aryanos (Beviláqua, ob. cit., pp. 93-94). Diagnostica, portanto, Cristina Rauter, que para Beviláqua a miscigenação favorece o crime e quanto mais ela tende para as características negras, mais esta tendência se acentua. Porque as raças inferiores, negra e índia, representam por si sós uma espécie de degeneração. São estágios inferiores de um processo evolutivo, que culminaria com a raça branca, ariana, menos propensa à criminalidade (Rauter, Criminologia e Poder Político no Brasil, p. 32). Rauter, ob. cit., p. 28. Apesar de ter alcançado notoriedade com a obra mencionada, suas pesquisas sobre a relação entre as raças e o crime são inúmeras, como se pode perceber em Afrânio Peixoto: na sua biografia [de Nina Rodrigues] lereis ‘os mestiços brasileiros’, ‘negros criminosos no Brasil’, ‘animismo fetichista dos negros bahianos, ‘ilusões da catequese no Brasil’, ‘o regicida Marcelino Bispo’, ‘epidemia de loucura religiosa’ em Canudos, ‘paranóia dos negros’, ‘mestiçagem, degeneração e crime’, ‘o alienado no direito civil brasileiro’, a ‘solução do problema médico-judiciário no Brasil’, ‘o problema médico-judiciário no Brasil’, ‘o problema negro na América portuguesa’, e assim, quase sem exceção (Peixoto, Vida e Obra de Nina Rodrigues, p. 12). Segundo o autor, a capacidade criminal de índios e negros deveria ser diferenciada – a responsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças inferiores, não pode ser equiparada a das raças brancas civilizadas (Rodrigues, As Raças Humanas, p. 118). Assim, conclui: o exame que tenho feito me autoriza plenamente, parece, a concluir que os negros e índios, de todo irresponsáveis em estado selvagem, têm direitos incontestáveis a uma responsabilidade atenuada (Rodrigues, ob. cit., p. 123). Quando aos mestiços, o cruzamento entre raças dessemelhantes provocaria influências degenerativas, com efeitos na condição mental e, conseqüentemente, na responsabilização penal – dos mestiços, eu não pretendo certamente que sejam todos irresponsáveis.
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Tanto importaria afirmar que são todos degenerados. Mas acredito e afirmo que a criminalidade no mestiço brasileiro é, como todas as outras manifestações congêneres, sejam biológicas ou sociológicas, de fundo degenerativo e ligada ás más condições antroplógicas do mestiçamento no Brasil (Rodrigues, ob. cit., p. 158). Silva, ob. cit., pp. 98-99. Gauer, A etnopsiquiatria na visão dos intelectuais brasileiros, p. 92. 65
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dominava a colonização alemã e italiana.74-75 Assim, ao criar tipologias diferenciadas entre os brasileiros (descendente europeu, negro, índio, mulato e mestiços – superiores, comuns e degenerados), assume as premissas evolucionistas que geraram desde concepções jurídicas baseadas na inimputabilidade das raças inferiores devido ao seu inferior grau de civilização e inteligência, até propostas político-racistas genocidas fundadas no atavismo do ‘selvagem’ e na limpeza social. O contraponto ao modelo teórico adotado por Nina Rodrigues encontra-se em Tobias Barreto, homem pobre, perseguido, contraditório, agressivo e paranóico. Como salientou Nilo Batista, Tobias Barreto se antecipava extraordinariamente às concepções jurídicas no Brasil de sua época.76 Os problemas de coerência e sistematicidade metodológica e de conteúdo na obra de Tobias Barreto são notórios. Segundo Eugenio Raul Zaffaroni, Barreto no fue un autor sistemático; era lo más alejado de tal modalidad. No obstante, sus contradiciones son, en buena medida, el producto de un pensamiento que avanzaba a medida que iba adquiriendo y elaborando información y que muere a la edad en que suelen producirse las expresiones de mayor madurez creativa o, al menos, el asentamiento de lo ya creado.77 Tobias Barreto direciona incisivas críticas ao pensamento lombrosiano e, conseqüentemente, à base teórica que Nina Rodrigues tentava consolidar. Afirmava que a idéia capital de Lombroso não é de todo isenta de certo sabor de paradoxia. Reduzindo o crime às proporções de um fato natural, incorrigível, inevitável, tão natural e incorrigível como a doença, pareceria que Lombroso julgava inútil a função da justiça pública.78 Em Menores e Loucos (1884), ironiza a proposta etiológica, afirmando propugnarem seus adeptos à substituição da cadeia pelo mani-
cômio criminal. Se assim fosse, talvez seria necessário colocar no hospital a humanidade inteira.79 É árduo, contudo, quando discorre sobre o sentido ilusório da ideologia do tratamento e o processo de profissionalização medicalizada introduzido pelo modelo criminológico, no qual médicos postulavam reformar a filosofia e revogar o direito criminal: o psiquiatra quer destronar o jurista, a psiquiatria quer tornar dispensável o direito penal.80 Inegável, neste sentido, que Tobias Barreto iniciou o processo de reação à invasão do positivismo criminológico no âmbito do controle social punitivo, sendo o pioneiro da resistência à ideologia racista e reacionária disfarçada de ciência biologista, antidemocrática, justificadora das elites das repúblicas oligárquicas da América Latina, da seleção racista e classista dos nossos sistemas penais, da luta contra o genocídio penal do neo-colonialismo.81 Interessante notar que a luta do positivismo criminológico no Brasil dar-se-á contra o espectro do Tobias Barreto, visto que inexistiu confronto direto com Nina Rodrigues, pois a crítica do catedrático baiano advém após sua morte. Todavia, a força do pensamento de Barreto é tal que o grande duelo travado por Nina Rodrigues em As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil é contra seu legado,82 sendo este espólio teórico responsável por frear a patologização absoluta do direito penal e sua conseqüente transposição à ciência médica. Não obstante as críticas ao positivismo criminológico, servindo como contraponto ao pensamento vindouro, Barreto, no manuscrito Prolegômenos ao Estudo do Direito Criminal,83 adota um modelo defensivista de justificativa do Direito Penal que, no campo ideológico, acaba
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Apud Zaffaroni, Tobias Barreto y la Critica de Nina Rodrigues, p. 300. Veja-se, por exemplo, a luta feroz de Nina Rodrigues contra a unidade de Código: posso iludir-me mas estou profundamente convencido de que a adoção de um código único para toda a República foi um erro grave que atentou grandemente contra os princípios mais elementares da fisiologia humana. Pela acentuada diferença da sua climatologia, pela conformação e aspecto físico do país, pela diversidade étnica de sua população, já tão pronunciada e que ameaça mais acentuar-se ainda, o Brasil deve ser dividido, para os efeitos da legislação penal, pelo menos nas quatro divisões regionais que são tão natural e profundamente distintas (Rodrigues, As Raças Humanas, pp. 166-167). Batista, Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 19. Zaffaroni, ob. cit., p. 290. Barreto, Menores e Loucos, p. 72.
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Enuncia Barreto: Lombroso propõe a substituição da cadeia pelo manicômio criminale. Dou de barato. Porém os seus princípios, os seus dados positivos, distendidos pela lógica, levam à conseqüência de ser talvez preciso meter-se no hospital a humanidade inteira, se não é o que o ilustre autor nos tenha proposto somente uma questão de palavras, e entre cadeia e hospital de criminosos não se estabeleça distinção notável. Mas isto está em desacordo com as suas pretensões de fundador de uma nova escola, que de dia em dia, segundo ele crê, aumenta de discípulos e sectários, posto que tal crença possa entrar na classe das ilusões comuns a todos os reformadores: com meia dúzia de prosélitos já se dão por chefes de uma ecclesia que vai tornar-se única e universal (Barreto, ob. cit, p. 73). Barreto, ob. cit, p. 74. Zaffaroni, Elementos para uma Leitura de Tobias Barreto, p. 177. Os argumentos de Tobias Barreto foram tão incisivos que Nina Rodrigues dedica com exclusividade o capítulo II, O livre arbítrio relativo nos criminalistas brasileiros, para a crítica da concepção de culpabilidade fundada no livre arbítrio veiculada por Barreto (Rodrigues, ob. cit., pp. 49-58). Barreto, Prolegômenos ao Estudo do Direito Criminal, pp. 188-197. 67
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por conciliar com as propostas de Nina Rodrigues. Tal composição abre o caminho para as codificações da década de 40 (Códigos Penal e Processual Penal), a instauração do sistema penitenciário84 e, fundamentalmente, cria um campo de saber e uma retórica que conduz o senso comum sobre crime e criminalidade no Brasil até os dias atuais. Percebe-se, com Alessandro Barata,85 que a ideologia da Defesa Social perfaz o universo das ciências penais da modernidade, sendo transversal a todas as escolas após a reação iluminista, estabelecendo um nó teórico e político fundamental no seu sistema científico integrado. Ainda que suas respectivas concepções de homem e de sociedade sejam profundamente diferentes, o discurso defensivista passa a ser o catalisador de dois pólos diversos da construção discursiva do direito penal e da criminologia nacional.
A transposição do discurso da Escola Positiva ao modelo de Defesa Social pode ser visualizada em dois momentos históricos diversos, mas complementares: a prolusão sassarena de Rocco e o Programa de Marburgo de Liszt. O modelo etiológico transformou a ciência penal em ciência criminológica, determinando a padronização dos critérios e condições de proceder a investigação do fenômeno criminal. Assim, o estudo foi transportado da ótica jurídica (das ciências humanas) ao universo das ciências médicas (naturais). No entanto, paradoxalmente, em nível epistemológico o direito penal deveria acompanhar o padrão imposto pela ciência-matriz (jurídica) que estruturou seu pensar desde a dogmática jurídica. Com a perda de legitimidade do discurso etiológico no âmbito das ciências jurídicas, chegado era o momento de resgatar aquilo que restara de jurídico na ciência penal. Na Itália, o movimento de ruptura e reação à concepção naturalística (reação tecnicista) foi iniciado por Rocco. Logicamente, o corte operado pela dogmática em relação à criminologia não ousou sepultar o saber construído sob as premissas clínicas. O advento da dogmática, apesar de capacitar o discurso jurídico, redefinindo o modelo penal, não logrou extirpar o discurso etiológico. Apenas deslocou a criminologia a um saber auxiliar na tipologia das enciclopédias penais. Franz von Liszt, ao desenvolver o Programa de Marburgo (1882), havia criado um modelo integrado e relativamente harmônico entre dogmática e política criminal, postulando ser tarefa da ciência jurídica estabelecer instrumentos flexíveis e multifuncionais com escopo de ressocializar e intimidar as mais diversas classes de delinqüentes (criminosos adaptados, inadaptados ou ocasionais). Rocco, na prolusão sassarena, define com nitidez os contornos diferenciais e os locais de atuação da dogmática e da criminologia, relegando esta última à discreta e auxiliar, porém eficaz, atuação na justificação da pena. Liszt expressa sua opção determinista-naturalista enfatizando a necessidade de a pena atuar com intuito de correção do homem, não abdicando, todavia, alguns pressupostos do modelo clássico contratualista.87 Como alerta Roxin, Liszt divide a ciência do direito penal em
2.2.3. O defensivismo contemporâneo: a Nova Defesa Social Desqualificado no período pós-guerra pelas conseqüências políticas do pensamento etiológico, o modelo substancialista racista e totalitário é retomado sob a feição ‘humanizadora’ do movimento da Nova Defesa Social. Representado por Prins e Gramatica, a partir da União Internacional de Direito Penal fundada em Berlim em 1889, o movimento da Defesa Social visa identificar os sujeitos perigosos, reabilitando-os a partir de uma preocupação moral de emenda desde o enfoque médico e psiquiátrico. Sobretudo no pós-guerra falar-se-á em Nova Defesa Social, ou seja, em modelos repressivos baseados em intervenções ambíguas, próprias de um Estado Social preventivo, cujas políticas (criminais) situam-se entre o filantropismo e o controle social intensivo.86 O movimento será popularizado por Marc Ancel, consagrando a ressocialização terapêutica do condenado como principal objetivo da sanção, proporcionando (auto)intitulação humanitária devido à recusa da função meramente retributiva que a pena adquiria nos ‘clássicos’. 84 85 86 68
Sobre a influência do discurso defensivista, fundamentalmente aquele positivista, na formação do sistema penitenciário brasileiro, conferir Neder, Em nome de Tânatos, pp. 2530; Silva, ob. cit., pp. 103-130; Wolff, Prisões no Rio Grande do Sul, pp. 69-150. Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 41. Ost, O Tempo do Direito, p. 381.
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La idea de fin, que engendra la fuerza del Derecho, está reconocida también en la pena; y con este reconocimiento se hace posible utilizar los múltiples efectos de la amenaza penal y de la ejecución de la pena para la protección de los intereses de la vida humana. También el recuerdo del pasado de la pena, si no se le quiere relegar completamente al olvido, ya 69
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dois reinos, bipartindo o estudo do delito em níveis distintos: o objetivo, operado pela dogmática jurídica na avaliação do fato; e o subjetivo, referente aos critérios de penalização (ressocialização), tendo como objeto de investigação o autor. Assim, para Liszt, os pressupostos da punibilidade deviam determinar-se segundo os princípios liberais do Estado de Direito exactamente como sempre expôs a Escola Clássica; mas, uma vez constatada a punibilidade através do ‘método jurídico’, a sanção deveria medir-se exclusivamente pelas necessidades sociais.88 Não se pode olvidar que ao mesmo tempo em que centraliza a atuação do direito penal na tutela do bem jurídico, incrementando princípios como os da subsidiariedade, Liszt negará totalmente o paradigma clássico da retribuição, impondo a necessidade da prevenção especial positiva ao absorver princípios etiológicos (v.g. defesa da sentença penal indeterminada). Nas palavras do autor, como missão da pena apareceria a actuação sobre o delinqüente, adequada às peculiaridades do mesmo. Deste modo, a idéia de prevenção especial passava para um plano cimeiro, sem no entanto deixar de lado a idéia de prevenção geral, e à pena retributiva opunha-se a pena protectora ou a pena orientada para os fins.89 A tensão entre liberalismo penal e determinismo criminológico induz à criação do híbrido sistema integrado das ciências criminais. Segundo Ferrajoli, o modelo propugnado pelo Programa de Marburgo tem nítido endereço correcionalístico, pois teleológica e pragmaticamente concentrado na função de prevenção especial da pena, seguindo a orientação de individualização e diferenciação dos réus/condenados – quem, ao invés, retomou e desenvolveu esta idéia, dentro de uma doutrina teleológica e correcionalista orgânica foi Franz von Liszt, que em seu Programa de Marburgo de 1882 elaborou um modelo de direito penal como instrumento flexível e polifuncional de
‘ressocialização’, ‘neutralização’ ou de ‘intimidação’, segundo os diversos ‘tipos’ – ‘adaptados’, ‘inadaptados’ ou ‘ocasionais’ – de delinqüentes tratados.90 Conclui que tal proposta resulta numa doutrina eclética de ‘pena-defesa’, visto ser informada simultaneamente por princípios de Defesa Social e de incapacitação (para os irrecuperáveis), de emenda (para os que necessitam recuperação), de intimidação especial e geral (para os delinqüentes ocasionais) e de retribuição. O resultado prático desta doutrina, portanto, é substancialmente convergente com o das orientações positivistas da Defesa Social, concretizando-se em uma tendencial subjetivação das figuras de crime e na proposta, amplamente aceita na cultura e na prática penalista do século XX, da diferenciação da pena segundo a personalidade dos réus.91 Neste modelo conciliador entre as propostas da dogmática e da criminologia, Marc Ancel desenvolverá sua teoria da Defesa Social, baseando-se, fundamentalmente, na diferenciação e individualização dos crimes, dos criminosos e da penas. Sustenta Ancel que o modelo penal de Defesa Social caracterizarse-ia por ser uma política ativa de prevenção que intenta tutelar a sociedade, protegendo também o delinqüente, pois visaria assegurarlhe, através de condições e vias legais, um tratamento apropriado. A defesa social – sustenta o autor – repousa portanto, em grande parte, na substituição da pena retributiva pelo tratamento.92 O movimento da Nova Defesa Social constitui-se, desde a década de quarenta, como um dos principais aglutinadores do pensamento antigarantista sobre o fenômeno delitivo, estabelecendo como finalidade precípua a negação dos sistemas penalógicos de retribuição característicos das doutrinas penais ‘clássicas’ do final do século XVIII. Representaria, pois, uma ‘nova concepção de luta contra a delinqüência’ a partir da reconstrução integrada entre direito e processo penal,93 criminologia e política criminal. Marc Ancel94 demonstra esquematicamente os pressupostos da doutrina, elaborando rol principiológico mínimo. Para o autor, a Defesa Social supõe uma concepção geral do sistema anticriminal que não visa
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que, aun hoy, la teoría de la justicia retributiva reivindica para sí el instinto de la venganza, nos muestra cómo se cumple irresistiblemente en la Historia de la pena la misma transformación que en el desarrollo de los individuos. La inconsciente, sin finalidad y desorientada actividad del instinto, se cambia en actividad de la voluntad, determinada y medida por la representación del fin. En la mutua contienda de las teorías penales sobre el fin de la pena, se depura la opinión del legislador, que, cada vez más separado de la prevención general, se ve obligado a ver el fin de la pena en la adaptación (Anpassung) o segregación (Ausscheidung) del delincuente. El resultado inexcusable es una Política Criminal, serena y consciente de su fin, que se nos ofrece de la historia del desenvolvimiento de la pena (Liszt, Tratado de Derecho Penal, pp. 21-22). Roxin, Franz von Liszt e a Concepção Político-Criminal do Projeto Alternativo, p. 78. Apud Roxin, ob. cit., p. 54.
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Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 255. Ferrajoli, ob. cit., p. 256. Ancel, A Nova Defesa Social, p. 12. Sobre a opção inquisitiva do modelo de processo penal no paradigma da Defesa Social, principalmente ao vínculo ao princípio da verdade material, conferir Gomes Filho, Direito à Prova no Processo Penal, pp. 33-35. Ancel, ob. cit., pp. 17-21. 71
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unicamente à expiação da falta por meio do castigo, mas busca proteger a sociedade contra as ações criminais. Essa proteção social seria realizada sob a noção de periculosidade, aliada ao conjunto de medidas extrapenais destinadas a neutralizar o delinqüente, seja pela eliminação/segregação ou pela aplicação de métodos curativos/educativos. Assim, o modelo de controle conduziria à promoção de uma política criminal que atribuiria importância particular à prevenção individual, operando como sistema de dissuasão dos crimes e tratamento dos delinqüentes (ressocialização), apoiando-se no estudo do fato criminoso e da personalidade do agente sob o método empirista. Mediante tais condições, o movimento adquiriu, no final dos anos setenta, caráter transnacional, universalizando seus princípios e finalidades, e agindo no câmbio de grande parte dos ordenamentos jurídicopenais e penitenciários da década precedente como, por exemplo, a legislação penal e penitenciária nacional de 1984. A (re)organização do sistema punitivo desde o enfoque da Defesa Social, encobrindo velhas práticas etiológicas sob o manto de um novo e renovado humanismo científico (descriminalização de algumas condutas insignificantes, desjudicialização de alguns procedimentos, ampliação das medidas alternativas ao cárcere e revalorização da vítima como sujeito da relação processual), deveu-se fundamentalmente ao fato da insustentabilidade do antigo discurso etiológico positivista após a Segunda Grande Guerra e a formação de um novo discurso humanista. A propósito, é no próprio Marc Ancel que encontraremos a influência sistematizadora da Escola Positiva, principalmente no que tange à negação do princípio da culpabilidade, à assunção do crime como fato natural e social, ao objetivo ressocializador da pena e à necessidade de proteção da sociedade contra o criminoso: a defesa social não é uma doutrina do Positivismo, mas uma conseqüência indireta, e de certa forma em segundo grau, da doutrina positivista.95 Apesar de após a Segunda Grande Guerra a humanidade encontrar-se direcionada a um processo de reconstrução e afirmação dos valores humanistas, elaborando incisivas críticas às doutrinas jurídicopenais e criminológicas do positivismo, os modelos inquisitoriais substancialistas encontram na Defesa Social um novo discurso legitimante. Não obstante as teorias causais sofrerem ampla desconstrução pela
precedente legitimação científica dos genocídios culturais dos modelos totalitários, o modelo neodefensivista é fortificado. A par da recepção do modelo defensivista pelo discurso penal, outro fator importante para observar o porquê da consolidação da Nova Defesa Social como ideologia/movimento penal preponderante é a falta de capacidade dos sistemas jurídicos do século XX em efetivar os direitos fundamentais. Com o advento da Organização das Nações Unidas (Carta da ONU, 1945) e a aprovação por sua Assembélia Geral da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), o homem novamente passa a ocupar a centralidade do discurso jurídico. Agora, porém, seus direitos não mais estariam resumidos às intenções formais no interior dos Estados soberanos, como em sua gênese ilustrada, mas estariam fundados em princípios de ordem universalista consagrados na Declaração de 1948 e no Pacto Internacional de 1966, transformando estes direitos não mais somente constitucionais mas supraestatais, transformando-os em limites não apenas internos mas também externos ao poder dos Estados.96 Todavia, as normas imperativas da afirmação da paz e dos direitos humanos, bem como o desenvolvimento em matéria sociológica das teorias interacionistas e a formação do paradigma da reação social, não determinam refluxo do pensamento etiológico nitidamente ‘intolerante’. Ocorre, ao contrário, a potencialização da doutrina devido à circunscrição do direito (delito) à esfera da natureza e à concepção substancialista do juízo. É que tanto as teorias criminológicas da reação social quanto o novo paradigma dos direitos humanos foram inviabilizados na prática, proporcionando ao novo discurso baseado na estética do mal o preenchimento da lacuna encontrada no pensamento jurídico-penal do final da década de quarenta. O discurso humanista do século XX careceu de eficácia pela fragilidade do recente constitucionalismo. Outrossim, as teorias de base do paradigma da reação social, não obstante negarem de forma ‘irreversível’ os postulados ideológicos conformadores do modelo defensivista – delito como qualidade intrínseca de uma minoria de pessoas; delito como ofensa aos interesses e valores sociais consensualmente estabelecidos; delito como atitude essencialmente má operado por pessoas perversas; delinqüente como um elemento disfuncional e negativo nas sociedades harmônicas e igualitárias; sistema penal como modelo fun-
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Ancel, ob. cit., p. 87.
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cional de prevenção (particular e geral) da delinqüência – restringiramse ao mundo acadêmico contracultural, olvidando a práxis. Apesar das teorias sobre o homem patológico serem negadas nas formulações doutrinárias, que após a reação científica dos anos sessenta, incitaram o movimento da criminologia crítica, o modelo etiológico reformulará seus postulados com o movimento da Defesa Social, em clara inversão ideológica do discurso dos direitos humanos. Muito embora o discurso criminológico crítico tenha deslocado e desmascarado as teses da Escola Positiva, a mudança na concepção do crime não foi alterada. É que mesmo a resposta da criminologia crítica ao fenômeno do delito/desvio, negando o determinismo biológico e psicológico e alçando o enfoque micro-individualista à macro-sociologia, não deixou de incorrer em um determinismo socioeconômico. Se o paradigma dos direitos humanos e os postulados da reação social e da criminologia crítica ficaram circunscritos à academia, a virtude política do movimento da Defesa Social proporcionou à criminologia oficial dos modelos integrados de ciências penais um processo de reformulação das estratégias. Nasce, então, uma criminologia administrativa tão nociva às garantias e aos direitos fundamentais quanto aquela proposta por Lombroso, Ferri e Garófalo. A relevância e o intenso labor prático deste novo modelo criminológico correcionalista e causal, capitaneado por discursos psiquiatrizados, obstaculiza a formação do modelo garantidor, reincorporando nas legislações (plano políticocriminal), no imaginário do jurista (plano dogmático), na esfera do controle policial (plano da segurança pública), no modelo de execução da pena e no direito penitenciário (plano criminológico) premissas periculosistas autoritárias – en la fase de experimentación e innovación de entreguerras se extendió una ambivalente ideologia penal preventiva, paternalista en el mejor de los casos, que hacía hincapié en el concepto de ‘peligrosidad social’; en ella hay fuertes elementos de una concepción penal totalitária.97 Não se está a negar nem poderia sê-lo feito, pois tais argumentos sustentam a base teórica do trabalho, o legado das teorias da reação social e da criminologia crítica. Chama-se atenção, porém, ao fato de que, se na esfera criminológica e político-criminal, a teoria crítica rompeu com as amarras do positivismo, a prática maniqueísta do sistema operou um câmbio altamente eficiente. É claro que reduziu o status do saber criminológico oficial a um plano secundário em relação ao posto
de ‘a’ ciência do direito penal que ocupava no final do século XIX. No entanto, no plano da eficácia, seu discurso continuou gerando, sem resquícios, os efeitos desmascarados pela incisiva crítica dos anos sessenta e setenta. O argumento torna-se perceptível quando da avaliação das práticas administrativas e judiciais do processo penal (cognitivo e executivo), nos quais conceitos como periculosidade continuam a orientar medidas absolutamente desconexas com os postulados garantidores expressos nas Constituições democráticas. As hipóteses levantadas conduzem à afirmação de que é imprescindível novo processo secularizador, não restrito apenas aos vínculos do direito com a moral (ainda necessários em relação a alguns tipos penais e ao modo de proceder do operador do direito), mas, sobretudo, à sincronia do saber jurídico com o saber naturalístico.
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Capella, Fruta Prohibida, p. 223. 75
Capítulo III As Razões do Garantismo
3.1. O Programa político-criminal garantista 3.1.1. Garantismo: reivindicação ou superação do iluminismo jurídico-penal? Segundo Rouanet,1 o iluminismo é uma tendência transepocal que cruza transversalmente a história da humanidade. Não estaria, portanto, limitado ao século XVIII. A conseqüência dessa proposição é a necessidade de diferenciar as categorias ilustração e iluminismo. O autor sugere que o termo ilustração fique circunscrito às idéias que floresceram durante os oitocentos, ao passo que a categoria iluminismo deveria corresponder a um modelo crítico de produção do saber, questionador de todos os valores transcendentes e combatente de todas as instâncias que promovem a infantilização do homem. A principal virtude do pensamento iluminista teria sido, conforme leciona Sigmund Freud, promover o homem a um grau de maturidade decorrente da opção pela civilização e negação da barbárie.2 O contra-iluminismo identificar-se-ia em toda estrutura de saber/poder que concebe o homem como descartável, negando a primazia dos seus direitos, em defesa de uma concepção verticalizada e anti-secular de sociedade. A mesma lógica transepocal pode ser aplicada às correntes infantilizadoras, compreendidas por movimentos intelectuais favoráveis às crenças e aos valores tradicionais combatidos pelo iluminismo. Não são circunscritas, igualmente, a uma moldura conjuntural determinada. Assim, a teorização dos filósofos da ilustração não pode ser restringida a mero arcabouço legitimador de uma classe social em ascensão (burguesia), o que efetivamente não pode ser descartado como hipótese de trabalho ou variável. O relevante, porém, sob a ótica garan1 2
Rouanet, As Razões do Iluminismo, p. 28. Freud, O Mal-Estar na Civilização, pp. 185-194. 77
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tista, é o processo de luta pela razão contra todas as formas de obscurantismo. O saber ilustrado demonstra a capacidade crítica do homem na construção do processo humanizador, e por isso de maturidade, que nega terminantemente a redução do próprio homem à condição de supérfluo. Seu legado proporciona o reconhecimento de valores positivos, concretizados em princípios e normas, direcionados à universalização do homem como sujeito de direitos. O impacto do pensamento ilustrado é muito superior às reduções de cunho fragmentador em diferentes áreas do conhecimento (v.g. desconstrução do modelo jurídico do medievo, viabilização da economia de mercado, legitimação da classe burguesa no poder). A filosofia ilustrada possibilita ao homem o reconhecimento de sua capacidade criativa e contestatória, e por isso o marco do pensamento iluminista é gênese da luta pelas humanidades. Não por outro motivo que a raiz iluminista aparece no interior do saber penal, local de reconhecimento e tutela dos direitos frente ao irracionalismo das teses inquisitivas. A teoria geral do garantismo na contemporaneidade apresenta-se, conforme Mariangela Ripoli3 e Sergio Cadermatori,4 como derivação desta teoria garantista penal, a qual nasce e se desenvolve a partir da matriz iluminista da ilustração. O escopo principal que me propus – argumenta Ferrajoli – com a reflexão sobre estas três ordens de fundamentos [base epistemológica, justificação ético-política e técnicas normativas idôneas para assegurar os graus de efetividade] foi a revisão teórica do modelo garantista de legalidade penal e processual assim como foi traçado pelo pensamento iluminista... O pensamento iluminista representa certamente o momento mais alto da história da cultura penalística: senão por outro motivo, porque a ele se deve a formulação mais incisiva da maior parte das garantias penais e processuais dentro das formas do Estado constitucional de direito.5 Na atualidade, o discurso garantista propõe um saber (jurídicopolítico) alternativo ao neobarbarismo defensivista capitaneado pelos movimentos hipercriminalizadores dos discursos de Lei e de Ordem, Tolerância Zero e Esquerda Punitiva, potencializados pelas ideologias de Defesa Social.6 Hoje, o processo de desregulamentação penal e de deformação inquisitiva do processo, realidade perceptível em quase
todos os países ocidentais devido à nova ‘guerra santa’ contra a criminalidade, gerou total ruptura com a estrutura clássica do direito e do processo penal. A perda do significado ilustrado do direito e a legitimação de novo irracionalismo, potencializado pelas teses neoliberais de Estado mínimo na esfera social e máximo na esfera penal, redunda na solidificação de verdadeiro Estado Penal.7 Dessa forma, é como discurso de resistência às novas tendências transnacionais no ramo do controle social, reflexo da reengenharia político-econômica, que exsurge a teoria garantista. Apresenta-se, pois, como saber crítico e questionador, como instrumento de defesa radical e intransigente dos direitos humanos e da democracia contra todas as deformações genocidas do direito e do Estado contemporâneo. O retorno às luzes do pensamento penal sustentado na formulação garantista é a tentativa de recuperar a capacidade crítica do direito (razão artificial do Estado) e do jurista (artesão na modificação da realidade social). Sobretudo porque a práxis jurídica deverá ter como thelos a tutela dos direitos fundamentais. Assim, é necessário retornarmos para dar continuidade ao debate interrompido com intervenção da ‘polícia’ positivista.8 Reivindicar o programa iluminista significa compartilhar a confiança na emancipação da humanidade frente às tiranias, servidões, preconceitos ou ignorâncias que impedem o progresso das liberdades, da igualdade e da tolerância. Significa reconhecer a força da razão crítica frente à razão tecnológica fragmentadora e à cultura de pulsão consumista. Como alertou Goya, quando a razão dorme, surgem os monstros.9
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Ripoli, Diritto e Morale, p. 158. Cadermatori, Estado de Direito e Legitimidade, p. 102. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. XVII. Sobre os movimentos (neo)criminalizadores, conferir Carvalho, As reformas parciais no Processo Penal brasileiro, pp. 303-344.
3.1.2. Regressão irracionalista: desregulamentação dos procedimentos, pluralismo de fontes e inflação legislativa Com o remodelamento das funções da criminologia oficial, com a deformação inquisitorial do processo penal e com a assunção por parte 7
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Sobre a consolidação do ‘Estado Penal’, conferir Wacquant, As prisões da miséria, pp. 77152; Wacquant, Punir os pobres, pp. 53-98; Wacquant, A tentação penal na Europa, pp. 07-12; Wacquant, A ascenção do Estado Penal nos EUA, pp. 13-40; Bauman, Globalização: as conseqüências humanas, pp. 111-136; Bauman, O mal-estar da pós-modernidade, pp. 27-61; Garland, As contradições da ‘sociedade punitiva’, pp. 69-92; e Christie, Elementos de geografia penal, pp. 93-100. Zaffaroni, La Rinascita del Diritto Penale Liberale o la ‘Croce Rossa’ Giudiziaria, p. 284. Apud Asúa, Reivindicação ou Superação do Programa de Beccaria, p. 36. 79
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do direito penal da esquizofrenia legislativa na abundante produção de leis, o sistema penal é acometido por gradual e substantiva perda de legitimidade, (re)estruturando-se a partir de uma concepção penal funcionalista-eficientista que delega à pena e à criminalização uma forma bizarra de processo pedagógico.10 A formulação dos inúmeros vieses do pensamento penalístico contratualista deveu-se à total falta de segurança (garantia) do indivíduo frente à pluralidade das fontes. O modelo jurídico do medievo é caracterizado na órbita penal por um conglomerado de possibilidades na construção da categoria crime. Estado, Igreja e direito consuetudinário eram idôneos à seleção das condutas consideradas nocivas, e portanto criminosas, à sociedade. O primeiro passo no processo de racionalização e negação do modelo inquisitivo foi exatamente a ruptura entre as fontes (secularização), e a imposição de limites materiais (tolerância) e formais (legalidade) negativos à intervenção. Somente o Estado, via processo legislativo, poderia criar figuras delitivas, selecionando condutas pela sua capacidade de violação dos bens jurídicos. Ilegítima a criação de normas criminalizadoras pelo direito costumeiro, jurisprudencial, doutrinário e/ou direito eclesiástico, podendo somente o Estado intervir quando da concreta violação de bens jurídicos (individuais). Todavia, se com o advento do Estado intervencionista o direito penal vislumbrou a autonomização científica da criminologia, assistiu também o espantoso processo de formulação legislativa. Se a intervenção criminal no Estado liberal caracterizava-se pela inação, determinando a responsabilidade em casos de conflitos interindividuais, o Estado social (intervencionista) fomenta um programa político que resultará em uma hiperinflação legislativa. Assim, na conformação do Estado de bem-estar percebemos una producción caótica y aluvional de leyes, reglamentos, institutos y prácticas políticas y burocráticas que se fueron injertando sobre las viejas y elementares estructuras del estado liberal, deformándolas.11 É que o direito penal nasce e se estrutura sob os pressupostos do Estado liberal, ou seja, o direito penal é essencialmente liberal. No interior deste modelo normativo arquitetonicamente fechado existem algumas expectativas positivas de intervenção, porém altamente limitadas. Quando o sistema punitivo se amplia para alcançar condutas cuja
matriz genealógica não reconhece (o que aconteceu durante o século XX), há o comprometimento de toda sua funcionabilidade original (resolução de conflitos interindividuais). A premissa pode ser verificada claramente na denominada ‘criminalidade contemporânea’,12 expressão cunhada por Hassemer para indicar contraponto à ‘criminalidade clássica’, que condiciona e é condicionada pela estrutura liberal. Percebe-se, portanto, que o direito penal contemporâneo, devido ao processo de alta demanda criminalizadora, fruto do ingresso de novas formas de violação aos bens jurídicos (conflitos coletivos e transindividuais), padece de uma ‘elefantíase legislativa’ que resulta na perda dos limites substanciais entre ilícitos penais e administrativos. Ferrajoli percebe que a crise atual do direito penal decorre de uma modificação na questão criminal, gerando profunda desordem naquilo que denomina questão penal. Entende por ‘questão criminal’ a transformação da natureza econômica, social e política da criminalidade: a criminalidade que se impõe hoje à justiça não é mais a velha criminalidade de subsistência que há vinte anos nos levava a denunciar o caráter de classe da administração da justiça.13 A conseqüência é o ingresso de novos sujeitos – poderes criminais (criminalidade organizada) – em novas formas de criminalidade – crimes do poder (criminalidade econômica e financeira do poder público). A mutação na questão criminal, isto é, na forma e nos agentes da criminalidade, obrigaria cientista e político a repensarem radicalmente a efetividade das técnicas de tutela e garantia. Logo, a ‘questão penal’, estrutura liberal-garantista do direito penal, é sobrecarregada por novas criminalizações que obstaculizam o sistema, diminuindo substancialmente as garantias, produzindo uma dupla falência, que se manifesta de um lado na crise de eficiência, e de outro na crise das garantias, e por isso agride ambas funções de tutela que justificam o direito penal: as funções de tutela social, a defesa das partes ofendidas contra os crimes, e as funções de garantia individual, a tutela dos indiciados contra as punições injustas.14 O atual processo de ampliação normativa, deflagrado em grande parte pelos discursos de emergência, gera espécie de ‘panoptismo legal’, ou seja, o alargamento brutal das possibilidades de incidência da lei penal nas condutas sociais. No momento em que desvios sociais passam a ser tipificados, independentemente da lesão ou perigo con-
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Ferrajoli, Proibizionismo e Diritto, p. 135. Ferrajoli, Crisis del Sistema Político y Jurisdicción, p. 124.
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Neste sentido, conferir Hassemer, Perspectivas de uma Moderna Política Criminal, 89. Ferrajoli, Per un Programma di Diritto Penale Minimo, p. 60. Ferrajoli, ob. cit., p. 62. 81
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creto ao bem jurídico, e qualquer conduta pode ser arbitrariamente considerada delitiva, é definido um modelo de controle administrativizado com incidência desigual nos diversos estratos sociais e sem os vínculos à lei característicos do direito e do processo penal. Portanto, a inflação penal, efetivamente, provocou a regressão do nosso sistema punitivo a uma situação não diversa daquela pré-moderna.15 Se a crítica ao sistema penal desigual dos anos sessenta e setenta foi direcionada à estrutura classista da lei, com os processos de hiperinflação, a desigualdade do sistema demonstrar-se-á na efetividade da distribuição das etiquetas pelo aparelho administrativo, bem como na falta de eficiência do Estado na tutela dos direitos contra o arbítrio. Sob essa crise dois modelos político-criminais serão erigidos: o minimalista e o maximalista.
condicionado ou incondicionado, ou seja, limitado ou ilimitado do poder punitivo.16 O modelo teórico minimalista caracterizar-se-ia por dez restritições ao arbítrio legislativo ou erro judicial. Segundo este modelo, não se admite nenhuma irrogação de pena sem que tenha sido cometido um fato, previsto legalmente como crime, de necessária proibição e punição, gerador de efeitos danosos a terceiros, caracterizado pela exterioridade e materialidade da ação, pela imputabilidade e culpabilidade do autor e, além disso, comprovado empiricamente por acusação diante de um juiz imparcial, em processo público realizado em contraditório, mediante procedimentos pré-estabelecidos em lei.17 Os termos empregados por Ferrajoli para formulação das condições de possibilidade do modelo são onze: pena, delito, lei, necessidade, ofensa, conduta, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa. As categorias mencionadas seriam pré-requisitos, implicações deônticas ou princípios sem os quais se tornaria impossível a determinação da responsabilidade penal e a aplicação da pena, pois criam um rol axiomático que permite a constatação e punição do fato-crime. Ferrajoli cria, portanto, o sistema garantista, seguindo a tradição escolástica, a partir de dez máximas: nulla poena sine crimine; nullum crimen sine lege; nulla lex (poenalis) sine necessitate; nulla necessita sine iniuria; nulla iniuria sine actione; nulla actio sine culpa; nulla culpa sine iudicio; nullum iudicium sine accusatione; nulla accusatio sine probatione; e, nulla probatio sine defensione. A cadeia elaborada pelo autor serve como instrumento avaliativo de toda incidência do sistema penal, da elaboração da norma pelo legislativo à aplicação/execução da pena. Viabiliza ao intérprete uma principiologia adequada para (des)legitimação de toda atuação penal: teoria da norma (princípio da legalidade, princípio da necessidade e princípio da lesividade); teoria do delito (princípio da materialidade e princípio da culpabilidade); teoria da pena (princípio da prevenção dos delitos e castigos); e teoria processual penal (princípio da jurisdicionalidade, princípio da presunção de inocência, princípio acusatório, princípio da verificabilidade probatória, princípio do contraditório e princípio da ampla defesa). Tais princípios corresponderiam às ‘regras do jogo’ do direito penal nos Estados democráticos de direito e, em decorrência de sua gradual incorporação nos textos constitucionais, conformariam vínculos formais e materiais de validade das normas e decisões.
3.1.3. Direito penal mínimo e direito penal máximo O modelo garantista pretende instrumentalizar um paradigma de racionalidade do sistema jurídico, criando esquemas tipológicos baseados no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, com intuito de limitar o poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada. Por se tratar de modelo ideal (e ideológico), apresenta inúmeros pressupostos e conseqüências lógicas e teóricas, negadas ou desqualificadas por modelos opostos de produção de saber/poder. Desde a perspectiva da teoria weberiana dos tipos ideais, identificam-se como modelos de direito penal e de política criminal dois pólos diversos e contrapostos, decorrentes da maior ou menor correspondência com os pressupostos estruturais do sistema garantista (SG). Os extremos da resposta penal são definidos como modelos de direito penal mínimo e direito penal máximo. Em se tratando de estereótipos tendenciais e irrealizáveis em sua plenitude, os dois modelos coexistem diafonicamente nos ordenamentos jurídicos, caracterizando e diferenciando sistemas repressivos. São modelos de direito e de responsabilidade penal que oscilam entre dois extremos opostos, identificáveis não somente pela dicotomia saber/poder, fato/valor ou cognição/decisão, mas também pelo caráter 15 82
Ferrajoli, La Giustizia Penale nella Crisi del Sistema Politico, p. 81.
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Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 80. Ferrajoli, ob. cit., p. 80. 83
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O sistema antípoda é indicado pela carência da principiologia exposta. Assim, a maior ou menor correspondência com a principiologia garantista caracterizaria modelos minimalistas ou maximalistas, quanto à elaboração normativa; acusatórios (cognitivistas) ou inquisitivos (substancialistas), quanto ao juízo; e garantistas ou pedagógicos, quanto à fundamentação e execução da pena. Configurariam, pois, sistemas punitivos autoritários ou garantistas. Se a estrutura garantista delineia uma concepção limitada de intervenção, os modelos autoritários caracterizar-se-iam pela debilidade ou ausência de algum ou de alguns destes limites à intervenção estatal.18 A escassez de freios à incidência do sistema penal contraporia, igualmente, modelos de Estado de direito – entendendo-se com esta expressão um tipo de ordenamento no qual o poder público, e especificamente o poder penal, é rigidamente limitado e vinculado pela lei sob o aspecto substancial (ou dos conteúdos penalmente relevantes) e sob o aspecto processual (ou das formas processualmente vinculantes) – e modelos de Estados absoluto ou totalitário – entendendo-se com tais expressões qualquer ordenamento onde os poderes públicos sejam ‘legis soluti’ ou totais, isto é, não disciplinados pela lei, logo, destituídos de limites e condições.19 Nota-se, portanto, que a estrutura minimalista ou maximalista é representada pela presença ou ausência de critérios de controle do arbítrio punitivo, indicando opções políticas e o ônus a ela inerente: a certeza perseguida pelo direito penal máximo é que nenhum culpado fique sem punição, à custa da incerteza de que algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo é, ao contrário, que nenhum inocente seja punido, à custa da incerteza de que algum culpado reste impune. Os dois tipos de certeza, e os custos ligados às respectivas incertezas, refletem interesses e opções políticas contrapostas: de um lado a máxima tutela da segurança pública contra as ofensas ocasionadas pelos crimes, por outro, a máxima tutela das liberdades individuais contra as ofensas geradas por penas arbitrárias.20
penal. O ideal de secularização delimita os rumos de incidência, restringindo e desqualificando qualquer tipo de criminalização de condutas refutadas apenas na seara moral. Como critério externo ao direito, o princípio da secularização delimita a atividade legiferante, estabelecendo programa de intervenção mínima. Com os processos de incorporação constitucional dos direitos e garantias, principalmente a partir da carta da ONU em 1948, ocorre a positivação de grande parte da cadeia principiológica garantista. Os instrumentos de avaliação da legitimidade das normas, anteriormente situados fora dos sistemas constitucionais, são relocados ao plano jurídico interno, mais especificamente à teoria da validade das leis. Os valores e princípios informadores das normas constitucionais passam a atuar como mecanismos de avaliação da substância das demais regras. A estrutura arquitetônica elaborada por Kelsen, cuja concepção é cerrada na Constituição lógico-formal e direcionada ao interior do sistema jurídico estatal, é modificada, pois passa a voltar seu olhar tanto para o interno quanto para os novos valores e princípios advindos do exterior. Trata-se de legitimidade que provém de fora ou, nas palavras de Ferrajoli, de um modelo heteropoiético de legitimação do direito (legittimità dal basso). O interessante é notar que esta legitimidade externa conforma nova estrutura escalonada do ordenamento jurídico, não mais referendado por princípios e valores jusnaturalistas (metajurídicos), mas por instrumentos legais positivados nas Declarações de Direitos. Seriam verdadeiras normas jurídicas supra-estatais (supraconstitucionais), condicionadoras dos ordenamentos e que abalam, inclusive, o clássico princípio da soberania.21 Desde este ponto de vista, a teoria do garantismo elabora critérios negativos de formulação legislativa e dogmática. Importante ressaltar, porém, que o programa garantista pressupõe essa arquitetura aberta dos ordenamentos, não podendo ser confundindo com propostas, também crítico-minimalistas, que reduzem o sistema desde o seu interior – v.g. a teoria material da tipicidade penal. Não que tais teses sejam negadas pela teoria do garantismo penal; pelo contrário, correspondem a técnicas eficazes de redução da incidência do sistema punitivo sobre condutas que não demonstram capacidade lesiva ao bem jurídico tutelado (princípio da insignificância) e/ou de exclusão do ilícito quando, no decurso do tempo, a conduta perde sua justificação histórica (princípio da adequação). No entanto, tais técnicas são extremamente limi-
3.1.4. Direito penal mínimo e princípio da legalidade É inolvidável que o principal legado do movimento penal ilustrado corresponde à imposição de vínculos externos de legitimidade à lei 18 19 20 84
Ferrajoli, ob. cit., p. 81. Ferrajoli, ob. cit., pp. 80-81. Ferrajoli, ob. cit., p. 83.
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Neste sentido, conferir Carvalho, Sobre a Jurisdição Penal Internacional, pp. 193-205. 85
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tadas, visto serem concebidas desde o interior da legalidade posta. O programa garantista direciona sua lupa de forma diversa. Alça-se para fora do sistema legal, estabelecendo crítica aos critérios de criminalização. Não corresponde ao juízo desde os bens jurídicos selecionados, mas dos pré-requisitos de seleção dos mesmos. Não se contenta, pois, com uma microanálise do fenômeno, mas estabelece condições e possibilidades de uma ampla deflação, operando sobre a legislação e não desde o sistema positivado. Logo, não se trata de uma teoria sobre os resíduos bagatelares do sistema criminalizador, e sim sobre o próprio sistema criminal. Aqui reside a diferença entre a consolidação de uma dogmática crítica e a valoração crítica da política criminal. Feita a ressalva, concebe-se o programa político-criminal minimalista como estratégia para maximizar os direitos e reduzir o impacto do penal na sociedade, diminuindo o volume de pessoas no cárcere pela restrição do input do sistema penal através de processos de descriminalização e despenalização. Logicamente, o pressuposto básico do programa garantista é o princípio da legalidade, entendido como regra semântica que identifica o direito vigente como objeto exaustivo e exclusivo da ciência penal, estabelecendo que somente as leis (e não a moral ou outras fontes externas) dizem o que é crime, e que as leis dizem somente o que é crime (e não o que é pecado).22 Vê-se, pois, o princípio secularizador balizando a legalidade penal. O princípio da legalidade pode ser dividido em duas regras de legitimação (formal ou substancial). A legalidade ampla (ou princípio da mera legalidade) vincularia o crime à lei penal, visto ser esta conditio sine qua non de existência do delito e aplicação da pena. Seria regra de divisão do poder penal que prescreve ao juiz verificar como delito somente o que está reservado ao legislador determinar como tal. O princípio da legalidade estrita (princípio da previsibilidade mínima ou taxatividade) definiria técnicas semânticas de qualificação da conduta punível, ou seja, regras de formação da linguagem penal que prescreveriam ao legislador o uso de termos de extensão determinada na definição de delito para que seja, em momento posterior, possível sua aplicação na linguagem judicial a partir de predicados verdadeiros de fatos processualmente comprováveis – o princípio convencionalista de mera legalidade é uma norma dirigida aos juízes, a quem prescreve que considerem crime qualquer fenômeno livremente qualificado como tal pela
lei, o princípio cognitivo de estrita legalidade é uma norma meta-legal dirigida ao legislador, a quem prescreve uma técnica específica de qualificação penal idônea que deverá garantir, com a taxatividade dos pressupostos da pena, a decidibilidade da verdade de sua enunciação.23 O primeiro limita o processo artesanal da norma incriminadora ao Estado, e em seu interior ao legislador, estabelecendo os liames necessários com o poder judiciário. O segundo cria critérios lingüísticos de redação da lei penal pelo poder previamente determinado. Note-se, porém, que a exclusão das demais fontes do direito penal (v.g. analogia, costumes, jurisprudência e direito penal comparado) diz tão-somente ao processo de criminalização ou de interpretação penalizadora. Tal proposição não esgota a esfera penal ao pressuposto da legalidade, reduzindo o campo interpretativo e excluindo a analogia e o direito consuetudinário das possibilidades judiciais. Sua negação é restrita aos processos de incidência penal, não ao de exclusão da pena ou do delito. Existem, desde uma visão garantista, condições de flexibilização da legalidade via interpretação material, conformando o que se poderia denominar dogmática penal garantista. No entanto, tais possibilidades limitam-se à ampliação do direito à liberdade do sujeito cuja conduta recebeu a (des)coloração da lei penal. Não se pode esquecer a utilidade prática, por exemplo, da clássica fórmula de analogia in bonam partem;24 do reconhecimento de extratividade da jurisprudência penal mais benéfica;25 da atipicidade material dos delitos de bagatela e das condutas socialmente adequadas (princípio da insignificância e da adequação social); o reconhecimento de causas supralegais de exclusão da ilicitude (consentimento do ofendido e direito de resistência26); a possibilidade de alargamento das descriminantes (v.g., roubo, 23 24
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22 86
Ferrajoli, ob. cit., p. 370.
Ferrajoli, ob. cit., p. 71. Veja-se, por exemplo, (a) a aplicação da pena aquém do mínimo nos casos de confissão, dado à proximidade do instituto com a delação premiada estabelecida nos artigos 8o da Lei 8.072/90 e 6o da Lei 9.034/95 (Carvalho, Direito Alternativo em Movimento, pp. 11722) e (b) a exclusão da punibilidade – e não mera redução da pena (art. 16 do Código Penal) – nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, quando há reparo do dano ou restituição da coisa, por ato voluntário do agente, até o recebimento da denúncia por aplicação analógica do art. 34 da Lei 9.249/95, que prevê a extinção da punibilidade dos crimes definidos pelas Leis 8.137/90 e 4.729/65, quando o agente paga o tributo ou contribuição social no mesmo prazo (Streck, A Nova Lei do Imposto de Renda e a Proteção das Elites, pp. 484-496). Neste sentido, conferir Sanguiné, Irretroatividade e Retroatividade das Variações da Jurisprudência Penal, 465-481. Sobre o tema, pesquisar Roxin, Derecho Penal, pp. 949-955, Jakobs, Derecho Penal, pp. 532-536, Santos, A Moderna Teoria do Fato Punível, pp. 264-276. 87
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saque e tráfico famélico);27 a reavaliação da matéria do erro de proibição no que tange ao potencial conhecimento da ilicitude em decorrência da inflação normativa;28 a assunção de causas supralegais de exclusão e/ou redução da culpabilidade derivadas do princípio da coculpabilidade;29 as redefinições de categorias como exigibilidade de comportamento diverso a partir do reconhecimento do pluralismo cultural;30 a reinterpretação da obrigatoriedade de imposição da agravante genérica da reincidência31 et coetera. A hermenêutica garantista viabiliza, ao mesmo tempo, de acordo com a necessidade de tutela do mais débil, a flexibilização ou a defesa intransigente da legalidade. Se reconhece direitos outros que justificam abrandamentos penalógicos ou descriminalizações judiciais de condutas, igualmente postula a efetivação da legalidade negada, através do uso alternativo do direito penal. Tudo porque, segundo Amilton Bueno de Carvalho, o olhar a lei penal desde o ponto de vista do mais fraco pressupõe uma dúplice diretiva: (a) na direção punitiva/perseguidora a interpretação deve ter força centrípeta, isto é, a imantação é para o núcleo do texto, restritivamente (o menor sofrimento possível); e (b) na direção libertária, para favorecer o débil no direito penal (réu), a força hermenêutica deve ter potencialidade centrífuga, dirigida para fora, com olhar extensivo dos direitos e garantias.32 Alexandre Wunderlich verifica que esta (re)interpretação criativa dos direitos e garantias constitucionais funda uma dogmática crítica problematizadora e de contextualização do seu objeto, essencial na edificação de uma práxis judicial condizente com o Estado democrático de direito.33 27
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Neste sentido, conferir Carvalho, A Atuação dos Juízes Alternativos Gaúchos no Processo de Pós-Transição Democrática, p. 32; Prudente, Saque vs. Ilicitude, pp. 03-06; Batista, Política Criminal com Derramamento de Sangue, p. 145; Carvalho, A Política Criminal de Drogas no Brasil, p. 28. Sobre a temática, verificar Paliero, Codice Penale e Normativa Complementare, p. 81; Ferrajoli, Quattro proposte di Riforma delle Penne, p. 50; e Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, p. 303. Sobre o tema, conferir Zaffaroni, Manual de Derecho Penal, pp. 520-521; Zaffaroni, Política Criminal Latinoamericana, p. 167; Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 70-91; e Heringer Jr., Co-Culpabilidade: A Responsabilidade da Sociedade pelo Injusto, pp. 44-54. Neste sentido, ver Marques, Uma análise crítica do juízo de censura penal, pp. 89-90. Conferir, Cernicchiaro, Reincidência, pp. 04-05; Carvalho & Carvalho, ob. cit., pp. 61-70; e Nassif, Direito Penal e Processual Penal, pp. 195-214. Carvalho, Lei para que(m)?, pp. 142-146 e Carvalho & Carvalho, ob. cit., pp. 141-142. Wunderlich, Por um Sistema de Impugnações no Processo Penal Constitucional Brasileiro, pp. 18-19.
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3.1.5. Teoria garantista da lei penal: critérios de deflação legislativa Desde os vínculos com o sistema de direito positivo, o programa garantista formula como critérios negativos (limitadores) de definição de delito o evento (lesividade), a ação (materialidade) e a culpabilidade (responsabilidade pessoal). Lesividade, materialidade e culpabilidade representariam garantias substanciais, ao passo que as garantias processuais de presunção de inocência, prova e ampla defesa corresponderiam à sua instrumentalidade. Substanciais seriam as normas de direito penal relativas à regulação dos pressupostos da pena; instrumentais seriam as normas processuais que dizem quanto aos métodos e as formas de comprovação dos delitos. Portanto, o garantismo caracteriza-se como uma tecnologia dirigida à satisfação de valores substanciais, selecionando-os, explicitandoos e incorporando-os normativamente como condições de legitimação jurídica das proibições e das penas, com o escopo de minimizar o poder punitivo. Assim, o primeiro critério de intervenção mínima na teoria da lei penal advém do princípio da necessidade (nulla lex poenalis sine necessitate). Trata-se de um critério de economia que procura obstaculizar a elefantíase penal, legitimando proibições somente quando absolutamente necessárias. Os direitos fundamentais, neste caso, corresponderiam aos limites do direito penal. O critério da necessidade é um juízo avaliativo direcionado a estabelecer utilitariamente os custos da violência da pena institucional em relação às reações informais derivadas de sua inexistência, visto que o direito penal justifica-se unicamente pela capacidade de prevenir danos às pessoas sem causar efeitos mais danosos do que aqueles que tem condições de impedir.34 Aliado ao pressuposto da necessidade, à pauta minimalista é agregado o princípio da lesividade, indicando a funcionabilidade do direito penal como instrumento de proteção dos direitos fundamentais, ou seja, os direitos são percebidos como objeto do direto penal.35 O parâmetro aqui utilizado é a categoria bem jurídico. Do ponto de vista externo, a teoria do bem jurídico definiria um modelo orientado à máxi34 35
Ferrajoli, Il Problema Morale e il Ruogo della Legge, p. 44. Conferir Baratta, Principios de Derecho Penal Mínimo, pp. 623-650. 89
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ma tutela de bens com o mínimo necessário de proibições e punições.36 Desta perspectiva, o critério de criminalização seria a idoneidade do sistema em prevenir ataques concretos (dano e perigo concreto) a bens jurídicos individuais, e a sua capacidade de não gerar efeitos perversos mais danosos que a conduta incriminada. Outrossim, a política criminalizadora deveria ser necessariamente acompanhada de política extrapenal de proteção destes mesmos bens, pois sua ação exclusiva não gera efeitos significantes. Desde uma perspectiva interna, porém, o critério de eleição do bem jurídico encontraria guarida na Constituição. Ferrajoli indica três classes de delitos que deveriam ser amplamente descriminalizados sob o amparo constitucional. Em termos quantitativos, deveriam ser excluídos os delitos de bagatela (contravenções, delitos punidos exclusivamente com pena pecuniária ou restritiva de direito), que não justificariam o processo penal e muito menos a pena. Restabeleceria, pois, uma linearidade entre delito, processo e pena: delitos seriam apenas aqueles desvios dotados dos requisitos objetivos e subjetivos exigidos; penas seriam somente as restrições de liberdade, de tipo detentivo ou outros; processo seria apenas o procedimento com a finalidade de limitar a liberdade pessoal a fim de tutelar bens fundamentais.37 O segundo critério seria qualitativo, no qual o princípio da lesividade permitiria considerar apenas as lesões concretas a terceiros (persone in carne ed ossa), excluindo condutas contra a personalidade do Estado; administração pública; atividade judicial; religião e piedade aos mortos; ordem, fé e economia pública; indústria e comércio; moralidade, costumes, pudor e honra sexual; família e matrimônio; moral e deveres de assistência familiar; patrimônio et coetera. O autor justifica afirmando que o Estado, nos ordenamentos democráticos, não constitui bem ou valor em si. Assim, estes delitos – descritos normalmente em termos vagos e valorativos opondo-se ao princípio da estrita legalidade –, ficariam sem objeto e perderiam sua razão de existência.38 No mesmo sentido, os casos de autolesão e crime impossível (v.g., prostituição, tentativa de suicídio, embriaguez e uso/porte de drogas). A terceira restrição é estrutural, pois tornaria imperativa a lesividade concreta. Assim, deveriam ser transformados os crimes de perigo abstrato em delitos de dano ou perigo concreto ou, simplesmente, descriminalizados, pois inadmissível o castigo da mera desobediência.
A valoração direcionada ao sistema criminalizador sob a ótica do bem jurídico não reduziria a esfera da tutela penal aos bens fundamentais. Trata-se, antes ainda, de reduzir a esfera dos bens que julgamos fundamentais àquela das figuras que julgamos, realisticamente, que podem ser julgadas pelo nosso sistema judiciário.39 Aliado ao critério da necessidade, fundamental na construção do sistema garantista a solidificação do princípio da materialidade da conduta (nulla iniuria sine actione). Desde o pressuposto ilustrado da secularização, percebe-se que o direito penal abdicou de punir atitudes internas, meros estados de ânimo pervertido, condições pessoais ou comportamentos imorais, perigosos ou hostis, exigindo tolerância de toda atitude ou comportamento não-lesivo a terceiros, visto não ser função do direito (muito menos do direito penal) impor ou reafirmar determinada concepção moral. O delito deixa de ser valorado quia pecatum (mala in se), representando violação do bem jurídico tutelado pelo preceito normativo (mala prohibita). Nota Ferrajoli que, de Hobbes em diante – passando por Pufendorf, Thomasius, Voltaire e Beccaria, Bentham e John Stuart Mill – é precisamente isto que diferencia a modernidade jurídica da cultura jurídica pré-moderna, o liberalismo do obscurantismo. A cultura jurídica moderna fundada sobre a liberdade individual, assim como a moral leiga fundada sobre a autonomia da consciência, nascem da sua recíproca autonomização. Não basta, para justificar a punição de um fato, que ele seja considerado imoral; assim como não basta que este seja considerado juridicamente permitido ou punido para que seja considerado moralmente lícito ou ilícito.40 Posição semelhante é a de Louk Hulsman,41 quando, ao estabelecer critérios à criminalização, sustenta a ilegitimidade de projetos legislativos voltados a tornar dominantes concepções morais sobre determinados comportamentos. Nenhum dano, por mais grave que seja, pode estimar-se penalmente relevante senão como efeito de uma ação. Atos internos (pensamentos, intenções, vícios e maldade de ânimo) não são prejudiciais a ninguém, constituindo-se patrimônio inabalável do indivíduo – o valor da interioridade moral e da autonomia da consciência é o traço distintivo da ética laica moderna, a reivindicação da absoluta liceidade jurídica dos atos internos e até de um direito natural à perversida-
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Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 474. Ferrajoli, ob. cit., pp. 480-481. Ferrajoli, ob. cit., p. 481.
Ferrajoli, Per un Programma di Diritto Penale Minimo, p. 66. Ferrajoli, Il Problema Morale e il Ruolo della Legge, p. 44. Hulsman, Descriminalização, p. 23. 91
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de... Existe, enfim, uma esfera da vida das pessoas intangível ao poder do Estado e subtraído ao controle policialesco: não apenas as intenções e idealizações, mas com maior razão os erros de pensamento e de opinião.42 A relação de causalidade entre a ação e o resultado danoso é, portanto, requisito essencial na configuração dos elementos do delito. O princípio da culpabilidade encerraria o rol dos limites de elaboração legislativa, definindo como injustificável a qualificação delitiva de atos que não pressupõem decisão livre de seres autônomos e capazes de autodeterminação. Compreensão e vontade seriam o núcleo central das investigações sobre a culpabilidade, excluindo qualquer tipo de responsabilidade penal objetiva. No entanto, percebe-se na atualidade que os sistemas punitivos, rompendo com os liames de racionalidade expostos acima, transformam-se en sistemas de control siempre más informales y siempre menos penales, produzindo una crisis del derecho penal, o sea de ese conjunto de formas y garantías que le distinguen de outra forma de control social más o menos salvage y disciplinario.43 Os vínculos com os pressupostos garantistas de previsibilidade mínima, racionalidade e cognição são desfeitos, rememorando modelos desjuridicizados e desregulamentados de culpabilidade objetiva. Os modelos jurídico-penais contemporâneos, ao violarem os princípios expostos, potencializaram sistemas cuja principal característica é a inflação penal. Desta forma, ofuscaram os limites entre a esfera do ilícito penal e a esfera do ilícito administrativo, e até mesmo do ilícito, transformando o direito penal em uma fonte obscura e imprevisível de perigos para qualquer cidadão, subtraindo-lhe a sua função simbólica de intervenção extrema contra as ofensas mais graves e oferecendo, por isso, o melhor terreno de cultura à corrupção e ao arbítrio.44 Estratégia eficaz direcionada à recapacitação da teoria da lei penal como instrumento de ultima ratio e limitação do poder seria a reconstrução dos sistemas a partir de um processo de recodificação penal. Simultaneamente, fundamental a introdução, em sede constitucional, de uma ‘reserva de código’45 como forma de impedir as contin-
gentes respostas do legislativo, freando a cultura legislativa de emergência. Criar-se-ia, pois, uma meta-garantia voltada a salvaguardar as próprias garantias penais e processuais da legislação de emergência e, ao mesmo tempo, colocando um freio na inflação penal que hoje fez regredir o direito penal a uma substancial descodificação.46
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Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 484-485. Ferrajoli, El Derecho Penal Mínimo, p. 44. Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 532. Sobre a proposta de reserva de código, conferir Ferrajoli, Quattro proposte di Riforma delle Penne, p. 50; Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, pp. 302-304; Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, pp. 537-538; Ferrajoli, La Giustizia Penale nella Crisi del Sistema Politico, pp. 81- 82.
3.1.6. O Projeto Minimalista: A Lei do Mais Fraco Desde sua matriz genealógica, o garantismo penal se caracteriza por representar signo de racionalidade frente à barbárie. O radical monopólio do Estado na função punitiva exsurge como instrumento de negação da beligerância, fazendo com que os contratantes abdiquem da vingança privada. Atualmente, a Constituição é o espaço no qual os reflexos desta opção se manifestam, visto ser instrumento de afirmação da razão: estes contratos sociais em forma escrita, que são os pactos constitucionais, estabelecem como limites e vínculos para a maioria pré-condições do viver civil.47 Como enunciação de um pacto legitimado formalmente pelo poder constituinte originário e substancialmente pelos direitos humanos, cria-se uma esfera do inegociável, ou seja, matérias sobre as quais a maioria, sequer a unanimidade, pode deliberar ou deixar de deliberar. Esse plano da impossibilidade de negociação diz respeito fundamentalmente à igualdade dos cidadãos perante a lei, tenham eles incorrido ou não em sanções penais. Logo, a garantia dos seus direitos fundamentais não poderia ser sacrificada sequer em nome do ‘bem comum ou público’. Elias Diaz argumenta que a dignidade, a liberdade ou a vida no son, desde luego, cosas que deban – ni puedan coherentemente – someterse a votación ni quedar dependiendo de una u outra heterónoma decisión, pues no habría, en efecto, votación ni aducible decisión sin la existencia de esa fundamental libertad.48 Os direitos fundamentais adquirem, portanto, o papel de objeto e limites do direito (penal) nas sociedades democráticas. Assim, los derechos fundamentales se configuran como otros tantos vínculos substanciais impostos a la democracia política: vínculos 46 47 48
Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 538. Ferrajoli, ob. cit., p. 528. Diaz, Ética Contra Politica, p. 32. 93
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negativos. Ninguna mayoría, ni siquiera unanimidad, puede legitimamente decidir la violación de un derecho de libertad o no decidir la satisfación de un derecho social. Los derechos fundamentales, precisamente porque están igualmente garantizados para todos y sustraídos a la disponibilidad del mercado y de la política, formam la esfera de lo indecidibile que o de lo indecidibile que no; y actúan como factores no sólo de legitimación sino también, y sobre todo, como factores de deslegitimación de las decisiones y de las no-decisiones.49 Leciona Ferrajoli50 que, em matéria penal, sequer por unanimidade pode um povo decidir ou consentir que um homem morra ou seja privado sem culpa de sua liberdade; que pense ou escreva, ou não pense ou não escreva; que se reúna ou não com outros; que case ou não com determinada pessoa ou que com ela decida ou não ter filhos et coetera. A garantia desses direitos corresponde a pré-condições de convivência, sendo que sua lesão por parte do Estado justificaria o dissenso, a resistência e a guerra civil. Todas as pessoas, independente de terem incorrido em sanção penal, preservam e devem ter asseguradas condições de dignidade. O garantismo penal é, pois, um instrumento de salvaguarda de todos, desviantes ou não, visto que, em sendo estereótipo de racionalidade, tem como escopo minimizar a(s) violência(s) (públicas e/ou privadas). Entretanto, os atuais modelos repressivo-defensivistas prescrevem ao penal/carcerário uma função de ‘desterritorialização’ e ‘descartabilização’ do homem, retirando-lhe os principais vínculos com a cidadania. É que tais modelos entendem o direito penal desde uma lógica belicista na qual o desviante/delinqüente passa a ser considerado inimigo, e como tal deve ser eliminado ou neutralizado (v.g. as teorias funcionalistas da pena). Trata-se da enunciação do penal como garantia de todos contra um (o desviante), cujo efeito é legitimar a lei do mais forte. A diferença em relação ao estado de natureza (contraponto da modernidade) é que a vingança deixa de ser individual para se tornar coletiva; os resultados, porém, são similares, quiçá idênticos ou potencializados: a utilização emotiva e desproporcional da violência (institucional) contra aqueles (bodes expiatórios) que foram capturados pelo sistema. O marco fundacional do garantismo nega este estado de guerra e sua decorrente selvageria, percebendo a sanção como tutela do indiví-
duo que violou a norma. O direito passa a ser encarado como alternativa à guerra. Partindo do pressuposto de ser o estado beligerante a negação do direito, apenas este (direito) apresentar-se-ia como freio à irracionalidade, desproporcionalidade e desregulamentação. A premissa revela um elogio ao direito, e à racionalidade jurídica, elevado a instrumento indispensável na construção da cidadania, pressupondo-o como única alternativa à violência dos delitos e das penas. A base contratualista da justificação do direito e da pena, legado da filosofia iluminista, ressurge em novos parâmetros. Da negação do estado selvagem baseado na passionalidade, o direito (penal) configuraria uma razão artificial de tutela do débil contra os desejos de represália. Do exposto, tem-se a justificativa do modelo garantista: o direito penal e processual penal legitimam-se como lei de tutela do mais fraco. O paradigma garantista assume como única justificativa do direito penal a sua função de lei do mais fraco, em alternativa a lei do mais forte que vigoraria na sua ausência: não, portanto, genericamente, a defesa da sociedade, mas a defesa do mais fraco, que no momento do crime é a parte ofendida, no momento do processo o réu, e no momento da execução penal o condenado.51 Note-se que se encontra em frontal oposição às propostas de Defesa Social. Nestas, o sistema é dirigido para o resguardo da sociedade, sacrificando o infrator em prol do bem-comum; naquela, o objeto de garantia são os direitos fundamentais do cidadão contra os anseios de vingança (pública ou privada; individual ou coletiva). O garantismo, pois, pode ser entendido, conforme as lições de Lenio Streck, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, e por essa razão ser considerado o traço estrutural e substancial mais característico da democracia: garantias tanto liberais como sociais, expressam os direitos fundamentais do cidadão frente aos poderes do Estado, os interesses dos mais débeis em relação aos mais fortes, assim como tutela das minorias marginalizadas frente às maiorias integradas.52
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Ferrajoli, El Derecho como un Sistema de Garantías, p. 65. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 900.
3.2. A teoria geral do garantismo Viu-se que alguns dos sintomas da crise do direito e do processo penal contemporâneos podem ser refletidos na inflação legislativa e na Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 529. Streck, O Trabalho dos Juristas no Estado Democrático de Direito, p. 44. 95
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falta de eficácia tutelar dos direitos individuais por parte do poder público. Tal fato decorre desta incapacidade do sistema genealogicamente liberal alcançar as demandas impostas, num primeiro momento, pelo Estado social e, na atualidade, pelos riscos gerados na sociedade pós-industrial. Agrega-se a isto a incursão do modelo em níveis abissais de ilegalidade funcional (administrativa e judicial), ou seja, a violação por parte do Estado de sua própria legalidade ordinária e constitucional. Ferrajoli53 visualiza outros dois aspectos relevantes para o diagnóstico da atual crise do direito: (a) a inadequação estrutural das formas do Estado de direito às funções do Welfare State decorrente da falta de elaboração de um sistema de garantias dos direitos sociais comparável às garantias tradicionalmente disponíveis para a propriedade e a liberdade – os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade54 –; e (b) o deslocamento dos lugares da soberania fruto da alteração na hierarquia das fontes, ocasionando o enfraquecimento do constitucionalismo nacional face à ausência de um constitucionalismo internacional – a proteção internacional é mais difícil do que a produzida no interior do Estado, em particular dentro de um Estado de direito.55 A crise descrita abala profundamente o princípio da legalidade, gerando exercícios de poder autoritários em detrimento das garantias e do anseio, mormente em países periféricos, de construção da democracia através do paradigma do Estado de Direito. Na tentativa de estabelecer novos vínculos capacitadores de um sistema de proteção dos direitos fundamentais e da democracia, a teoria garantista propõe a alteração de três dimensões da esfera jurídicopolítica que subordinam a prática penal: (1a) a revisão crítica da teoria da validade das normas e do papel do operador jurídico (plano da teoria do direito); (2a) a redefinição da legitimidade democrática e dos vínculos do governo à lei (plano da teoria do Estado); e (3a) a reavaliação conceitual do papel do Estado (plano da teoria política). A partir desta tríplice (re)avaliação nasce a possibilidade de construção de uma teoria geral do garantismo como parâmetro de racionalidade, justiça e legitimidade da intervenção punitiva.
Antes, porém, fundamental ressaltar que a expressão garantia pode ser empregada desde três entendimentos possíveis: (1o) processual ou instrumental, que indica falsa a interrogação ‘o que é garantia’, podendo apenas ser formulada a questão ‘como se expressam ou como funcionam as garantias’; (2o) final, visto que será garantista o sistema que maximize a tutela dos direitos fundamentais; e (3o) gradual, pois nunca serão realizadas (ou não realizadas) todas as garantias e muito menos existirão sistemas perfeitos, encontrando apenas modelos mais ou menos garantistas ou antigarantistas.56 A satisfação das garantias individuais e sociais expressa nas constituições democráticas indicariam, então, a maior ou menor adesão de determinado Estado ao sistema normativo garantista. Imprescindível dizer, ainda, que o sistema jurídico de garantias reflete essencialmente um modelo jurídico-penal de tradição liberal. Os contornos teóricos gerais referentes à teoria do direito e à teoria política, apesar de fornecerem instrumentos suficientes ao estudo proposto, não passam de um esboço, de conceitos preliminares e inacabados de uma futura teoria geral do direito e da política. Repita-se: o aporte teórico garantista, não obstante as possibilidades de ampliação do horizonte à crítica do direito e da política, é concebido como modelo doutrinário crítico das ciências penais (direito penal e processual penal, política criminal e criminológica, segurança pública). Toda formulação sobre a teoria geral do direito e da política, portanto, não passa de especulação inicial e projetiva de modelos teóricos vindouros. A ressalva é salutar porque indica os limites do garantismo e a própria necessidade de reflexão crítica sobre o paradigma proposto. Ao elaborar modelo normativo de freios ao poder público arbitrário, a matriz garantista deixa clara sua vocação penal, isto é, sua potência discursiva e prática possui um thelos determinado. Parece, pois, que nesta esfera está a limitação do horizonte de ação do garantismo. Por outro lado, a pretensão universalista/generalista deve ser mirada com certo cuidado, sobretudo porque a tendência das ‘teorias gerais’ no campo jurídico é adquirir contornos totalitários em face da exclusão de verdades outras que ficam situadas à margem. As teorias gerais, não invariavelmente, ofuscam as particularidades, reduzindo, quando não excetuando, a diversidades dos sistemas autônomos – v.g.,
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Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, pp. 61-62. Bobbio, L’ Età dei Diritti, p. 63. Bobbio, ob. cit., pp. 63-64.
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Peña Freire, La Garantía en el Estado Constitucional de Derecho, pp. 25-26. 97
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no direito, o efeito deletério produzido pela teoria geral do processo em relação ao processo penal.57
penal, substitui o modelo de fontes imprecisas e abertas na construção da categoria crime. Intenta estabelecer uma previsibilidade mínima para o cidadão no uso e gozo de seus direitos, dado a exigência de lex praevia, que condiciona e limita o poder na interferência ilegítima na esfera da liberdade. Os processos de codificação oitocentistas expressam este ideal e marcam a construção do Estado de direito. Neste modelo, portanto, a legitimidade está adstrita à legalidade, sendo meramente formal a legitimação do poder público. Muito embora a construção do modelo de vínculos do poder à legalidade tenha representado substancial avanço no processo de afirmação dos direitos contra os poderes, a idéia conjugada de legitimidade e legalidade originou uma teoria jurídica assentada no dogma da presunção de regularidade dos atos do poder, identificando a validade das normas com sua mera existência.58 Demonstra Serrano que a dogmática tradicional entende como norma jurídica a proposição prescritiva dotada tão-somente de vigência. Em sendo uma regra formulada com a autorização de outra norma hierarquicamente superior, estar-se-ia perante uma norma jurídica; aliás, no interior do modelo paleopositivista, hablar de norma vigente es un pleonasmo visto que determinar la vigencia de una norma equivale a construirla. El problema de la vigencia es, pues, el problema de la existencia.59 A noção de validade das normas repassada ao senso comum teórico dos juristas permanece restrita à sua mera incorporação formal no sistema, isto é, se a norma, ato ou decisão respeita o processo de elaboração predeterminado, ingressa na órbita do jurídico como norma válida. Segundo tal concepção, prevaleciente entre los máximos teóricos del derecho – de Kelsen a Hart y Bobbio – la ‘validez’ de las normas se identifica, sea cual fuera su contenido, con su existencia: o sea con la pertenencia a un cierto ordenamiento, determinada por su conformidad con las normas que regulan su producción y que también pertenecen al mismo.60 Contudo, esclarece Ferrajoli61 que esta concepção puramente formal da validade é fruto de uma simplificação, legada da concepção onipotente do legislador no Estado liberal e derivada de uma incompreensão da complexidade do termo legalidade no Estado constitucional de direito. Outrossim, registre-se que o princípio da regularidade dos atos
3.2.1. Garantismo e teoria crítica do direito: a validade das normas e o papel do jurista O princípio da legalidade, condicionado à estrutura hierarquizada do ordenamento jurídico balizado pela Constituição, é o ponto de partida na construção do modelo garantista, sujeitando-o, de forma sui generis, às regras do positivismo jurídico. Viu-se, quando da construção genealógica do modelo ilustrado de garantias, que o princípio da legalidade, principalmente da legalidade 57
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A pretensão universalista no processo capacita o conteúdo e o escopo da ‘teoria geral’ desde o processo civil. Portanto, o direito processual penal é afetado por categorias típicas do processo civil, deformando-o. A teoria geral do processo civil, encoberta pela chamada teoria geral do processo, penetra no nosso processo penal e, ao invés de dar-lhe uma teoria geral, o reduz a um primo pobre, uma parcela, uma fatia da teoria geral (Coutinho, A lide e o conteúdo do processo penal, pp. 118/19). O problema está no fato de que o processo, apesar de sua natureza eminentemente pública, é condicionado finalisticamente pela estrutura do direito material que lhe dá subsistência. No processo civil, os interesses em jogo são, fundamentalmente, patrimoniais, diferenciando-se do processo penal, cuja objetivação é limitar o poder punitivo do Estado em prol da liberdade do indivíduo. Assim, inadmissível uma ‘teoria geral’ que dê conta de atividades diferenciadas da jurisdição, pois a unificação do processo, defendida por tantos autores, pode levar a um tipo de raciocínio equivocado, de conseqüências desastrosas” (Suannes, Os fundamentos éticos do devido processo penal, p. 136). Posto isto, leciona Jacinto Coutinho que teoria geral do processo é engodo; teoria geral é a do processo civil e, a partir dela, as demais. Inadmissível, isso sim, é usar no processo penal o mesmo discurso, como se o referencial semântico fosse igual (e, portanto, desprezando-o), tudo em nome de uma pseudo-coerência sistêmica que, no final das contas, é sintática e acaba legitimando o status quo, nem que seja fruto da mais terrível das ditaduras (Coutinho, ob. cit., p. 122). Nesta perspectiva, pertinente a metáfora de Lenio Streck quando visualiza como a crítica (‘outro’ em relação ao pensamento único) é recebida pelos detentores da fala autorizada: “(...) é necessário chamar a atenção dos operadores/intérpretes para o fato de que, nesse processo, de (inter)mediação, pelo qual a dogmática jurídica (re)produz os discursos de verdade, estes ‘nunca são o resultado de um emissor isolado, estando vinculados a uma prática comunitária organizada em torno de uma subjetividade específica dominante. Nenhum homem pronuncia legitimamente palavras de verdade se não é filho (reconhecido) de uma comunidade ‘científica’, de um monastério de sábios’ (Warat). E é justamente desse monastério de sábios que emana a ‘fala autorizada’ que (re)produz o habitus do campo jurídico. Os eleitos, enfim, aqueles que podem falar/dizer-a-lei-e-o-Direito, recebem o cetro (o skeptron da obra de Homero) de que fala Bourdieu. Estão, assim, (plenamente) autorizados a fazer, inclusive, ‘extorsões de sentido’ e ‘abusos significativos’. E quem se rebelar, quem tiver a ousadia de desafiar esse processo de confinamento discursivo, enfim, quem tentar entabular um contra-discurso, um discurso crítico, responde(rá) pelo (hedinodo) crime de ‘porte ilegal da fala’ (Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 202).
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Gianformaggio, Diritto e Ragione tra Essere e Dover Essere, p. 28. Serrano, Validez y Vigencia, p. 23. Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 63. Ferrajoli, Sul Ruolo Civile e Politico della Scienza Penale nello Stato Costituzionale di Diritto, p. 666. 99
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do poder, simplificador do conteúdo do princípio da legalidade, foi igualmente reforçado, no Estado Social, com a preponderância do Executivo sobre os outros poderes constituídos. Percebe Cadermatori62 que esse arcabouço conceitual não leva em conta o fato de que o moderno Estado constitucional incorporou diversos princípios em seus estatutos. Segundo o autor, os princípios determinam valorações ético-políticas e de justiça das normas por ele e nele produzidas, agindo como critérios de (des)legitimação não mais externos ou jusnaturalistas (moral ou político), mas agora internos ou positivistas (jurídico). Ocorre que, com a recepção dos valores iluministas pelas Constituições, a arquitetura do ordenamento e os vínculos entre as normas modificaram-se. A cadeia principiológica constitucionalizada (direitos fundamentais) determinou regras sobre a produção legal não reduzidas apenas às suas condições formais (procedimentais e de competência), mas, sobretudo, relativas ao seu conteúdo (vínculos substanciais). A incorporação constitucional dos direitos fundamentais impõe à teoria do direito revisão das esferas da validade e vigência das normas, e a necessária de separação destas categorias, principal erro do ‘paleopositivismo dogmático’ (dogmatismo). Como ressalta Ferrajoli,63 os conceitos de vigência e validade são assimétricos e independentes: enquanto vigência diz sobre a forma dos atos normativos, ou seja, é questão de correspondência ou subsunção das normas às regras de procedimento e competência; validade corresponde ao significado, trata-se de uma questão de coerência ou compatibilidade das normas produzidas com os valores materiais encontrados nas Constituições. Os direitos fundamentais equivaleriam aos vínculos de substância, e não de forma, que condicionam a validade das normas produzidas, indicando a teleologia desse moderno artifício que é o Estado constitucional de direito. Esclarece Serrano que o juízo de vigência es aquel que va referido a la mera constatación de la existencia de una norma en el interior de un sistema jurídico. Es un juicio de hecho o técnico, pues se limita a constatar que la norma cumple los requisitos formales de competencia, procedimento, espacio, tiempo, materia y destinatario; y como tal juicio de hecho es susceptible de verdad o falsedad.64 Ao contrário, o juízo de
validade es aquel en virtud del cual se declara (si es positivo) que una determinada norma (cuya vigencia formal se ha comprobado como verdadera) se adecua además en su contenido a las determinaciones existentes en niveles superiores del ordenamiento, con independencia de que estas determinaciones sean reglas o principios, valorativas o neutras, justas o injustas, eficaces o ineficaces.65 A tese positivista da presunção de regularidade dos atos de poder, calcada na visão acrítica e contemplativa do jurista, é negada, sobretudo porque fundada na (ingênua) noção da existência de um ‘poder bom’. Não basta a sintonia da norma com os parâmetros formais estabelecidos para sua validação, visto que eles nada garantem. Imprescindível é sua harmonia com os direitos e garantias que expressam a racionalidade material (substantiva) do estatuto fundamental. Logo, o conceito de vigência refere-se (não genericamente aos atos mas) à forma dos atos normativos: entendendo-se com esta expressão o conjunto dos requisitos empíricos (formalidades, procedimentos, competência e semelhantes) que fazem de um ato lingüístico preceptivo uma decisão jurídica (por exemplo uma lei, um negócio, uma sentença, ou um ato administrativo); enquanto que o conceito de ‘validade’ se refere ao significado dos mesmos atos, ou seja, às normas por estes produzidas. As duas figuras, portanto, são predicáveis sobre a base de duas classes diversas de normas sobre a produção: as normas formais, que vinculam a forma dos atos normativos, e as normas substanciais que vinculam o seu significado.66 A tradição paleopositivista considera válida a norma produzida exclusivamente segundo critérios formais, mesmo que desrespeitasse o conteúdo material (norma desubstancializada), até declaração de invalidade pelo órgão competente. A teoria descrita, ao contrário, classifica tal norma como dotada apenas de validade formal (vigência), mas inválida substancialmente, não podendo, pois, gerar qualquer tipo de alteração na realidade (eficácia). Ou seja, como anota Wunderlich, é evidente que nem toda norma vigente é também válida.67 Assim, seguindo as lições de Cadermatori,68 poder-se-ia distinguir vigência, validade e eficácia das normas jurídicas: considera-se vigente a norma despida de vícios formais; considera-se válida a norma imu-
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Cadermatori, ob. cit., p. 111. Ferrajoli, ob. cit., p. 64. Serrano, ob. cit., p. 51.
65 66 67 68
Idem. Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 467. Wunderlich, ob. cit., p. 16. Cadermatori, ob. cit., pp. 113-114. 101
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nizada contra vícios formais e materiais; e considera-se eficaz a norma realmente observada pelos seus destinatários. Nesse sentido, o juízo de vigência é binário (de possibilidades) e fático, sendo que o juízo de validade é gradual (de probabilidades) e valorativo; o juízo de eficácia, por seu turno, seria apenas fático. Todavia, enquanto este é externo ao sistema, aqueles são internos. O modelo garantista de teoria geral das normas, muito embora assumindo seu caráter ideal-típico, não se contenta com a mera proposição descritiva isenta de respaldo no plano da eficácia. Além de romper a imagem analítica da norma jurídica, tal composição teórica proporciona redefinições relevantes no papel do jurista, principalmente do julgador, em seu mister de controle da constitucionalidade. A ruptura entre os significados das normas transpõe ao intérprete o dever de apenas estar submetido às leis válidas, tanto no plano formal como substancial. É que, em sendo o controle da legitimidade constitucional das leis posterior e eventual, freqüentemente acontece de uma norma inválida entrar e prosseguir em vigor enquanto sua invalidade não seja declarada pelo órgão competente, ou, situação mais grave, perpetuar-se simplesmente por não ser argüida sua inconstitucionalidade abstrata ou ficar restrita ao moroso controle difuso.69 Como ensina Streck, é relativamente fácil delinear um modelo garantista, sendo difícil a tarefa de modelar técnicas legislativas e judiciais adequadas para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais. Percebe o constitucionalista gaúcho que a forma de potencializar o valor normativo da Constituição é delegar ao jurista a séria tarefa de contaminar o direito infraconstitucional, pois garantismo deve ser entendido como maneira de fazer democracia dentro e a partir do direito. Como ‘tipo ideal’, o garantismo reforça a responsabilidade ética do operador do direito.70 O papel da jurisdição expresso pela teoria do garantismo é de defesa intransigente dos direitos fundamentais, topos hermenêutico de avaliação da validade substancial das leis. O vínculo do julgador à legalidade não deve ser outro que à legalidade constitucionalmente válida, sendo imperante sua tarefa de superador das incompletudes, incoerências e contradições das leis inferiores, em respeito ao estatuto maior. A denúncia de invalidade (constitucional) das leis permite sua
exclusão do sistema, gerando a otimização do próprio princípio da legalidade e não, como querem alguns afoitos, sua negação. Percebe-se, pois, outra importante crítica ao paradigma positivista dogmático reinante nas ciências jurídicas. As lacunas e as antinomias nos níveis horizontais e verticais, normalmente entendidas como mera aparência visto ser o sistema dotado de completude e coerência, isento de falhas e ambigüidades, são expostas. A assunção do modelo paleopositivista levou os ordenamentos atuais a alcançarem níveis patológicos de lesão aos direitos fundamentais. A submissão mitologizada do jurista ao sistema de legalidade meramente formal acabou por determinar práticas ilegítimas. Temerário com as ofensas às formas, o pensamento positivista tradicional acabou gerando um campo de ilegalidades no conteúdo do saber. A ruptura proposta pelo garantismo coloca em evidência este esquema, conferindo um papel crítico e criativo ao jurista, na denúncia das antinomias e lacunas existentes, propondo de dentro as correções previstas pelas técnicas garantistas do que o ordenamento dispõe; e/ou elaborar e sugerir de fora novas formas de garantia idôneas a reforçar os mecanismos de autocorreção.71 Caberia à crítica do direito não ‘organizar’ o ordenamento, dandolhe o falso acabamento de coerência e completude, mas, ao contrário, explicar sua incoerência e sua falta de completude mediante juízos de invalidação das normas inferiores e, correspondentemente, de não efetividade das normas superiores... A única coisa que não se pode fazer, sob pena de incoerência e inconsistência científica do discurso jurídico, é ocultar as antinomias e as lacunas ou, ainda, afirmar, por força de uma atitude dogmaticamente avalorativa e contemplativa das leis (somente porque vigentes), a simultânea validade tanto das normas que permitem como das que proíbem um mesmo comportamento.72 A proposta garantista nega os mitos do positivismo dogmático dedicados a uma visão meramente contemplativa de ordenamentos jurídicos absolutamente incapazes de responder às demandas das sociedades contemporâneas (complexas). Resta lembrar ainda que o ‘convite’ à dúvida e à permanente incerteza sobre a validade das leis, sua aplicação, coerência, plenitude e unidade, significa demarcar uma postura frente o direito. Desta posição projeta-se um horizonte (sempre utópico) de incessante busca de
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71 72
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Idem, pp. 114-115. Streck, ob. cit., p. 48.
Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 67. Ferrajoli, Direitto e Ragione, pp. 921-922. 103
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coerência – dirigida a exigir a anulação das normas inválidas –, plenitude – na criação de garantias aptas a impedir violações –, e unidade – na tentativa de criação de um constitucionalismo mundial adequado para restaurar uma hierarquia minimamente racional de fontes.73
referencial hermenêutico dos conteúdos suscetíveis às deliberações do legislador, inclusive constituinte, porque situada em nível superior ao próprio poder legiferante (ordinário ou originário). As normas constitucionais situam-se encima de los poderes del Estado y fuera del campo de acción y pugna política.76 No Brasil, a afirmação ganha clareza com a leitura do artigo 60, § 4o, IV, da Constituição da República, o qual, ao estabelecer os direitos e garantias fundamentais como cláusulas pétreas, impossibilita sequer sejam objeto de deliberação à proposta de emenda constitucional tendente a aboli-los. Não só o poder legislativo ordinário, mas inclusive o originário (reformista), são ilegítimos para excluir os direitos e garantias fundamentais. Assim, se democracia formal diz respeito ao quem e ao como das decisões, consolidando regras procedimentais de expressão da vontade da maioria, a democracia substancial estabelece limites ao que pode (ou não) e deve (ou não) ser deliberado por esta mesma maioria, configurando normas substanciais limitativas ou imperativas do Estado constitucional de direito. Os direitos fundamentais, como afirmado alhures, são o(s) limite(s) e o objeto do direito, caracterizando o fim e os meios, bem como o sentido das normas e das decisões que podem ou não ser tomadas nos Estados democráticos. Percebe Ferrajoli que os direitos fundamentais sancionados nas constituições – desde os direitos de liberdade aos direitos sociais – operam como fontes de deslegitimação e invalidação, como de legitimação e de validação. É nesse sentido que podemos afirmar que nenhuma maioria, em um Estado constitucional de direito, pode decidir sobre a supressão da vida de um homem ou de sua liberdade, ou não decidir sobre as medidas necessárias para assegurar a subsistência, a saúde, a instrução, entre outras.77 O sistema político estatal regido por normas, isto é, pelo princípio e não pelo Príncipe, é um fenômeno relativamente recente, pois nasce na modernidade. O direito, que representa a razão artificial desta entidade política, caracteriza-se como instrumento e limite aos seus fins. Tratam-se, direito e Estado, de duas realidades complementares, muito embora autônomas, das quais o imperativo do respeito aos direitos fundamentais corresponde à sua fundação.
3.2.2. Garantismo e Estado de direito: as visões da democracia A divisão das normas que condicionam vigência e validade amplia-se e permite duas visões diferenciadas da democracia: democracia formal (ou política) e democracia substancial. O primado dos direitos fundamentais, locados naqueles contratos sociais em forma escrita que são as cartas constitucionais, em geral emanadas por maiorias qualificadas,74 identifica não somente o norte de interpretação das normas e o critério de validade das decisões, mas altera a teoria do Estado e da democracia. Se na concepção clássica do Estado de direito os atos do poder constituído são exercidos per leges, e o princípio da legalidade formal rege e condiciona a validade das decisões do poder, no Estado constitucional de direito o exercício de governo ocorre sub leges. O princípio da legalidade, portanto, além de formal, carece de feição substancial devido à recepção dos direitos fundamentais, submetendo todo poder, inclusive o legislativo, ao direito, configurando estrutura escalonada de normas que legitimam as de nível inferior. O princípio da legalidade substancial, como reitera Peña Freire,75 predetermina a validade, de modo que todo poder deve ser limitado pela lei, e condiciona as formas, os procedimentos de atuação normativa ou executiva e os conteúdos de que se possa dispor. A fundamental diferença entre estes dois modelos de Estado moderno é a de que no primeiro (Estado de direito ou legislativo) os vínculos do poder estão restritos à legalidade formal, enquanto no segundo (Estado constitucional ou democrático de direito) as normas constitucionais que versam sobre os direitos e garantias fundamentais são dotadas de caráter vinculante. Os direitos fundamentais, para além do caráter exclusivamente descritivo, transforma a Constituição em 73 74 75 104
Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 69. Ferrajoli, Derechos y Garantías: La Ley del más Débil, p. 53. Peña Freire, ob. cit., p. 50.
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Peña Freire, ob. cit., p. 59. Ferrajoli, ob. cit., pp. 506-507. 105
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Como ensina Peña Freire,78 a expressão ‘Estado de direito’ pode ser considerada inclusive um pleonasmo, porque todo Estado é Estado de direito, integrando-se na mesma ordem conceitual. Seriam Estados de direito inclusive os Estados autoritários, desde que tenham fonte e forma normativa, e o poder seja exercido de acordo com as normas. O que em realidade diferenciaria Estados de direito e Estados democráticos de direito seria a previsão e o respeito aos instrumentos de criação, incorporação e aplicação dos sistemas de ‘direitos sobre o direito’. Os vínculos expressos pelos direitos fundamentais à validade das decisões representariam, pois, técnicas contra possíveis tentações despóticas ou paternalistas da maioria.79 Desde a perfectibilização do paradigma do Estado de direito, dotado de Constituição rígida incorporadora dos direitos fundamentais, nasce a dimensão substancial não só do direito, mas da democracia. Assim, las dos classes de normas sobre la producción jurídica que se han distinguido – las formales que condicionan la vigência, y las sustanciales que condicionan la validez – garantizam otras tantas dimensiones de la democracia: la dimensión formal de la ‘democracia política’, que hace referencia al quién y al como de las decisiones y que se halla garantizada por las normas formales que disciplinan las formas de las decisiones, asegurando con ellas la expresión de la voluntad de la mayoria; y la dimensión material de la que bien podría llamarse ‘democracia sustancial’ puesto que se refiere al que es lo que no puede decidirse o debe ser decidido por qualquier mayoría, y que está garantizada por las normas sustanciales que regulan la sustancia o el significado de las mismas decisiones, sob pena de invalidez, al respecto de los derechos fundamentales y de los demás principios axiologicos establecidos por aquella.80 Os direitos fundamentais correspondem ao núcleo de legitimidade substancial do Estado democrático de direito e estabelecem um pólo rígido de justiça material independente dos ‘desejos’, livres ou manipulados. É que a idéia de democracia reduzida à expressão da vontade da maioria não satisfaz às expectativas nascidas com o processo de positivação, generalização, internacionalização e especificação dos direitos humanos, podendo, inclusive, demonstrar-se autoritária, devido à tendência de tornar universal determinada moral, excluindo os direitos das minorias (sexuais, raciais, étnicas, etárias, sociais, econômicas et
coetera). Definitivamente, o sentido de democracia não corresponde mais à legitimidade procedimental das decisões majoritárias, pois estas não têm poder deliberativo absoluto (uma decisão pode ser majoritária e autoritária ao mesmo tempo). Para justificar a ilegitimidade do poder das maiorias organizadas em detrimento dos direitos fundamentais, socorremo-nos novamente de Peña Freire quando sustenta que la preservación de los derechos integra el primer nivel de consenso y que éste precede a la elección de los procedimientos para la resolución de conflictos o para la adopción de decisiones. La justificación de la afirmación es posible si suponemos que la intangibilidad de los derechos vitales es criterio inicial con el que se acude a la negociación; es más, es el motivo de la negociación misma.81 Outra diferença fundamental trazida pelo modelo garantista é a integração entre as diversas espécies, até então dicotômicas, de gerações jurídicas, na trilha da teoria crítica dos direitos humanos. Os direitos fundamentais não podem ser cindidos em ‘eras’, visto que direitos de liberdade, direitos de igualdade e direitos de solidariedade conglobam um todo orgânico de tutela da dignidade da pessoa humana. Não há, portanto, neste modelo ideal, oposição entre direitos liberais e sociais, pois ambos configuram-se como direitos fundamentais. A plenitude das funções do Estado liberal e do Estado social representaria a garantia dos direitos (individuais, sociais e transindividuais) contra os poderes (do Estado ou das maiorias organizadas). Daqui nasce a prolatada fórmula do projeto democrático garantista: Estado e direito mínimo na esfera penal (direitos e garantias sobre os quais não se pode decidir), Estado e direito máximo na esfera social (direitos e garantias que o Estado não pode deixar de satisfazer). A originalidade da concepção garantista, ao incorporar os direitos individuais aos coletivos e difusos, embasa a inação político-criminal e a comissão administrativa na efetivação dos direitos sociais. Contudo, como percebe Norberto Bobbio, os direitos sociais colocam problemas superiores de resolução, se comparados aos direitos individuais, porque requerem uma tutela mais ativa do Estado: enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado, para limitar o seu poder, portanto; os direitos sociais exigem para a sua atuação prática, isto é, para a passagem da declaração puramente verbal à
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Peña Freire, ob. cit, p. 41. Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 507. Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 65.
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Peña Freire, ob. cit., p. 66. 107
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sua proteção efetiva, exatamente o contrário, ou seja, o aumento dos poderes do Estado.82 Estabelecidos os modelos tendenciais de Estado democrático de direito e Estado autoritário segundo os maiores ou menores vínculos com os direitos fundamentais, conclui-se preliminarmente que, devido ao fato de as propostas garantistas coligarem teleológica e processualmente Estado liberal e Estado social, direitos de liberdade, civis e políticos e direitos sociais e transindividuais, o paradigma anunciado ultrapassa a estrutura liberal, ainda que entendido como um liberalismo sui generis.83 A proposta configuraria um modelo de ‘liberal-socialismo’, porque não contrapõe, mas combina e concilia, dentro de um mesmo paradigma, direitos e garantias liberais individuais e direitos e garantias sociais.84 Importantíssimo ainda ressaltar que Ferrajoli não inclui no rol dos direitos fundamentais os direitos patrimoniais.85 Se os direitos fundamentais correspondem a este rígido núcleo substantivo de legitimação democrática (interna e externa) do Estado de direito devido ao seu caráter indisponível e inalienável, os direitos patrimoniais (inclusive o direito de iniciativa econômica e de mercado) não poderiam aqui estar incluídos, pois isentos daqueles pressupostos caracterizadores. Diferentemente dos direitos fundamentais, estes são ontologicamente alienáveis e acumuláveis. Como lembra Eligio Resta, os direitos fundamentais podem ser definidos como direitos inclusivos,86 ao passo que os direitos patrimoniais seriam direitos cujo exercício só pode ser concebido na exclusão do ‘outro’.
parâmetros de avaliação interna do sistema jurídico-político. Capacita critérios de (des)legitimação das normas e decisões contrárias aos direitos fundamentais desde dentro do modelo, criando uma metodologia interpretativa capaz de desmascarar os mitos de plenitude e coerência do ordenamento, e da democracia como sistema de decisão vinculado apenas à vontade da maioria. Todavia, o aporte garantista permite ainda outra ruptura que possibilitará compreensão do sistema jurídico a partir do seu exterior, qual seja, a separação entre ponto de vista interno (normativo) e externo (axiológico) decorrente da cisão ilustrada entre direito e moral (princípio da secularização). Se o primeiro arcabouço teórico (teoria das normas e teoria do Estado) permite o estudo da validade das leis e decisões dos poderes, o segundo (teoria política) viabiliza critérios de justiça do próprio sistema, operando a (des)legitimação ético-política do direito e do Estado. Assim, se o garantismo estabelece um modelo normativo de invalidação das normas vigentes (teoria crítica do direito) e do exercício arbitrário dos poderes das maiorias organizadas (teoria democrática), desde sua concepção filosófico-política permite a crítica e a deslegitimação de fora das instituições jurídicas positivas, sobre a base da rígida separação entre direito e moral, ou entre validade e justiça, ou entre ponto de vista jurídico ou interno e ponto de vista ético-político ou externo ao ordenamento.87 Importante ressalvar que o sentido do termo ‘moral’ empregado neste momento diz respeito aos critérios de legitimação externa do sistema normativo,88 ou seja, é termo vinculado aos valores extra-ordem jurídica, e não à concepção de moral individual (foro interno) como foi trabalhado na aferição do princípio da secularização no direito penal. A idéia de Estado como entidade teleologicamente direcionada à proteção dos direitos fundamentais permite a afirmação de que a legitimidade do modelo jurídico-político não é interna e vertical, mas externa e horizontal. A estrutura do direito e do Estado não é justificada em si mesma, pois o seu referencial é dirigido à dignidade da pessoa humana.
3.2.3. Garantismo e filosofia política: teoria heteropoiética: tolerância e resistência à opressão O modelo do Estado democrático de direito construído a partir da separação entre racionalidade formal e material (validade e vigência) e democracia política e substancial possibilita, ao operador do direito, 82 83 84 85 86 108
Bobbio, L’ Età dei Diritti, p. 72. Sobre o liberalismo sui generis de Ferrajoli, conferir Resta, La Ragione dei Diritti, p. 440; Guastini, I Fondamenti Teorici e Filosofici del Garantismo, pp. 181-182; e Cadermatori, ob. cit., p 107. Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 509. Ferrajoli, ob. cit., p. 508. Resta, ob. cit., p. 436.
87 88
Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 922. Afirma Ferrajoli que a palavra ‘moral’ deve ser entendida neste contexto, em sentido lato, para designar a justificação externa ou meta-jurídica das proibições ou das punições; tanto que me parece preferível utilizar em seu lugar a expressão ‘ponto de vista externo’, mais genérica e menos comprometedora, em oposição ao ‘ponto de vista interno’ que é o do direito (Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 519). 109
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A centralidade da pessoa e o respeito pelos direitos humanos determinam os critérios de justificação externa do poder, delimitando os pressupostos normativos de tolerabilidade do sistema. Se desde o seu interior direito e Estado são legitimados substancialmente pelos direitos fundamentais, externamente são os direitos humanos que propiciam os parâmetros avaliativos do seu nível de justiça, servindo de norte ao próprio conteúdo do pacto social: a Constituição. Para explicar essa opção e redefinir os critérios de legitimidade, proporcionando que esta provenha do exterior, Ferrajoli parte da categoria autopoiésis, criando um conceito heteropoiético de legitimidade. A categoria autopoiésis designaria o caráter auto-referencial dos sistemas políticos, no qual o Estado representa um fim em si mesmo – podemos dizer que são autopoiéticas todas as doutrinas de ‘legittimazione dall’alto’, a começar pelas pré-modernas que fundamentam a soberania do Estado sobre entidades metafísicas e meta-históricas como Deus, religião, natureza e semelhantes.89 Na concepção heteropoiética, a legitimidade da entidade política é uma ‘legittimitá dal basso’, isto é, o Estado é percebido não como fim, mas como instrumento de tutela dos direitos fundamentais. O primado do Estado sobre a sociedade é invertido. Como percebe Lenio Streck,90 o paradigma garantista trabalha com esta idéia de que a legitimação do direito e do Estado provém de fora, estabelecendo um contraponto às teorias autopoiéticas que visam, a partir de um direito do tipo reflexivo, não o adaptar aos anseios da sociedade, mas aos limites do establishment, reduzindo, com isso, a complexidade social. A conseqüência da assunção de uma ou outra tese quando o objeto de estudo é o poder é drástica. Se a visão autopoiética (contemplativa) acaba por gerar uma justificação otimista do poder, produzindo modelos neototalitários, a concepção garantista heteropoiética (crítica) pressupõe o poder como ontologicamente perverso, tendente à constante violação dos direitos fundamentais. O programa político-criminal restritivo tem aqui sua justificativa. Mais: as doutrinas do primeiro tipo revelam uma característica pré-secular, pois confundem ponto de vista interno e externo e, conseqüentemente, direito com moral e/ou natureza (organicismo).91
A primazia do ponto de vista externo, do respeito às pessoas, significa fundamentalmente luta pela pluralidade axiológica, pelo respeito ao diverso, pela tolerância, visto que somente neste modelo é admissível a crítica do sistema e o estabelecimento de critérios que justificam, inclusive, a sedição. Na gestão dos sistemas auto-referenciais, a desobediência, resistência ou objeção de consciência é descartada, pois o critério de justiça é reduzido à mera legalidade formal, configurando o ato de rebeldia ‘crime de lesa-majestade’. A razão de Estado se sobrepõe à razão do direito. Neste caso, tomando como referencial as redefinições terminológicas propostas por Ferrajoli, tem-se como característica dos modelos o respeito (ou a negação) do secular valor tolerância. Com Locke e Voltaire viu-se que a formação genealógica do conceito de tolerância na filosofia da ilustração corresponde fundamentalmente à profunda discussão dos limites de intervenção estatal na esfera da consciência (foro interno). O objeto oitocentesco da tolerância era, pois, relativo à liberdade de opinião política ou religiosa. Logicamente que o alcance do conceito tolerância na atualidade é diverso, sendo aqui residente a virtude da categoria: sua trans-historicidade. Norberto Bobbio,92 ao deslocar temporalmente o problema, percebe o fato de que atualmente o conceito de tolerância vem identificado aos problemas de convivência entre as minorias étnicas, lingüísticas, raciais e de todos aqueles que denominamos ‘diversos’. Para justificar as razões da tolerância, o politólogo elabora quatro teses. A primeira, prudência política, considerada a mais vil, tem por fundamento a necessidade prática de tolerar, pois a experiência demonstra que a intolerância não obtém os resultados a que se propõe (erradicar o diverso), gerando o efeito perverso de reforço dos ideais combatidos. A segunda tese funda-se numa metodologia universal de convivência, na qual a tolerância é utilizada como meio de persuasão em
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Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 923. Streck, ob. cit., p. 48. Importante observar que os modelos jurídicos estruturados desde concepções autopoiéticas são revitalizações, via funcionalismo sistêmico, de um modelo de organicismo so-
92
cial. Nesse sentido, imprescindível lembrar as lições de Eugenio Raul Zaffaroni: o paradigma de maior vigência temporal é o do organicismo: o discurso jurídico-penal fundamentado na idéia da sociedade como organismo imperou teocraticamente, restabelecendo-se como positivismo e volta agora como funcionalismo sistêmico. A idéia de ‘organismo social’ é, por sua essência, antidemocrática, pois o que interessa é o organismo, e não suas células. As decisões são tomadas apenas pelas células preparadas especialmente para decidir e não pela maioria indiferenciada delas. O paradigma organicista é idealista, não suscetível de verificação, e sua adoção pelo positivismo não foi mais do que um recurso do poder para ‘mostrar como ‘científico’ aquilo que sempre constituiu uma metáfora antidemocrática (Zaffaroni, Em Busca das Penas Perdidas, p. 49). Bobbio, Le Ragioni della Tolleranza, p. 230. 111
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detrimento da violência. Segue uma terceira justificativa, cujo dever de tolerar corresponde a uma ação moral e ética imposta por um princípio absoluto, que é o do respeito aos demais. A última justificativa relaciona-se com o ‘princípio do Pantheon’, ou seja, não corresponde a princípios de razão prática, mas sim teórica, na qual a verdade somente pode ser alcançada pela coexistência e síntese de parcialidades históricas.93 Percebe-se, no entanto, que a atualização do objeto proposta por Bobbio é parcial, visto que em ambos os casos a luta é a mesma, ou seja, reivindica-se o direito de ser diferente e de ser respeitado enquanto tal. Exige-se a eficácia plena do princípio da igualdade: igualdade formal, entendida como direito de ser reconhecido isonomicamente na esfera pública, e igualdade substancial, direito de ser diferente e respeitado (tolerado) no âmbito privado. Ou, como enunciado por Boaventura de Souza Santos, o direito à igualdade, quando a desigualdade inferioriza; o direito à desigualdade, quando a igualdade descaracteriza.94 Reivindicar o direito à igualdade não exclui o direito à diversidade, sobretudo porque não são antônimos (lembre-se: o antônimo de igualdade é desigualdade, e não diversidade). Na esfera penal, a ruptura secular afirma o princípio da perversidade no rol dos direitos fundamentais do cidadão. Contudo, a delimitação oferecida por Bobbio alcança apenas os direitos de liberdade e, via de conseqüência, exclui os sociais. A proposta garantista de inclusão, no rol dos direitos fundamentais, os direitos sociais e transindividuais modifica o objeto, a justificativa e a metodologia da tolerância. Ferrajoli95 redefine a tolerância a partir da tensão entre o dever de tolerar e o de não tolerar. Identifica o primeiro (dever de tolerância) aos direitos clássicos de liberdade cujo exercício funda a identidade pessoal respaldada no princípio da igualdade. Não obstante, entende ser necessário falar de um princípio da intolerância quanto aos direitos sociais. Do dever de tolerar a manifestação do ‘ser’ do ‘Outro’ enquanto afirmação de identidade coliga-se o dever de não tolerar a exclusão dos direitos sociais e difusos: são estas situações de fato – a fome, a doença, a exploração, as agressões ao ambiente, e, em geral, a lesão ou insatisfação de necessidades vitais elementares – que se tornam, igual-
mente no plano do direito, objeto de intolerância. E isto acontece com a estipulação de uma nova forma de intolerabilidade: a intolerabilidade não mais da intolerância, mas da tolerância a tais situações, não através de limites mas de vínculos, não de proibições mas de obrigações de intervenção para impedi-las, removê-las ou limitá-las. É a estipulação desta nova esfera de intolerabilidade a convenção própria do Estado social de direito: aceita-se a intolerabilidade da tolerância daquilo que põe em risco as necessidades vitais, para garantir níveis mínimos de igualdade não mais apenas formais mas materiais.96 A tese identifica na lesão dos direitos fundamentais os limites da tolerância, visto que mesmo essa categoria, ao impor uma concepção fundante do processo civilizatório, tem como inadmissíveis algumas condutas. É que os direitos fundamentais, além de sua inalienabilidade e indisponibilidade, são invioláveis tanto pelo poder público como pelo privado, estabelecendo critérios limitativos à tolerância. Ao serem estabelecidos constitucionalmente (plano interno) ou declarados internacionalmente (plano externo), os direitos fundamentais conformam um rol de bens jurídicos que devem ser radicalmente tutelados, pois a sua violação justifica a violência: a violência individual da legítima defesa ou do estado de necessidade como causa de justificação dos atos que de outra forma seriam punidos como delitos; a violência coletiva da resistência e da desobediência quando a sua violação é praticada por autoridade públicas.97 A teoria do delito, ramo de maior desenvolvimente teórico da dogmática penal, construiu e justificou de maneira consistente e irreversível a legitimidade da violência individual em situações em que o Estado ausente não consegue amparar os direitos fundamentais do pólo débil da relação (v.g. os institutos da legítima defesa e estado de necessidade). Todavia, a teoria política, supondo a idoneidade dos instrumentos normativos para obstaculizar os atos de violência da administração (leis, decisões e práticas ilegítimas), conseqüência visível do mito da regularidade dos atos do poder, excluiu do elenco dos direitos e garantias o ‘direito de resistência’, presente em algumas constituições pretéritas (v.g., artigo 3o da Declaração de Direitos da Virgínia e art. 29 da Constituição francesa de 1793). A resistência à opressão indicaria a possibilidade de desobediência a qualquer ato injustificado do poder público, negando a obrigação
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Sobre a justificação da tolerância, conferir Bobbio, ob. cit., pp. 233-339, e Lopez Calera, Derecho y Tolerancia, p. 4. Apud Jardim, A Tendência Autoritária do Direito no Chamado Neoliberalismo, p. 172. Ferrajoli, Tolleranza e Intollerabilità nello Stato di Diritto, p. 289.
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Ferrajoli, ob. cit., p. 292. Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 953-954. 113
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moral de submissão do cidadão à lei, e exigindo, ao mesmo tempo, eficácia plena dos direitos consagrados pelo próprio Estado. É que as normas não garantem absolutamente nada se não forem assumidas responsavelmente pela administração política; pelo contrário, desde uma concepção pessimista (garantista) do poder, a tendência dos aparelhos de Estado é a sua constante violação. O ius resistentiae representaria a negação do direito e das práticas ilegítimas vigentes (violadoras dos direitos), consagrando uma garantia externa de efetividade constitucional. Dessa forma, conforme advoga Ferrajoli,98 desobedecer é justo quando é injusta uma lei, sendo igualmente legítimo rebelar-se quando os poderes violam direitos fundamentais e/ou os meios de garantias legais se revelam ineficazes para sancionar sua invalidade. A questão da desobediência civil, da objeção de consciência e do direito de resistência, porém, apresenta-se na atualidade de forma diversa de sua colocação clássica. Hoje, a sedição indica possibilidades de ação coletiva e/ou individual na reivindicação da eficácia constitucional. Nos atuais Estados democráticos de direito, o instrumento reivindicatório não visa a quebra da ordem constitucional ou a substituição do titular do poder, pois os instrumentos da democracia formal são inabaláveis; permite, contudo, forçar os organismos do Estado a modificar legislações injustas, isto é, leis ordinárias substancialmente ilegítimas não excluídas pelo controle de constitucionalidade, e cumprir as leis válidas não observadas.
Capítulo IV O Modelo Garantista de Limitação do Poder Punitivo
4.1. A pena nas sociedades modernas: introdução A principal característica das normas de conduta, tanto jurídicas como sociais, é sua coercitividade, pois reprovam simbólica ou faticamente atos indesejáveis. O teor fundamental da coação é, segundo Hans Kelsen,1 a aplicação de um mal ao destinatário mesmo contra a sua vontade, empregando a força física, se necessário. O direito se distingue dos outros padrões de imposição deontológica pela sanção (coação institucional): não existe ordem jurídica sem coerção. Diferentemente das instâncias primárias de controle social (associações familiares, escolares, profissionais et coetera), cuja manifestação da coação é situada em níveis simbólicos através de diferentes formas de reprovação e/ou exclusão do grupo, o direito sanciona, afirmando determinados valores, com restrições coercitivas dos bens da vida.2 Max Weber demonstra que o Estado moderno estruturou-se pela coação, na força advinda do exercício legítimo dos poderes constituídos. As relações entre a constituição do poder político e a violência seriam, portanto, realmente estreitas. No mesmo sentido, Tobias Barreto: ora, assim como a idéia de um território entra na construção do conceito de Estado, da mesma forma a idéia de direito de punir é um dos elementos formadores do conceito geral da sociedade.3 1 2
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Ferrajoli, ob. cit., pp. 989-990.
3
Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 60. Leciona Kelsen: na medida em que o acto de coacção estatuído pela ordem jurídica surge como reação contra a conduta de um indivíduo pela mesma ordem jurídica especificada, esse acto coactivo tem o carácter de uma sanção e a conduta humana contra a qual ele é dirigido tem o carácter de uma conduta proibida, antijurídica, de um acto ilícito ou delito... O direito é uma ordem coactiva, não no sentido de que ele – ou, mais rigorosamente, a sua representação – produz coacção psíquica; mas no sentido de que estatui actos de coacção, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens económicos e outros, como conseqüência dos pressupostos por ele estabelecidos (Kelsen, ob. cit., pp. 62-63). Barreto, Fundamentos do Direito de Punir, p. 643. 115
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O discurso ilustrado direcionou esforços para formular teoria jurídica capaz de centralizar no poder público o direito legítimo do exercício da sanção, virtude denominada racionalização do direito. O monopólio da coação nas mãos do Estado tornou-se, portanto, uma das principais conquistas da modernidade. O Estado moderno, segundo Weber, constituir-se-ia numa comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. Logo, o Estado se transforma na única fonte do ‘direito’ à violência.4 O uso da força no interior de uma ordem jurídico-política seria sempre limitado por regras e centralizado em organismos determinados, visto a sanção jurídico-penal ser sempre, independente da espécie de pena aplicada, um ato de violência. No entanto, se a sanção se manifesta através da violência, surge uma pertinente indagação levantada por Kelsen: qual seria a diferença entre o Estado (comunidade jurídica) e um ‘bando de saqueadores’, visto que ambos adotam a violência para privar determinadas pessoas de seus bens (vida, liberdade, patrimônio et coetera). A questão está situada na legitimidade do poder político. A concepção garantista (heteropoiética), estruturada na centralidade da pessoa humana, vincula a legitimidade do poder ao(s) seu(s) vínculo(s) com os direitos humanos. Divergentes dessa noção encontram-se os modelos de legitimidade pela mera legalidade, estruturas autopoiéticas que fundamentam a validade das normas e das práticas estatais – ou seja, das violências – exclusivamente no ordenamento jurídico. As teses sobre a legitimidade da violência demonstram que o cerne da teoria política (e penal) radica no problema do poder. Norberto Bobbio afirma, inclusive, que o alfa e o ômega da teoria política é como se adquire, se conserva, se perde e se exercita o poder, como se defende esse poder e de que forma dele os cidadãos se protegem.5 No entanto, se ‘a’ questão da filosofia política é a aquisição e o exercício das violências (i)legítimas, o direito – sobretudo o direito penal – dela não pode deixar de comungar. Assim, os limites entre ambas ciências sociais (ciência política e ciência jurídico-penal) parecem ser quase imaginários, pois se aquela responde(ria) ao momento da formulação do exercício do poder, esta funda(ria) sua nascente nos
modelos explicativos e justificadores do exercício da violência legítima organizada. A justificação do uso da violência, da imposição de sanções pelo poder público, é um dos questionamentos mais clássicos da filosofia e da teoria do direito (penal), definindo os princípios reitores dos sistemas jurídicos penais e processuais. Segundo Ferrajoli, o problema da legitimidade política e moral do direito penal como técnica de controle social mediante constrições da liberdade dos cidadãos é, em boa parte, o próprio problema da legitimidade do Estado como monopólio organizado pela força.6 A resposta à legitimidade do poder político (a diferenciação entre o Estado e os ‘bandos de saqueadores’) não exime, e muito menos esgota, o debate sobre a justificativa interna da manifestação do poder, no caso específico da sanção penal. A avaliação garantista (pessimista) do ius puniendi, centrada na realidade mesma do sistema penal, passa inevitavelmente pela discussão sobre as justificações da pena, entendida esta como instrumento jurídico-político de manifestação do poder no controle social. Trata-se necessariamente de um repensar sobre o que se convencionou chamar ‘teorias da pena’, ou seja, sobre a indagação considerada como uma das mais importantes não só do direito penal mas também da teoria política: ‘por que punir?’’.
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Weber, Ciência e Política, p. 56. Bobbio, La Resistenza all’Oppressione, Oggi, p. 157.
4.2. Esboço dos modelos justificacionistas da ilustração Os pressupostos de racionalidade e de humanização do sistema penal advindo com a filosofia da ilustração refletem o que foi definido como ‘substituição do Príncipe pelo princípio’ – com a passagem da forma estatal medieval para o Estado Moderno, na sua versão inicial absolutista, tem-se o início de um modelo de dominação racional legal. Ou seja, do ex parte príncipe passa-se ao ex parte principio.7 A autoridade ilimitada do Estado patrimonialista é sucedida por instrumentos jurídicos de contenção do poder. A estrutura principiológica apresentada, essencialmente restritiva do poder de punir e por isso garantista, tem sua fundamentação externa no pacto social. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 234. Streck & Morais, Ciência Política e Teoria do Estado, pp. 23-24. 117
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Sustentou-se da impossibilidade de reunir sob um mesmo rótulo os pensadores do contratualismo penal devido às diversas visões sobre a interpretação do pacto social. A afirmativa, no entanto, terá sua veracidade comprovada no que diz respeito às teorias da pena. Se o pressuposto contratual foi comum à grande maioria dos pensadores do final dos setecentos e início dos oitocentos, a resposta quanto à necessidade de punição seguirá sua projeção teórica. Dessa forma, não é apenas duvidoso configurar uma ‘Escola Clássica’, como é impossível determinar um modelo penalógico justificacionista comum a todos pensadores do iluminismo penal. Pense-se, por exemplo, no sincretismo metodológico que seria a inclusão do utilitarismo de Beccaria, do despotismo de Kant, do liberal-socialismo de Marat e do tomismo de Carrara sob a mesma classificação. Lógico que a principal matriz teórica moderna, ao afirmar a necessidade da pena, decorre de interpretações do contrato social, concebendo-a como instrumento de indenização pela ruptura obrigacional. Todavia, para assegurar um mínimo de rigor metodológico, desenvolver-se-á o percurso histórico das teorias penalógicas do pensamento ilustrado segundo a clássica divisão entre teorias absolutas (versão retributivista moral e jurídica) e relativas (prevenção geral negativa e prevenção social).
obstante o modelo de justiça de sangue, caracterizado pela celeridade e pelo caráter vindicativo, estar situado em épocas remotas, modelos ilustrados corresponderão plenamente às diretivas paleojurídicas. Pontos divergentes caracterizam as teorias retributivas da modernidade, porém. O primeiro a ressaltar é o de que os modelos ilustrados não representam sistemas expiatórios inspirados em concepções teístas. Ao contrário, são teorias laicas organizadas desde princípios seculares. O segundo fator de diferenciação aparece na medida qualitativa da pena, visto que a racionalização (certeza) e humanização (proporcionalidade) da resposta penal refuta em absoluto os suplícios de sangue característicos da Antigüidade. O retributivismo penal da ilustração inspira-se no modelo indenizatório vinculado ao inadimplemento contratual. A lógica burguesa determinava a obrigatoriedade da reparação quando um cidadão não pagasse sua dívida. A violação do contrato exige indenização, mesmo que forçada. Ao sujeito que descumpriu a norma jurídica interpartes deveria incidir expropriação de algo de valor que pudesse ser quantificável. Estabelecendo esta similitude com o contrato civil, surge o interrogante de qual o objeto deveria ser expropriado, e qual bem executado. Note-se que para este modelo de controle social as massas criminalizadas nada possuíam além de seus corpos, todavia, a incidência do poder sobre o corpo já não era mais admissível desde a deslegitimação do paradigma inquisitorial. Zaffaroni e Pierangeli9 apontam a capacidade de trabalho e a liberdade como os únicos objetos idôneos de conversão em dívida. O tempo, portanto, surgirá como ‘a’ sanção penal característica da modernidade. O retributivismo encontrará no despotismo ilustrado kantiano sua principal versão. Imanuel Kant, na Metafísica dos Costumes (1797), sustenta que a lei penal é um imperativo categórico que deve ser respeitado. Ao infrator a pena ha de imponérsele sólo porque ha delinquido.10 Afirma que mesmo no caso de dissolução da sociedade civil, com absoluta e plena concordância de todos os membros (Kant se ancora no exemplo da disseminação de todo um povo habitante de uma ilha), deveria ocorrer a execução do último assassino que se encontrasse no cárcere, para que cada cual reciba lo que merecen sus actos y el homicidio no recaiga sobre el pueblo que no ha exigido este
4.2.1. As justificações retributivistas Preliminarmente, é importante notar que a justificação retributivista não é restrita exclusivamente aos modelos taliônicos, como é constantemente observado na manualística, muito embora reedições modernas, principalmente em Kant, possam sugerir tal aproximação. Lembre-se que tais justificativas rememoram modelos penais da Antiguidade, cujos resquícios são encontrados no Velho Testamento – violação por violação, olho por olho, dente por dente; assim como ele causou uma injúria a um homem, assim será feito contra ele (Levítico, 24:20) – e no primeiro decreto do Código de Hamurábi – se um homem lança uma maldição contra outro homem, sem justificação, aquele que a lança deverá ser condenado à morte. A idéia da ‘devolução do mal com o mal’, presente no modelo retributivista arcaico, representa a mais primitiva forma de justiça, que exige que o violador receba um castigo idêntico ao sofrido pela vítima.8 Não 8 118
Perez, O Castigo do Crime versus o Crime do Castigo, p. 51.
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Zaffaroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 263. Kant, Metafísica de las Costumbres, p. 166. 119
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castigo: porque puede considerársele como cómplice de esta violación pública de la justicia.11 O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa básica de que a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem, ou seja, o fim utilitário seria ilegítimo. Se o direito utilizasse a pena como instrumento de dissuasão, acabaria por mediatizar o homem, tornando-a imoral.12 Logo, a penalidade teria como thelos a imposição de um mal decorrente da violação do dever jurídico, encontrando neste mal (violação do direito) sua devida proporção. Muito embora utilize critérios de medida e proporção da pena, Kant rememorará modelos primitivos de vingança privada. A teoria absoluta da pena sob o viés kantiano recupera o princípio taliônico, encobrindo-o, no entanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade: esta igualdad de las penas que sólo es posible por la condena a muerte por parte del juez, según la estricta ley del talión, se manifesta en el hecho de que sólo de este modo la sentencia de muerte se pronuncia sobre todos de forma proporcionada a la maldad interna de los criminales.13 À retribuição ética e moral proporcionada pela pena no modelo kantiano se oporá o retributivismo hegeliano, relocando o problema à seara jurídica. Em Hegel, a pena será justificada pela necessidade de recompor o direito com uma violência correspondente àquela perpetrada contra o ordenamento jurídico. O delito, percebido como lesão à ordem jurídica, deveria ser neutralizado através de uma força correspondente. Na obra Princípios da Filosofia do Direito (1820), o autor trata das relações entre crime, violência e penalidade. O princípio fundamental da teoria hegeliana da pena é centrado na idéia de que a violência destrói a si mesma com outra violência: a supressão do crime é a remissão, quer segundo o conceito, pois ela constitui uma violência contra violência, quer segundo a existência, quando o crime possui uma certa gran-
deza qualitativa e quantitativa que se pode também encontrar na sua negação como existência.14 O crime, considerado como violação da ordem e não como produção de um mal ou violação de um imperativo ético, justificaria a imposição retributiva da pena. Distante, pois, dos pressupostos de moralidade presentes no pensamento kantiano e nas teorias preventivas pretéritas.15 O delito deveria ser eliminado/neutralizado não como produção de um mal, mas de uma lesão ao direito enquanto tal. Ferrajoli16 critica as teorias retributivistas, pois entende que a idéia da pena como restauração ou reafirmação de ordem violada demonstra um equívoco derivado da confusão entre direito e natureza. Tanto a purificação do delito através do castigo como a negação do direito por parte do ilícito e sua simétrica reparação seriam insustentáveis, dado ao fato de crerem erroneamente haver relação de causalidade necessária entre culpa e castigo. Além de representarem concepções substancialistas de delito, vêem na pena função de restauração de uma ordem (jurídica e/ou moral) natural violada. Retomariam, em sua essência, modelos arcaicos de expiação religiosa. A diferença consistiria no fato de que enquanto nas concepções arcaicas de tipo mágico-religioso a idéia da retribuição é ligada à objetividade do fato com base em uma interpretação normativista da natureza, nas
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Kant, ob. cit., pp. 168-169. Para Kant, a moral é condição do agir e corresponde ao imperativo categórico sintetizado em duas fórmulas: age segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal e nunca alguém deve tratar a si mesmo e nem aos demais como simples meio, mas como fim em si mesmo. Zaffaroni e Pierangeli lembram que a segunda formulação do imperativo categórico é que definirá a concepção penalógica do autor, eis que impede tornar o homem um meio, um objeto para determinados fins (Zaffaroni & Pierangeli, ob. cit., p. 264). Kant, ob. cit., p. 169.
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Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, pp. 92-93. Sustenta Hegel que se o crime e a sua supressão, na medida em que esta é considerada do ponto de vista penal, apenas forem tidos como nocivos, poderá julgar-se irrazoável que se promova um mal só porque um mal existe já. Este aspecto superficial da malignidade é, por hipótese, atribuído ao crime nas diferentes teorias da pena que se fundamentam na preservação, na intimidação, na ameaça, na correção, consideradas como primordiais; o que disso deverá resultar é definido, de um modo também superficial, como um bem. Ora não se trata desse mal ou desse bem; o que está em questão é o que é justo e o que é injusto. Naqueles pontos de vista superficiais oblitera-se a consideração objectiva da justiça, que é o que permite apreender o princípio e a substância do crime. Procura-se então o essencial no ponto de vista da moralidade subjectiva, no aspecto subjectivo do crime, acrescentando-lhe as mais vulgares observações psicológicas sobre a força e as excitações dos motivos sensíveis, opostas à razão, sobre os efeitos da coacção psicológica na representação (como se a liberdade não obrigasse a reduzir tal representação a algo de contingente). As diversas considerações referentes à pena como fenômeno, à influência que exerce sobre a consciência particular e aos efeitos que tem na representação (intimidação, correção, etc.), ocupam o lugar próprio, até porque o primeiro lugar desde que se trate da modalidade da pena, mas têm de supor resolvida a questão de saber se a pena é justa em si e para si. Nesta discussão apenas se trata do seguinte: o crime, considerado como produção de um mal mas como violação de um direito tem de suprimir-se, e, então, qual é a existência que contém o crime e tem de suprimir-se? Esta existência é que é o verdadeiro mal que importa afastar e nela reside o ponto essencial (Hegel, ob. cit., pp. 90-91). Ferrajoli, ob. cit., pp. 240-241. 121
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cristãs-modernas de tipo tanto ético como jurídico, esta é ligada à subjetividade perversa e culpada do réu com base em uma conexão naturalista ou ontológica, tanto da moral como do direito. Em todos os casos esta representação primordial da justiça penal é filosoficamente absurda.17 Não obstante, cabe notar que o diferencial entre a ilicitude penal e a extra-penal (civil, administrativa et coetera) radica na irreparabilidade do dano, tornando obsoleta a funcionabilidade indenizatória requerida pelas teorias absolutas.
legítimo. As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior liberdade que o soberano conservar aos súditos.20 Assim, se o pacto versa essencialmente sobre a liberdade, somente esta poderia ser executada, pois a incidência em qualquer outro bem jurídico (v.g. vida e liberdade de expressão) seria ilegítima. A estrutura penal baseada na teoria do contrato social impossibilita o Estado de executar aquilo que não foi previamente acordado. Aliás, a liberdade e a vida seriam requisitos que, se inexistentes, impossibilitariam o acordo. Não se pode, portanto, neste modelo, deliberar sobre a vida de um cidadão; somente sua liberdade (parcial) poderia ser negociada, sujeitando-a à sanção. Mais: a esfera da liberdade diria respeito tão-somente à liberdade de locomoção. A pena privativa de liberdade, referida como ‘o’ modelo sancionatório no projeto da modernidade, deveria ser centralizada na liberdade de ir, vir e permanecer. Lembre-se que a grande conquista do processo de secularização foi a de garantir ao indivíduo determinada esfera de liberdade na qual o Estado não pode penetrar (esfera da vida privada, da intimidade, da liberdade de pensamento, da liberdade de culto, da liberdade de associação política). Logo, quando Beccaria usa o termo ‘liberdade’, vincula à liberdade de locomoção, única suscetível de cálculo no tempo, pois é algo que se projeta em linha reta do passado até o futuro,21 reorganizando o sistema punitivo. Inolvidável, pois, no que tange à justificação penalógica, a perspectiva utilitarista de Beccaria, sob pena de aliá-lo a correntes opostas ao seu pensamento. O alerta é feito por Adela Asúa,22 quando critica inúmeros doutrinadores que, vendo no autor referências ao ‘merecimento’ da pena para repor o pacto social, qualificam-no de retributivista. O utilitarismo do pensador lombardo é expresso no aforismo contratualista: ‘a máxima felicidade ao maior número possível de pessoas’. No capítulo Dos meios de prevenir crimes desenvolve a máxima ao afirmar que é melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.23
4.2.2. O modelo intimidatório Apesar das formulações de Kant e Hegel, o modelo penalógico que mais simbolizará a ilustração penal é encontrado em Beccaria. Indubitavelmente, o Marquês cria uma das principais vertentes do paradigma contratualista da pena, otimizando os efeitos do aporte teórico filosófico ao jurídico. Ao fundamentar o direito de punir, parte para uma descrição do momento hipotético de pactuação, no qual o indivíduo, encontrando-se em estado de natureza, opta pelo estado civil, negando a barbárie primeva, visto que eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos para comprimir esse espírito despótico, que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis.18 Sustenta que somente a necessidade de ruptura com o antigo estado de coisas constrangeu os homens a se sujeitarem às penas e, mesmo assim, a cada um somente seria exigível ceder ao depósito comum (Estado) a menor porção possível do bem jurídico liberdade. A intervenção penal representa uma necessidade, uma (pré)condição de vida em sociedade. Como lembrou Adela Asúa, a pena es el precio necessario para impedir daños mayores, e solo en ello encuentra su justificación.19 E é a cessão da liberdade individual o ato que funda o Estado, estruturando e justificando o poder de punir: o conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício de poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder 17 18 19 122
Ferrajoli, ob. cit., p. 241. Beccaria, Dos Delitos e das Penas, p. 33. Asúa, Reivindicación o Superación del Programa de Beccaria, p. 20.
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Beccaria, ob. cit., p. 34 Zaffaroni & Pierangeli, ob. cit., p. 264. Asúa, ob. cit., p. 22. Beccaria, ob. cit., p.193. 123
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O sentido utilitário emprestado à pena rompe com a idéia retributivista na qual a sanção tem finalidade em si mesma, repreendendo fatos passados ao invés de lhe emprestar função futura. Desta forma, o fim das penas não é atormentar e infligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido.24 Centrado na idéia de proporcionalidade, necessidade e culpabilidade, a pena, aplicada por juiz imparcial em processo penal público e contraditório, adquirirá fim intimidatório. O exemplo aplicado ao infrator é necessário para constranger o corpo social a não praticar o mesmo ato: os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime. Entre as penas e na maneira de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é mister, pois, escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado.25 Beccaria, apesar de ratificar o caráter preventivo geral negativo da pena em inúmeros momentos de sua obra, não esgota na sanção os meios necessários para prevenção da criminalidade. No último capítulo do manifesto, trata especificamente das ações preventivas não penais, criticando as injustiças sociais e a má-distribuição de riqueza como fatores potencializadores do agir ilícito. É lógico que não se pode ver nesta denúncia de Beccaria à má-distribuição de riquezas e oportunidades uma postura revolucionária radical de corte socialista utópico pré-marxista, como na obra de Marat. Registrada, porém, a preocupação com esse fator social em uma época em que os delitos contra o patrimônio representavam uma das mais comuns espécies de delinqüência. Juntamente com Beccaria, Feuerbach optará pelo modelo intimidatório, construindo justificativa inegavelmente mais elaborada em termos científicos. Em Anti-Hobbes (ou os limites do poder supremo e o direito de resistência dos cidadãos contra o soberano) (1798), Feuerbach indaga qual o escopo que funda a base do conceito jurídico de pena. Antes mesmo de responder à indagação, chama atenção que o fim da sanção não pode ser a correção do culpado, sobretudo porque o Estado não é tutor, mas protetor; não é preceptor, mas defensor; não possuindo como fim a moralidade e a cultura, mas a tutela da liberdade.26 A ameaça, no modelo feuerbachiano, constitui-se como o fundamento primordial da pena – a intimidação dos outros, para que não
cometam as condutas incriminadas, não deveria ser o escopo essencial da pena e o fundamento do direito de infringi-la? A resposta afirmativa é uma opinião comum aos nossos juristas e filósofos.27 Feuerbach parte do pressuposto de que o Estado é uma sociedade civil organizada constitucionalmente mediante o submetimento a uma vontade comum, sendo seu principal objetivo a criação de condições jurídicas que impeçam lesões aos direitos. As instituições jurídicas e políticas caracterizar-se-iam pela coerção física direcionada à proteção dos bens, anterior (preventivamente) ou posterior à sua lesão (exigência de reparação e/ou reposição). Logicamente o autor, assim como Beccaria, não exclui as ‘instituições éticas’ (família, escola, igreja) do papel de redução das lesões; situa, no entanto, fora do projeto repressivo formal. Ao perceber que a coação física não basta por si só, visualiza um tipo de coação que antecipa a prática do ilícito e que proviniendo del Estado, sea eficaz en cada caso particular, sin que requiera el previo conocimiento de la lesión. Una coación de esta naturaleza sólo puede ser de índole psicológica.28 No entanto, o fundamento intimidatório da pena estaria condicionado à eficácia dos aparelhos judiciários e executivos. Se o objetivo da pena é a coação psicológica aos pretendentes de ações ilícitas, sua execução deveria ser certa perante os sujeitos passivos primários (infrator) e secundários (sociedade), sob pena de perda do seu caráter essencial: o simbolismo. Sustenta Feuerbach que el objetivo de la cominación de la pena en la ley es la intimidación de todos, como posibles protagonistas de lesiones jurídicas. El objetivo de su aplicación es el de dar fundamento efectivo a la conminación legal, dado que sin la aplicación la conminación quedaría hueca (seria ineficaz). Puesto que la ley intimida a todos los ciudadanos y la ejecución debe dar efectividad a la ley, resulta que el objetivo mediato (o final) de la aplicación es, en qualquier caso, la intimidación de los ciudadanos mediante la ley.29 Note-se que em Feuerbach o sentido da sanção pública não adquire contorno preventivo especial de corte educativo ou moral. A concepção estritamente jurídica exclui a ‘prevenção particular’ porque, em face da inexistência de fundamentação lógica para uma ‘antecipação’ futura, esta não se constitui propriamente como ‘pena’. Nega, pois, o
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Idem, p. 88. Idem, p. 85. Feuerbach, Anti-Hobbes, p. 104.
Idem, p. 106. Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 60. Feuerbach, ob. cit., p. 61. 125
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caráter pedagógico da ‘retribuição’ ou do ‘melhoramento’ moral por constituir ação localizada no âmbito da ética e não do direito.30 O mérito de Feuerbach na construção do modelo de coação psicológica foi evitar a tendência anti-ilustrada de fusão dos planos da moral e do direito. Assim, das teorias clássicas sobre os fundamentos do direito de punir, a única idônea a ingressar na modernidade, dado o respeito ao pressuposto da secularização, seria a teoria da prevenção geral negativa. O escopo de exemplaridade repressiva, no entanto, tornaria a pessoa penalizada um ‘bode expiatório’ a serviço do poder. O controle social via ameaça acabaria utilizando o homem como meio para dissuadir os demais indivíduos do corpo social a não cometerem atos considerados pérfidos; rompendo com a ética kantiana na qual o homem não pode servir de instrumentos aos fins do Estado. As críticas de Carrara são fundamentais para a clara compreensão desta perspectiva justificacionista. Segundo o autor, são extremamente perniciosas as conseqüências derivadas de tal fundamento, sobretudo porque lleva a un aumento constantemente progresivo de las penas, pues la comisión del delito, al demostrar de manera positiva que el culpable no ha tenido temor de la pena, lleva al convencimento de que para infundir temor a los demás es necesario aumentarla.31 Como também advertiu Radbruch,32 tem-se como resultado prático a redução da razão jurídica à razão política ou de Estado, obtendo como efeito o ‘terrorismo penal’. Trata-se, pois, de modelo cuja decorrência aponta ao panjudicialismo e ao maximalismo inquisitorial.
contratualista não ficou restrito aos problemas da interpretação legislativa, do direito ao delito nos casos de má-distribuição de renda e da legitimidade do direito de resistência. A afirmativa de ser tirânico todo poder que não cumpre as funções estabelecidas no pacto, e de estarem os direitos e deveres contratados além das garantias individuais, alcançando os direitos sociais, condicionará o modelo penalógico do ‘amigo do povo’. Lembre-se que o pressuposto fundamental do autor é a relação simétrica entre Estado e cidadão: direito de punir do Estado no caso de violação das leis, direito de resistência do cidadão quando do descumprimento dos deveres firmados pela entidade abstrata garantidora (condições para o pleno desenvolvimento do homem). A condução teórica do autor é balizada pelo princípio da transparência, ou seja, é espelhada em constantes contrapostos entre o estado de natureza e o estado civil, pois aquele é o ‘Outro’ da modernidade. A primeira ação estatal depois de firmado o pacto seria de igualar (igualdade substancial) a comunidade sob os critérios de justiça social – a própria sociedade não merece existir senão enquanto busca o bem estar próprio do gênero humano.33 Neste modelo, a igualdade seria plena: formal e material. No entanto, a igualdade social estaria rompida através da violência que exerceram uns sobre os outros, submetendo uns aos outros, despojando-os da parte que lhes correspondia. Através das gerações, a falta de qualquer freio ao aumento das fortunas foi o que fez com que uns enriquecessem à custa dos outros e que um pequeno número de famílias acumulasse a riqueza, enquanto uma enorme massa foi caindo na indigência.34 Muito embora o fundamento do ius puniendi para Marat seja a retribuição, ‘única admissível do postulado contratualista’, sustenta que a sanção apenas pode ser justa quando o Estado age com o intuito de reduzir as diferenças e restabelecer as igualdades. Somente em casos de igualdade substancial poder-se-ia afirmar ser livre a opção pela negação da norma, pois em estado de miserabilidade do corpo ou da alma o homem teria sua culpabilidade diminuída. Portanto, sustenta que, se a lei em algum momento devesse abrandar, isto deveria acontecer somente em favor de quem é desafortunado, porque nele a virtude
4.2.3. A perspectiva política de prevenção social Como antecipado, Marat representa o marco inaugural do movimento da criminologia crítica amplamente divulgado a partir da década de setenta do século XX. Seu socialismo utópico de fundamentação 30
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Por consiguiente, la pena civil como tal no tiene ni por objeto ni por fundamento jurídico: I) La prevención contra futuras contravenciones de un injuriante em particular, porque eso no sería pena, en razón de que no se observa ningún fundamento jurídico para una antecipación semejante; II) Ninguna retribución moral, porque ésta pertenece al ámbito de lo ético y no al del orden jurídico, aparte de ser físicamente imposible; III) Ninguna clase de intimidación mediata de otro a través de los sufrimientos inferidos al malhechor, porque no hay ningún tipo de derecho para ello; IV) Ningún mejoramiento moral, porque éste sería el objetivo de la expiación, pero no de la pena (Feuerbach, ob. cit., p. 62). Carrara, Programa de Derecho Criminal, pp. 69-70. Apud Ferrajoli, ob. cit., p. 265.
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Marat, Disegno di Legislazione Criminale, p. 77. Zaffaroni & Pierangeli, ob. cit., p. 269. 127
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raramente pode germinar, e nada encontra para se sustentar. Assim, levando em consideração o sexo, a índole, a condição, a sorte dos delinqüentes, e examinando as circunstâncias do crime, é que se pode julgar com exatidão a pena merecida.35 Ensaia, desta maneira, o princípio da co-culpabilidade (co-responsabilidade) estatal pelo delito. Nas sociedades desiguais, o meio correto a ser utilizado para que as normas possam ser observadas seria a distribuição equânime de riqueza e a educação das massas.36 Em realidade, a teoria da prevenção social não chega a ser uma teoria justificadora do direito de punir no sentido próprio aqui utilizado. Representa, porém, significativa doutrina sobre os delitos e os limites das penas. Sua presença é significativa como teoria de desconstrução dos saberes penalógicos tradicionais; de formação de critérios objetivos no que diz respeito aos limites do poder punitivo; e, principalmente, de direcionamento das teorias da pena ao campo político, modificando o enfoque da discussão e possibilitando uma nova visualização do problema que acabará refletindo na proposta de negação dos fundamentos jurídicos da sanção penal.
advento Estado intervencionista, instigada a avalanche legislativa, otimiza-se a perda dos critérios objetivos na definição, comprovação e execução das funções repressivo-punitivas do Estado. As obras de Lombroso, Ferri e Garófalo, vivificadas pelos movimentos de (Nova) Defesa Social e implementadas no Brasil pelo apartheid criminológico da Escola do Recife, propiciam uma fundamentação ‘medicalizada’ (psiquiatrizada) do discurso sobre o crime e o criminoso, e por conseqüência da pena, que excluirá toda e qualquer avaliação humanística do fenômeno. Mais que fato social ocasional e/ou cotidiano (normal), o crime será considerado violação da lei da natureza operada por indivíduos identificados pela sua estética pré-civilizada. Da liberdade à periculosidade, da intimidação à reforma moral. Ao antecedente criminoso, a incipiente ciência do direito penal (criminologia) apresenta a promessa de uma nova vida – a um passado de periculosidade confere-se um futuro: a recuperação.37 Percebe Vera Andrade38 que este paradigma opera em uma estrutura consensual de sociedade na qual não se problematiza o direito penal, pois a experiência é de uma única e maniqueísta assimetria: a maioria sadia (os cultuadores da lei) versus uma minoria desviante disfuncional que necessita tratamento. O instrumento idôneo para recuperar e civilizar os anômalos seria a pena. Diferentemente dos modelos retributivistas e preventivos gerais, direcionados ao fato passado ou à coação social, o pensamento etiológico inaugura uma perspectiva centrada no indivíduo, pois se o novo objeto de investigação e intervenção da ciência criminal é o delinqüente, o instrumento de resposta ao desvio punível deve ser nele operado. O sentido essencialmente profilático da pena transforma o universo e o perfil do direito penal. A ciência ocupada exclusivamente por pensadores do direito e da política até o século XVIII e meados do século XIX é invadida por uma série de profissionais alheios ao mundo jurídico. São médicos, psiquiatras, anatomistas, biólogos, assistentes sociais, antropólogos, sociólogos e pedagogos que começam a descaracterizar a especialidade penal, já solidificada na estrutura formal das letras jurídicas.39
4.3. A justificativa etiológica de prevenção especial: fundamentos e programa político-criminal A passagem do modelo contratualista de controle social para a estrutura etiológica, operada fundamentalmente pela transformação nas funções do Estado, impõe séria modificação na justificativa e na operacionalidade da pena. Com o refluxo do pensamento garantista, pelo ingresso da concepção organicista nas ciências criminais, irrompeu-se um novo giro inquisitorial no discurso penal, não mais identificado com a moral (modelo pré-ilustrado), mas fundido por premissas naturalistas. Assim, com o 35 36
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Marat, Jean Paul. Ob. cit., p. 86. Sustenta Marat: não é suficiente dar ocupação ao pobre: é também necessário instruí-lo. Como cumprirá os seus deveres se os ignora? Quais freios poderá ele opor a inclinações funestas, se não tem condições de prever as desventuranças que delas se originam? Observem aqueles cuja conduta é mais criminosa e constatarão que quase sempre se trata de homens que não receberam nenhuma educação. Quantos que se abandonam aos vícios, ao contrário, distinguir-se-iam pelas suas virtudes se tivessem sido nutridos com os ensinamentos da sabedoria... Com a ajuda desta inovação, quantos desventurados salvos das tentações da necessidade! Quantos culpados a menos para punir! (Marat, ob. cit., p. 79).
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Andrade, Do Paradigma Etiológico ao Paradigma da Reação Social, p. 278. Andrade, ob. cit., p. 278. Esta invasão é tão significativa que, no início de sua famosa prolusão na Faculdade de Direito da Universidade de Sassari, Arturo Rocco brada: no creo, sin embargo, equivocarme al afirmar que por lo menos en el campo más restringido de las ciencias jurídicas, son pocas las que presentan hoy día un estado de desorganización similar al que se encuentra 129
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Stanley Cohen,40 ao tabular as principais mudanças no controle do desvio entre os séculos XVIII e XIX, nota a instauração e o fortalecimento do domínio profissional até então inexistente. Este modelo propicia ainda mais a centralização e o enclausuramento dos locais de controle (prisionalização) e a conseqüente perda de visibilidade das instituições. Assim, as teorias do positivismo baseadas no tratamento passam a operar em um paradigma repressivo extremamente estigmatizante, sem qualquer possibilidade fática de fiscalização/controle em decorrência da desjudicialização do sistema penal, principalmente da execução da pena. Baseada em estrutura social consensual e entendendo a ação desviante como patológica e contrária à ordem, a reação penal deveria ser absoluta no tratamento do enfermo. Logo, esta política criminal correcionalista pressuporá atividade neutral do criminólogo,41 analisando dados objetivos, considerando o delito comum (de massas) como o mais grave e acreditando nas funções da pena. A função redentora (oficial) e despersonalizadora (operacional) da pena prolifera-se por toda a teoria do direito penal, atingindo, inclusive, o núcleo do pensamento processual – afirma Carnelutti, quando trata do castigo, que a pena deve ser um ‘restitutio do ser’: la pena se ha concebido siempre como un remedio contra el delito. Si, pues, el delito es el sintoma de una deficiencia de ser en quien lo comete, la pena debería servir para colmarla... El instituto penal há surgido como un
remedio empírico, al igual de las medicinas primitivas para las enfermedades del cuerpo. O escopo da pena seria, portanto, hacerlo [criminoso] ser lo que no es pero debe ser. Es, en efecto, un enriquecimiento del ser del individuo, incluso el verdadero y único enriquecimiento de su ser, el acrescentamiento de su capacidad de amar.42 Do postulado determinista, com a conseqüente negação do livre arbítrio pelo atavismo antropológico, a pena será considerada medida de higienização social. Se o delinqüente representa um organismo disfuncional no interior de uma sociedade sã, unívoca e consensual, a resposta do Estado à transgressão da norma deve ter uma fundamentação terapêutica. Assim, a técnica do positivismo criminológico afirma como início do procedimento científico a elaboração de critérios de classificação dos criminosos segundo três pontos básicos: a maior ou menor propensão ao delito, as características físicas e psíquicas, e o tipo de crime cometido. A criação de tipologias delinqüenciais permitiria reduzir os criminosos em categorias específicas, impondo-lhes códigos exatos para facilitar o estudo empírico através do método experimental: devem constituir esquemas que sejam capazes de agrupar em categorias os delinqüentes, possibilitando, dessa forma, melhor apreciação de seu grau de periculosidade e, em conseqüência, maior acerto no tratamento, através da cominação da sanção mais adequada.43 A classificação representa o primeiro passo na anamnese reconstrutiva do grau de periculosidade apresentado pelo delinqüente. As tipologias – classificação dos criminosos em várias espécies – facilitariam o trabalho de imposição da pena pelo juiz, principalmente pelo fato de a ele corresponderem os estudos da personalidade no momento da individualização judicial.44 Sua importância exigiria, inclu-
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actualmente en la ciencia del derecho penal (Rocco, El Problema y el Metodo de la Ciencia del Derecho Penal, p. 02). Prossegue constatando que uma das virtudes do positivismo criminológico foi a de liberar o velho organismo científico do direito penal das incrustrações metafísicas. Todavia, ao reduzir o estudo exclusivamente à antropologia e à sociologia, retirou a essência do direito penal: sometidos el derecho y la ciencia del derecho penal a la antropología, aún mas, anulados en nombre de una falsa antropología, o ahogados por otra parte en el mar inmenso de la sociología, la escuela positiva tuvo, no obstante algunos méritos innegables, el resultado de acumular a su alrededor un montón de ruinas jurídicas, sin haber hecho nada por sacar de entre ellas el nuevo edificio, no diré legislativo, sino al menos científico, de derecho penal, que había manifestado querer construír, y cuya edificación todos esperaban. Destruyendo, pues, sin reconstuír, tal escuela ha terminado por limitarse a la tarea más sencilla que es la de criticar y negar, y ha llegado en último análisis a un derecho penal... sin derecho! (Rocco, ob. cit., p. 06). Cohen, Visions of Social Control, pp. 16-17. Lembra Maria Palma Wolff que os laudos e pareceres, elaborados pelas equipes que atuam no sistema penitenciário, são produzidos a partir de determinações de força, que sem dúvida, trazem os efeitos do poder. Pretendem ser expressão de cientificidade e de neutralidade, mas terminam por demonstrar outra realidade (Wolff, Antologias de vida e histórias na prisão, p. 243). Sobre o dogma da neutralidade do criminólogo, conferir Batista, O proclamado e o escondido, pp. 77-87.
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Carnelutti, Derecho Processal Civil y Penal II, pp. 08-09. Souza, A Influência da Escola Positiva no Direito Penal Brasileiro, p. 74. Muito embora a carência de sentido no conceito normativo ‘personalidade do agente’, sobretudo porque é um tipo penal aberto, o conceito mais utilizado, direta ou indiretamente, pela dogmática nacional é o de Anibal Bruno. Segundo o autor, personalidade é um todo complexo, porção herdada e porção adquirida, com o jogo de todas as forças que determinam ou influenciam o comportamento humano. Sua consideração implica a avaliação do agente em seu meio circundante, as condições em que se formou e em que vive. Encontraremos aí muito elemento para discerni-la e explicá-la, porque sabemos que a personalidade não é uma figura estática, uma vez por todas definida, mas resulta de um processo contínuo, em que sobre o herdado se vai enxertando, para completá-lo ou modificálo, o adquirido através do curso da existência, sob as pressões estimulantes ou traumatizantes do meio no qual se trava o debate da vida. O mundo circundante permanente e o mundo circundante ocasional dentro do qual fez eclosão o episódio criminoso (Bruno, Direito Penal, pp. 154-55). 131
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sive, mudança na individualização legal dos delitos e das penas, e a criação de diversos códigos penais para atender às diversidades de evolução cultural, moral, fisiológica e biológica – receita proposta com rigor no Brasil por Nina Rodrigues. O passo seguinte à individualização judicial seria a individualização administrativa, baseada naquele juízo de periculosidade ensaiado pelo magistrado. Com o ingresso do objeto de investigação (criminosso) no laboratório criminológico, o diagnóstico seria aprimorado pelos profissionais do órgão penitenciário. O momento de individualização judicial, como salienta Saleilles,45 não passaria de um diagnóstico: o remédio será dado pela administração penitenciária.
Malgrado a avaliação subjetiva da personalidade do réu ter sido relegada ao momento da fase executiva, não foram poucos os teóricos que perceberam ser fundamental a realização de exame criminológico durante o processo de conhecimento. Se fundamental a classificação do delinqüente para indicar o nível de periculosidade individual, inexoravelmente, o tratamento, precedido por diagnóstico clínico da personalidade, deveria ser realizado no momento postulatório da pena, ou seja, antes da sentença, com intuito de orientar o julgador na irrogação da sanção.46 O exame realizado pelos técnicos da criminologia (psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais) propiciaria decisão judicial projetiva, determinando a sanção adequada em vista não só de uma ação já realizada, como também em vista de uma ação futura, se houver elementos suficientes para deduzi-la.47 Portanto, além do objetivo classificatório, o laudo criminológico estabeleceria critérios avaliativos da vida pregressa e da personalidade do réu, que seriam posteriormente aperfeiçoados na execução. Segundo Mayrink da Costa, esse conhecimento do homem é precisamente a tarefa que a investigação criminológica, coordenada e disciplinada através da norma adjetiva penal, cumprirá para atingir o diagnóstico sintético e completo da personalidade do delinqüente, a fim de que o juiz penal possa verdadeiramente individualizar a pena privativa da liberdade, no sentido de que a sanção atinja o seu fim científico, realizando a defesa do grupamento social e do próprio indivíduo como partícipe da sociedade.48 Da resposta meramente retributiva no ato sentencial, os órgãos penitenciários atuariam na imposição de instrumento eficaz ao fim ressocializador.
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Em Hungria, a noção de personalidade é referencial antes de tudo, de caráter, síntese das qualidades morais do indivíduo. É a psique individual, no seu modo de ser permanente (Apud Noronha, Direito Penal, p. 244). Pode-se encontrar ainda na manualística aferições de personalidade como qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do criminoso, bem como a sua agressividade e o antagonismo contra a ordem social intrínsecos a seu temperamento (Mirabete, Manual de Direito Penal, p. 288). Jurisprudencialmente, as definições subjetivas acompanham as delimitações doutrinárias da avaliação da personalidade como ato reconstrutivo dos valores de vida do imputado (neste sentido conferir Franco et alli, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, pp. 349-350). A imposição legal de avaliação da personalidade do réu ou condenado determina ao juiz e ao criminólogo a busca cognitiva, durante o processo de instrução e de execução, das condições pessoais e de vida do criminoso. Nota, pois, Hungria, que o juiz deve ter em atenção a boa ou a má índole do delinqüente, seu modo ordinário de sentir, de agir ou de reagir, a sua maior ou menor irritabilidade, o seu maior ou menor grau de entendimento e senso moral. Deve retraçar-lhe o perfil psíquico (Apud Noronha, op. cit., p. 244). Assim, para Paulo José da Costa Jr., se o acusado revelar personalidade de acentuada indiferença afetiva, de analgesia moral, haverá exacerbação da reprimenda imposta. Se não revelar traços de agressividade, mostrando tratar-se de meliante que visa ao lucro sem ostentar brutalidade, ser-lhe-á concedido um tratamento mais benigno (Costa Jr., Direito Penal, p. 163). A utilização do conceito, além de revelar clara manifestação do modelo correcionalista, possibilita ao julgador ampla discricionariedade em uma esfera na qual seria ilegítimo opinar: a interioridade da pessoa. A questão que se coloca não é se existem ou não condições mínimas de o julgador estabelecer este juízo, cuja resposta parece ser negativa dada a deficiente formação transdisciplinar do operador do direito (neste sentido, conferir Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 53-61). O problema levantado é que, mesmo se houvesse condições plenas de realização, esta avaliação seria ilegítima sob o prisma do direito penal de garantias. Percebe-se, portanto, que a noção de personalidade do acusado padece de profunda anemia significativa e que, agregada ao conceito de conduta social (outro requisito subjetivo presente nos institutos avaliados), conforma substrato legitimante de decisões extremamente autoritárias e sem o mínimo controle jurisdicional, visto que tais hipóteses são irrefutáveis sob o ponto de vista probatório, dado seu caráter subjetivista. Outrossim, por sua indefinição e verdadeira impossibilidade de comprovação e refutação em juízo, nota-se que as noções de personalidade e conduta social se confundem jurisprudencial e conceitualmente com a de periculosidade, sendo sua determinação inclinada a juízos e prognósticos de tendências delinqüenciais, na melhor orientação de um direito penal do autor. Apud Souza, ob. cit., p. 91.
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A tese da realização do exame criminológico antes da decisão judicial foi levantada no Brasil durante a década de setenta, sendo instituto vencido na reforma de 1984. Álvaro Mayrink da Costa sustentava que a única solução para o problema vital da justiça criminal dos nossos dias seria a realização do exame criminológico operado no curso da instrução criminal, porque só assim o magistrado teria os meios necessários para vislumbar a personalidade do acusado, seus aspectos biológicos, psicológicos e sociais (Costa, Direito Penal, p. 1.519). Prossegue o autor afirmando que o juiz da cognição passaria a ter por obrigação, na função judicante, a investigação da constituição biológica do autor do fato típico, suas reações psicológicas e seu condicionamento social, os quais só poderá abordar através do exame criminológico, que proporcionaria a aplicação de medidas concernentes à sua personalidade (Costa, Exame Criminológico, p. 09). Embora as severas críticas à violação do princípio da presunção de inocência que tal procedimento imporia, não invariavelmente a tese é retomada e, em alguns casos, alicerçada em um discurso de garantias que encobre práticas substancialistas. Costa, Direito Penal, p. 1.520. Costa, ob. cit., p. 1.518. 133
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Outra proposta em relação à pena seria relativa à individualização legislativa, visto serem ‘relativamente escassas’ as possibilidades do juiz e do criminólogo atuarem terapeuticamente nos momentos de individualização judicial e administrativa. O ideal positivista no que refere à temática do quantum abstrato da pena é a sua indeterminação, legando ao juiz, e principalmente ao corpo administrativo clínico, o estabelecimento do tempo ideal à terapêutica (modelo similar àquele imposto aos inimputáveis – medida de segurança). A finalidade exclusivamente medicinal da sanção negaria qualquer juízo prévio sobre o tempo de duração do tratamento. Assim, não somente deveria ser conferida ao juiz discricionariedade de cominar sentença indeterminada, mas ao legislador seria imprescindível não cotizar limites mínimos e/ou máximos, impossível saber a reação do paciente à medida curativa e o percurso temporal à reabilitação. A proposta consistiria em negar ao juiz a faculdade de fixar ‘a priori’ a duração da pena, cabendo a ele, tão-somente, declarar a culpabilidade do acusado, mandando-o à prisão. A duração da pena ficará a critério da administração penitenciária, que a fará cessar desde que se torne supérflua.49 Na história recente do direito penal brasileiro, o natimorto Código de 1969 estabelecia essa anomalia jurídica. Baseado na lei penal italiana e ampliando o entendimento do Anteprojeto Nélson Hungria (1963), que definia aumento de pena para determinados criminosos, o Código estipulava pena indeterminada: em se tratando de criminoso habitual ou por tendência, a pena a ser imposta será por tempo indeterminado. O juiz fixará a pena correspondente à nova infração penal, que constituirá a duração mínima da pena privativa de liberdade, não podendo ser, em caso algum, inferior a três anos (art. 64). Estabelecia, no entanto, prazo final: a duração da pena indeterminada não poderá exceder a dez anos, após o cumprimento da pena imposta (art. 64, § 1o). Coligada à indeterminação da pena, a perpetuidade da reincidência, circunstância pessoal considerada critério substantivo de definição da periculosidade do réu, impor-se-ia, pois o cometimento de um delito representaria uma mácula na vida do indivíduo e deveria acompanhá-lo até a morte. A prática de novo delito indicaria que a medida terapêutica foi falha, impondo nova e diversa medicina. Das propostas do modelo etiológico, pode-se perceber que o ponto de convergência entre os diversos postulados (tipologia criminal classificatória, exame clínico-criminológico pré-sentencial, pena indetermina-
da e reincidência perpétua) é a definição da personalidade do agente, visto que esta fundamenta os prognósticos de reincidência e os juízos de periculosidade que atuarão na dosimetria e na execução da sanção. Note-se que, assim como o conceito de personalidade, a categoria periculosidade, nuclear neste modelo repressivo, é isenta de significado – o conceito de periculosidade, ou perigosidade, se funda no juízo de que o indivíduo, face ao seu desajustamento social, tem probabilidade de vir a praticar ou tornar a cometer um ilícito penal.50 A popularização de tal categoria no senso comum teórico dos juristas e do homem da rua, pela assunção ideológica da terminologia defensivista, não permite clara definição de sua essência, ou seja, trata-se de categoria extremamente aberta, sem qualquer sentido objetivo. Não obstante, é parâmetro de justificação da incidência do sistema penal sobre os indivíduos classificados como perigosos. Representa, em classificação ideal típica, o mais espetacular resíduo etiológico nos sistemas penais contemporâneos. A periculosidade, encoberta na aplicação judicial pelos termos personalidade e conduta social, representa nada além de juízo futuro e incerto sobre condutas de impossível determinação probabilística, aplicada à pessoa rotulada como perversa, com base em uma questionável avaliação sobre suas condições morais e sua vida pregressa. Vê Benedicto de Souza que, frente ao diagnóstico de suas condições atuais [dos indivíduos que cometeram crime], se obtém um prognóstico de sua situação futura, traduzida na prática provável de um crime;51 ou seja, a noção de periculosidade está indissociavelmente ligada a um certo exercício de futurologia pseudamente científico.52 No âmbito do direito penal material, as doutrinas antropológicas positivistas que fundamentam os juízos de periculosidade e seus institutos análogos (conduta social, personalidade, reincidência e antecedentes) ferem dramaticamente o princípio da legalidade em seu subprincípio previsibilidade mínima (taxatividade), pois inspiraram, no melhor dos casos, modelos penais de legalidade atenuada, isto é, caracterizados por figuras de crime elásticas e indeterminadas por espaços de fato, se não de direito, abertos à analogia in malam partem, abrindo caminho nos piores casos, às muito mais nefastas doutrinas antiformalistas que constituíram a base teórica dos ordenamentos penais totalitá-
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Souza, ob. cit., p. 92.
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Souza, ob. cit., p. 78. Idem, pp. 78-79. Reuter, Manicômios, prisões, reformas e neoliberalismo, p. 74. 135
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rios.53 No que tange ao direito processual penal, a categoria periculosidade rompe com qualquer possibilidade de construção de um modelo processual de garantias, visto ser o extremo oposto do princípio da presunção de inocência. Não esporádico, porém, justifica inúmeros juízos de reprovação encontrados em precedentes judiciais decorrentes de suas noções abertas e anoréxicas. Quanto à pena, os juízos de periculosidade sustentam a discricionariedade e o arbítrio judicial na fixação quantitativa; estruturam o saber criminológico psiquatrizado dos órgão da execução penal subordinados à administração carcerária; e determinam as regras e as possibilidades de alcance das garantias por parte do condenado. Se os institutos advindos da projeção do paradigma etiológico pelo movimento reformista da Nova Defesa Social não foram adotados pela reforma penal brasileira de 1984 de forma plena, segundo o projeto transnacional do movimento, algumas premissas foram enraizadas no sistema de execução penal nacional e sustentam, até os dias atuais, um modelo penalógico aparentemente híbrido, mas que consolida empírica e processualmente a ideologia do tratamento. Avaliações da personalidade do réu na dosimetria da pena; limitações a direitos derivados da reincidência; avaliações de periculosidade; classificação dos condenados segundo suas características pessoais; e prognósticos clínicos de tratamento penitenciário são institutos que modelam um sistema de elaboração, aplicação e execução da pena orientado pela noção profilática. Em realidade, categorias como periculosidade, reeducação, personalidade do agente, prevenção da reincidência e medidas de segurança extra-penais compõem este universo projetivo de prevenção especial devido ao deslocamento sutil e eficaz da teoria defensivista. Apesar da negativa substancial, porém não formal, de sua tradição positivista, o movimento neo-defensivista revigora na atualidade o paradigma etiológico, sua conseqüente concepção anti-secular e antiiluminista, orientando a transnacionalização do controle social sob o signo da ressocialização. Mais: potencializa, sob a chancela científica, formas de fragmentação social similares às do modelo lombrosiano, pois calcados em concepções naturalistas de sociedades homogêneas e isentas de contradições (a única disfuncionabilidade seria o delito). Opera-se, portanto, com a presunção de que existem interesses uniformes e monolíticos no interior do corpo social, como a necessidade de
neutralização (eliminação ou recuperação) da periculosidade de alguns grupos ou indivíduos disfuncionais.
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Ferrajoli, ob. cit., p. 372.
4.4. A crítica garantista ao modelo periculosista e à subjetivação processual Ferrajoli, ao tratar das valorações proferidas pelo juízo penal à interioridade do agente, nomina dois modelos antigarantistas: os sistemas sem culpabilidade e os sistemas substancialistas. O primeiro seria característica das formas taliônicas primitivas; o segundo, de averiguação subjetivista, direcionaria a repressão às condutas sem ação e/ou meros estados particulares. O modelo etiológico descrito enquadrar-se-ia no sistema substancialista, apesar de que ambos prescindem da lesão de bens jurídicos concretos, ou reprimindo antecipadamente a sua simples e abstrata possibilidade de perigo, ou penalizando puramente o desvalor social ou político da ação, além de qualquer função penal de tutela.54 Segundo Ferrajoli, a subjetivação do delito e da pena conforma estruturas penais de autor que comprometem não apenas a estrita legalidade, mas também a estrita jurisdicionalidade, pois confiado a critérios arbitrários de avaliação da anormalidade ou da periculosidade do réu, o que inevitavelmente frustra o conjunto das garantias processuais.55 Não obstante, advoga que a interioridade de um homem – o seu caráter, a sua moralidade, os seus precedentes penais, as suas inclinações psico-físicas – não deve interessar ao direito penal senão para daí induzir o grau de culpabilidade das suas ações criminosas. Compreendese que num sistema garantista assim configurado, não encontrem espaço nem a categoria periculosidade, nem outras tipologias subjetivas ou de autor elaboradas pela criminologia antropológica e pela criminologia eticista, como capacidade criminal, reincidência, tendência a delinqüir, imoralidade e semelhantes.56 A hipótese levantada possibilita afirmar que o saber jurídico-penal prescinde de novo processo secularizador, não restrito aos vínculos do direito e da moral ainda necessários, mas sobretudo em relação à sincronia do saber jurídico com o saber naturalístico imperante e obscurecido pelo falso humanismo da Defesa Social. Fundar um regime jurídi54 55 56
Ferrajoli, ob. cit., p. 77. Idem. Ferrajoli, ob. cit., p. 505. 137
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co sob a égide da periculosidade representa, como sustenta Ferrajoli, verdadeira ‘monstruosidade jurídica’ porque tal juízo é um prognóstico judicial em si mesmo arbitrário, pois resoluto em decisões potestativas desvinculadas de qualquer parâmetro processual válido. Outrossim, contradiz abertamente o principal postulado do processo acusatório (princípio da presunção de inocência), consolidando funções de polícia à acusação pública. Portanto, tal estrutura determina un poder en blanco en cabeza de los inquisidores, de hecho ilimitado e incontrolable, completamente incompatible con el modelo garantizador de la jurisdicción penal.57 Os juízos de periculosidade descritos estabelecem uma situação de fato inverificável e processualmente incomprovável pela impossibilidade empírica de experimentação. No interior do modelo de garantias, as hipóteses processuais devem ser baseadas em juízos verdadeiros e/ou falsos, probatoriamente demonstrados e passíveis de negação (contraditoriedade). A extensão semântica de termos como periculosidade, personalidade, antecedentes e conduta social tornam o ato jurisdicional extremamente arbitrário no acertamento dos casos. A inverificabilidade e a irrefutabilidade das hipóteses apresentadas são compatíveis apenas com valorações de tipo subjetivas, ferindo a taxatividade, principal garantia do direito e do processo penal por estabelecer variáveis e limites à interpretação da norma e à atuação processual. Em realidade, o que se percebe é uma composição de dados da biografia da pessoa acusada que propiciará a formação de um second code, isto é, de regras e de mecanismos extra-oficiais que atuam invisivelmente e que passam a integrar objetivamente o conjunto de metaregras e a interferir na ação dos operadores jurídicos, tanto na produção dogmática, como na aplicação das normas, resultando daí uma influência maior do que aquela prevista no Direito Positivo.58 Apesar de tecnicamente (código oficial) e latentemente (second code) os termos referidos adicionarem à pena maior quantificação, ou ainda impedir ao acusado o gozo de inúmeros direitos, dogmaticamente tais expressões são incompatíveis com a perspectiva do direito penal do fato, visto substituírem a avaliação objetiva e cognoscitiva pelo substancial julgamento da interioridade da pessoa e de suas ‘tendências’. Acaba-se, então, punindo a pessoa pelo que ela é (quia peccatum) e não pelo que fez (quia prohibitum), abandonando as
necessárias amarras impostas pelos princípios da secularização e da legalidade (mala prohibita), substituindo-os por valorações potestativas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de pessoa rotulada como má (mala in se). A utilização do aparelho penal de controle social para determinar (lei penal), valorar (processo) e transformar (pena) personalidades consideradas perigosas (outsiders) conforma um projeto político-criminal antidemocrático, tendente à profilaxia social, típico de sistemas totalitários. Este saber importa fundamentalmente qualificar ‘cientificamente’ o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto delinqüente. O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o do aparelho penitenciário é outra pessoa; é o delinqüente, unidade biográfica, núcleo de periculosidade, representante de um tipo de anomalia.59 A estrutura etiológica, representada pelos institutos avaliados, converge no sentido de fundamentar e justificar ideologicamente o modelo penalógico ressocializador que, como os demais conceitos presentes no discurso oficial, sofrem de profunda carência de significado. Winfried Hassemer, ao descrever o modelo preventivo especial, afirma que los problemas comienzan con la falta de acuerdo sobre el contenido de la meta ‘socialización’ o ‘resocialización’, un acordo que tampoco es fácil que se pueda conseguir a corto plazo.60 Independente de ser orientado à ‘mudança interior’, ‘cura’, ‘reabilitação social’, ‘emancipação individual’ ou ‘neutralização da reincidência’, o conceito de ressocialização, cuja função é solidificar o paradigma defensivista, é tão indeterminado quanto os outros elementos que lhe são correlatos. Desconstruído sob o viés fenomenológico pela criminologia da reação social, passa nesse momento pela sua desqualificação axiológica pois, se realizável, a intervenção penal como medida de transformação seria inadmissível, dada a ofensa ao paradigma constitucional dos direitos e garantias fundamentais. Considerar a pena como instrumento curativo ou reeducativo, pressupondo ser o delito uma patologia individual ou social, pressupõe aproximação dos conceitos de natureza (e/ou moral) com direito. As concepções penalógicas nas quais há simetria entre direito e natureza (teorias de Defesa Social) e direito e moral (teorias da emenda)61 são as
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Ferrajoli, Crisis del Sistema Político y Jurisdicción, p. 119. Bissoli Filho, Estigmas da Criminalização, p. 109.
59 60 61
Foucault, Vigiar e Punir, p. 225. Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, p. 355. Para Luigi Ferrajoli, as doutrinas da emenda, de fato, confundem explicitamente direito e moral, concebendo o réu como um pecador que deve ser reeducado de maneira coativa e 139
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mais antiliberais e antigarantistas teorias já concebidas, justificando modelos maximalistas e substancialistas. Outrossim, a função reeducativa impõe ruptura na unidade do processo penal pois, se o juiz, durante a instrução, deve atuar na reconstrução do fato pretérito, caberia, na execução, projetar o futuro do agente, determinando condições idôneas para sua melhoria interior, objetivando uma vida isenta de delitos. Ferrajoli conclui que degenera em despotismo sempre que se arroga funções pedagógicas e propagandísticas como instrumento de estigmatização e sancionamento moral.62 Segue, como se percebe, os passos trilhados por Carrara quando critica ser inútil e falso o uso do instrumento penalógico para emendar: seduce los ánimos la perspeciva de un mejoramiento de la humanidad, pero cuando para alcanzar este fin se emplean medios violentos, sin que lo necesite la defensa ajena, la aparente filantropía degenera en un inicuo despotismo.63
Zaffaroni questiona a necessidade teórica (do professor de direito penal) e prática (do operador do direito) de um modelo explicativo da sanção no terceiro milênio. Em realidade, resgata questões já levantadas anteriormente em importante momento da literatura penal latinoamericana.64 Primeiramente, o autor indaga se é possível ao operador do direito, principalmente o juiz, tomar decisões sem um modelo justificador. Em momento posterior, reloca o problema à academia, ou seja, indaga se poderia o professor lecionar sem uma ‘teoria da pena’, sem uma estrutura que justifique racionalmente sua imposição. A resposta fornecida à primeira indagação é relativamente simples. Resgatando a práxis jurisprudencial de Magnaud, o autor afirma que o juiz, frente ao caso concreto, pode prescindir de uma teoria acurada, visto sua possibilidade de atuar de maneira ‘razoavelmente intuitiva’ no controle e limitação do poder dos aparatos administrativos, respaldando-se nos princípios penais liberais e constitucionais republicanos. Ressalta, porém, que o trabalho mais complexo seria o do professor ou do jurista teórico: como lecionar sem uma ‘teoria da pena’, sem reconhecer o ‘direito de punir’, sem admitir o ‘direito penal subjetivo’ do Estado. Interroga ainda como seria possível ao pesquisador e ao pensador do direito racionalizar uma teoria dos exercícios irracionais do poder desmascarados pelas teorias criminológicas críticas.65 As teorias da pena, apresentadas como disciplinas dogmáticas, ao tentarem justificar o poder de punir, realizariam, na opinião do autor, tarefa que não é sua, estéril, porque a legitimação produzida pela dogmática é direcionada ao poder do juiz e não ao poder de punir. O poder punitivo, assim, não é exercido no interior do judiciário, mas pelos aparatos da burocracia administrativa que condicionam a criminalização e a punição. Ao comungar dos princípios da criminologia da reação social, em profunda denúncia da seletividade, desigualdade e barbárie produzidas pelos aparelhos que possuem função repressora, Zaffaroni entende ser absolutamente dispensável uma teoria da pena, visualizando a possibi-
4.5. O garantismo e a negação da legitimidade jurídica da pena 4.5.1. Da necessidade de uma teoria da pena O estudo sobre as mais diversas bases doutrinárias que fundaram as inúmeras teorias da pena propiciou, negativamente, a sólida construção de modelo garantista, pois insuficientes as várias formulações jurídicas relativas ao tema. Indagações de fundo, e quiçá mais importantes, ainda se impõem. Dentre elas, uma parece ser fundamental, qual seja, a que diz respeito à necessidade mesma de uma teoria penalógica. Assim, é mister avaliar a idoneidade ou não de um sistema coerente de idéias que sustentam teoricamente a imposição da sanção penal. Tal questão será representada no fértil e esclarecedor diálogo entre Luigi Ferrajoli e Eugenio Raúl Zaffaroni.
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dando à pena funções benéficas de arrependimento interior; as doutrinas de defesa social e as teleológicas, por outro lado, confundem direito e natureza, sociedade e Estado, ordenamentos jurídicos e organismos animais, representando o réu como um doente ou como um ser anormal que deve ser tratado ou eliminado (Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 258). Ferrajoli, Il Problema Morale e il ruogo della Legge, p. 44. Carrara, Programa de Derecho Criminal, p. 64.
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Zaffaroni, Em Busca das Penas Perdidas, pp. 201-204. Diagnostica Zaffaroni: mas há um outro trabalho mais complexo: o do professor, o do jurista teórico. Como desempenhar a função de professor sem uma ‘teoria da pena’, sem reconhecer um ‘direito de punir’, sem admitir um ‘direito penal subjetivo’ do Estado? As penas de hoje não têm legitimidade, ao menos na maior parte dos casos. Como tornar razoável uma ‘teoria’ em relação ao exercício de um poder que não tem razões? (Zaffaroni, La Rinascita del Diritto Penale Liberale o la ‘Croce Rossa’ Giudiziaria, p. 392). 141
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lidade de (re)construir o direito penal com a precípua finalidade de redução da violência do exercício do poder. Reduzir dor e sofrimento (redução de danos) seria o único motivo de justificação da pena nas atuais condições em que é exercida, principalmente nos países periféricos. Esclarece lecionando que a doutrina penalista pode reconstruir o seu discurso sobre esta base, e não tem nenhuma necessidade de uma ‘teoria da pena’; pode retomar o pensamento liberal, e jogar fora ‘as sementes do mal’ que o pensamento dos nossos ingênuos ‘pais liberais’ continha... A estratégia é clara: salvar vidas, diminuir as desigualdades, evitar sofrimento... Para conseguir reduzir o poder punitivo, deve ser progressivamente liberal (garantista), e para ser ‘progressivamente liberal’ deve prescindir de qualquer ‘teoria da pena’.66 Mais, argumenta que, se o sistema penal é um mero fato de poder, a pena não pode pretender nenhuma racionalidade, ou seja, não pode ser explicada a não ser como manifestação de poder.67 Retornar ao Iluminismo, sacando-lhe os germens antiliberais, seria o dever primordial das doutrinas garantistas. Se esta falha congênita (resíduos inquisitoriais e autoritários no seio do iluminismo penal) foi identificada anteriormente na estrutura do pensamento ideológico defensivista, agora ela retorna na conseqüência deste modelo sob a sociedade via justificação penalógica. Negar as teorias da pena possibilitaria eliminar do discurso penal o viés declarado (e não cumprido) que mascara a real funcionabilidade da sanção penal, retomando seu identificador essencial, que radica na esfera da política. Em suma: pena é manifestação fática, em essência política, isenta de qualquer fundamentação jurídica racional. Tal como a ‘guerra’ – modelo sancionatório nas relações internacionais –, a pena caracterizar-se-ia como meio extremo e cruel, isento de justificativa jurídica. Ferrajoli, em sua réplica ao pensador porteño, comunga desta formulação teórica na qual todas as teorias da pena, inclusive as propugnadas pelos antigos liberais do século passado, traziam em si sementes de antiliberalismo devido à sua finalidade de Defesa Social. Afirma que todas as teorias da pena são, definitivamente, doutrinas do direito penal máximo, informadas unicamente pela máxima utilidade aos não desviantes, e ignorando a perspectiva do desviante, encarados no máximo como objeto de práticas correcionais ou de integração coagida.68
Ao negar as teorias defensivistas, Ferrajoli chama atenção para o fato de que as críticas às teorias da pena são absolutamente pertinentes, vista a diafonia entre as funções declaradas e as funções realmente exercidas nas práticas administrativas. Os ideais defensivistas – das doutrinas de segurança nacional às teorias da nova (e novíssima) Defesa Social – correspondem ao que denomina vício ideológico e meta-ético das doutrinas de justificação.69 Vícios dogmáticos que produzem um discurso falacioso centrado na cisão irreal entre o modelo teórico-normativo (científico) e a efetividade (política) da sanção. Das relações conflitantes produzidas entre as doutrinas de justificação, isto é, entre os discursos normativos sobre a justificação – fins do direito penal (teorias penalógicas) –, e as justificações – discursos formulados a posteriori em relação ao cumprimento dos objetivos justificantes e sua correspondência ao modelo normativo –, encontra-se um esquema de deslegitimação das normas, institutos e práticas penais. Principalmente na América Latina, onde o respeito à legalidade penal e processual penal sempre foi inexistente.70 Constata-se, pois, uma interação entre a crítica marginal e o modelo garantidor na redefinição das doutrinas penalógicas. Não mais uma teoria justificante do ‘direito de punir’, mas uma teoria normativa sobre os limites e condições de legitimidade da pena fundadas em fins específicos: diminuição de dor e sofrimento causados pela aplicação da pena; reconhecimento da pena na esfera política; e tutela do pólo débil da relação contra qualquer tipo de vingança emotiva e desproporcional, seja pública ou privada. Minimização do sofrimento (redução de danos) gerado pela pena (violência pública) e negação da violência privada ilegítima decorrente da inexistência da pena possibilitariam uma nova compreensão da sanção como fenômeno do poder, encetando gradual negativa dos modelos teóricos justificadores. A estratégia, portanto, passa a ser o deslocamento do problema da pena da esfera jurídica à política. O direito,
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Zaffaroni, ob. cit., pp. 393-394. Zaffaroni, Em Busca das Penas Perdidas, p. 202. Ferrajoli, Note Critiche ed Autocritiche intorno alla discussione su ‘Diritto e ragione’, p. 498.
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Este vício consiste em identificar, no plano filosófico, um determinado objetivo que justifique o direito penal em abstrato, e depois em assumi-lo justificado por qualquer direito penal concreto: em outras palavras, na troca do ‘ser’ efetivo do direito penal – nos países da América Latina e também nos ordenamentos europeus – com o seu ‘dever ser’ normativo, como é enunciado na doutrina de justificação proposta (Ferrajoli, ob. cit., p. 499). Neste sentido, conferir Bergalli, Fallacia Garantista nella Cultura Hiuridico Penale di Lingua Ispanica, pp. 191-198. 143
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nesta ótica, retomaria seu papel de limite à política, atuando como vínculo negativo à ação administrativa. Tal perspectiva possibilitaria, inclusive, o resgate dos postulados de Tobias Barreto, em um dos mais clássicos textos da literatura penal brasileira, quando sugere: quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra.71 A original hipótese formulada por Barreto é precedida da afirmação de que existem certos homens que possuem o dom especial de tornar incompreensíveis as coisas mais simples do mundo.72 Entre as ‘questões sem saída’ estaria a célebre indagação sobre o fundamento do direito de punir, tornada ‘espécie de adivinha’ que os mestres entendem serem obrigados a propor aos discípulos. Não obstante a assistematicidade de sua obra e o flerte com o defensivismo, é fundamental perceber a matriz teórica proposta por Tobias Barreto quando redireciona a questão da pena: o conceito da pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político. Este ponto é capital. O defeito das teorias correntes em tal matéria consiste justamente no erro de considerar a pena como uma conseqüência do direito, logicamente fundada... Que a pena, considerada em si mesma, nada tem que ver com a idéia do direito, prova-o de sobra o fato de que ela tem sido muitas vezes aplicada e executada em nome da religião, isto é, em nome do que há de mais alheio à vida jurídica.73 Acertadamente, lembra Zaffaroni74 que Barreto antecedeu a ilação dos raciocínios no sentido de ser a pena uma realidade empírica, um exercício do poder, e não um ‘direito’ inventado num mundo medido pelos delírios legislativos e doutrinários. A deslegitimação da pena proposta por Tobias Barreto supera inclusive a crítica do movimento abolicionista, pois, contrariamente ao
modelo negativo e excludente da sanção formal que direcionará a resposta do delito/desvio ao corpo social,75 Barreto fornece parâmetros jurídicos de contenção da retaliação: não um modelo sancionatório societário carente de vínculos (freios), mas um sistema jurídico de limitação formal e de deslegitimação material da atividade política exercida pela administração pública. Neste sentido, atualizam-se as afirmações do pensador sergipano ao ser defendida uma forma jurídica da pena, entendida como técnica institucional de minimização da reação violenta ao desvio socialmente não tolerado, e de garantia do indiciado contra os arbítrios, os excessos e os erros comuns em sistemas a-jurídicos de controle social.76
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Barreto, Fundamentos do direito de punir, p. 650. Sustenta Barreto: Os criminalistas que ainda se julgam obrigados a fazer exposições dos diversos sistemas engendrados para explicar o direito de punir, o fundamento jurídico e o fim racional da pena, cometem um erro, quando na frente da série colocam a vindita. Porquanto a vindita não é um sistema; não é, como a defesa direta ou indireta, e as demais fórmulas explicativas idealizadas pelas teorias absolutas, relativas e mixtas, um modo de conceber e julgar de acôrdo com esta ou aquela doutrina abstrata, o instituto da pena: a vindita é a pena mesma, considerada em sua origem de fato, em sua gênese histórica, desde os primeiros esboços de organização social, baseada na comunhão de sangue e na comunhão de paz, que naturalmente se deram logo depois do primeiro albor da consciência humana, logo depois que o pithecanthropo falou... et homo factus est (Barreto, ob. cit., p. 647). Barreto, ob. cit., pp. 649-650. Zaffaroni, Elementos para uma Leitura de Tobias Barreto, p. 185.
4.5.2. A proposta garantista de limitação do poder punitivo Pode-se sustentar relativa sintonia entre o modelo garantista e a concepção de pena inaugurada por Tobias Barreto. Ao sustentar que a pena é um ato político e que o direito, como limite da política, deveria estabelecer freios à sanção, se está a recusar os conhecidos modelos de direito penal máximo que, em sua estrutura teórica de razão de Estado, optam pelo primado da política sobre o direito. Desta forma, o modelo garantista, negando as teorias da pena, estabelece critérios de limitação do poder penal. Os tradicionais modelos do Iluminismo representados pela escola lombarda justificaram a pena desde uma opção teórica utilitarista: ‘a máxima felicidade possível aos que não delinqüem’. A afirmação encontra guarida na introdução da obra de Beccaria, quando o autor afirma que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das paixões da minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim: todo o bem-estar possível para a maioria.77 Note-se que a concepção de delito e delinqüente precedente ao paradigma da reação social é representada pela ação de uma minoria 75 76 77
Críticas ao modelo abolicionista, conferir Carvalho, Considerações sobre as incongruências da justiça penal consensual, pp. 129-160. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 235. Beccaria, ob. cit., p. 26. 145
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desviante, isto é, o delito é a exceção e o delinqüente é um homem diferenciado dos demais. Todavia, o projeto político do garantismo traz em seu bojo um modelo de mitigação das penas que possibilita uma releitura da máxima utilitarista ilustrada, configurando o que Ferrajoli chama de ‘utilitarismo reformado’. À primeira versão utilitarista rememorada dos ‘clássicos’ Ferrajoli adiciona um segundo aforisma, não relacionado mais à sociedade e aos homens que ‘fielmente cumprem às leis’, mas aos indivíduos que a violaram, aos destinatários da pena. Este aforismo é centrado na redução quantitativa e qualitativa da dor aos que cometeram crimes. Assim, estrutura a finalidade do modelo utilitarista do garantismo através da expressão máxima felicidade possível para a maioria não desviante e mínimo sofrimento necessário para a minoria desviante. O segundo postulado, ao representar o modelo minimalista de redução das penas, rompe com a tradição penal de direcionar todo o escopo da sanção à prevenção de novos delitos, seja pela via individual (prevenção especial positiva), seja pela coletiva (prevenção geral negativa). Ao contrário dos modelos defensivistas que demonizam o autor do ilícito penal, utilizando a pena como forma de tutela social, o modelo garantista recupera a funcionabilidade do direito na restrição e imposição de limites ao arbítrio sancionatório judicial e administrativo. Para Ferrajoli, um dos grandes problemas relativos ao interrogante ‘por que castigar?’ consiste nas confusões doutrinárias entre as funções, as motivações e as finalidades (dever-ser) da pena, mesclando considerações e explicações com justificativas e/ou vice-versa. A pergunta ‘por que punir?’ tem, para o autor, dois significados diversos: o sentido científico de indagação do ‘por que existe a pena?’; e o problema filosófico do ‘por que deve existir a pena?’. As dificuldades geradas pelas teorias absolutas e relativas da pena decorrem da confusão metodológica entre função (descrição histórica ou sociológica) ou motivação (descrição jurídica) com o dever ser axiológico da pena e, conseqüentemente, a assunção da explicação como justificativa e vice-versa: é deste modo que falam, sobre os objetivos da pena, de ‘teorias absolutas’ ou ‘relativas’, de ‘teorias retributivistas’ ou ‘utilitaristas’, de ‘teorias da prevenção geral’ ou ‘teorias da prevenção especial’, entre outras, sugerindo a idéia de que a pena tem um efeito (aliás, um objetivo) retributivo ou reparador, e que esta previne (em vez de deve prevenir) os crimes, ou que reeduca (em vez de deve
reeducar) os apenados, ou que dissuade (em vez de deve dissuadir) a maioria dos propensos a cometer delitos, entre outras.78 Muito longe de serem ‘teorias’ da pena, as doutrinas apresentadas são discursos normativos sobre seu escopo ou teorias descritivas de suas funções e/ou motivações. Portanto, incompatíveis e diafônicas entre si, pois confundem esquemas de explicação com modelos de justificação. Nos vícios cometidos pelas doutrinas de justificação também incorrem as doutrinas abolicionistas, discutindo fundamentos valorativos através de argumentos empíricos. Contudo, apesar dos problemas das tradicionais ‘teorias da pena’, Ferrajoli entende ser possível construir um modelo penalógico minimalista redutor de danos. A primeira ordem dos requisitos supõe a aceitação do postulado secularizador da rígida separação entre direito e moral, de maneira que nem o crime seja considerado como um mal em si quia prohibitum, nem a pena seja considerada como um bem em si quia peccatum.79 O segundo requisito fundamenta-se na possibilidade de a pena atingir sua finalidade, ou seja, de haver relação simétrica entre os meios e os fins penais. Para sublimar os efeitos incongruentes das teorias justificacionistas e abolicionistas da pena, Ferrajoli funda seu modelo de utilitarismo riformato segundo o argumento da pena mínima necessária. Negando a tradição liberal anti-iluminista, o autor concebe o fim da pena não apenas como prevenção aos injustos delitos, mas principalmente como esquema normativo de prevenção da reação informal, selvagem, espontânea, arbitrária que a falta das penas poderia ensejar. Desde este ponto de vista, a pena apresentar-se-ia como guardiã do direito do infrator em não ser punido senão (razoavelmente) pelo Estado, redimensionando a função do direito e do processo penal, não mais direcionado à tutela social, mas à proteção da pessoa que se encontra em situação de violência privada – momento da lesão interindividual – e/ou pública – plano institucional. Impedir o mal da vingança arbitrária e desmedida operada pela vítima, ou pelas forças solidárias a ela, bem como o excesso punitivo do Estado, seria o escopo deste novo modelo de direito: garantias penais e processuais, de fato, não são mais do que técnicas que têm por objetivo minimizar a violência e o poder punitivo;
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Ferrajoli, ob. cit., pp. 315-316. Ferrajoli, ob. cit., p. 320. 147
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isto é, reduzir ao máximo a previsão dos crimes, o arbítrio dos juízos e o tormento das penas.80 Prevenção dos delitos e prevenção dos castigos conformaria o modelo garantista do direito penal como negação da guerra e proteção do mais fraco. A centralidade da pessoa em seus direitos fundamentais é recuperada pela dupla função penalógica, legitimando sua ‘necessidade política’ e os critérios de limitação dos delitos e dos castigos.81 Reitera Ferrajoli que esse modelo sancionador alia-se aos postulados da democracia substancial, pois nega a vontade ilimitada da maioria e protege o mais débil. Garantismo, portanto, significa precisamente a tutela dos valores ou direitos fundamentais cuja satisfação, ainda contra os interesses da maioria, é o fim justificante do direito penal: a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e, portanto, a garantia da sua liberdade através do respeito pela sua verdade.82 A pena, portanto, seria um instrumento político de negação da vingança; um limite ao poder punitivo; o mal menor em relação às possibilidades vindicativas que se produziriam na sua inexistência. Ferrajoli entende que o modelo normativo garantista satisfaz os requisitos para a adequada justificação da pena, pois, (1o) ao orientar o direito penal à prevenção geral negativa, exclui a confusão entre direito e moral que caracteriza as doutrinas retribucionistas e de prevenção positiva; (2o) ao impor o duplo fim da pena – ‘o máximo bem-estar possível aos que não delinqüem e o mínimo sofrimento necessário aos desviantes’ – responde às questões ‘por que proibir’ e ‘por que castigar’; (3o) porque exclui autojustificações apriorísticas de modelos maximalistas e permite somente justificações a posteriori de modelos reduzidos, reconhecendo o caráter aflitivo e coercitivo da pena; (4o) porque propicia modelo de legitimação e deslegitimação da atuação do sistema penal; e (5o) porque o esquema apresentado subtrai os custos do direito penal frente à possível anarquia punitiva subseqüente à sua ausência.83
Muito embora críticas possam ser direcionadas ao modelo minimalista de Ferrajoli, mormente no que diz a efetiva redução das violências privadas contra o desviante no caso de ausência sancionatória84 e a (re)capacitação do modelo de prevenção geral negativa,85 o modelo proposto tem como virtude a recuperação do jurídico em relação ao político. Na esteira da Tobias Barreto, ao entender a pena como ‘fenômeno’, como realidade empírica estranha ao direito, este (direito) passa a ser visto como instrumento de contenção daquela (pena). Desta forma, o direito ganha potência (instrumentalidade) na atuação contra os poderes, públicos ou privados, objetivando a tutela do pólo mais fraco. A fundamentação garantista da pena, portanto, não destrói o edifício jurídico construído na modernidade, pelo contrário, reconstrói o modelo genealógico seriamente abalado pelo direcionamento do direito penal à Defesa Social. Trata-se de modelo penal que tem como função precípua a negação explícita de qualquer estado de guerra. É, pois, um sistema estruturado na tolerância, porque a tolerância exclui a guerra e a sua lógica amigo/inimigo, porque reconhece o outro como valor, não como meio mas como fim, em uma palavra como ‘pessoa’, não apenas que não deva ser combatida ou repelida, mas respeitada, não apesar de, mas justamente porque é, diversa.86 Segundo Hart, en una comunidad de ángeles, jamás tentados por el deseo de dañar a otros, las reglas que prescriben abstenciones no serían necesarias. Ao contrário, em uma sociedade de demônios dispuestos a destruir, y a pagar cualquier precio por hacerlo, tales reglas serían imposibles.87 Contudo, em uma sociedade de humanos, ‘demasiado humanos’, as regras e as sanções continuam sendo possibilidade de negação da barbárie e afirmação progressiva e constante do processo civilizatório, pois a civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle.88
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Ferrajoli, La Pena in una Società Democratica, p. 529. É sobre esta base que as duas finalidades preventivas – a prevenção dos crimes e a prevenção das penas arbitrárias – são conexas entre si: ambas legitimam a ‘necessidade política’ do direito penal como instrumento de tutela dos direitos fundamentais, os quais definem normativamente o âmbito e os limites enquanto bens que não se justifica ofender, nem com crimes, nem com punições (Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 329-330). Ferrajoli, ob. cit., p. 330. Ferrajoli, ob. cit., pp. 330-332.
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Ver, sobre o tema, as críticas de Queiroz, A justificativa do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli, pp. 117-128. Gimbernat Ordeig, ao comentar a obra Direito e Razão, afirma que a pesar de su crítica a la prevención general negativa, no obstante inconsecuentemente Ferrajoli, posteriormente, acude a ella para justificar la existencia del Derecho penal, añadiendo, como segundo criterio explicativo y racional de esa existência que con el Derecho penal también se trata de prevenir outro mal (Gimbernat Ordeig, Derecho y Razón, p. 21). Ferrajoli, Tolleranza e Intollerabilità nello Stato di Diritto, p. 291. Apud Lopez Calera, Derecho y Tolerancia, p. 08. Freud, O Mal-Estar na Civilização, p. 167. 149
Capítulo V Os Sistemas de Execução e o Garantismo Penal
5.1. Valores e princípios penalógico-constitucionais 5.1.1. O condenado e o status ‘apátrida’ Beccaria afirmava que aquele que perturba a tranqüilidade pública, que não obedece às leis, que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente, deveria ser excluído da sociedade, isto é, banido (exílio local).1 Advoga, ainda, que o culpado poderia perder todos os seus bens (confisco), se a lei que pronuncia o banimento declarasse rompidos todos os laços que o ligavam à sociedade: porque desde então o cidadão está morto, resta somente o homem; e, perante a sociedade, a morte política de um cidadão deve ter as mesmas conseqüências que a morte natural.2 Beccaria percorre o mesmo caminho trilhado por Rousseau, quando visualiza a negação dos vínculos do condenado com a sociedade: os processos e os julgamentos são as provas e a declaração de ter ele [criminoso] rompido o tratado social, não sendo mais, conseqüentemente, membro do Estado.3 O enunciado dos pensadores da ilustração revela aquilo que foi denominado ‘germens antiliberais do pensamento iluminista’, raízes que sustentam o discurso clássico e que devem ser cortadas para que se possa revisitar sua matriz de vanguarda. É que, ínsito à mais conhecida corrente do contratualismo penal, há uma perspectiva de demonização daquele que violou a norma e foi condenado à sanção criminal. Todavia, o que mais chama a atenção é o fato de que, na atualidade, a realidade normativa e empírica em muito pouco rompeu com esta tradição autoritária. 1 2 3
Beccaria, Dos Delitos e das Penas, p. 103. Idem, p. 104. Rousseau, ob. cit., p. 52. 151
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A assertiva pode ser visualizada no diálogo proposto por Celso Lafer4 com Hannah Arendt. Indaga o autor de que forma seria possível desvincular os direitos fundamentais do status civitas. No caso, como evitar os resquícios anti-iluministas da tradição liberal no que tange ao infrator. Lafer parte da categoria ‘apátrida’ para explicar o problema e levantar algumas hipóteses. A condição de apátrida não estaria apenas vinculada à clássica distinção entre nacionais e estrangeiros, mas sim ao fato de provocar em algumas pessoas situação de perda dos elementos mínimos de conexão com a ordem jurídica interna dos Estados, destituindo-os da legalidade e da jurisdição. Tal condição retiraria o status de cidadania do homem, estabelecendo-lhe uma ‘morte civil’. Declarada formalmente, provoca a perda da condição civil, a desterritorialização e a incapacidade de reivindicação dos direitos, transformando sujeitos em objetos descartáveis. Assim, eles [apátridas] não perdem direitos como o direito à vida, à liberdade, à busca da felicidade, ou ainda à igualdade diante da lei por não serem nacionais. De fato ‘sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles’, pois estão privados de uma comunidade política que os contemple como sujeitos de direito e em relação à qual tenham direitos e deveres. Os apátridas, ao deixarem de pertencer a qualquer comunidade política, tornam-se supérfluos.5 Pressuposto mínimo da cidadania formal, a jurisdição, juntamente com o direito de participação política que representa o ingresso no pacto social, concretiza a legalidade, garantindo, na esfera do público, isonomia, e, no plano privado, o resguardo da diferença. Percebe-se, pois, no apátrida, a eliminação deste pressuposto mínimo da cidadania: o direito de reivindicar direitos, instrumentalizado pelo ‘direito à jurisdição’. Aos condenados do sistema punitivo, a obstrução dos canais de acesso à jurisdição decorrente da substantiva administrativização da execução da pena, aliada à suspensão do direito ao voto, caracterizará uma situação similar à dos apátridas, revelando aquela cruel realidade anunciada por Beccaria e Rousseau, na qual o condenado pela violação do pacto encontra-se em situação de ‘morte civil’.6 4 5 6
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Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos, pp. 146-166. Lafer, ob. cit., p. 147. Rousseau afirma que o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha o nome de soberania (Rousseau, Do Contrato Social, p. 48) Todos os direitos, inclusive a vida, são alienados ao soberano. O malfeitor (criminoso), portanto, torna-se um traidor da pátria, deixa
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5.1.2. As instituições totais e a Constituição de 1988 Não é nova a afirmativa de que as instituições de controle, principalmente o cárcere, configuram modelos totalitários. Na literatura nacional, Manoel Pedro Pimentel sustentava que, queiramos ou não, a prisão é uma instituição totalitária, e só pode funcionar como tal, concluindo ser uma ‘contraditio in adjecto’ tentar democratizar um sistema totalitário.7 Augusto Thompson assinala que a penitenciária é uma sociedade sui generis (dentro de outra sociedade), na qual foram alteradas, substancialmente, as feições da comunidade livre. Nota o autor que a característica mais marcante desta instituição é a tentativa de criação e manutenção de grupamentos humanos submetidos a regimes de controle total. Logo, tudo concorre para identificar o regime prisional como um regime totalitário.8 No interior deste sistema social anômalo, no qual relações doentias de poder se (re)produzem, constata-se a absoluta incapacidade de garantia dos direitos, em decorrência da inviabilização do direito à legalidade através de mecanismos de obstrução da jurisdição. Apesar do processo formal de jurisdicionalização instaurado pela Lei de Execução Penal (LEP) em 1984, criando alguns instrumentos e canais para tutela do apenado, as reivindicações do preso e da massa carcerária, não esporadicamente, são desprezadas pelas autoridades administrativas e judiciárias sob a alegação de necessidade de manutenção da ordem, representada neste universo pelos signos da disciplina e da segurança. Contra esta sobreposição da ordem aos direitos, Catão e Sussekind advogam que a prisão não constitui [não pode constituir] território no qual as normas constitucionais não tenham validade.9 A assertiva das pesquisadoras diagnosticava, já no início da década de oitenta, um sistema no qual imperavam lacunas de legalidade constitucional. Mais que uma afirmação acadêmica, o enunciado representava um grito de alerta sobre a prática penitenciária adotada no Brasil.
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de ser um membro ao violar suas leis e até lhe move guerra. A conservação do Estado é então incompatível com a sua, sendo preciso que um dos dois pereça, e, quando se faz que um culpado morra, é menos como cidadão do que como inimigo (Rousseau, ob. cit., p. 52). Pimentel, Sistemas Penitenciários, p. 273. Thompson, A Questão Penitenciária, p. 22. Catão & Sussekind, Os Direitos dos Presos, p. 85. 153
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Das constatações apresentadas, fruto da reivindicação do status dignitatis dos encarcerados, surgem algumas indagações sobre seus direitos frente ao sistema de execução penal (principalmente a execução da pena privativa de liberdade em regime fechado). A primeira diz respeito à validade (constitucionalidade material) e à eficácia das normas constitucionais e ordinárias que orientam a apartação; a segunda trata da efetividade e da instrumentalidade do processo de execução penal como garante dos direitos do apenado frente aos atos da administração penitenciária. A experiência na execução penal demonstra uma cruel historiografia: depois de prolatada a sentença penal condenatória, o apenado ingressa em ambiente desprovido de garantias. Desta forma, a decisão judicial condenatória exsurge como declaração de ‘não-cidadania’, como formalização da condição de apátrida do autor do fato-crime. É que a tradicional teoria da tripartição dos poderes limitou a atividade jurisdicional ao momento da sentença condenatória. Transitada em julgado a decisão, caberia ao órgão administrativo sua execução. Como é notório, em face da natureza jurídica, o processo administrativo e o processo judicial são extremamente diferenciados, notadamente no que diz respeito à principiologia garantista do primeiro e inquisitiva do segundo. Frente a essa realidade, tomou corpo no Brasil, principalmente a partir da década de setenta, corrente doutrinária que advogava incidência da jurisdição na execução penal, conformando um ‘modelo misto’ de execução, ou seja, administrativa mas com fortes traços processuais. Dessa necessidade de jurisdicionalizar a execução da pena, reconhecendo à pessoa condenada direitos fundamentais, houve a reforma da parte geral do Código Penal e a elaboração da LEP (1984). No entanto, somente com o advento da Carta de 1988 é que o tratamento da execução penal adquiriu feição constitucional. A Constituição, como instrumento de reconhecimento de direitos e garantias individuais, sociais e difusos, bem como recurso de interpretação da legislação ordinária (locus hermenêutico), possibilitou verdadeiro redimensionamento na leitura dos assuntos referentes ao processo penal executório. Como em nenhum outro estatuto nacional, a Constituição de 1988 introduziu expressamente direitos ao preso, rompendo com a lógica belicista que tornava o sujeito condenado mero objeto nas mãos da administração pública. Fundamental, portanto, avaliar a idoneidade dos instrumentos de garantia estabelecidos pela LEP para efetivação dos direitos dos pre-
sos contra os poderes irracionais. Sobretudo porque existe um consenso no Brasil que entende que o problema da execução penal é meramente administrativo, isto é, se fossem cumpridos pelo Estado-administração os preceitos da LEP, estariam resguardados em sua plenitude os direitos ao apartado. Refuta-se liminarmente esta hipótese. Logicamente que não se está a negar o fato de que, em se tratando da assistência material ao preso (estatuto social positivo do apenado), esta afirmação é verossímil. Questiona-se a falácia politicista na qual incorrem os juristas ao direcionarem suas críticas exclusivamente ao Estado-administração, eximindo sua responsabilidade. Entende-se, pois, que o sistema jurisdicional criado pela LEP não é ótimo, mas falho, não merecendo leituras apologéticas apressadas e inconseqüentes. No entanto, apesar das falhas, cabe ressaltar que existem instrumentos a serem utilizados pelo operador jurídico capazes de garantir um mínimo de dignidade ao preso. Contudo, este tipo de posicionamento somente poderá ser tomado no momento em que a Constituição for entendida como rígido instrumento de (des)legitimação das normas ordinárias. Desta maneira, para plena compreensão dos dispositivos constitucionais referentes à matéria da execução da pena, principalmente da execução da pena privativa de liberdade, delinear-se-á um quadro constitucional valorativo e principiológico. Tudo porque, na trilha de José Frederico Marques,10 entende-se que direito processual é o que mais intensamente sofre a influência da tutela normativa da Constituição. Outrossim, adotando a perspectiva de Figueiredo Dias, tem-se o direito processual penal como verdadeiro direito constitucional aplicado.11
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5.1.3. Valores constitucionais informadores Segundo o art. 1o da Constituição, a República constitui-se Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Rege-se, em suas relações internacionais, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4o, II, CR/88). A prevalência dos direitos humanos, no entanto, não vincula apenas as relações exteriores, mas orienta todo ordenamento jurídico nacional. 10 11
Marques, O Processo Penal na Atualidade, p. 13. Dias, Direito Processual Penal, p. 74. 155
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Se historicamente as normas de direito penal e de direito processual penal não estiveram em plena harmonia com as Constituições democráticas, pode-se afirmar que os direitos humanos jamais figuraram instrumentos de referência à ciência penal. Apesar deste fato lamentável, atualmente os pensadores das ciências penais, principalmente das políticas criminais, consolidaram o entendimento dos direitos humanos como limite e objeto do direito penal, propiciando ao jurídico uma fonte externa de legitimação. Alessandro Baratta12 advoga que os direitos humanos cumpririam funções negativas e positivas no tratamento da matéria penal. Desde uma perspectiva negativa, imporiam limitações à intervenção estatal, determinando o que deve ou não ser tolerado normativamente na restrição das liberdades individuais do cidadão que violou o preceito legal (limite). Positivamente, estabeleceriam o rol das condutas relativas à intervenção, indicando os rumos disciplinadores do ordenamento. Definiriam e elegeriam bens jurídicos a serem tutelados, viabilizando uma política de intervenção mínima (objeto). Os estatutos constitucionais do Ocidente, após a segunda grande guerra, inflamados pelo teor humanitário da carta de direitos da ONU, repudiaram normativamente as concepções autoritárias e positivaram inúmeros valores e princípios humanistas. A propósito, os processos de inclusão gradativa dos direitos nos textos internacionais soterraram a velha discussão entre direitos naturais versus direito positivo, reconhecendo a historicidade e a positividade daqueles. Claro que a Constituição não esgota em seu texto a totalidade dos direitos humanos, notadamente pelo seu caráter histórico que possibilita sempre, e cada vez mais, a inclusão de novos e renovados direitos. Os estatutos constitucionais, no entanto, positivaram grande parte dos valores humanitários, fundando rol axiológico instrumentalizador de uma nova concepção jurídico-política voltada à satisfação dos direitos fundamentais. Valores como dignidade da pessoa humana assumem, juntamente com pluralismo e tolerância, vital importância no processo de construção do modelo jurídico de garantias. Segundo Cairoli Martinez,13 a idéia de dignidade representa a assunção por parte da humanidade que todo o ser humano deve ter reconhecida sua personalidade em qualquer local que se encontre, alcançando status de sujeito de direitos. A dignidade nasce com a pes-
soa e é seu patrimônio indisponível e inviolável. Trata-se de valor fundamental expresso nas cartas políticas, sendo diluído nas normas concretas, porque, ao desconhecer a dignidade do homem, o Estado desconheceria a existência e universalidade dos demais direitos humanos. Assim, conclui Dyrceu Aguiar Cintra Jr. que todos os direitos fundamentais consagrados na Constituição têm por suporte o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF) e é pelo processo – e o de execução da pena não pode fugir à regra – que se garantem aqueles, quando se trata de proteger o status libertatis do cidadão.14 O respeito e a promoção da dignidade humana representariam a função primeva da existência do Estado, sendo que sua lesão (desprezo do homem como valor) legitimaria, inclusive, a resistência.
Os valores humanistas são concretizados nos princípios constitucionais, categorias jurídicas de cunho abstratamente inferior, mas que condicionam a legislação no que diz respeito à sua legitimidade interna. O princípio lapidar do modelo jurídico de garantias é o ‘princípio da secularização’. Assevera Zaffaroni15 que o princípio da secularização é um princípio metajurídico, de legitimidade externa do direito penal, cuja caracterização é dada fundamentalmente pela adoção de formas republicanas de governo. Com o processo ilustrado de separação entre direito e moral, coube ao direito penal a proibição, comprovação e repressão de condutas lesivas a bens jurídicos concretos. Excluiu-se a possibilidade de atuar como instrumento de imposição ou reforço da moral. Exsurge, pois, da sua tradição ilustrada, como princípio garantidor da dignidade do homem, propiciando o pluralismo e resguardando determinada esfera da pessoa na qual é ilícito proibir, julgar e punir: a esfera do pensamento, das idéias, das paixões e das convicções. Mister ressalvar a importância que adquire o princípio da secularização como modelador de toda a estrutura principiológica e normativa, estando a este subordinado, inclusive, o princípio da legalidade. O
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Baratta, Requisitos Mínimos del Respecto de los Derechos en la Ley Penal, p. 07. Martinez, Introducción al Estudio del Derecho Penal, p. 43.
5.1.4. Princípios constitucionais informadores
Cintra Jr., A Jurisdicionalização do Processo de Execução Penal, p. 119. Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos, p. 27. 157
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rompimento dos vínculos entre direito e moral é conditio sine qua non na formação de um modelo constitucional garantista de direito penal e processual penal. Discorda-se, porém, da afirmativa de ser o princípio da secularização garantia metajurídica. A Constituição de 1988 incorporou o princípio sob o signo da inviolabilidade da intimidade e do respeito à vida privada (art. 5o, X); do resguardo da liberdade de manifestação de pensamento (art. 5o, IV); da liberdade de consciência e crença religiosa (art. 5o, VI); da liberdade de convicção filosófica ou política (art. 5o, VIII); e da garantia de livre manifestação do pensar (art. 5o, IX). Em realidade, a amplitude e o alcance do princípio é superior ao da sua gênese iluminista, representando atualmente verdadeira pedra angular da democracia como ferramenta pródiga de (des)legitimação de toda atividade do poder estatal (legiferante, administrativa e/ou judicial). É requisito de legitimidade, fornecendo mecanismo de verificação da validade do sistema. Luigi Ferrajoli16 afirma que a adoção do princípio implica três conseqüências axiológicas às esferas do direito penal e processual penal. Em relação ao delito e os problemas de justificação da legislação, define que o direito penal deve apenas impedir condutas danosas para terceiros: a violação concreta de bens jurídicos alheios é a única justificação das leis penais. No que diz respeito ao processo e à jurisdição, exige que o juízo não verse sobre a moralidade, o caráter ou quaisquer outros aspectos substanciais da personalidade do réu, mas somente sobre os fatos penalmente proibidos que lhe são imputados e que podem, por outra parte, ser empiricamente provados pela acusação e refutados pela defesa. Em relação à justificação da pena e seu modo de execução, o princípio alude que a sanção penal não pode ter conteúdos nem fins morais: o cidadão, se tem o dever jurídico de não cometer delitos, tem o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que é se assim desejar (direito à perversidade). Parece claro que a única forma de resguardar a dignidade da pessoa humana é tutelando sua capacidade de livre determinação. Romper os vínculos entre direito e moral, propiciando ao ‘Outro’ ser ‘diverso’, é assegurar a tolerância e o pluralismo, valores fundamentais do Estado Democrático de Direito. 16 158
Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 207-209.
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5.1.5. Princípios penalógico-constitucionais Se a Constituição de 1988 estabeleceu vínculos relativos à pena e ao seu modo de execução, partindo sistematicamente do princípio da legalidade (art. 5o, XXXIX), igualmente elencou diretivas com grau e conteúdo diversos. A primeira ordem de intervenção constitucional na esfera penalógica é de natureza limitativa quanto à espécie da sanção e o sujeito a ser sancionado: restringiu determinados tipos de penas (art. 5o, XLVII); limitou destinatários (art. 5o, XLV); e taxou possibilidades de sanção (art. 5o, XLVI). O constituinte disciplinou ainda a forma de cumprimento das penas. Ao regular sua individualização, impôs restrições no que diz respeito ao público dos estabelecimentos carcerários (art. 5o, XLVIII), determinando, inclusive, diferenciações de gênero (art. 5o, L). Impôs também normas de garantia dos presos, condenados ou provisórios, assegurando direitos inalienáveis e indisponíveis os quais o Estado não pode restringir, pois versam sobre a integridade física e moral daquele sujeito temporariamente limitado em sua liberdade de ir e vir (art. 5o, XLIX). Outrossim, quando trata dos direitos políticos, a Constituição suspende a capacidade eleitoral do condenado enquanto durarem os efeitos da sanção penal (art. 15, III). No entanto, o advento da carta de 1988 não rompeu com omissão do operador no que diz respeito à otimização dos direitos fundamentais. Zaffaroni explica esta situação afirmando que en la jurisprudencia y en la doctrina reina cierto grado de desconocimiento de la extensión de las garantías fundamentales em materia penal. Los autores latinoamericanos, en general, reconocen ampliamente el significado trascendente de los principios garantizadores del derecho penal, pero es frecuente observar una carencia de profundidad en la aplicación de los mismos a la tarea dogmática concreta.17 É que o significado da principiologia constitucional ultrapassa esta visão meramente lúdica descrita por Zaffaroni. Apesar do caráter abstrato das normas e princípios constitucionais, que acaba dificultando sua concretização, a atitude do operador jurídico deve ser comissi17
Zaffaroni, ob. cit., p. 08. 159
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va, de interpretação e filtragem dos institutos jurídico-penais a partir do texto constitucional, em verdadeiro ‘uso alternativo do direito’.18 Percebe Ferrajoli19 a insuficiência da idéia de que basta um ‘direito bom’, dotado de mecanismos atuais e avançados de garantias, para conter o poder e colocar os direitos fundamentais a salvo dos desvios. É notório que, por ser o modelo de garantias um tipo ideal (tendencial e inatingível), há dificuldade de adaptá-lo à realidade jurisprudencial. Entretanto, a efetivação das garantias não cabe tão-somente ao poder político, mas fundamentalmente aos juristas, através do processo de (re)interpretação dos textos. Se é verdade que o sistema jurídico por si só não pode garantir nada, não se pode afirmar que o jurista nada possa fazer para otimizar o modelo de garantias. É da essência da atividade dos operadores críticos a utilização dos mecanismos fornecidos pela Constituição, e das lacunas e contradições entre esta e o ordenamento inferior, para dar eficácia às normas, gerando práticas de defesa dos direitos fundamentais.
penal dirigente, plenamente realizado pelo legislador ordinário, cujo efeito é edificar um Estado Penal como alternativa ao inexistente Estado Social. As normas penais programáticas (ou cláusulas de criminalização/penalização) maximizam o penal aos atos de discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5o, XLI); à prática de racismo (art. 5o, XLII); aos crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e ao terrorismo (art. 5o, XLIII); à ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado de Direito (art. 5o, XLIV) entre outras. Especificamente no que diz aos delitos hediondos e equiparados, a Constituição deu vazão e legitimou a Lei que melhor pode ser enquadrada como fruto dos movimentos criminalizadores autoritários (Lei 8.072/90) que, excedendo o comando constitucional, obstaculiza grande parte dos direitos públicos subjetivos dos apenados. Não obstante insinuar um modelo de direito penal pouco afeito à idéia minimalista, a Constituição da República projetou efeitos restritivos aos direitos para além da criminalização e da imposição de penas. Ao dispor sobre os direitos políticos, a Constituição de 1988 é novamente maculada pela tendência autoritária. A ação política através da participação nas decisões da vida pública é um dos fatores que caracterizam a cidadania formal. Dado o fato da impossibilidade de reunião na ‘Ágora’, o instrumento de exercício da cidadania nas democracias representativas é o voto popular. No entanto, o art. 15, inc. III, da CR determina a suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado. Salutar indagação é qual a relação possível entre a condenação criminal e a perda, ainda que temporária, dos direitos políticos, senão excluir o condenado da vida pública, destituindo-lhe formalmente a cidadania e consolidando aquele estigma de apátrida.20 A edificação, em sede constitucional, da destituição da cidadania do preso capacita diagnosticar o não-reconhecimento dos seus direitos
5.1.6. A ‘Constituição penal’ e a restrição de direitos fundamentais do preso A ‘ilusão penal’, idéia predominante no senso comum do ‘homem de rua’ que alcança atualmente os juristas, elevou como máxima constitucional normas de restrição de direitos fundamentais. Assim, o texto constitucional não apenas adquire função restritiva (negativa), mas potencializa a incidência do penal/carcerário. Este paradoxo – coexistência de normas garantidoras e normas autoritárias em estatutos com clara vocação humanista (Constituições e Tratados Internacionais) – reflete o cenário jurídico-político nacional desde 1988. O processo de elaboração constitucional fixou, seguindo a tradição do constitucionalismo em matéria penal e processual penal, limites ao poder repressivo. Todavia, de forma inédita, projetou um sistema criminalizador, conformando uma ‘Constituição Penal dirigente’. Assim, a Constituição recepcionou anseios punitivos, colocando em xeque seus próprios princípios liberais. Tem-se, desta forma, na história recente do constitucionalismo nacional, a formação de um núcleo constitucional18 19 160
Sobre a interpretação constitucional e o ‘uso alternativo do direito’, conferir Carvalho, Direito Alternativo e Dogmática Penal, pp. 69-84. Ferrajoli, ob. cit., p. 985.
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Mesmo antes da redação do texto constitucional, a jurisprudência consolidava este entendimento. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (1885), instigado a emitir juízo sobre a possibilidade de o preso votar, entendeu ser este direito incompatível com a privação de liberdade. O relator do caso afirmou que o prisioneiro não pode votar simplesmente porque não dotado do requisito mínimo de cidadania ativa: a liberdade; o revisor sustentou não ser admissível que participem em igualdade de condições um condenado por crime, como já se entendeu nesta Egrégia Corte, determinante da mais alta desqualificação social, para gerir os negócios do Estado, ombreando se com os que não sofreram veto de dignidade (Apud Castilho, Controle da Legalidade na Execução Penal, p. 30). 161
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pelo Poder Público. Se a própria Constituição, norma fundante da ordem jurídica, do regime democrático e do modelo republicano, retira o status civitas do condenado no plano das relações e decisões políticas, inevitável que o Estado-administração e o Estado-jurisdição pulverizem esta máxima, legitimando o desrespeito cotidiano aos direitos fundamentais nas relações intra-muros. O resíduo autoritário da negativa do voto ao preso, aliado às cláusulas de criminalização, leva ao questionamento do imaginário que perfaz a condição de condenado, pois, ao mesmo tempo que a norma positiva fundamental preza a manutenção de sua dignidade, acaba negando sua posição de sujeito político, retirando-lhe instrumento de exercício da cidadania. Desde esta perspectiva, urge rever o dispositivo constitucional,21 pois, se os princípios fornecem o norte interpretativo, possibilitando uma práxis crítica, conteúdos deste gênero obstaculizam não apenas o labor cotidiano para efetivação dos direitos contra os poderes, mas interrompem o processo de formação de um caldo de cultura humanista. A Constituição é o topos hermenêutico para uma ação garantidora, não podendo, pois, ser mecanismo de restrição dos direitos fundamentais.
Segundo Albuquerque Prado,24 a dificuldade para a solução das questões executivas reside necessariamente na distinção entre os atos de administração e os atos de jurisdição. Para o autor, a função administrativa distingue-se da jurisdicional porque na primeira o administrador age espontaneamente, adota medidas preventivas para evitar a violação da lei e cria, com seus atos, situações jurídicas novas. O juiz, de modo diverso, é sempre provocado, atua após a violação da lei e nada cria, apenas assegura em seu julgamento situação (pré)existente. Na esteira de Chiovenda, Albuquerque Prado afirma que a característica da função jurisdicional é a substituição da atividade de outro pela ação pública.25 Esta substituição faltaria à administração, pois atividade imposta pela lei aos órgãos públicos: a função administrativa é assim primária, enquanto a jurisdicional é função secundária.26 Desta forma, advoga ser a execução penal atividade administrativa: a verdadeira natureza da execução penal é de ato de administração, principalmente pelo fato de que nela o Estado age como um poder soberano para a realização dos seus interesses. Se, ao contrário, a execução penal fôsse um ato jurisdicional, o órgão executivo estaria vinculado aos interesses de outros.27 A concepção sustentada por Albuquerque Prado é derivada das noções tradicionais fundadas na radical separação dos poderes estatais. À Administração Pública, sob este aspecto, caberia toda atividade superveniente à condenação, visto serem os atos administrativos, por excelência, atos de execução dos preceitos legislativos e judiciários – a administração é a promotora do bem público. A pena é de interesse coletivo: à administração cabe realizá-la.28 Otimizada esta concepção, autonomiza-se do direito penal e processual penal o direito penitenciário, entendido como disciplina reguladora da relação entre o condenado e a administração penitenciária. Nesta linha, propõe Adhemar Raymundo da Silva que o traço mais característico da execução penal seria sua ajurisdicionalidade, porque pressupõe o exaurimento da jurisdição, ou seja, cessada a atividade do Estado-jurisdição com a sentença final, começa a do Estado-administração com a execução penal.29
5.2. Sistemas de execução penal 5.2.1. Sistemas de execução penal: escorço histórico Na doutrina, a natureza jurídica da execução penal é indicada por três sistemas: os sistemas administrativos, os sistemas jurisdicionais e os ‘sistemas mistos’.22 A importância do estudo dos sistemas nasce não apenas da sombria visibilidade entre o processo de execução penal e o direito penitenciário, mas, sobretudo, segundo Alcala-Zamora y Castillho, porque el penalista se ocupa con frecuencia del proceso penal y del régimen penitenciario, y por ello no siempre se preocupa de deslindar con precisión la zona que a cada una de esas actividades incumbe.23 21
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Sobre a necessidade de revisão constitucional no sentido de assegurar o direito de voto ao preso, conferir Maia Neto, Penitenciarismo en el Mercosul, pp. 126-132; Belov, Questão aberta à comunidade: deve o preso votar? e Rodrigues, A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade, pp. 183-184. Sobre os sistemas de execução penal, principalmente as características dos modelos europeus, conferir Rodrigues, A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade, pp. 38-54. Alcala-Zamora y Castillo, Derecho Procesal Penal, p. 28.
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Prado, Estudos e Questões de Processo Penal, p. 162. Sobre a posição de Chiovenda de inexistência de jurisdição na execução penal, conferir o artigo de Fernandes, Reflexos Relevantes de um Processo de Execução Penal Jurisdicionalizado, pp. 87-88. Prado, ob. cit., p. 163. Idem, p. 164. Almeida, A contrariedade na instrução Criminal, p. 131. Silva, Estudos de Direito Processual Penal, p. 66. 163
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Hélio Thornaghi, em sua tese de cátedra (1945),30 adota os mesmos critérios para distinguir os atos de administração dos jurisdicionais, entendendo que, solucionado o conflito pela sentença transitada em julgado proferida por terceiro estranho ao conflito, esgota-se a jurisdição (atividade substitutiva e vinculada), iniciando, pois, a atividade administrativa (discricionária). A índole administrativa pressuporia, pois, que a execução não poderia nunca pertencer ao direito processual penal: este terminaria com o trânsito em julgado da sentença.31 Todavia, o entendimento puramente administrativista acabava por se chocar com a imperativa necessidade de intervenção judicial nos chamados incidentes da execução32 (basicamente no livramento condicional). Mesmo teoricamente admitida a autonomia do direito penitenciário, a legislação atribuía ao juiz atividade modificadora do título executivo, interferindo na atividade da administração penitenciária. As diretrizes legais sobre os incidentes geraram dogmaticamente uma concepção híbrida, qual seja, de que a natureza da execução penal seria tanto administrativa como jurisdicional.33 Tal posicionamento é encontrado em Eduardo Espínola Filho. Chama atenção o autor para o fato de só se sujeitarem ao poder judiciário (e, pois, ao juiz da execução) os incidentes da execução de caráter jurisdicional ou misto, eis que os meramente administrativos se resolvem de acordo com as disposições de direito penitenciário ou regulamentar das prisões. Sem dúvida, não se justifica a interferência da autoridade judiciária em fatos da economia interna dos presídios, pois só à direção destes é imprescindível uma unidade de orientação, que seria sacrificada, se se tolerasse a ação, nunca uniforme, de várias autoridades outras.34
A divisão das esferas na execução diria respeito fundamentalmente à necessidade imperiosa, por parte da administração, de regular disciplinarmente a ‘massa carcerária’, enquanto caberia ao judiciário conceder/restringir ‘benesses legais’. Pode-se afirmar que a concepção ilustrada por Espínola Filho corresponde à estrutura formal da execução penal em nosso país até a reforma legal de 1984. Interessante notar, porém, as conseqüências jurídicas impostas pela concepção administrativista em muitos casos ainda dominante. Admitir uma feição essencialmente administrativa (ou híbrida) da execução penal implica qualificar os direitos decorrentes dos incidentes como meros benefícios concedidos pelo Estado ao condenado, ou seja, medidas político-criminais facultadas ao juiz (regalias domésticas).35 Tal concepção contraria a idéia de que os incidentes de execução constituem-se como verdadeiros direitos públicos subjetivos dos apenados frente à Administração e que podem ser postulados perante o Poder Judiciário (direito de petição). Ou seja, direitos que atenuam a qualidade e/ou a quantidade da pena imposta pela sentença penal transitada em julgado. Muito embora prevalente a concepção administrativa até a redação da LEP em 1984, Espínola Filho já visualizava possibilidades fiscalizadoras ao juiz da execução, ampliando sua função para além dos chamados incidentes. Sustentava, pois, que nesse terreno, só se admite a competência do juiz da execução, para, chamado a verificar a espécie, pela reclamação de detento, preso a sua disposição, providenciar quanto às transgressões arbitrárias do regulamento, levando a sua benéfica ação de controle indireto a ponto de requisitar, dos órgãos competentes, 35
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Tornaghi, A Relação Processual Penal, pp. 92-96. Dias, ob. cit, pp. 36-37. Novelli e Falchi consideram incidentes da execução todas as decisões complementares à execução da sentença, segundo a vontade da lei, com o poder de mudar a sentença e mesmo contribuir para que a pena termine em virtude de fatos supervenientes de alcance jurídico. O processo de incidentes de execução adaptaria a sentença às novas condições e circunstâncias, como no exame do estado perigoso durante a execução de medida de segurança (apud Lyra, Comentários ao Código de Processo Penal, p. 92). Esclarece Antonio Scarance Fernandes que, quando a doutrina que advoga a teoria mista refere os incidentes, está, em realidade, querendo dizer ‘procedimentos incidentais de execução’, isto é, haveria um processo administrativo de execução, ao lado do qual seriam instaurados procedimentos incidentais jurisdicionalizados (Fernandes, ob. cit., p. 86). Sobre o tema, conferir Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal II, pp. 273-274. Espínola Filho, Código de Processo Penal Brasileiro Anotado (VII), pp. 319-320.
Tal posicionamento se percebe nitidamente em Adhemar Raymundo da Silva: nem se argumente, finalmente, como fazem os partidários da jurisdicionalidade da execução penal, com a possibilidade de a sanção penal, imposta na sentença condenatória, vir a ser modificada, com o pedido se sursis, livramento condicional (incidentes da execução penal), anistia, graça, indulto ou reabilitação. Na suspensão condicional da pena, frente ao sistema franco-belga, adotado pelo legislador, não há, de modo algum, modificação da sanção penal contida na sentença, pois, o que se verifica é a não-execução da pena, tanto assim que subsiste a condenação para os efeitos de reincidência e responsabilidade civil do autor da infração. A sanção penal existe sem qualquer modificação, uma vez que ela se não altera na sua qualidade ou quantidade. É uma medida de política criminal, condensada no direito material, porquanto íntimamente ligada ao exercício do ius puniendi. Quanto ao livramento condicional, que também não é direito do condenado, a sanção penal modifica-se, de fato, na sua quantidade, mas da sua postulação não exsurge conflito entre o Estado e o indivíduo. Diz a lei material que o juiz pode concedê-lo, razão por que é considerado benefício instituído pelo Estado, uma etapa do sistema penitenciário progressivo (Silva, ob. cit., pp. 64-66). 165
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a punição das faltas e a apuração da responsabilidade criminal, quando elas se vistam do aspecto de crime.36
Não se pode olvidar, porém, que a luta pela legalidade na execução penal já vinha sendo tema de profundo debate desde a edição do Código de Processo Penal, em 1941. Um dos arautos no processo de ampliação da tutela jurisdicional foi Roberto Lyra. O autor advogava: vai perdendo todo o prestígio a tese que apresenta a execução penal como matéria indiferente ao direito. A própria lei substantiva opõe limites e freios aos abusos administrativos, através de garantias e da discriminação das características essenciais da pena... Passou a época do discricionarismo da direção carcerária.38 Lyra percebia a trágica problemática que envolve a realidade prisional, caracterizada por verdadeiros ‘vácuos de legalidade’. Aprofunda a crítica às concepções tradicionais e desvenda um dos pontos nevrálgicos geradores dessa realidade totalitária, reinterpretando sua natureza e funções, no sentido de ampliar a tutela jurídica ao condenado. Percebe a execução penal como ‘relação jurídica’ e, enquanto tal, determinante de direitos subjetivos, interesses e deveres para as partes.39 Desde esta perspectiva, incorpora ao rol dos direitos dos condenados o princípio básico dos modelos jurídicos garantistas, ou seja, a legalidade instrumentalizada pelo direito de petição. Sustenta Roberto Lyra que seria preciso impedir o cumprimento da pena ao arrepio dos códigos, pois o princípio da legalidade abrange, também, a execução penal, sendo que a própria margem, deixada à discrição da autoridade administrativa, há de conter-se nos limites dos regulamentos e das instruções. Não se compreende que, na fase mais grave e mais importante da atuação da justiça, esta abandone os homens que mandou ao cárcere e degrade a função pública da pena.40 Todavia, somente com o estatuto executivo de 1984 institucionalizou-se no Brasil, via processo legislativo, o modelo jurisdicional de execução. O processo de jurisdicionalização, disposto pela LEP nos arts. 1o (que fixa o conteúdo jurídico da execução penal), 2o (que anuncia a jurisdição e o processo), 66 (que detalha a competência do juiz de exe-
5.2.2. O sistema de execução instituído pela LEP Segundo a tradição, o direito penitenciário é autônomo, distinto do direito penal e processual penal, representando o conjunto de normas que regulamentam a organização carcerária. É direcionado fundamentalmente para a determinação de regras disciplinares capazes de ordenar a vida do apenado durante o cumprimento da pena. Caberia, pois, ao direito penitenciário estabelecer diretrizes administrativas no intuito de regular o ambiente da instituição sob o prisma da segurança e da disciplina. Exercido pelos órgãos do Serviço Penitenciário, sua natureza seria essencialmente administrativa e, como órgão estatal executivo, não estaria subordinado ao juízo de execução e ao Ministério Público. No entanto, a ampla discricionariedade no trato das questões internas à ordem penitenciária gerou um subproduto trágico característico das instituições totais, qual seja, a disfunção da atividade pelo arbítrio e pela lesão constante dos direitos dos presos, estabelecendo o que se conhece como ‘crise da execução da pena’. Note-se que os princípios informadores do direito penitenciário são totalmente diferenciados dos princípios de direito penal e processual penal que compuseram a sentença e se solidificaram como coisa julgada. O princípio da legalidade dos atos administrativos é diverso do princípio da legalidade penal, gerando, em fase de execução da pena, profunda diafonia. A ação executiva é regida pelos princípios da disciplina e da ordem, e sob estes signos viu-se historicamente a justificativa da administração penitenciária para restrição/violação de direitos do condenado que não foram limitados pela sentença penal. Com o intuito de diminuir tais violações, restringir a atividade da administração e proporcionar ao apenado garantia mínima de seus direitos, a Lei no 7.210/84 normatizou a jurisdicionalização da execução da pena. O desenvolvimento de tal linha da processualística – esclarece Dyrceu Aguiar Cintra Jr. – veio ao encontro das concepções do processo enquanto garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado, conectandose com o constitucionalismo.37 36 37 166
Espínola Filho, ob. cit., p. 320. Cintra Jr., ob. cit., p. 118.
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Lyra, ob. cit., p. 10. Postulava o autor que não é apenas formalmente que o Estado garante aos indivíduos direitos subjetivos em relação a ele. Somente sob o absolutismo, na relação Estado-indivíduo, o primeiro manda ilimitadamente e o segundo ilimitadamente obedece. Há, entre Estado e indivíduo, verdadeira relação jurídica, cabendo a este direitos, e, não, graça ou liberalidade, definida como mero interesse de fato, simples expectativa (Lyra, ob. cit., p. 14). Lyra, ob. cit., p. 11. 167
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cução penal) e 194 (que determina o procedimento judicial), objetiva tornar eficaz o princípio da legalidade, assegurando aos reclusos seus direitos fundamentais. É o que refere a exposição de motivos: o princípio da legalidade domina o corpo do projeto, de forma a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal.41 Muito embora introduzido normativamente, não se pode afirmar tenha ocorrido o câmbio esperado no que diz à concepção doutrinária e jurisprudencial quanto à natureza jurídica da execução penal. Aliás, esta conclusão seria inadmissível nos termos lógico-sistemáticos da LEP. O direito de execução penal, pelo entendimento encontrado na justificativa da lei, é autônomo, não submisso ao direito e ao processo penal. Da mesma forma, segundo a LEP, não corresponde a mero regulamento penitenciário ou estatuto do presidiário. É nesta complexidade e autonomia que estão tensionadas jurisdição e administração. Não obstante, o novo entendimento produziu algumas conseqüências de ordem garantista no sistema. Para Cintra, Grinover e Dinamarco,42 o apenado não pode mais ser considerado mero objeto, mas torna-se titular de posições jurídicas de vantagem como sujeito de relação processual: a natureza administrativa que se quisesse emprestar à execução penal tornaria o réu mero objeto do procedimento, quando, ao contrário, ele há de ser visto como titular de situações processuais de vantagem, como sujeito da relação processual existente no processo de execução penal. Não mais simples detentor de obrigações, deveres e ônus, o réu torna-se titular de direitos, faculdades e poderes.43 O paradoxo da relação processual na execução da pena acaba sendo revelado no complicado liame entre direito penitenciário, inequivocamente administrativo, e processo de execução, de natureza jurisdicional. Segundo Grinover,44 a dificuldade reside em poder extremar estas duas atividades: administrativa e jurisdicional. A anunciada natureza mista e multiforme da execução penal impõe séria avaliação no que diz respeito à tutela do condenado frente ao poder administrativo. Se é relativamente pacífico na doutrina, após
o estatuto de 1984, o direito do apenado à jurisdição, tal conteúdo material carece de eficácia na vida carcerária quando da necessidade de controle da legalidade. Não se pode olvidar que a execução está vinculada à sentença penal, constituindo lesão toda e qualquer atividade restritiva além do estabelecido pelo Estado-juiz. Se o processo penal é o instrumento através do qual o Estado se apropria do conflito do sujeito lesado para resguardar a racionalidade da resposta ao delito, deve operar de maneira otimizada na execução, controlando os atos administrativos de forma a resguardar a dignidade e a humanidade dos apenados. Logo, o juízo de execução tem poderes para interferir diretamente nas relações entre a administração dos estabelecimentos penais e os detentos.45 Ela Wiecko Volkmer de Castilho,46 ao versar sobre o problema, percebe que na visão administrativista restaria implícito um vazio, uma esfera de irrelevância jurídica, visto estar o condenado submetido à administração. Advertem Catão e Sussekind que o pensamento doutrinário cujo pressuposto baseava-se na não-interferência do Judiciário na Administração é que marcou a situação de abandono dos presos, e o sistema penitenciário ficou sendo a fase mais negligenciada da administração da justiça e, conseqüentemente, a mais implacável.47 As tentativas de dirimir este problema palpitante levaram à reafirmação da jurisdicionalização em 1994, quando da implementação das Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Não obstante ter estabelecido relações específicas e diretas do apenado com a Administração e com o Judiciário, vislumbrando maiores possibilidades de tutela (arts. 31 e 32 da Resolução no 14, de novembro de 1994), percebe-se que a execução penal ainda continua sendo um território de vácuo jurídico em termos de validade e eficácia constitucional. Avaliando a jurisprudência nacional, Ela Castilho obtém cruel anamnese: a inexistência de litígios versando diretamente sobre direitos e deveres dos presos, bem como sobre questões decorrentes da imposição de sanções disciplinares. Isto é sintomático, pois as denúncias de maus-tratos não diminuíram.48
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Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 19. Cintra, Grinover & Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 315. Grinover, Natureza Jurídica da Execução Penal, p. 12. Grinover, Anotações sobre os aspectos processuais da Lei de Execução Penal, p. 15.
Araújo, A Execução Penal como Extensão da Atividade Jurisdicional, p. 59. Castilho, Controle da Legalidade na Execução Penal, pp. 24-25. Catão & Sussekind, ob. cit., p. 76. Castilho, ob. cit., p. 108. 169
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5.2.3. Os princípios relativos aos sistemas processuais e o diagnóstico do processo de execução penal brasileiro Tem-se assistido, desde o início do texto, à constante tensão entre dois sistemas processuais penais (inquisitivo e acusatório) e sua conformação histórica em relação a determinados modelos de Estado e de direito. Diagnosticou-se, neste capítulo, outra tensão similar no interior do processo de execução penal, que se estabelece entre os sistemas jurisdicionais e os administrativos. Imprescindível notar, preliminarmente, a impossibilidade de existência de um sistema jurídico híbrido ou misto, seja ele processual, penal ou penalógico, como inúmeros autores postulam. A característica dos sistemas, como a dos paradigmas e dos tipos ideais, é sua identificação a partir de alguns rígidos princípios unificadores. Deles apenas se aproximam tendências opostas, sendo impossível fusão sistemática ou paradigmática. O modelo jurídico é garantista ou antigarantista. O sistema processual é acusatório ou inquisitório. O sistema executivo é jurisdicional ou administrativo. Claro que se pode visualizar no interior de um modelo normativo garantista (acusatório) práticas ou regras antigarantistas (inquisitoriais). Todavia, estas não descaracterizam a matriz original, apenas a maculam. Leciona Jacinto Coutinho que não é preciso grande esforço para entender que não há – e nem pode haver – um princípio misto, o que, por evidente, desconfigura o dito sistema. Assim, para entendê-lo, faz-se mister observar o fato de que ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários), que de um sistema são emprestados ao outro.49 Franco Cordero, ao analisar os modelos bipartidos de processo cognitivo, sustentará a impossibilidade de conciliação entre sistemas opostos: a idéia do processo em dois tempos – o primeiro inquisitório e o segundo acusatório – é repelido pela razão, ainda que possa seduzir os pesquisadores por vocação.50 Tal assertiva deslegitima a tentativa de consolidação de sistemas processuais proclamados ‘mistos’, legado autoritário da codificação processual penal napoleônica (1808). 49 50 170
Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro, p. 29. Apud Coutinho, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, p. 41.
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Os sistemas processuais, organizados de forma lógica, caracterizam-se pela presença de um princípio reitor que estabelece sua teleologia (maximização dos poderes ou das garantias). Se o sistema acusatório é identificado pelo princípio dispositivo, o inquisitório o será pelo princípio inquisitivo. Note-se que a possibilidade de ‘dispor’, que caracteriza o sistema processual penal acusatório, não pode ser resumida tão-somente à iniciativa de instauração do processo (impulso processual) e a conseqüente limitação da atividade jurisdicional. Se assim o fosse, estar-se-ia confundindo a atuação do órgão que provoca com a do órgão que exerce a jurisdição. Não restam dúvidas de que é imprescindível, no interior de um sistema acusatório, o distanciamento entre quem inicia o processo e quem o julga. Todavia, tais princípios são relativos ao direito de ação, orientados pelos princípios da oficialidade e da obrigatoriedade. Sustenta-se, evocando novamente Jacinto Coutinho, que o princípio que unifica e diferencia os sistemas processuais penais é determinado pelos critérios de gestão probatória, pois, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstrução de um fato pretérito crime, através da instrução probatória, a forma pela qual se realiza a instrução identifica o princípio unificador.51 Dessa forma, caracteriza-se como inquisitorial o sistema cuja gestão da prova é centralizada na figura do magistrado (princípio inquisitivo). Em sentido inverso, é acusatório o sistema orientado pelo princípio dispositivo no qual a iniciativa probatória se encontra exclusivamente nas mãos das partes. Assim, enquanto ao sistema acusatório convém um juiz espectador, dedicado sobretudo à objetiva e imparcial valoração dos fatos, e por isso mais sábio do que expert, o rito inquisitório exige um juiz ator, representante do interesse punitivo, e por isso legalista, versado no procedimento e dotado de capacidade investigativa.52 Trata-se, como frisa Ferrajoli, de uma opção entre juízes-cidadãos e juízes-magistrados, respectivamente.53 51 52 53
Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro, p. 27. Ferrajoli, ob. cit., p. 588. Na mesma linha de argumentação, advoga Paganella Boschi que ainda se encontram inúmeros resquícios da matriz inquisitiva no Código de Processo Penal brasileiro, como, por exemplo, o fato de o juiz, sem provocação (a) discordar do pedido de arquivamento do inquérito, (b) reinterrogar o acusado, (c) ouvir, quando julgar necessário, quaisquer pessoas além daquelas indicadas pelas partes, (d) requisitar, de ofício, documentos sobre cuja notícia tiver conhecimento, (e) ordenar busca pessoal, (f) decretar prisão processual independentemente de provocação e, fundamentalmente, (g) requisitar provas e dirimir dúvidas sobre ponto relevante (Boschi, Ação Penal, p. 24). No que tange à produção de prova, 171
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Da demonstração dos sistemas processuais (acusatório e inquisitório) a partir de sua principiologia caracterizadora (dispositiva e inquisitiva), pode-se descrever os princípios decorrentes da jurisdição e do processo de execução penal. Cabe indagar, no entanto, se a jurisdicionalização formal da execução penal é idônea para instrumentalizar os direitos do apenado contra as violências (comissivas e omissivas) da administração. Igualmente é lícito questionar, como faz Dyrceu Aguiar Cintra Jr.,54 por que a jurisdição, mesmo sendo introduzida episodicamente, na prática não garante os direitos do contraditório e da ampla defesa. Reitera-se que é falso indagar ‘o que são garantias’, pois estas não são entes abstratos que se possam separar dos bens e valores garantidos. As garantias têm sempre conotação gradual, teleológica e instrumental. São sempre representadas pelo processo e pelos procedimentos dispostos no sistema, e utilizadas pelo operador para assegurar a máxima satisfação dos direitos, seja no plano do ser, seja no do dever ser. Nesse sentido, a jurisdicionalização (formal) da execução penal representou avanço em matéria de garantias frente ao modelo pretérito administrativizado. Beneti ensina que o fenômeno da jurisdicionalização aperfeiçoou-se, fixando-se a jurisdicionalização da execução penal como corolário da inafastabilidade da jurisdição penal, um dos fundamentos da garantia do Estado de Direito.55 Não se pode olvidar, porém, que a simples jurisdicionalização não basta se esta não for modelada desde um mecanismo processual acusatório. E aqui parece estar a grande questão a ser levantada em relação à instrumentalidade do processo de execução penal, sobretudo porque invariavelmente o jurista é induzido ao discurso falacioso de que as garantias não são plenas devido à falta de ação do Executivo, e que se a LEP fosse cumprida o modelo penalógico seria ideal. Chama-se novamente atenção para o fato de que essa afirmação é falsa pois, malgrado houvesse atividade comissiva da Administração
Pública em proporcionar o mínimo de dignidade ao apenado no que tange às prestações materiais – estatuto social positivo do preso –, o processo de execução continuaria sendo bárbaro, inviabilizando os direitos dos apenados (estatuto individual negativo56). Mesmo se fossem cumpridas as normas sociais previstas na LEP, os direitos dos presos não seriam assegurados plenamente em decorrência da opção inquisitiva de sua jurisdicionalização. Somente se atingirão determinados graus de garantias se se conceber o processo de execução penal com feição acusatória, pois apenas esta otimiza a ampla defesa e o contraditório. O processo executivo é povoado por regras essencialmente inquisitivas, a começar pelo seu ato de inauguração, ou seja, com a iniciativa da ação. A execução da pena principia com a expedição da carta de guia por iniciativa do juiz, independentemente de qualquer provocação da parte interessada (Ministério Público). Assim, constata Geraldo Prado que no momento inicial da execução penal vislumbra-se claramente a distorção do primeiro eixo deste tipo de processo [acusatório]. Antes de ser um árbitro imparcial de um conflito entre as partes – Ministério Público e condenado – por uma dessas situações peculiares à ideologia com projeção no mundo jurídico, o juiz deve tomar e manter a iniciativa da execução, à semelhança do modelo inquisitório.57 A oficialidade do órgão jurisdicional em iniciar o processo de execução leva, inclusive, inúmeros autores a negar sua autonomia.58 A afirmação é conseqüência da constatação de que se há procedimento ex officio – sem citação, não havendo nova litispendência –, não haveria novo pedido, não haveria nova pretensão, não sendo, portanto, instaurado novo processo. Desta forma, o processo de execução seria a última etapa do processo cognitivo, sua fase derradeira. Outro ponto que o distancia da estrutura acusatória é a mutabilidade das decisões. Nem a sentença penal que fixa a quantidade e qualidade da pena, muito menos as demais decisões tomadas pelo juiz no decorrer do processo de execução, vinculam definitivamente as partes
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lembra o autor que os juízes, invadindo o espaço das partes, continuam fazendo amplo uso da faculdade prevista no artigo 156 do CPP, embora seu indiscutível conteúdo inquisitivo, absolutamente incompatível com o modelo acusatório erigido ao nível constitucional, salvo quando a prova puder ser utilizada em favor do réu (Boschi, ob. cit., p. 66). Lembrese, ainda, outra característica ínsita à estrutura inquisitiva do nosso sistema processual demonstrada pela possibilidade de mudança ou correção do thema decidendum, proporcionada pelos art. 383 e 384 do CPP (Coutinho, ob. cit., p. 38). No mesmo sentido, conferir Brum, Requisitos Retóricos da Sentença Penal, pp. 64-75 e Carvalho, Uma Teoria Garantista da Ação Penal, pp. 165-168. Cintra Jr., ob. cit., p 125. Beneti, Execução Penal, pp. 4-5.
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Anabela Miranda Rodrigues diferencia os direitos dos presos em dois estatutos específicos: negativo e positivo. No primeiro, devem ser evitadas as conseqüências nocivas que advêm da provação de liberdade, o que juridicamente se traduz na proteção dos direitos e na não interferência em sua vida privada. Ao segundo, corresponde o dever do Estado em assegurar as prestações. Assim, do ponto de vista do recluso, a sua posição jurídica é por um lado, meramente ‘negativa’ – analisa-se em direitos de liberdade ou de defesa – sendo, por outro lado, ‘positiva’, integrada por direitos a prestações, válidos enquanto direitos subjetivos concedidos por lei (Rodrigues, ob. cit., p. 61). Prado, A Execução Penal e o Sistema Acusatório, p. 130. Neste sentido, conferir as críticas de Beneti, ob. cit., pp. 45-50. 173
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(ius ungit), podendo ser alteradas, pois altamente maleáveis.59 O título executivo pode ser alterado, até mesmo in peius, em decorrência de condições futuras conforme a gradual ‘ressocialização’ e ‘reinserção’ do condenado na sociedade, ou seja, conforme a eficácia ‘terapêutica’ do ‘tratamento penitenciário’.60 É no procedimento, porém, que ressaltam as feições inquisitoriais da execução penal. O estatuto possui 204 artigos, sendo que apenas 04 (quatro) tratam ‘do processo judicial’ (título VIII). Segundo o art. 195 da LEP, a disponibilidade do ‘procedimento judicial’ é de qualquer um dos sujeitos da execução (Juiz, Condenado, Defensor, Ministério Público, Conselho Penitenciário ou Autoridade Administrativa). A regra, no entanto, é sua forma escrita, quando se sabe fundamental um procedimento oral, no qual, conforme Hassemer, o juiz desça do seu pedestal e encare as partes como pessoas portadoras de direitos e deveres, ônus e faculdades, e que esteja inserido em um contexto de distribuição rigorosa das funções na execução.61 Todavia, somente em casos excepcionais há audiência e oitiva das partes e, quando ocorre, não há obrigatoriedade da presença do defensor do condenado, bastando a presença do apenado. Notese – argumenta Dyrceu Aguiar Cintra Jr. – que a lei não fala em oitiva da defesa ou do defensor – que é também necessária para garantia do princípio da ampla defesa –, mas do condenado, não deixando margem a dúvidas sobre o seu conteúdo.62 Sabe-se que a oralidade do procedimento é uma das principais garantias do contraditório e da publicidade dos atos. Não obstante, a não exigência de presença do defensor, bem como as possibilidades de iniciativa pelo juiz (ação e prova), viciam o direito de defesa e o livre convencimento. No que tange à prova, disciplina o art. 196, §§ 1o e 2o, que, sendo desnecessária sua produção, o juiz decidirá de plano mas, entendendo indispensável a realização da perícia ou a oitiva de pessoas, o juiz as ordenará, decidindo logo após sua produção. Franco Cordero é esclare-
cedor ao lembrar o quanto fica inviabilizado o contraditório nos sistemas em que a gestão probatória está concentrada no magistrado, visto o processo transformar-se em ‘afazer terapêutico’, em ‘psicoscopia’, desenvolvendo, no julgador, ‘quadros mentais paranóicos’.63 A partir desta anamnese, sustenta Schecaira a necessidade de se reconhecer o caráter contraditório do processo de execução penal, admitindo, ao condenado, principal interessado em todas eventuais modificações da forma e quantidade da sanção punitiva, a possibilidade de produção da prova, criticando-a e oferecendo contra-prova, sempre que do procedimento possa resultar alteração do título executório penal, seja para a concessão ou para revogação de qualquer direito.64 Imprescindível, pois, se se quer realmente democracia processual, reavaliar a posição do juiz, tornando-o garante dos direitos individuais em uma forma processual penal acusatória, regida pelos princípios do devido processo penal. Do contrário, em sendo mantida a opção inquisitiva adotada no processo de execução penal, muito embora seu caráter jurisdicional, será extremamente difícil garantir o mínimo dos direitos dos apenados.
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Sobre a mutabilidade da sentença penal condenatória, in melius ou in peius, em decorrência do modelo terapêutico da pena, importante conferir Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal I, pp. 145-172; Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal IV, pp. 251-257; Carnelutti, Derecho Procesal Civil y Penal II, pp. 271-287; e Carnelutti, Contra la Cosa Juzgada Penal, pp. 273-280. Neste sentido, conferir a Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 164. Prado, ob. cit., p. 134. Cintra Jr., ob. cit., p. 128.
5.3. Direitos versus Disciplina(s): o controle do indivíduo e da ‘massa carcerária’ Embora os direitos do preso tenham atingido status constitucional, a estrutura processual (inquisitiva) inviabiliza sua plenitude. A ‘natureza mista’ (híbrida) representada pela tensão entre jurisdição e administração, aliada ao modelo jurisdicionalizado autoritário normatizado na LEP, possibilitou diagnosticar o sistema de execução penal brasileiro como inquisitorial. A inquisitoriedade encontra-se fundamentalmente no processo de submissão do direito processual penal, genealogicamente garantista e acusatório, às regras e aos procedimentos administrativizados, ou seja, na colisão entre os direitos do apenado e os pressupostos de disciplina e segurança que justificam a ação administrativa. Fragoso, ao proclamar que o conteúdo do direito de punir é dado pela faculdade de impor ao réu a perda ou diminuição de bens jurídicos nos limites fixados pela sentença, lembra que esse esquema é puramen63 64
Cordero, Guida alla Procedura Penale, pp. 47-51. Schecaira, Coisa Julgada na Execução Penal, p. 154. 175
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te formal, mas é importante porque fixa para o Estado os limites da punição (a pena não pode ser maior ou diversa da que está prevista na lei) e estabelece para o réu a garantia de não ser atingido senão nos limites dos direitos diminuídos pela sentença. Que direitos são esses? Em princípio, apenas a perda da liberdade e a dos direitos necessariamente afetados por ela.65 Ou seja, fixa a regra de que o condenado conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, como disposto no Código Penal (art. 38, CP). É lógico que da perda do direito de ir e vir decorrem inúmeras limitações, daí o escopo normativo em suprir o encarcerado das necessidades materiais através do estatuto social positivo – normas que regulam alimentação, vestuário e instalações higiênicas (art. 12, LEP); atendimento médico, farmacêutico e odontológico (art. 14, LEP); assistência jurídica (art. 15, LEP); instrução escolar e formação profissional (art. 17, LEP); recreação, orientação, segurança e previdência (art. 23, LEP); assistência religiosa (art. 24, LEP); direitos decorrentes de atividade laboral (arts. 28 e seguintes, LEP) et coetera. Tudo porque reconhece-se que o preso, apesar de ter sua liberdade restringida, não perde todos os direitos adquiridos enquanto cidadão.66 Desde esta perspectiva, como titular de direitos públicos no plano individual (estatuto negativo) e social (estatuto positivo), o apenado apresenta-se como ‘sujeito de direitos’, em uma situação processual com o Estado-punição. A negativa de tal status jurídico, através da lesão sistemática aos direitos fundamentais (individuais e sociais) do apenado, é legitimada pelos pressupostos da disciplina e segurança. Sobrepondo disciplina aos direitos, acaba-se por relegar o condenado à condição de objeto desprovido de direitos (apátrida). Frise-se, no entanto, que tais violações não são apenas perceptíveis na realidade fenomenológica. Igualmente no plano normativo estão presentes regras violadoras da dignidade do condenado.
ram a ressocialização do condenado como principal objetivo da pena. A reforma brasileira de 1984, seguindo os rumos proclamados pelo movimento eurocentrista, encontrou na pedagogia ressocializadora e na concepção meritocrática os signos ideais para edificação legislativa. O movimento da Nova Defesa Social aglutinou pensadores cuja orientação é direcionada à reação aos sistemas penalógicos de retribuição jurídica, característicos das doutrinas penais ‘clássicas’ do final do século XVIII. Representaria, assim, uma ‘nova concepção de luta contra a delinqüência’, a partir da reconstrução entre direito penal, criminologia e política criminal (novo modelo de ciências penais integradas). A política de ressocialização, bandeira do movimento, atuou como norte teleológico na reforma dos estatutos legais (função político-criminal), a partir da inclusão de avaliações sobre a personalidade do delinqüente67 (função dogmática e criminológica) e na organização de um sistema reeducativo68 na execução penal (função penalógica). Nas palavras do idealizador do movimento, uma política criminal de luta contra o crime é antes de tudo, em se tratando de medidas a adotar em relação ao delinqüente, orientada visando à prevenção da reincidência. Sob este ponto de vista, a política criminal pretende inspirar e desenvolver uma ação de luta eficaz contra o crime tanto no plano legislativo, como judiciário e penitenciário. Seria absurdo se sacrificar no plano legislativo por concepções jurídicas que fossem inaplicáveis no plano penitenciário; tal método conduziria além do mais a deformar o papel do organismo judiciário que se encarrega precisamente de aplicar essa lei penal visando possibilitar que em seguida se exerça a ação penitenciária.69 O (novo) modelo penal integrado, fruto de uma política global de ‘prevenção do crime e tratamento do delinqüente’, perfez o universo 67
5.3.1. Fundamentos ideológicos da LEP e suas conseqüências normativas As reformas das codificações penais ocidentais da década de oitenta, orientadas pelo movimento da Nova Defesa Social, consagra65 66 176
Fragoso, Direitos dos Presos, p. 3. Catão & Sussekind, ob. cit., p. 64.
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Segundo Marc Ancel, o delinqüente deve ser integrado no processo penal que até agora era unicamente o julgamento de um ato... essa restituição do ato à pessoa ou, mais precisamente, esse relacionamento existencial entre o fato e o seu autor, que as categorizações jurídicas impediam perceber, surge como um dos elementos fundamentais da ciência criminal moderna... (Ancel, A Nova Defesa Social, pp. 282-283). Prossegue afirmando que essa política criminal exigirá portanto que o juiz conheça o delinqüente: trata-se de sua constituição biológica, de suas reações psicológicas, de sua história pessoal e de sua situação social, e é assim que surge no processo penal moderno a necessidade do exame científico do delinqüente (Ancel, ob. cit., p. 284). Ancel sustenta que essa noção de tratamento do delinqüente não podia deixar de fazer surgir o problema de uma reorganização do sistema atual das sanções penais. A organização de um regime racional e científico de tratamento do delinqüente logicamente conduz a uma integração racional da pena com a medida de segurança num sistema unitário de reação anticriminal (Ancel, ob. cit., p. 295). Ancel, ob. cit., p. 301. 177
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ideológico da reforma de 1984, estando consagrado na parte geral do Código Penal, fundamentalmente no momento da aplicação da pena,70 e nos principais institutos da LEP – determinação do objeto e aplicação da LEP (art. 1o), modelos de classificação e observação dos condenados (arts. 5o a 10 e arts. 96 a 98), sistema de sanções e recompensas disciplinares (arts. 53 a 56), modelo de progressão de regime (art. 112), concessões de saída temporária (arts. 120 a 125), livramento condicional (arts. 131 a 146) e substituição da pena no curso da execução (art. 180), bem como a execução das medidas de segurança (arts. 171 a 174). Da cominação judicial à execução da pena, juízos e prognósticos realizados por juízes e técnicos administrativos versam sobre a interioridade da pessoa presa. Assim, se na aplicação as avaliações do ‘ser’ do autor conformam um second code para graduação da sanção, na execução estes juízos serão o principal código interpretativo. Apesar de afirmações doutrinárias que negam possibilidades de avaliações da ‘alma’ do condenado,71 constata-se que tal premissa fora totalmente desrespeitada pela legislação. A propósito, a adoção explícita dos postulados da Nova Defesa Social não permitiria tal falácia. O movimento expõe claramente a necessidade de valorações pessoais, (re)incorporando noções de periculosistas do modelo etiológico. Nessa perspectiva, introduz formalmente elementos de subjetivação para o julgamento dos ‘benefícios’. O critério decisório é baseado nas convicções e perversidades do apenado, objetivando profilaticamente sua redenção ou ‘cura moral’. Nota-se, assim, que o limite constitucional de respeito à integridade moral assegurado no valor dignidade humana não é observado. Com efeito, a deslegitimação (invalidade) formal e material das normas que pretendem modificar o ‘ser’ do condenado sob a máxima da ressocialização, recuperação ou reintegração, é perfeitamente justificável. O respeito à integridade moral é, sobretudo, a aceitação da condição de diverso da pessoa presa. A pena, retribuição jurídica pelo ato, não pode-
rá adquirir qualquer thelos orientado à transformação da interioridade do sujeito, sob pena de negar os principais postulados da modernidade. Do contrário, a criminologia transformar-se-ia em técnica clínicoadministrativa de controle dos ‘estranhos’, disposta, como percebe Larrauri, a abandonar políticas sociais, privilegiando o controle técnico e eficaz do delito.72 A especialização da criminologia em sede de execução e a competência administrativa estabelecida para controle técnico da personalidade do condenado diminuíram o status da ‘ciência criminológica’. Não obstante, transformou-a em instrumento altamente eficaz de controle. A substancial desjudicialização na seara executiva importou um alargamento das decisões clínico-administrativas. Em virtude da especialização da ‘criminologia clínica’, a decisão final do juiz no provimento dos direitos do apenado não invariavelmente ficará vinculada aos laudos do Centro de Observação Criminológica (COC) e/ou aos pareceres das Comissões Técnicas de Classificação (CTC),73 reeditando um sistema de prova tarifada típica do processo inquisitivo.74 A simbiose entre o sistema processual inquisitivo e a criminologia clínica perfectibilizará um modelo ótimo de violação das garantias fundamentais que será potencializado por outra sintonia não menos doentia: as relações de poder forjadas pelas noções de disciplina e segurança.
5.3.2. A retórica disciplinar Segundo Carnelutti, se entiende por disciplina, en sentido estricto, el conjunto de los poderes atribuidos a los oficiales del proceso ejecutivo 72 73
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Neste sentido, Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 35-69. Nos dias de hoje questiona-se muito a intervenção estatal na esfera da consciência do presidiário. Terá o Estado o direito de oprimir a liberdade interior do condenado, impondo-lhe concepções de vida, estilos de comportamento e vetores ideológicos? Certamente, não. A democratização das instâncias formais de controle do processo de execução se opõe aos métodos e meios ditatoriais que se consubstanciam na ideologia do tratamento segundo as perspectivas político-criminais das concepções positivistas e pretendem provocar uma catarse no delinqüente, negando-lhe o elementar direito de ser diferente (Dotti, A Lei de Execução Penal, p. 208).
Larrauri, La Herencia de la Criminología Crítica, p. 196. Sobre os vínculos das decisões judiciais aos laudos criminológicos do COC e pareceres da CTC, conferir a profunda pesquisa empírica realizada por Larruscahin, Práticas Institucionais Violentas no Processo de Execução Penal: do poder das perícias ao decisionismo judicial. Lembra Nilo Batista que o dever do juiz de examinar a coerência e a logicidade do laudo pericial aumenta quando se trata de um exame psiquiátrico. Assim, o juiz que se subordine acriticamente às conclusões do exame pericial, sem cotejá-lo com os demais elementos, sem inquirir sua coerência lógica interna, não procura sua livre convicção: cria um sistema próprio de prova legal, obedecendo à regra de que a prova técnica é sempre a prova decisiva. Tal juiz derroga o art. 157 do Código de Processo Penal; tal juiz não é senhor, como quer Tornaghi, e sim servo da perícia (Batista, Decisões Criminais Comenta-das, p. 168). Sobre o modelo de prova tarifada como estruturante do sistema inquisitivo, conferir ainda Gomes Filho, Direito à Prova no Processo Penal, pp. 22-25. Sobre a estrutura dos laudos criminológicos e o modelo de prova legal, conferir Foucault, Os Anormais, pp. 0337 e Hoenisch, Divã de Procusto, p. 10. 179
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a fin de obtener la sujeción del recluso a las normas del reglamento y a las órdenes del personal. Se comprende que, siendo el recluso por definición un rebelde a las reglas de la convivencia social y, por otra parte, siendo muy grave en el ambiente de la reclusión el peligro de contagio que todo acto de desorden lleva consigo, la disciplina, en tal sentido, debe ser particularmente severa.75 Sustenta Michel Foucault que as disciplinas foram inventadas durante os séculos XVII e XVIII como fórmulas gerais de dominação no momento em que se percebeu ser mais eficaz e econômico vigiar do que punir. Com intuito de docilizar os corpos e adestrar a alma a partir de um processo contínuo de fabricação de seres submissos, as disciplinas ingressam oficialmente na história da punição como uma forma de ‘humanização da pena’. Punir mais e melhor, técnica legitimada desde um discurso humanitário encobridor do real, possibilitou a difusão desta nova economia política de poder. Partindo das figuras ideais do panóptico benthaniano e do estado de peste, Foucault demonstra ser a disciplina a (micro)arte do detalhe que distribui os indivíduos isoladamente em seu espaço, regularizando seu tempo, compondo e talhando suas forças para o labor (industrial) eficiente: o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida, adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor... ‘Adestra’ as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.76 Vigilância hierárquica (microscópio do comportamento), sanção normalizadora (micropenalidades corretivas e meritórias) e exame técnico (módulos de qualificação e de classificação) corresponderiam aos instrumentos de otimização disciplinar direcionados à transformação das massas e à imposição da nova moral das nascentes sociedades capitalistas industriais. Fundamental, porém, na construção institucional desta tecnologia moderna do poder, é a profissionalização do saber e a proliferação de
estereótipos operados pela psiquiatrização da criminologia e a consolidação das noções periculosistas. Criam-se regras universais da boa condição carcerária, representadas pelos princípios da correção (a recuperação dos condenados é o objetivo da pena); da classificação (os detentos devem ser classificados e isolados conforme a gravidade de seu ato); da modulação das penas (a pena pode ser modificada de acordo com os resultados obtidos); do trabalho como obrigação e direito (a laborterapia é fundamental no processo de transformação e socialização); da educação penitenciária (precaução e atividade conjunta ao trabalho); do controle técnico dos detentos (a instituição deve ser dirigida por pessoal técnico-especializado, que possua condições morais para formar indivíduos); e das instituições anexas (redes de instituições conjuntas, como o manicômio).77 Cada princípio, adequadamente colocado, permite a conformação de tecnologia voltada à modificação dos seres. A prisão esteve, pois, desde sua origem, ligada a um projeto de transformação dos indivíduos.78 Os modelos de ressocialização e readaptação, fundados na ideologia do tratamento, marcam os problemas e os riscos da pedagogia disciplinar e, como sustenta Zaffaroni,79 impõem parâmetros de conduta e pensamento que pertencem a outras classes sociais, com interesses diversos, obtendo como conseqüência a perda de identidade dos apenados (desculturação) e a consolidação de sua posição marginal (reculturação). Importante notar, todavia, que as disciplinas, instrumento moderno do poder, estão diametralmente opostas ao regime de legalidade do Estado de Direito, sendo impossível concebê-las no interior da estrutura jurídica garantista, tanto no plano do ser (eficácia) quanto do deverser (validade formal-material). Os métodos disciplinares são ontologicamente inquisitoriais. As decisões disciplinares no interior das instituições totais são desprovidas de pré-determinações regulamentares e, quando o são, apresentam-se de forma ambígua e lacunar, ampliando o arbítrio do corpo administrativo – como teria de ser, por várias razões, mas, sobretudo, porque se trata de um regime totalitário, as ordens não são justificadas nem explicadas.80 Desta forma, fica claro o porquê da inviabilização de rígido controle da legalidade nos espaços de poder carcerários.
75 76 180
Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal IV, p. 243. Foucault, Vigiar e Punir, p. 153.
77 78 79 80
Foucault, ob. cit., pp. 237-238. Foucault, Sobre a Prisão, p. 131. Zaffaroni, Sistemas Penales e Derechos Humanos en América Latina, p. 215. Thompson, ob. cit., p. 60. 181
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Foucault, avaliando a tensão entre os regimes de legalidade e as disciplinas, nota que é no limite do direito e dos mecanismos de disciplina que se dá o exercício do poder: as disciplinas têm seu discurso. São portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana.81 A adoção normativa, em 1984, do regime disciplinar de controle baseado na despersonalização do preso pela substituição do seu ‘ser’ pelo padrão de moralidade/normalidade imposto, é visualizada, fundamentalmente, nas práticas criminológicas de manufatura de laudos e perícias (controle da identidade do preso) e nos procedimentos de faltas e recompensas disciplinares (controle e docilização da ‘massa carcerária’).
execução, como observatório do cotidiano do apenado, o COC tem por função realizar exames criminológicos mais sofisticados, com intuito de auxiliar os órgãos da execução. Como esclarece Alvino Augusto de Sá, ao discutir a natureza dos exames criminológicos e as formas de prognose, o parecer da CTC deveria voltar-se eminentemente para a execução, para a terapêutica penal e seu aproveitamento por parte do sentenciado. Já o exame criminológico é peça pericial, analisa o binômio delito-delinqüente e o foco central para o qual devem convergir todas as avaliações é a motivação criminal, a dinâmica criminal, isto é, o conjunto dos fatores que nos ajudam a compreender a origem e desenvolvimento da conduta criminal do examinado. Ao se estabelecerem as relações compreensivas entre essa conduta e esses fatores, se estará fazendo um diagnóstico criminológico. Na discussão, devem ser sopesados todos os elementos desse diagnóstico e contrabalanceados como os dados referentes à evolução terapêutico-penal, de forma a se convergir o trabalho para um prognóstico criminológico, do qual resultará a conclusão final.82 Determinação legal aditiva à CTC é a de acompanhar a execução das penas privativas de liberdade (art. 6o, LEP), devendo propor à autoridade competente as progressões (art. 112, LEP) e regressões (art. 118, LEP) dos regimes, bem como as conversões de penas (art. 180, LEP). Tarefa elucidativa no que tange à assunção ideológica do modelo defensivista é a de previsão de o corpo criminológico (COC) realizar prognósticos de não-delinqüência, requisito subjetivo presente no ordenamento penal brasileiro para concessão do livramento condicional – para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir (art. 83, parágrafo único, CP). Assim, o legislador estabeleceu condições especialíssimas para concessão do direito nos casos da denominada ‘criminalidade violenta’: o dispositivo se inspira na reclamada defesa social e tem por objetivo a prevenção geral. Se após o exame criminológico (ou resultar da convicção do juiz) ainda revelar o condenado sinais de desajustamento aos valores jurídico-criminais, deverá continuar a sofrer imposição daquela pena até o seu limite final se a tanto for necessária em nome da prevenção especial.83 O
5.3.3. O controle da identidade do preso: laudos e perícias criminológicas: discurso oficial A primeira disposição da LEP sobre avaliações criminológicas é no momento da individualização administrativa da pena. Segundo a legislação, os condenados ao cumprimento de pena privativa de liberdade serão submetidos a diagnósticos para obtenção de elementos necessários à adequada classificação, objetivando estabelecer parâmetros ao ‘tratamento penal’. Os critérios a serem utilizados são os antecedentes e a personalidade do agente (art. 5o, LEP). A Comissão Técnica de Classificação (CTC), para obtenção destes dados reveladores da personalidade, e tendo sempre presentes peças ou informações do processo, poderá requisitar dados e informações pessoais, entrevistar pessoas e realizar as diligências que considerar necessárias (art. 9o, LEP). O trabalho da CTC é presidido pelo Diretor da instituição carcerária e sua estrutura é composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social. Diferem da CTC, cujo labor tem como escopo avaliar o cotidiano do condenado, os afazeres dos técnicos do Centro de Observação Criminológica (COC). Este local autônomo da instituição carcerária realiza exames periciais e pesquisas criminológicas que retratarão o ‘perfil do preso’, fornecendo instrumentos de auxílio nas decisões judiciais dos incidentes da execução. Assim, enquanto a CTC atua no local da 81 182
Foucault, Soberania e Disciplina, p. 189.
82 83
Sá, Equipe Criminológica: Convergências e Divergências, p. 43. Franco et alii., Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, p. 535. 183
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exame pericial entendido como idôneo para a prognose seria o de cessação de periculosidade,84 isto é, instrumento idêntico àquele aplicado ao inimputável (art. 175, LEP); caso contrário, na ausência do exame, o juízo será hipotético.85
penal, que é o da secularização. Mais: tais decisões impedem qualquer possibilidade de um processo de execução penal acusatório, decorrente da obstrução do contraditório e do princípio da refutabilidade empírica das hipóteses. Lembre-se da clássica definição de Canuto Mendes de Almeida do contraditório como ação bilateral das partes, espaço no qual o essencial ao processo é que as partes sejam postas em condições de se contrariarem. O contraditório é, pois, em resumo, ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los.87 Lembra Vera Malaguti Batista, ao estudar a atuação dos operadores secundários do sistema de atendimento a adolescentes infratores, que estes quadros técnicos, que entraram no sistema para ‘humanizálo’, revelam em seus pareceres (que instruem e tem enorme poder sobre as sentenças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social.88 Já se disse que o mais perverso modelo de controle social é aquele que funde o discurso do direito com o discurso da psiquiatria, ou seja, que regride aos modelos positivistas de coalizão conceitual do jurídico com a criminologia naturalista. Outrossim, o sonho positivista de medição da periculosidade encontra guarida nesse sistema. Retomando conceitos como propensão ao delito, causas da delinqüência e personalidade voltada para o crime, o discurso oficial se reproduz desde o interior do modelo, condicionando a decisão do magistrado ao exame clínico-criminológico – psicólogos, psiquiatras, pedagogos, médicos e assistentes sociais trabalham em seus pareceres, estudos de caso e diagnósticos, da maneira mais acrítica, com as mesmas categorias utilizadas na introdução das idéias de Lombroso no Brasil.89 Eugenio Raúl Zaffaroni sustenta que este ideal de medir a periculosidade é uma das pretensões mais ambiciosas desta criminologia etiológico-individualista equivocada. O ‘periculosômetro’, como ironiza o mestre portenho, cientificamente chamado de prognósticos estatísticos, consiste em estudar uma quantidade mais ou menos numerosa de reincidentes, quantificar suas causas e projetar seu futuro.90
5.3.4. O controle da identidade do preso: laudos e perícias criminológicas: funções reais Se as avaliações sobre a personalidade e conduta social na aplicação da pena podem ser taxadas como inquisitivas, visto estabelecerem juízos sobre a interioridade, os diagnósticos, exames e prognósticos previstos pela LEP não poderão ser conceituados de outra forma. Especificamente quanto ao prognóstico de não-delinqüência, importante ressaltar que a emissão do parecer tem como mérito ‘probabilidades’, juízo que não pode justificar qualquer negação de direitos, visto ser hipótese inverificável empiricamente e, conseqüentemente, irrefutável no plano processual. Diga-se ainda que, fundado na técnica de reconstituição de vida pregressa, que via de regra vem a confirmar o rótulo de criminoso, a elaboração dos exames psiquiátricos obedece a um determinismo causal, onde o ‘nosólogo’ não só descreve a doença/delito do paciente/preso, mas também prescreve a sua conduta futura.86 Em realidade, o sistema penalógico adotado pelo legislador psiquiatriza a decisão do juiz da execução, delegando a motivação do ato decisório ao julgamento das opções e das condições de vida do condenado. Tal fato rompe com a princípio básico da modernidade jurídico84
85
86 184
À guisa de ilustração: embora alcançado o requisito temporal para obtenção de livramento sob condição, sem embargo de manifestação favorável do diretor do presídio é de se confirmar a denegação da mercê quando exames psicológicos e psiquiátricos lastreiam conclusão do Conselho Penitenciário estribado, outrossim, em previsão de possível reincidência (TACRIM-SP, AE, Rel. Gonzaga Franceschini – RJD 2/22, 2o trim/89). Não obstante, a verificação dos requisitos inseridos no art. 83 e seus incisos, impondo-se também a realização da perícia, para verificar a superação das condições e circunstâncias que levaram o condenado a delinqüir, consoante o conteúdo do parágrafo único do mesmo dispositivo, e ressalva, ainda, que a norma, destinada ao sentenciado por crime violento, caracteriza exigência necessária diante da extinção da medida de segurança para os imputáveis (TA/RS, HC 285039624, Rel. Talai Selistre). Costa Jr., Direito Penal, p. 206. Nesse sentido, a verificação das condições pessoais e subjetivas do sentenciado não se faz só e necessariamente por exame similar ao antigo exame de verificação de cessação de periculosidade. Por outros meios, inclusive sem qualquer tipo de verificação pericial, pode concluir-se de tal ausência de perigosidade na devolução do sentenciado à comunidade (TJ-RS, RA, Rel. Gilberto Niederauer Corrêa – RTJE 36/364). Ibrahim, Exame Criminológico, pp. 52-53.
87 88 89 90
Almeida, A contrariedade na Instrução Criminal, p. 110. Batista, O proclamado e o escondido, p. 77. Batista, ob. cit., p. 86. Zaffaroni, Criminología, p. 244. 185
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Se a despatologização do delito ocorreu com a teoria estruturalfuncionalista de Durkheim no início do século, incrementando um giro copernicano na criminologia que culminou com a consolidação acadêmica do paradigma da reação social,91 o reducionismo sociobiológico desse modelo revela-se obsoleto em termos científicos. No entanto, mesmo desqualificado epistemologicamente, acaba por ditar as regras da execução da pena. Assim, apesar de a cognição processual ser sustentada sob premissas acusatórias e de um direito penal do fato, todo processo de execução das penas e os procedimentos que requerem avaliação pericial são balizados por juízos medicalizados sobre a personalidade, conformando um modelo de direito penal do autor e um modelo criminológico etiológico refutado pelo sistema constitucional de garantias estruturado na inviolabilidade da intimidade, no respeito à vida privada e à liberdade de consciência e de opção.92
Vale lembrar, neste momento, a sempre autorizada fala de Roberto Lyra: virão laudos que são piores do que devassas a pretexto de anamneses, com diagnósticos arbitrários e prognósticos fatalistas. A vida do réu e, também a da vítima são vasculhadas. O anátema atinge a família por uma conjectura atávica. O labéu ultrapassa gerações. Remotos e ridículos preconceitos distribuem estigmas. O processo penal, além de todas as ocupações e preocupações, será atado ao torvelinho dos habituais e tendenciosos falsários bem pagos, com humilhações e vexames para o acusado e sua família, para a vítima e sua família, com base em ‘quadrinhos’ e formulários.93 Este papel de legitimação das decisões judiciais assumido pela criminologia oficial foi percebido magistralmente por Michel Foucault. Ao responder indagação sobre o porquê de sua crítica à criminologia ser tão rude, Foucault afirma que os textos criminológicos não têm pé nem cabeça... Tem-se a impressão – prossegue – de que o discurso da criminologia possui uma tal utilidade, de que é tão fortemente exigido e tornado necessário pelo funcionamento do sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente, ou mesmo simplesmente ter uma coerência ou uma estrutura. Ele é inteiramente utilitário.94 A utilidade seria fornecer argumentos ao julgamento, permitindo aos magistrados uma ‘boa-consciência’.95 O juiz da execução penal, desde a reforma operada pela criminologia administrativa, deixou de decidir, passando apenas a homologar laudos técnicos. Seu julgamento passa a ser informado por um conjunto de micro-decisões (micro-poderes) que sustentarão cientificamente o ato. Assim, perdida no emaranhado burocrático, a decisão torna-se impessoal, sendo inominável o sujeito prolator. Lembra Foucault que o juiz de nossos dias – magistrado ou jurado – faz outra coisa, bem diferente de ‘julgar’. Ele não julga mais sozi-
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Lembra Alessandro Baratta que a teoria estrutural-funcionalista da anomia e da criminalidade constitui a primeira alternativa clássica à concepção dos caracteres diferenciais biopsicopatológicos do delinqüente e, por conseqüência, à variante positivista do princípio do bem e do mal. A teoria estrutural-funcionalista da anomia e da criminalidade, segundo a leitura de Baratta, afirmaria que: (1) as causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioantropológicos e naturais (clima, raça), nem em uma situação patológica da estrutura social; (2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social; (3) somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno do desvio é negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social. Segundo Durkheim, o fenômeno criminal é encontrado em todo tipo de sociedade, ou seja, não existiria nenhuma na qual não exista uma criminalidade. O delito faz parte da sociedade como elemento funcional, da fisiologia e não de sua patologia (Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, pp. 59-61). Foucault, n’Os Anormais, lembra que o exame permite passar do ato à conduta, do delito à maneira de ser, e de fazer a maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa que o próprio delito, mas, de certo modo, no estado de generalidade na conduta de um indivíduo. Em segundo lugar, essa série de noções têm por função deslocar o nível de realidade da infração, pois o que essas condutas infringem não é a lei mas, porque nenhuma lei impede ninguém de ser desequilibrado afetivamente, nenhuma lei impede ninguém de ter distúrbios emocionais, nenhuma lei impede ninguém de ter um orgulho pervertido, e não há medidas legais contra o erostratismo. Mas se não é a lei que essas condutas infringem, é o que? Aquilo contra o que elas aparecem, aquilo em relação ao que elas aparecem, é um nível de desenvolvimento ótimo: ‘imaturidade psicológica’, ‘personalidade pouco estruturada’, ‘profundo desequilíbrio’. É igualmente um critério de realidade: ‘má apreciação do real’. São qualificações morais, isto é, a modéstia, a fidelidade. São também regras éticas. Em suma, o exame psiquiátrico permite constituir um duplo psicológico-ético do delito. Isto é, deslegalizar a infração tal como formulada pelo código, para fazer aparecer por trás dela seu duplo, que com ela se parece como um irmão, ou uma irmã, não sei, e que faz dela não mais, justamente, uma infração no sentido legal do termo, mas uma irregularidade em relação a certo número de regras que podem ser fisiológicas, psicológicas, morais, etc (Foucault, Os Anormais, pp. 20-21).
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Lyra, Direito Penal normativo, p. 132. Foucault, Sobre a Prisão, p. 138. Afirma Foucault: a partir do momento em que se suprime a idéia de vingança, que outrora era atributo do soberano, lesado em sua soberania pelo crime, a punição só pode ter significação numa tecnologia de reforma. E os juízes, eles mesmos, sem saber e sem se dar conta, passaram, pouco a pouco, de um veredito que tinha ainda conotações punitivas, a um veredito que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser na condição de que seja transformador do indivíduo. Mas os instrumentos que lhes foram dados, a pena de morte, outrora o campo de trabalhos forçados, atualmente a reclusão ou a detenção, sabe-se muito bem que não transformam. Daí a necessidade de passar a tarefa para pessoas que vão formular, sobre o crime e sobre os criminosos, um discurso que poderá justificar as medidas em questão (Foucault, ob. cit., p. 139). 187
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nho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos se multiplicam em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos e psicólogos, magistrados da aplicação da pena, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar; que uns, depois das sentenças, só têm o direito de fazer executar a pena fixada pelo tribunal, e principalmente que outros – os peritos – não intervêm antes da sentença para fazer um julgamento, mas para esclarecer a decisão dos juízes.96 Ferrajoli afirma que estes modelos correcionalistas de ‘reeducação’ – qualquer coisa que se entenda com esta palavra97 – acabam se tornando uma aflição aditiva à pena privativa de liberdade e, sobretudo, uma prática profundamente autoritária. Esta comporta – prossegue o autor – uma diminuição da liberdade interior do detento, que viola o primeiro princípio do liberalismo: o direito de cada um ser e permanecer ele mesmo, e portanto, a negação ao Estado de indagar sobre a personalidade psíquica do cidadão e de transformá-lo moralmente através de medidas de premiação ou de punição por aquilo que ele é e não por aquilo que ele fez.98 Converge, nesta perspectiva, Fabrizio Ramacci, ao avaliar as teorias da emenda desde a Constituição italiana. Leciona que a exasperação da idéia de correção, ínsita na doutrina de emenda, é bloqueada pela proibição constitucional de tratamento contrário ao senso de humanidade, tanto nas formas de violência à pessoa, quanto nas de violência à personalidade (v.g. lavagem cerebral) porque contrastante com a dignidade humana (art. 3 da Constituição) e com a liberdade de deselvolver e inclusive manter a própria personalidade (art. 2 da Constituição).99 No mesmo sentido Cândido Furtado Maia Neto: nos regimes democráticos não se admite o direito penal do autor – exame de personalidade, classificação et coetera. A prioridade é o direito penal do ato, somente este é legítimo por se coadunar com o regime do Estado de Direito.100 96 97 98 99
Foucault, Vigiar e Punir, p. 24. Ferrajoli, Quattro Proposte di Riforma delle Pene, p. 46. Ferrajoli, ob. cit., p. 46. Ramaci, Corso di diritto penale: principi costituzionali e interpretazione della legge penale, p. 133. 100 Maia Neto, Direitos Humanos do Preso, p. 49.
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5.3.5. O controle da ‘massa carcerária’: regime meritocrático Para além da avaliação individual, a estrutura meritocrática determina critérios de verificação da conduta do preso conforme o maior ou menor grau de adaptação às regras disciplinares que regulam a permanência no estabelecimento penal. Segundo o artigo 44 da LEP, a disciplina consiste na colaboração com a ordem, na obediência às determinações das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho. As faltas disciplinares classificam-se, segundo o artigo 49, em leves, médias e graves. São consideradas faltas graves, segundo os artigos 50 e 52, a incitação ou participação em movimentos para subverter a ordem ou a disciplina; a fuga; a posse indevida de instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; a provocação de acidente de trabalho; o descumprimento, no regime aberto, das condições impostas; a desobediência ao servidor e o desrespeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se; o descumprimento de trabalho, tarefa ou ordens recebidas; e a prática de fato previsto como crime doloso.101 No sistema pátrio, o procedimento de instrução e julgamento das sanções disciplinares é presidido pela administração penitenciária, funcionando como atividade extensiva do juízo de execução (artigo 47). Julgada a falta (grave), a comunicação ao Judiciário ocorre somente para fins de regressão de regime (art. 118, inciso I), revogação de saída temporária (art. 125), perda da remição (art. 127) e conversão da pena restritiva de direito em privativa de liberdade (art. 181, §§ 1o, d, e 2o), ou seja, em casos nos quais a sanção afeta diretamente os incidentes (judiciais) da execução. Sendo atividade de competência exclusiva da direção carcerária, o procedimento é essencialmente administrativo e, enquanto tal, orientado pela inquisitorialidade. Apesar de a LEP assegurar taxativamente algumas garantias no procedimento – devido processo (art. 59, caput), reserva legal (art. 45), direito de defesa (art. 59, in fine), motivação da decisão (art. 59, parágrafo único) –, procurando tutelar os apenados dos desvios e dos excessos minimizando o arbítrio, a lógica do sistema não 101 Conforme determinação da LEP, as faltas médias e leves serão previstas pela legislação estadual (art. 49). 189
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corresponde à estrutura principiológica conformadora de um direito democrático, gerando focos de ilegalidades (toleradas). Após seguir rito inquisitorial, pois a iniciativa no procedimento e a gestão da prova são de responsabilidade do árbitro, cominar-se-á sanção disciplinar (art. 53, LEP) constituída em advertência verbal (falta leve), repreensão (falta média), suspensão/restrição de direitos ou isolamento na própria cela (falta grave). No caso de aplicação do isolamento celular, a decisão da penalidade será tomada pelo Conselho Disciplinar, ao passo que as outras sanções serão impostas exclusivamente pelo Diretor do estabelecimento (art. 54, LEP). O contraponto das faltas é dado pelo regime de recompensas pelo bom comportamento do apenado e sua colaboração com a ordem e a disciplina, bem como sua dedicação ao trabalho atribuído. As recompensas (elogio e regalias) representam pequenas alterações na rotina prisional, correspondendo, invariavelmente, à ampliação de alguns direitos elencados na LEP. O caráter adestrador dos sistemas prisionais disciplinares exerce efeitos degradantes na individualidade dos apenados, sendo totalmente contrários aos postulados pedagógicos da educação. O estímulo ao auto-respeito, à espontaneidade e à individualidade, característicos de uma pedagogia voltada ao crescimento e à autodeterminação, são degradados pelo servilismo de modelo cujo imperativo é a disciplina. O processo de prisionalização desencadeado pela necessidade disciplinar de introjeção dos valores da comunidade carcerária favorece, segundo Baratta,102 a submissão do apenado ao processo de ‘aculturação’ e ‘educação para ser um bom preso’, assumindo os postulados e as normas gerais da vida na prisão. A padronização dos seres, dada a obrigatoriedade de ação conforme determinados valores morais, é característica deste regime totalitário de controle que acaba por destruir, na esfera privada, o direito à diferença. A questão que se coloca, no entanto, é a de que a valoração das condutas ocorre desde um padrão diverso do existente na vida extramuros. Ensina Marcos Rolim que o penitenciário sustenta uma moralidade avessa àquela que, socialmente, é reconhecida pelos cidadãos e tida como desejável para orientar a vida em liberdade. Assim, se os cidadãos imaginam que a disciplina seja um valor formado pelo autocontrole e pela dedicação autônoma, no mundo prisional a disciplina é concebida como a realidade da imposição de regras, por mais humilhantes ou absurdas
que sejam. O preso ‘disciplinado’, então, não é aquele que alcançou o autocontrole, mas aquele que, submetendo-se, revela-se dócil e manipulável. A solidariedade, por certo, é um valor que todos estimam. Nas prisões, entretanto, o preso solidário com seus companheiros deve ser punido. Merecedor da confiança do sistema é o preso que delata. A coragem e a altivez, virtudes respeitadas por todas as civilizações, são sinônimos de mau comportamento nas prisões e assim sucessivamente.103 O processo de inversão na valoração do comportamento prisional, imposto pelo signo da disciplina, potencializa-se ainda mais pelo temor reverencial da quebra da ‘segurança’. A justificativa freqüente para disciplinar o corpo e a alma da comunidade carcerária, minimizando garantias e lesando direitos, é dado pela necessidade de manutenção da ordem. Desta forma, o regime disciplinar, com intuito de manter a normalidade das instituições, revela-se justificador de constantes ilegalidades. Aos apenados, degradados sociais pelo processo de etiquetamento no qual há substituição de seus atributos e características pessoais pelo rótulo da delinqüência, são impostas condições de sobrevivência cuja fonte legitimante é a força. Disciplina e segurança são vitalizadas pela verticalização hierárquica que sobrepõe ‘ordem’ aos direitos. Assim, no cálculo entre custos (garantias dos direitos) e benefícios (segurança e disciplina), estes são privilegiados em detrimento daqueles, pois, num espaço físico regido por ilegalidades, a manutenção de direitos pode corresponder à minimização das disciplinas (desordem). Autoridade inconteste e obediência servil são pressupostos desse modelo pré-disposto a fugas, rebeliões e motins. A resistência às manifestações agressivas da comunidade carcerária, natural nas circunstâncias da perda da liberdade, acaba sendo a principal função da administração. Não se deve olvidar que sob o signo da segurança, adjetivada por expressões abstratas como coletiva, nacional ou pública, ergueram-se os principais regimes autoritários. Em prol da Defesa Social, nota-se a tolerância institucional às ilegalidades contra os direitos do cidadão. A falsa dicotomia entre o social e o individual sustentou Estados de terror e legitimou guetos totalitários de exclusão como as instituições prisionais.
102 Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 184.
103 Rolim, Dos Labirintos, p. 32.
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A otimização dos modelos de tolerância e respeito ao cidadão (seguridade cidadã) é atingida no momento do reconhecimento dos direitos e garantias individuais como bens inalienáveis e indisponíveis, cuja satisfação corresponde a uma norma máxima do Estado de Direito independentemente das restrições temporárias impostas pela prática delitiva. Segurança é, fundamentalmente, a dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam privados, sejam, como no caso descrito, públicos.
convocadas’. Sua função é a de instrumentalizar discursos e práticas, direcionadas à satisfação dos direitos fundamentais, através da tomada de consciência da necessidade do processo de contaminação constitucional da execução penal. A teoria geral do garantismo, moldada desde uma perspectiva ‘realista e marginal’ (latino-americana), é capaz de produzir um discurso harmônico com as novas relações sociais das sociedades pós-industriais, gerando uma série de modificações no sistema penalógico.
5.4. Garantismo e execução penal: proposições
5.4.1. A volatilidade da pena
As incompatibilidades funcionais da execução penal são históricas. Se no modelo administrativo há o predomínio dos interesses do ‘Príncipe’ (sob as justificativas inquisitivas do ‘interesse social’), com a otimização da segurança e disciplina, no modelo jurisdicional, a natureza processual deveria primar pela tutela individual contra a irracionalidade do poder (prevalência dos princípios). Estas racionalidades diametralmente opostas criam no ramo da execução penal práticas visivelmente contraditórias que, sob a constante primazia dos interesses do Estado e da defesa da sociedade, percebem como supérflua e descartável a proteção da ‘massa carcerária’. A constante tensão entre direito penitenciário e direito processual penal revela ainda outra problemática insolúvel: a prevalência das práticas administrativas sobre as jurisdicionais. Concorda-se com Ferrajoli quando afirma que a história das penas tornou-se, indubitavelmente, mais horrenda e infamante para a humanidade que a própria história dos delitos, porque as violências produzidas pelos delitos são menores que as produzidas pelas penas. Enquanto o delito tende a ser uma violência ocasional, impulsiva e, em alguns casos, obrigatória, a violência da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um. Logo, contrariamente à idéia fantasiosa de Defesa Social, não é exagerado afirmar que o conjunto das penas cominadas na história produziu para o gênero humano um custo de sangue, de vidas e de humilhações incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos os delitos.104 Em face da impossibilidade fática da proposta abolicionista, o garantismo nasce como estratégia de redução de dor das ‘classes
A alteração da quantidade (tempo) e da qualidade (forma) da execução da pena foi fruto da solidificação do sistema progressivo. Ferrajoli,105 ao avaliar a porosidade da execução penal, indaga se é legítima sua modificação, ou seja, se é lícito à administração carcerária ou ao juiz de execução reduzir ou aumentar a pena conforme os resultados do ‘tratamento penal’. A instauração do sistema progressivo, reflexo notório da conclamação do fim ressocializador da pena e da crítica aos sistemas celulares pensilvânico e auburniano, trouxe uma questão importante à teoria do processo penal: a rigidez da coisa julgada penal. Francesco Carnelutti, ao comparar as execuções penal e civil, afirma que la ejecución penal es siempre una ejecución por transformación con la diferencia de que mientras en el proceso ejecutivo civil lo que se trata de transformar es una cosa, con el proceso ejecutivo penal la res sujeta a la transformación es una persona.106 Em realidade, Carnelutti transfere ao processo penal, e em especial ao instituto da coisa julgada, sua concepção de pena como ‘restituição espiritual’ cujo escopo seria a salvação moral do indivíduo.107
104 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 382. 192
105 Ferrajoli, ob. cit., pp. 404-409 e Ferrajoli, Quattro Proposte di Riforma delle Pene, p. 44. 106 Carnelutti, Derecho Procesal Civil y Penal II, p. 328. 107 Manifesta Carnelutti: la pena debe ser proporcionada a la prognosis de aquella enfermedad espiritual que se manifiesta en el delito; el juez establece una determinada medida porque prevé que la misma es necesaria y suficiente para la recuperación del culpable. No es necesario mucho para comprender que éste es el terreno sobre el cual la decisión corre el mayor riesgo de ser equivocada, en exceso o en defecto. Afortunadamente, estas son equivocaciones que la experiencia permite corregir: son las más frecuentes y en absoluto inevitables; pero también las que pueden con mayor facilidad ser reparadas. Después que el médico, de acuerdo con la prognosis, que se hace posible por la diagnosis, ha prescrito una determinada curación, él sigue con atención la marcha de la enfermedad, en particular las reacciones que la cura determina sobre ella; y si se da cuenta de haberse equivoca193
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Desta forma, imprescindível, para a correta adaptação do apenado à pena (individualização administrativa), seu constante submetimento às avaliações de ordem psíquica e disciplinar. O norte da execução, portanto, seria delimitado pela adequação às regras meritocráticas e ao programa ressocializador, os quais balizarão a quantidade e a qualidade da pena. Advoga o processualista a necessidade de examen periódico del condenado, comparable a la vigilancia del médico sobre el enfermo durante la enfermedad, en vista de cuyo examen el juez de vigilancia debería poder proponer, precisamente, al juez que ha pronunciado la condena, las oportunas modificaciones, a decirse, naturalmente, con un suplemento del procedimiento definitivo: modificaciones, entiendo, no sólo en el sentido de una abreviación, sino también de una prolongación del castigo, en aquellos casos en que la experiencia demuestre que la medida estatuida con la condena es excesiva o bien que no es suficiente para la restauración de la persona del condenado.108 Sustenta a necessidade de transformação do mito da coisa julgada penal, o qual alcançaria níveis de ‘superstição’109 no atual estado da arte processual, postulando, inclusive, sua total exclusão do processo penal.110 Desta maneira, assumindo o caráter defensivo e redentivo da pena, desestabilizando sua rigidez fornecida pela coisa julgada, Carnelutti propugna a possibilidade de alteração do título executivo, sendo que una modificación de la pena puede ser concebida in melius o in peius, como atenuación o como agravación.111 Todavia, se o processualista não visualizava concretamente esta possibilidade em face do caráter garantista do instituto da coisa julgada,112
com as reformas penais operadas durante a década de 80 sob a égide do movimento da Nova Defesa Social, esta volatilidade tornou-se realidade. Neste sentido, exemplar é a Exposição de Motivos da LEP: a instituição e a prática das conversões demonstram a orientação da reforma como um todo, consistente em dinamizar o quadro da execução de tal maneira que a pena finalmente cumprida não é, necessariamente, a pena da sentença. Esta possibilidade, permanentemente aberta, traduz o inegável empenho em dignificar o procedimento executivo das medidas de reação ao delito, em atenção ao interesse público e na dependência exclusiva da conduta e das condições pessoais do condenado. Todas as hipóteses de conversão, quer para agravar, quer para atenuar, resultam, necessariamente, do comportamento do condenado, embora sejam também considerados os antecedentes e a personalidade, mas de modo a complementar a investigação dos requisitos.113 Franco Cordero, ao avaliar a estrutura executiva italiana, fornece interessante chave de leitura para o problema aqui colocado: Otimismo terapêutico. Levantam esta bandeira os dois órgãos adstritos à ‘vigilância’, magistrado e tribunal: os legisladores crêem ou esperam, ou dão a entender, que os regimes penais reeducam; tudo está em adequálos aos reeducandos (art. 13 do Ordenamento Penitenciário emprega um título cruel, quanto ao cientificismo psico-criminológico, sem maiores preocupações quanto ao decoro lingüístico: ‘individualização do tratamento’). Neste caso, a res iudicatae perde toda a importância: já que contam os indivíduos, como membros do jogo social, mas se aplicam formas e mecanismos jurisdicionais (...). Modelo inquisitório: o órgão que procede usa os materiais recolhidos na denominada ‘observação científica da personalidade’ (art. 13 do Ordenamento Penitenciário); e sempre que lhes sirva, requerem auxílio aos ‘técnicos do tratamento’ (‘profissionais da psicologia, serviço social, pedagogia, psiquiatria e criminologia clínica’ (idem, art. 80).114 Nítido, pois, que a alteração da coisa julgada na esfera executiva é intrínseca ao projeto correcionalista. Quando se legitima a possibilidade de alteração do título executivo em face da existência de ‘fatos novos’ – a sentença só se mantém enquanto as coisas estiverem no mesmo pé (rebus sic stantibus)115 –, em realidade se está condicionando a estabilidade da sanção não apenas a circunstâncias não existen-
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do, modifica la prescripción. No es lícito establecer entre la terapia del cuerpo y la terapia del espíritu otra diferencia que no sea la relativa a la mayor dificultad de la segunda en comparación a la primera. También el juez, lo mismo que el médico, puede seguir la marcha de la enfermedad (Carnelutti, ob. cit., pp. 283-284). Carnelutti, ob. cit., p. 351. No es necesario nada más para constatar el absurdo de la aplicación del concepto de fallo [de la cosa juzgada], entendido como irrevocabilidad o inmodificabilidad de la decisión, sobre el tema de la medida de la pena. La institución excelente del juez, que vigila la expiación, se empobrece y se mortifica en la limitación de los cometidos que la ley le asigna. El mito del fallo penal [de la cosa juzgada penal], bajo este perfil, asume el aspecto deplorable de la superstición (Carnelutti, ob. cit., p. 284). Conferir, neste sentido, Carnelutti, Contra la Cosa Juzgada Penal, pp. 273-280. Carnelutti, Lecciones sobre el Proceso Penal IV, pp. 251-252. En una modificación de la pena en curso de expiación, en el sentido de su agravación, se puede decir que el legislador no ha pensado; sirve de defensa, desgraciadamente, en este tema contra el buen sentido, el fetichismo de la cosa juzgada (Carnelutti, ob. cit., p. 256).
113 Exposição de Motivos à Lei de Execução Penal, § 164. 114 Cordero, Procedura Penale, pp. 1165-1166. 115 Tornaghi, Compêndio de Processo Penal I, p. 112. 195
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tes no momento da condenação (v.g. comportamento carcerário), mas, sobretudo, a fatos futuros imprevisíveis (v.g. prognose de reincidência), justificando um sistema processual penal inquisitivo, de corte antropológico, na melhor tradição etiológica. Neste aspecto, lícita a crítica ao sistema progressivo que, apesar de se apresentar ao público como mecanismo humanitário, legitima um modelo absolutamente antigarantista que torna incertos o tempo e a forma de resposta ao desvio. Assim, se o aumento da pena em sede executiva contraria um modelo de garantias, sua redução, estruturada no princípio do arrependimento, é igualmente ofensiva aos direitos fundamentais. Lembra Ferrajoli que, nos sistemas de pena flexível, os benefícios e a diminuição da pena de acordo com as medidas alternativas resultam condicionadas à boa conduta do réu, ao seu arrependimento ou a outros juízos de valor semelhantes em torno da sua personalidade. Compreende-se o caráter fortemente negocial que assume a vida carcerária: de fato, o detento que pretende obter tais benefícios terá de oferecer diariamente provas de sua sensibilidade e de disponibilidade ao tratamento, até que a sua personalidade seja julgada merecedora.116 Estruturados no defensivismo profilático, os instrumentos de consolidação desta técnica de maleabilidade do julgado são as sanções disciplinares e os laudos e perícias criminológicas, visto que peças decisivas na avaliação judicial do ‘estado perigoso’, do arrependimento, da boa ou má adaptação do sujeito à prisão et coetera.117 É este poder ilimitado que transforma em total e liberticida a instituição carcerária: porque reduz a pessoa a uma coisa, colocando-a inteiramente nas mãos de um outro homem, ofendendo com isso a sua dignidade, seja quem for aquele que deve decidir.118 Importante frisar que a ‘flexibilidade das penas’ significa também flexibilidade dos pressupostos da pena; e esta maleabilidade supõe o esvaziamento da lei e do juízo e, em conseqüência, a dissolução de todas as garantias, tanto penais como processuais.119
Sem embargo da posição defendida por Ferrajoli, e acreditando na coisa julgada como garantia fundamental, sustenta-se um modelo de execução no qual a pena aplicada na ocasião da sentença penal condenatória (individualização judicial) fixe teto quantitativo (tempo) e qualitativo (forma/regime) que balize o cumprimento da reprimenda. Em sendo a pena dosada encarada como limite máximo de tempo e maneira de execução, os incidentes apenas poderiam alterar o título executivo in melius, pois, no interior de um modelo garantista, esta seria a única possibilidade de flexibilização dos direitos fundamentais. Ilegítimo, por exemplo, como disciplinado na LEP, o apenado condenado ao regime semi-aberto ou aberto, em decorrência de falta grave, regredir ao regime fechado (v.g. art. 118, inciso I). A coisa julgada fixaria não apenas o máximo de quantitativo (tempo de pena), mas igualmente sua qualidade (forma de execução). Igualmente ilegítimo, por representar uma subjetivação do juízo, os discursos disciplinar (faltas) e criminológico (laudos e pareceres) serem utilizados como critérios de alteração do título executivo. Se se admite uma volatilidade mitigada (in mellius), os requisitos para alteração do título executivo devem ser absolutamente objetivos, fundamentalmente no que tange, no nosso sistema, ao cumprimento de determinado tempo da pena. Em nenhuma hipótese a falta disciplinar poderia ultrapassar a esfera administrativa para produzir efeitos no campo judicial. As sanções disciplinares, em um procedimento no qual seja garantida a ampla defesa, somente podem limitar direitos ‘domésticos’ do apenado, sob pena de produzir, como ocorre na atualidade, penalizações múltiplas (nas esferas administrativa e judicial), em clara ofensa à máxima ne bis in idem. Não se está, portanto, defendendo o fim do regime progressivo. Propõe-se, em realidade, a abolição do modelo meritocrático que admite uma porosidade antigarantista da coisa julgada penal.
116 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 406. 117 Lembra Hoenisch que as perícias criminais determinam a mobilidade (ou não) da pessoa presa, desde uma lógica (senso comum) de culpa e arrependimento cristão: se o autor ou autora do delito se mostra arrependido, então este é um critério sólido para o recebimento do benefício (Hoenisch, Divã de Procusto, pp. 10/42-43. 118 Ferrajoli, ob. cit, p. 407. 119 Ferrajoli, ob. cit, pp. 408-409. 196
5.4.2. As relações entre os discursos disciplinar e jurídico: processo penal e procedimentos executivos A discricionariedade com o trato das questões disciplinares extrapola os efeitos meramente administrativos. O comportamento carcerário é requisito formal da totalidade dos incidentes de execução penal – não somente os incidentes parciais que alteram relativamente a quan197
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tidade ou qualidade da pena, mas também os incidentes absolutos, isto é, extintivos da punibilidade como indulto, graça e anistia. Em decorrência deste vínculo normativo, necessária avaliação conjunta do processo de execução e do procedimento administrativo de apuração das faltas que adjetivarão a conduta carcerária do apenado. O ‘bom comportamento carcerário’ é indicado, fundamentalmente, pela ausência de registro, no prontuário do preso, de falta grave. Muito embora não haja prazo específico para extinção dos efeitos da sanção administrativa, entende-se que, por analogia aos decretos de indulto, tal avaliação deve estar limitada aos últimos 12 (doze) meses de cumprimento de pena. Assim, se o preso, neste lapso temporal, sofrer condenação administrativa por falta grave, e em sendo esta falta homologada judicialmente, não poderá gozar o direito postulado.120 A transposição da esfera administrativa para a processual penal indica alguns sérios problemas que devem ser enfrentados. O primeiro deles diz respeito às garantias no procedimento. Indubitavelmente, após o advento da Carta Constitucional de 1988, ficaram assegurados a ampla defesa e o contraditório nos processos administrativos (art. 5o, inciso LV). Todavia, na estrutura do direito penitenciário, a tendência é que o procedimento siga um rito inquisitivo, no qual as garantias são mitigadas, problema que não é resolvido, frise-se, pela homologação judicial da falta. Ampla defesa e contraditório pressupõem paridade de armas, em ações realizadas no espaço público (publicidade), garantindo-se os recursos necessários (duplo grau) e, fundamentalmente, imparcialidade do julgador. Os procedimentos administrativos disciplinares (PAD’s) não são harmônicos com a estrutura acusatória do rito garantista, a começar pelo fato de que sequer há regulamentação prévia das ‘regras do jogo’ procedimental, ficando os Estados com a competência de suprir as lacunas normativas da LEP. Desta forma, tem-se como imprescindível a jurisdicionalização dos procedimentos relativos às faltas (no mínimo as graves), pois os efeitos produzidos nesta seara (jurisdicional) acabam por exigir tal atribuição ao magistrado da execução. O controle judicial da legalidade dos atos
administrativos não ocorreria, portanto, de maneira reflexa com a mera homologação da sanção, mas seria constante, visto que o debate sobre a conduta faltosa dar-se-ia no palco processual, em audiência, com necessária presença do Ministério Público e da Defesa técnica. Outrossim, crê-se importante lançar a discussão sobre a necessidade de diferir os efeitos das sanções disciplinares, autonomizando-se as esferas judicial e penitenciária. À guisa de ilustração, veja-se a seguinte hipótese: condenado ao cumprimento de pena de reclusão em regime semiaberto, o apenado, que vinha exercendo atividade laborativa, é condenado disciplinarmente por falta grave. Em razão da homologação do juiz, é sancionado com a perda de alguns direitos domésticos (art. 41), sendo determinado isolamento celular por 30 (trinta) dias (art. 53, inciso IV, c/c art. 58). Não obstante os efeitos ‘domésticos’, a sanção disciplinar irradiase ao plano judicial, podendo (a) determinar regressão a regime mais gravoso (fechado) a que sequer foi condenado, segundo o art. 118, inciso I; (b) revogar saídas temporárias (art. 125); (c) anular o tempo de remição (art. 127); e (d) impedir o gozo de qualquer direito (incidente de execução) nos próximos 12 (doze) meses, visto macular o prontuário do preso. O mesmo fato, em ocorrência prosaica na execução penal, gera efeitos sancionatórios em esferas diversas, induzindo afirmar clara ofensa ao princípio ne bis in idem, por versar sobre o mesmo sujeito e a mesma conduta. Lembra Tellez que el principio non bis in idem consiste en impedir, por una parte que una persona sea sancionada dos veces por el mismo hecho con sanciones de igual o distinto orden (penal y administrativo), cuando entre ambas exista identidad de sujeto, de hecho y de fundamento.121 Tem-se, pois, da imperativa necessidade de autonomizar os efeitos, jurisdicionalizando o procedimento e, ao unificar a avaliação do fato no juízo de execução, impedir duplicidade sancionatória. Outro problema relevante quanto às faltas disciplinares é a constante lesão ao princípio da estrita legalidade, não apenas no que diz respeito à reserva de lei, mas igualmente no que tange à (falta de) taxatividade dos tipos administrativos sancionadores com o abuso de conceitos indeterminados. Maria Palma Wolff verifica que o problema é que nem sempre o sistema sancionatório se restringe às faltas legalmente tipificadas, e, também, as punições extrapolam o espectro legal.122
120 A ausência de previsão de prescrição das faltas, como ocorre em estatutos alienígenas – v.g. artigos 258 a 262 do Regulamento Penitenciário espanhol, que determina prazos prescricionais entre 03 (três) anos e 06 (seis) meses, dependendo da gravidade da falta –, notadamente das faltas graves, gera, em sede executiva, situação anômala. A interpretação analógica aos decretos de indulto, restringindo os efeitos aos últimos 12 (doze) meses, é uma das formas de limitar os abusos cometidos por esta omissão legislativa. 198
121 Apud Fernandez García; Pérez Cepeda; Sanz Mulas & Zuñiga Rodríguez, Manual de Derecho Penitenciário, pp. 290-291. 122 Wolff, ob. cit., p. 169. 199
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A ausência de controle semântico, decorrente da tipicidade aberta do art. 50 da LEP, gera modelo propício ao abuso do poder pelos agentes carcerários. Pense-se nas possibilidades de inclusão de condutas a partir dos deveres de ‘participação de movimento para subverter a ordem ou a disciplina’ (art. 50, inciso I, in fine), ‘obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se’ (art. 39, inciso II) e ‘execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas’ (art. 39, inciso V). Mais, a delegação de competência normativa da LEP aos Estados para disciplinar o procedimento (art. 59), estabelecer a natureza e a forma de concessão de regalias (art. 56, parágrafo único) e especificar as faltas leves ou médias (art. 49) gerou situação de flagrante ofensa à reserva de lei, qual seja, a de as normativas estaduais, ao elaborarem os Regulamentos Penitenciários, incluírem outras faltas (graves) e sanções disciplinares para além daquelas previstas na LEP123 – um grande número de faltas disciplinares [graves] está associada ao uso de álcool ou de alguma repercussão daí advinda, como atraso na apresentação das saídas temporárias ou do serviço externo.124 No que diz respeito ao processo de execução penal, como anunciado anteriormente, reivindica-se sua filtragem constitucional, com a decorrente implementação dos postulados do sistema acusatório. Desta forma, imprescindível a separação dos sujeitos processuais em uma estrutura dialética na qual as atividades de acusação, defesa e decisão ocorram em audiência, garantindo-se o contraditório, a oralidade e a publicidade. Mais, ao magistrado, em sua posição de espectador, não caberia a instauração ex ofício do processo (papel do Ministério Público), devendo, no curso da execução, atuar como garantidor dos direitos do apenado, sem gestão probatória e fundamentando todas as suas decisões.125 123 Neste sentido, vale lembrar a Resolução 26/2001, da Secretaria de Assuntos Penitenciários do Estado de São Paulo, que, ao adotar o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), instituiu sanção disciplinar de 180 (cento e oitenta) e 360 (trezentos e sessenta) dias, aos ‘líderes e integrantes de facções criminosas’ e aos ‘presos cujo comportamento exija tratamento específico’ (art. 1o da Resolução). Nota Alberto Silva Franco que formula, através de mera resolução administrativa, uma categoria diversa de isolamento celular – e, por sinal, bem mais gravosa do que consta no art. 53 da LEP – constitui uma invasão da área de competência do legislador federal e afronta, com clareza solar, a Lei de Execução Penal (Franco, Meia Ilegalidade, p. 02). Na mesma linha, conferir Weis, O RDD e a Lei, pp. 09-10. 124 Wolff, ob. cit., p. 169. 125 Sobre a estrutura acusatória no processo na execução penal, conferir Lopes Jr., A instrumentalidade Garantista do Processo de Execução Penal, pp. 443-476. 200
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5.4.3. A função dos técnicos (criminólogos) Não obstante a legitimação de um modelo moralista fundado na recuperação, o discurso clínico-disciplinar, ao atuar como suporte ao jurídico e, assim sendo, fundir-se a ele nas decisões em sede executiva, cria um terceiro discurso, não-jurídico e não-psiquiátrico, autoproclamado criminológico, que, apesar da absoluta carência epistemológica, é altamente funcional.126 Foucault entende este processo como uma técnica de normalização do poder que não é apenas resultado do encontro entre o saber médico e o poder judiciário, mas da composição de um certo tipo de poder – nem médico, nem judiciário, mas outro –, que colonizou e repeliu tanto o saber médico como o poder judiciário.127 A técnica criminológica, ao se colocar como o discurso da ‘verdade’ no processo de execução, acaba por reeditar um sistema de prova tarifada, típico dos sistemas inquisitivos pré-modernos, que incapacita as normas de garantia, visto obstruir contraprova (irrefutabilidade das hipóteses). Não apenas no plano processual, mas igualmente no plano material, o discurso clínico altera a face do direito penal. Enquanto o objeto de discussão do direito é (deveria ser) o fato concreto, impossibilitando avaliações sobre a história e a vida do sujeito, no discurso criminológico é nítida a valorização da interioridade da pessoa – os diagnósticos são repletos de conteúdo moral e com duvidosas doses de cientificidade.128 Este ‘nó’ teórico acarretado pela sobreposição dos discursos parece ser o principal problema da execução. As garantias do cidadão preso são abandonadas em detrimento dos juízos técnicos que, segundo Vera Malaguti Batista, apesar de aparentemente ‘científicos’, não são nada neutros, pois se destacam no processo pela construção e consolidação de estereótipos.129 Assim, tendo como máxima a inadmissibilidade da negativa de qualquer direito público subjetivo com base em avaliações de persona-
126 Sustenta Cristina Rauter que a ‘colonização’ do judiciário pelas ciências humanas, pela via da Criminologia, corresponde a um processo de implantação de uma tecnologia disciplinar, com efeitos a nível do discurso e também das práticas sociais (Rauter, Criminologia e Poder Político no Brasil, p. 80). 127 Foucault, Os Anormais, pp. 31-32. 128 Batista, O Proclamado e o Escondido, p. 84. 129 Batista, ob. cit., p. 77. 201
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lidade, restaria indagar: qual seria a função dos técnicos (criminólogos) para além da demanda de avaliações/perícias?130 Segundo a LEP, as Comissões e Centros de Observação têm por função realizar anamneses e prognósticos visando a reinserção social do apenado. Parece, pois, que a atividade do técnico não é direcionada à confecção de laudos. O trabalho a ser realizado seria o de propor (não impor) ao condenado um programa de gradual ‘tratamento penal’,131 objetivando a redução dos danos causados pelo cárcere (prisionalização). O labor deveria ser outro que o de ‘tarefeiro’ – fornecedor de dados sobre ‘conduta futura e incerta’, com o escopo de justificar a decisão judicial.132 Uma atividade pautada em programas humanistas de redução de danos possibilitaria construir com o apenado técnicas que possibilitassem a minimização do efeito deletério do cárcere (clínica da vulnerabilidade). Constatados problemas de ordem pessoal (uso de drogas e alcoolismo, por exemplo) ou familiar, deveria o técnico, junto com o apenado, e tendo como imprescindível sua anuência, colocar em prática um processo de resolução do problema, ou seja, fornecer elementos para superação da crise e não estigmatizá-lo, potencializando-a. Nítido, no entanto, que qualquer tipo de ‘tratamento’ pressupõe a voluntariedade do sujeito, sob pena de violação do princípio da dignidade humana.
A imposição de programas de ressocialização, não obstante ferir a mais elementar premissa do tratamento (voluntariedade), somente é admissível em sistemas nos quais o encarcerado é percebido como objeto entregue ao laboratório criminológico do cárcere – objeto de uma tecnologia e de um saber de reparação, de readaptação, de reinserção, de correção.133 Desde a perspectiva garantista, inconcebível obrigar o sujeito a qualquer tipo de medicina, pois este preserva seu direito de ser e continuar sendo quem deseja, tudo em decorrência do princípio constitucional da inviolabilidade da consciência (art. 5o, incisos IV, VI e VIII). Importantes, pois, as recomendações do Documento Final do Programa de Investigação desenvolvido pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH). Diagnostica o relatório que inexiste nos ordenamentos jurídicos latino-americanos qualquer tipo de intervenção participativa do apenado na eleição do programa de reinserção ao qual estará subordinado. Em regra, os informes sobre o condenado tendem a ser estigmatizantes, agregando expedientes com sentido infamante altamente negativo que, al par de resultar una agresión a la personalidad, totalmente contraria a los fines que se propone formalmente el sistema, importa en una seria violación a la esfera íntima de la persona, que no se encuentra afectada por la pena privativa de libertad más que en la estricta medida de lo que, conforme a la naturaleza de las cosas, se desprende del mero hecho de la privación de libertad.134 Conclui Zaffaroni que a pena privativa de liberdade não tem, sob nenhuma justificativa, o efeito de comprometer a personalidade e a intimidade do condenado, de tal sorte que os técnicos que atuam na execução não estão isentos do segredo profissional inerente aos seus cargos, isto é, os funcionários não estão autorizados a divulgar dados relativos à intimidade da pessoa. Assim, propõe o relatório: 1) que la observación y clasificación de los condenados se lleve a cabo en un plazo razonablemente breve, con intervención de una comisión técnica multidisciplinaria, y con control del juez de ejecución penal, posibilitándose – desde esa misma etapa – la intervención del penado en la estructuración del programa a que se lo someta; 2) que los informes de las comisiones de clasificación se abstengan de penetrar en aspectos concernientes a la esfera íntima de la persona y se funden en modelos adecuados a las características culturales de cada comunidad; 3) que los profesionales y
130 Lembra Miriam Guindani, ao avaliar o papel dos técnicos no sistema penitenciário, que os profissionais do Serviço Social [psicologia e psiquiatria, inclui-se] foram relegados à função de tarefeiros para simplesmente atender às demandas de avaliação pericial para fins de individualização, progressão de regime ou livramento condicional. Assim, perdeu sua identidade como categoria, ficando relegado, muitas vezes, a um papel de ‘executor de laudos’. As ações passaram a ocorrer através das equipes de CTC, enquanto o tratamento penal previsto em lei tornou-se, com algumas exceções, secundário (Guindani, Violência e Prisão, p. 35). No mesmo sentido enunciam Hoenisch e Pacheco, ao afirmar que, a despeito das diversas possibilidades de trabalho do psicólogo, observa-se uma restrita atuação à confecção de laudos técnicos (Hoenisch & Pacheco, A psicologia e suas transições, pp. 191-204). 131 Apesar de entender-se a categoria ‘tratamento penal’ absolutamente inadequada, pois uma contradição em termos, utiliza-se entendendo-o não como uma finalidade em si do cumprimento da pena, mas como um conjunto de práticas educativas e terapêuticas que podem ter significados e funções diferenciadas no processo de cumprimento da pena, dependendo dos diferentes fatores teóricos, políticos e institucionais, que o envolvem (Wolff, Antologia de Vidas e Histórias na Prisão, p. 96). 132 Maria Palma Wolff lembra que esta discricionaridade dos profissionais embasada em critérios, que não são tão neutros e científicos como pretendem ser, faz com que, muitas vezes, o parecer técnico afigure-se quase como um exercício de suposições, de futurologia. Isto, a partir de um discurso que já está dado como única verdade, bastando ajustá-lo a cada caso avaliado (Wolff, ob. cit. , p. 93). 202
133 Foucault, ob. cit., pp. 26-27. 134 Zaffaroni, Sistemas penales y derechos humanos en América Latina, p. 209. 203
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funcionarios intervenientes queden sometidos a las reglas del secreto profesional o funcional y que sus informes no sean agregados indiscriminadamente a los expedientes”.135 Para finalizar, urge lembrar Anabela Miranda Rodrigues: o ‘tratamento’, quer seja realizado em liberdade, quer em caso de sua privação, é sempre um direito do indivíduo e não um dever que lhe possa ser imposto coativamente, caso em que sempre se abre a via de uma qualquer manipulação da pessoa humana, redobrada quando esse tratamento afeta a sua consciência ou a sua escala de valores. O ‘direito de não ser tratado’ é parte integrante do ‘direito de ser diferente’ que deve ser assegurado em toda sociedade verdadeiramente pluralista e democrática.136
razoáveis’ das decisões penais. Um exemplo incrível é o dispositivo do art. 141, que trata da demora nas medidas cautelares pessoais. Segundo o Código, cuando se haya planteado la revisión de una medida cautelar privativa de libertad o se haya apelado la resolución que deniega la libertad y el juez o tribunal no resuelva dentro de los plazos establecidos en este código, el imputado podrá urgir pronto despacho y si dentro de las veinticuatro horas no obtiene resolución se entenderá que se há concedido la libertad. Idêntica solução no que tange aos recursos à Corte Suprema de Justiça: cuando la Corte Suprema de Justicia no resuelva un recurso dentro de los plazos establecidos por este código, se entenderá que há admitido la solución propuesta por el recurrente, salvo que sea desfavorable para el imputado, caso en el cual se entenderá que el recurso há sido rechazado. Se existen recursos de varias partes, se admitirá la solución propuesta por el imputado. Parece, pois, salutar, não apenas que a legislação seja aperfeiçoada no sentido do estabelecimento de prazos razoáveis às decisões judiciais em sede executiva, mas, apreendendo os valores ínsitos ao Pacto de São José, sejam criadas técnicas judiciais idôneas a uma célere decisão sobre os incidentes de execução penal. O exemplo da resolução ficta fornecido pela legislação paraguaia pode perfeitamente direcionar projetos de reforma no sentido da concessão automática dos direitos pleiteados em caso de omissão dos poderes jurisdicionais. A propósito, como no modelo normativo em análise, tal mecanismo poderia disciplinar o tempo da decisão em casos de prisão cautelar, verdadeira patologia na estrutura da administração da justiça penal brasileira.
5.4.4. O controle do tempo das decisões judiciais: resolução ficta Um dos fatores de maior inconstância na execução da pena no Brasil é a demora do Poder Judiciário em atender os pedidos dos presos, fundamentalmente àqueles destinados a alterar a qualidade (regime) da pena – v.g., progressão de regime e livramento condicional. A morosidade da magistratura em responder aos incidentes executivos é tamanha que chegou a ser nominada, em diversas ocasiões, como uma das causas de inúmeros motins e rebeliões. Inegável que a falta de estrutura (pessoal e administrativa) colabora com a omissão estatal. No entanto, a incapacidade administrativa do Poder Público em nenhum caso pode justificar lesões aos direitos fundamentais. Se o Pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678/92) garante, em seu art. 8, 2, ‘c’, a concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa, de igual forma prevê que toda pessoa presa ou processada tem o direito de ser julgada dentro de um prazo razoável, ou ser posta em liberdade (art. 7, 5). Interessante, pois, verificar toda extensão possível deste dispositivo como forma de propositura das necessárias alterações na estrutura do processo (de execução) penal brasileiro (Ley 1286/98). O Código de Processo Penal Paraguaio, p. ex., ao incorporar o Pacto de São José, estabeleceu uma série de sanções processuais decorrentes do não cumprimento, pelos agentes públicos, dos ‘prazos 135 Zaffaroni, ob. cit., pp. 209-210. 136 Apud Franco, Temas de Direito Penal, p. 106. 204
5.4.5. Da necessidade de recodificação A ruptura entre as estruturas do processo penal de conhecimento e o de execução gera um déficit na tutela dos direitos fundamentais. Não invariavelmente, a prática forense demonstra que os princípios mais básicos do processo de conhecimento são olvidados na execução da pena. Um dos exemplos mais nítidos é a incompreensão dos técnicos do sistema penitenciário, bem como dos operadores do direito que nele atuam (juízes, promotores de justiça e defensores), em relação à extensão do princípio do nemo tenetur se detegere e da presunção de inocência (em relação a fatos futuros)137 quando do requerimento de prova pericial. 137 Lopes Jr., ob. cit., pp. 458-461. 205
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A descodificação das regras executivas do Código de Processo Penal ocasionou uma sobreposição de textos que ofuscou a harmonia (completude e coerência) entre sistemas co-irmãos, transportando sensação ao senso comum dos juristas que o desrespeito aos rígidos requisitos processuais na execução é uma simples irregularidade. Mantovani, ao discorrer sobre os processos de descodificação, assinala que é necessário concluir resignadamente que o Direito Penal, abandonando o ideal iluminista de leis ‘simples’, ‘claras’ e ‘estáveis’, pela realidade de leis ‘complexas’, ‘confusas’ e ‘instáveis’, ingressou na era irracional da descodificação e das legislações especiais: isto é, a era nebulosa das leis penais usadas como instrumento de governo e não como tutela de bens; das leis de compromisso, de formulação indeterminada e estimativa; das leis que garantem privilégios para potentes grupos sociais; das leis vazias, simbólicas, mágicas, destinadas tão-somente a colocar em cena a diligência na luta contra certas formas de criminalidade; das leis ‘hermafroditas’ com forma de lei mas substância de ato administrativo; das leis cultivadoras do clientelismo, corporativas, para negociações do voto por privilégios particulares; das leis tecnicamente desalinhadas e ilógicas, inspiradas na ‘liberdade de expressão’, de cada vez mais árdua compreensão; das leis-expediente, do casuísmo, para sobreviver diariamente e quase sempre mal; das leis ‘burocráticas’, meramente sancionadoras de genéricos preceitos extrapenais.138 A tendência do sistema executivo de se transformar cada vez mais em sistema de controle administrativizado, e sempre menos processual penal, produziu séria crise no conjunto das normas e dos mecanismos que negam a informalidade de controle social. Ao desregulamentar as normas e desjudicializar o processo, a estrutura do controle social formal retoma um modelo penal irracionalista. A reivindicação da ‘reserva de código’ encontra, portanto, na execução penal, uma temática privilegiada na propugnação de unidade e coerência. O discurso que culminou com a descodificação teve como primado a idéia de que o tema relativo à instituição da lei específica para regular a execução penal vincula-se à autonomia científica da disciplina, que em razão de sua modernidade não possui designação definitiva.139 Desta forma, uma lei específica e abrangente atenderá a todos os problemas relacionados com a execução penal, equacionando matérias
pertinentes aos organismos administrativos, à intervenção jurisdicional e, sobretudo, ao tratamento penal em suas diversas fases e estágios, demarcando, assim, os limites penais de segurança. Retirará, em suma, a execução penal do hiato de legalidade em que se encontra.140 Com efeito, a execução das penas e das medidas de segurança deixa de ser um Livro do Código de Processo para ingressar nos costumes jurídicos do país com a autonomia inerente à dignidade de um novo ramo jurídico: o Direito de Execução Penal.141 Todavia, se a intenção do legislador de 1984 foi harmonizar a matéria, obteve, ao contrário, como efeito perverso, sua total desregulamentação. Pior, ao tentar otimizar a legalidade da execução penal através de um estatuto único perpassado pelo princípio da jurisdicionalização, acabou, ‘acidentalmente’, submetendo os direitos do condenado a uma estrutura administrativa-disciplinar e clínico-criminológica, na qual os direitos ficam invariavelmente subordinados aos laudos técnicos e aos procedimentos disciplinares. Se a característica da descodificação é a criação de uma desordem jurídica em decorrência da sobreposição da estrutura do direito administrativo ao penal, percebe-se, com a autonomização da execução, uma substancial redução dos direitos e garantias penais e processuais penais em prol da estrutura disciplinar e criminológica. Não obstante, diferentemente do que representa um estatuto processual penal de garantias, o estatuto executivo autônomo superdimensiona a noção de segurança que, em choque com os direitos e garantias do preso, acaba preponderando. Neste quadro, uma das formas (normativas) de garantir os direitos dos apenados seria a recapacitação do processo penal e, em conseqüência, de sua estrutura principiológica. Para tanto, advoga-se, como proposta político-criminal, a urgente necessidade de recodificar a execução, restabelecendo a idéia de sistema processual que foi totalmente ofuscada pela reforma de 1984.
Proposta de lege ferenda adesiva a recodificação é no que tange à cominação abstrata das penas.
138 Mantovani, Valori e principi della Codificazione penale, p. 263. 139 Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 08.
140 Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 07. 141 Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, § 12.
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5.4.6. A cominação penal em abstrato
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Ferrajoli percebe a necessidade de alteração do teto cominado à pena privativa de liberdade para, no máximo, dez anos. Segundo o autor, tal redução suporia não somente uma atenuação quantitativa, mas também qualitativa da pena, dado que a idéia de retornar à liberdade depois de período ‘breve’, e não largo ou interminável, tornaria mais tolerável e menos alienante a reclusão para o condenado.142 É fundamental notar, para compreensão da proposta, que as relações espaço-tempo atuais não correspondem àquelas inerentes à formulação dos Códigos (a parte especial que define as penas data da década de 40). A evolução tecnológica, ao mesmo tempo em que rompeu barreiras, dirimindo as noções de espaço, reduziu o tempo, obrigando o indivíduo a processos constantes de reciclagem sob pena de incapacitação compreensiva da realidade. Ou seja, a compreensão do período de 30 (trinta) anos – máximo da pena privativa de liberdade cominada no país – não é identica àquela quando da redação do Código. Mister observar que vinte anos é o limite máximo de pena de reclusão em países como a França, Bélgica, Suíça, Noruega, Luxemburgo e Grécia; a Dinamarca e a Islândia têm como limite dezesseis anos; Alemanha, Hungria e Polônia estabelecem como teto quinze anos; enquanto na Finlândia o máximo é de doze anos e na Suécia é dez anos de reclusão. Sustenta Ferrajoli a perversidade do efeito penalógico que mantém reclusa uma pessoa por muitos anos. Passado longo período, nem a pessoa, muito menos a sociedade que em determinado momento reivindicou a pena, são mais as mesmas. Injusto, pois, que o homem, totalmente modificado pelo enclausuramento, continue sofrendo pena em realidade totalmente diversa daquela que necessitou a manifestação repressiva do Estado. A minimização das penas em sede legislativa representaria redução de danos e custos sociais. Congregada à proposta de diminuição do máximo, está a indeterminação da pena mínima. Nesta perspectiva, ao legislador caberia delimitar apenas o máximo, ficando ao critério do juiz a fixação motivada da sanção. Entende Ferrajoli que, para as penas privativas de liberdade, não se justifica a estipulação de um mínimo legal: seria oportuno, em outras palavras, confiar ao poder eqüitativo do juiz, a escolha da pena abaixo do nível máximo estabelecido pela lei, sem vinculá-lo a um limite mínimo, ou vinculado a um limite mínimo muito baixo.143
O autor percebe que o delito, ao contrário da pena, não é quantificável, sendo que os critérios para medição de gravidade, tanto da perspectiva do dano quanto da culpabilidade, foram, até a atualidade, um grande fracasso. O elemento da medida da pena se encontra na definição da pena máxima e não no mínimo que, em realidade, representa uma taxa. Os critérios mínimos são entendidos freqüentemente como garantia do Estado frente ao infrator. Todavia tal garantia é supérflua, visto ser este o detentor absoluto do poder de castigo. Lembre-se, por oportuno, que a supressão dos limites mínimos nas cominações fora defendida por Luiz Alberto Machado durante o V Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins.144
142 Ferrajoli, ob. cit., p. 413. 143 Ferrajoli, ob. cit., p. 397. 208
5.4.7. A responsabilização dos agentes públicos pela violação dos direitos fundamentais dos apenados Outro ponto importante a ser observado é quanto à possibilidade de responsabilização dos agentes dos Poderes Judiciário e Executivo encarregados da execução penal. O fenômeno das violações dos direitos da pessoa presa, por parte da administração pública, é uma das realidades mais notórias no país. Inúmeros estudos empíricos demonstram o afirmado. Infelizmente, justifica-se por ser ‘variável histórica inevitável’, vista a natureza autoritária das prisões. Entende-se, porém, que o Poder Judiciário também incorre em ilegalidades, pois, ao não observar as regras do art. 5o, inciso XXXV, CF c/c o art. 66, incisos VI, VII e VIII, da LEP, não presta a devida tutela à massa carcerária. Para Ela Castilho, o Judiciário erra ao fazer acomodações para cobrir a desorganização, a omissão e a imprevidência dos departamentos penitenciários.145 A eficácia do modelo garantista somente pode ser alcançada quando o controle das atividades administrativas ocorra comissivamente pelo Poder Judiciário, exigindo do Poder Executivo o respeito à dignidade dos presos, suprindo-os de suas carências materiais e respeitando sua individualidade. Os subterfúgios utilizados pela administração não podem ser empecilho ou barreira à atuação judicial. 144 Machado, Das Penas, p. 66. 145 Castilho, ob. cit., p. 114. 209
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Ferrajoli, ao avaliar o papel da jurisdição na democracia, ensina que, no paradigma do Estado de direito, tanto legislador como administrador estão vinculados à lei constitucional. Essa é a diferença básica entre o velho Estado liberal (onipotência do Legislativo) e o Estado social (onipotência do Executivo) do Estado democrático de direito, no qual política e legislação estão subordinadas ao direito. Assim, podese, de fato, afirmar que a cada expansão do princípio da legalidade, a cada passo no sentido de limitação e sujeição do poder ao direito, inevitavelmente corresponde um aumento dos espaços de jurisdição.146 Percebe Lenio Streck que no Estado democrático de direito o foco de tensões e de decisões se desloca gradualmente do Legislativo e do Executivo para o Judiciário, surgindo este como instrumento para o resgate dos direitos não-realizados. Sustenta o autor que a via judiciária se apresenta como a via possível para a realização dos direitos que estão previstos nas leis e na Constituição. Desta maneira, pode o Judiciário servir como via de resistência às investidas dos Poderes Executivos e Legislativos, que representam retrocesso social ou a ineficácia dos direitos individuais ou sociais.147 Zaffaroni, ao tratar das condições materiais dos apenados, reivindica postura ativa dos magistrados. Constata, porém, sua imensurável omissão quando afirma que las condiciones de alojamiento de las personas privadas de libertad deben ser vigiladas judicialmente. La indiferencia judicial en esta materia es notable en Latinoamérica. Es menester que las acciones o recursos de habeas corpus y similares amparem las condiciones de alojamiento higiénico y digno.148 Para quebrar a ‘indiferença judicial’, sugere a responsabilização funcional e pessoal (inclusive penal), dos juízes por negligência na vigilância dos estabelecimentos. A responsabilização, indubitavelmente, geraria conflictos con los poderes ejecutivos y se alegaría la carencia de infraestructura para cumplir con las ‘Reglas Mínimas’ de las Naciones Unidas. La solución más práctica y adecuada a los Derechos Humanos, ante tal conflicto, es imponer a los jueces el deber de clausurar los establecimientos inadecuados y de disponer la inmediata libertad de cualquier persona privada de libertad en condiciones que no satisfagan los requisitos mínimos de seguridad e higiene.149 É que a interdição das
casas de detenção, com a imediata transferência dos apenados, seria o corolário lógico dos incidentes de excesso ou desvio na execução. O juiz que tolera passivamente a violação dos direitos fundamentais, incorre, segundo Zaffaroni, en un injusto análogo al de quien tolera la prolongación indebida de la privación de libertad, pues en este último caso se trata de un injusto por extensión de la privación de libertad, en tanto que en el primero el injusto es por las condiciones de la misma.150 Os observadores da Human Rigths Watch (HRW/Americas), ao relatarem a situação carcerária no Brasil, partilham do mesmo entendimento. Sustentam que promotores públicos e outras autoridades de Justiça são co-responsáveis pelos altos níveis de violência institucional da qual os presos são vítimas.151 Aliás, a Anistia Internacional, quando da denúncia do ‘Massacre na Casa de Detenção de São Paulo’, em outubro de 1992, alertava que em todo o Brasil tem havido queixas de displicência da parte desses magistrados [das Varas de Execução Penal] quanto à freqüência ou à adequação das inspeções dos estabelecimentos penais.152 Mais, a seção brasileira chegou a constatar conivência das autoridades judiciais no abuso de autoridade.153 Idêntico problema é constatado por Marcos Rolim: no que diz respeito às nossas prisões, sabe-se desde há muito que, em nosso país, experimentamos a realidade de um sistema absolutamente fora da lei... O surpreendente, diante dessa característica, além das responsabilidades evidentes dos executivos, é a inoperância quando não a cumplicidade da esmagadora maioria dos assim chamados ‘operadores do direito’.154 A construção de um modelo jurídico de garantias pressupõe aceitar que o exercício do poder induz abusos, e que o direito processual, apesar de penoso e distribuidor de dor, deve ser entendido como instrumento de tutela do cidadão frente ao(s) poder(es) ilimitado(s) do Estado. Para finalizar, afirma-se, juntamente com Ferrajoli,155 que garantir significa, primordialmente, atuar na defesa intransigente dos direitos como limite ao poder punitivo, construindo técnicas de minimização da arbitrariedade judicial e administrativa.
146 147 148 149 210
Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, p. 424. Streck, Hermenêutica Jurídica (e)m Crise, p. 38. Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos en la América Latina, p. 206. Zaffaroni, ob. cit., p. 206.
150 151 152 153 154 155
Zaffaroni, ob. cit., p. 207. Human Rights Watch, O Brasil Atrás das Grades, p. 04. Anistia Internacional, Chegou a Morte, p. 06. Anistia Internacional, Aqui Ninguém Dorme Sossegado, p. 01. Rolim, ob. cit., p. 129. Ferrajoli, Crisis del Sistema Político y Jurisdicción, p. 126. 211
Capítulo VI Garantismo e Conflitos Carcerários: Fugas, Rebeliões e Motins
6.1. As novas funções da pena 6.1.1. A crise do Estado social e a emergência do Estado penitência: mirada ao centro A perspectiva disciplinar, legitimada pelo discurso ressocializador, ingressa na esfera jurídico-penal com a crise do Estado liberal e sua gradual transmutação em Estado Social. A negação do absenteísmo liberal e o incremento do intervencionismo social invadem, inclusive, as doutrinas do controle social.1 Lembra Zygmunt Bauman que o estado de bem-estar foi, originalmente, concebido como um instrumento manejado pelo estado a fim de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no meio do processo (...). O estado de bem-estar não era concebido como uma caridade, mas como um direito do cidadão, e não como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro coletivo.2 É, portanto, na iminência e consolidação do Estado social que nascem as noções de segurança e prevenção que balizarão as formas jurídicas do século XX. Prevenção será entendida como uma atitude colectiva, racional e voluntarista que se destina a reduzir a probabilidade de ocorrência e a gravidade de um risco.3 1
2 3
François Ost percebe claramente esta transposição das funções estatais que definirá o câmbio da estrutura penal: é pois como Estado protector que o Estado moderno se identifica. No século XIX, esta protecção assumirá a forma minimalista da garantia generalizada da sobrevivência, com o Estado liberal a deixar à esfera privada a gestão das condições materiais de existência. No século XX, em compensação, as missões do Estado alargam-se, na medida em que ele toma a seu cargo, para além da simples sobrevivência, a garantia de certa qualidade de vida: fala-se então de Estado-providência ou de Estado social (Ost, O Tempo do Direito, p. 336). Bauman, O Mal-estar da Pós-modernidade, p. 51. Ost, ob. cit., p. 344. 213
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Notório, neste quadro, que o direito penal não passou imune às novas obrigações demandadas pela sociedade civil e política. Ao ser chamado a operar políticas preventivas – no que tange à prevenção dos riscos inerentes à sociedade industrial e aos instrumentos de garantia de efetivação dos direitos dela decorrentes –, o direito penal, e conseqüentemente o processo penal, foi instigado a ampliar seu espectro de incidência e, através dos modelos ideológicos de Defesa Social (Prins e Marc Ancel), solidificou uma política criminal profilática a partir da identificação e gestão da periculosidade individual sob a perspectiva de medidas sanitárias e educacionais – a linha de um Estado social preventivo, multiplicam-se as políticas sociais susceptíveis de conter o crime antes de acontecer: as questões da habitação, dos bairros difíceis, da droga, do abandono escolar são objeto de uma enorme atenção.4 Todavia, com a crise do Estado providência, desde a gradual predominância da razão mercadológica em detrimento das garantias sociais, o discurso (oficial) sobre a segurança pública, e nele o carcerário, é novamente alterado. Segundo os gestores da crítica ao modelo político-econômico social, sobretudo Hayek e Friedman, as possibilidades de arcar com os compromissos do Estado providência seriam irreais. Como lembra Jacinto Coutinho,5 na visão dos corifeus do discurso neoliberal o Estado de bem-estar tornara-se um mastodonte, incapaz de cumprir suas promessas (segurança-prevenção). A saída para a proclamada crise seria a minimização do Estado, a flexibilização dos direitos (individuais e sociais) e a privatização das empresas públicas prestadoras de serviços, como forma de reduzir o déficit fiscal. O incremento do projeto político de enxugamento do Estado produziu, fundamentalmente a partir da década de 80, nos países centrais de economia avançada, o desmonte do Welfare State. Não obstante, inviabilizou, nos países periféricos, nos quais o Estado social foi um simulacro, a possibilidade de atingirem relativo grau de justiça social com a implementação de políticas públicas imprescindíveis à organização da vida cotidiana (distribuição equânime de riqueza, reforma agrária, erradicação da miséria, otimização e acesso das populações carentes aos serviços de saúde e educação, melhoria nos sistemas de previ-
dência social e, principalmente, ações contra as exorbitantes taxas de desemprego e exclusão social). Assim, pode-se constatar que a conjuntura estruturada sob a égide da liberdade de mercado tem produzido um modelo ‘neoabsolutista’ com ‘tentações autoritárias’.6 O efeito deste processo, situado aparentemente na esfera da economia, é a descartabilidade do valor ‘pessoa humana’ e o retorno a um estado pré-civilizatório no qual impera a lei do mais forte. A análise de Ralf Dahrendorf, no ensaio Economic opportunity, civil society, and political liberty (1995), é precisa. Como contextualiza Jacinto Coutinho, em precioso comentário à obra,7 Dahrendorf conseguiu captar o sentimento central, produzindo um best seller que sintetiza as propostas de ‘enquadramento do círculo’ para a construção de uma sociedade democrática do primeiro mundo: bem-estar econômico, coesão social e liberdade política. O custo do ‘enquadramento do círculo’, porém, seria o fato de que alguns países subdesenvolvidos (como os latinos) não conseguiriam acompanhar o processo. Todavia, independente deste fato, deveriam dividir os ônus e as dificuldades do centro com os países desenvolvidos.8 O primeiro passo para o processo de globalização econômica seria a flexibilização, isto é, a desregulamentação e a limitação das interferências governamentais, principalmente no que diz respeito aos tributos e ao mercado de trabalho. Dahrendorf, ao profetizar como irreversível o processo, alerta que a globalização econômica parece estar associada a novos tipos de exclusão social.9 E a ‘irreversibilidade’ deste processo acaba sendo consumida, como assinala Jacinto Coutinho,10 com a naturalidade de um objeto que se possa degustar satisfatoriamente. As renovadas formas de exclusão seriam caracterizadas pela perda do status de cidadão por algumas pessoas, não somente em
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9 10
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Idem, p. 381. Coutinho, O papel do pensamento economicista no direito criminal de hoje, p. 300.
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Dahrendorf, Quadrare il cerchio, pp. 45-56. Coutinho, Jurisdição, psicanálise e o mundo neoliberal, pp. 40-77. Sobre o texto de Dahrendorf e os efeitos do neoliberalismo, conferir, igualmente, Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, pp. 37-48. Lembra Enrique Dussel que Friedrich von Hayek – inspirador de Milton Friedman y continuador metódico de Popper en la economía – ‘habría expresado la recomendación de que en caso de una aguda crisis de recursos habría que dejar librados a la muerte por hambre a los pueblos del Tercer Mundo que no supieran autoayudarse (Apud Coutinho, Atualizando o discurso sobre Direito e neoliberalismo no Brasil, p. 29). Dahrendorf, ob. cit., p. 33. Coutinho, ob. cit., p. 69. 215
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razão das restrições econômicas, mas por qualquer característica que as possa diferenciar (raça, nacionalidade, religião et coetera). Contudo, o autor é ainda mais drástico em sua anamnese: certas pessoas (por mais terrível que seja colocar no papel) simplesmente não servem: a economia pode crescer sem a sua contribuição; de qualquer modo que se lhes considere, para o resto da sociedade tais pessoas não representam um benefício, mas um custo.11 Ao descartar a pessoa como valor, visto supérflua nesta nova ordem, projeta-se a necessidade de maximização dos aparatos de controle penal/carcerário. A alternativa ao Estado providência, portanto, passa a ser o ‘Estado penitência’, configurando uma máxima que parece ser a palavra de ordem na atualidade: Estado social mínimo, Estado penal máximo. Tudo porque, ‘algum’ lugar deve ser reservado aos ‘inconvenientes’ – nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ‘ao qual se reintegrar’.12 Gesta-se, no interior dessa ideologia, uma saída plausível para aqueles que foram destituídos da cidadania: a marginalização social potencializada pelo incremento da máquina de controle penal, sobretudo carcerária. Como percebe Eduardo Faria, com o processo de globalização e a gradual simbiose entre marginalidade social e marginalidade econômica, as instituições jurídicas dos Estados são obrigadas a concentrar sua atuação na preservação da ordem e da segurança, assumindo papéis eminentemente punitivo-repressivos. Os ‘não-cidadãos’, porém, apesar de destituídos de seus direitos subjetivos públicos, não são dispensados de suas obrigações estabelecidas nas leis penais. Dessa forma, enquanto o Estado no âmbito dos direitos sociais e econômicos vive hoje um período de refluxo, no direito penal a situação é oposta. O que aí se tem é a definição de novos tipos penais, a criminalização de novas atividades em inúmeros setores da vida social, o enfraquecimento dos princípios da legalidade e da tipicidade por meio do recurso a regras sem conceitos precisos, o encurtamento das fases de investigação criminal e instrução processual e a inversão do ônus da prova.13 Idêntica é a conclusão de Bauman, ao diagnosticar que a incriminação parece estar emergindo como o principal substituto da sociedade
de consumo para o rápido desaparecimento dos dispositivos do estado de bem-estar.14 Assim, na atualidade, a resposta estatal ao desvio punível adquire, cada vez mais, uma função de neutralização dos inconvenientes, operando, sob uma perspectiva econômica, na gestão da miséria e da exclusão social. Não obstante, agregando à pena a exigência de autoconservação do sistema político, as doutrinas funcionalistas potencializarão este quadro, fornecendo eficaz discurso de justificação ao ‘eficientismo penal’. Ao optar por esquemas pré-seculares de robustecimento moral, os modelos justificacionistas sistêmicos direcionarão a pena à manutenção da fidelidade dos cidadãos nas instituições.15 Vê Ferrajoli que, ao reduzir o indivíduo a um ‘subsistema físicopsíquico’, funcionalmente subordinado às exigências do sistema social geral, tal doutrina é acompanhada inevitavelmente de modelos de direito penal máximo e ilimitado, programaticamente indiferentes à tutela dos direitos da pessoa.16 No mesmo sentido Baratta: la teoria de la prevención-integración es funcional respecto del actual movimiento de expansión del sistema penal y de incremento, tanto en extensión como en intensidad, de la respuesta penal.17 As ‘novas’ doutrinas penais de viés sistêmico-funcionalista,18 auferindo à sanção funções de integração social pelo fortalecimento da
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Dahrendorf, ob. cit., p. 33. Bauman, Globalização: as conseqüências humanas, pp. 119-120. Faria, Globalização e direitos humanos, p. 12.
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Bauman, O mal-estar da Pós-modernidade, p. 78. Sustenta Jakobs que não se pode considerar como missão da pena evitar lesões de bens jurídicos, pois su misión es más bien reafirmar la vigencia de la norma, debiendo equipararse, a tal efecto, vigencia y reconociminto. El reconocimiento puede tener lugar en la conciencia de que la norma es infringida; la expectativa (también la del autor futuro) se dirige a que resulte confirmado como motivo del conflicto la infracción de la norma por el autor, y no la confianza de la víctima en la norma. En todo caso, la pena da lugar a que la norma siga siendo un modelo de orientación idóneo. Resumiendo: misión de la pena es el mantenimiento de la norma como modelo de orientación para los contactos sociales. Contenido de la pena es una réplica, que tiene lugar a costa del infractor, frente al cuestionamiento de la norma (Jakobs, Derecho Penal, pp. 13-14). Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 264. Baratta, Integración-prevención: una ‘nueva’ fundamentación de la pena dentro de la teoria sistemica, p. 15. Segundo Ferrajoli, no plano sociológico, a teoria sistêmica de Jakobs não acrescenta nada à teoria do desvio de Durkheim, que havia concebido a pena como fator de estabili-zação social, reafirmando os sentimentos coletivos e deixando coeso o corpo social. No entanto, a teoria de Durkheim nunca pretendeu oferecer uma justificação, apenas dar uma explicação à pena. Ao contrário, o modelo sistêmico converte-se, na atualidade, em uma ideologia de legitimação apriorística do direito penal e da pena (Ferrajoli, ob. cit., p. 264). 217
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crença nos aparelhos de controle formal, atuam como sustentáculo deste Estado penal.
chamadas de espaços disciplinares. Façamos uma visita a nossas delegacias, onde muitos detentos cumprem penas irregularmente, e vejamos que eles estão literalmente amontoados – aqueles corpos promiscuamente misturados, sem qualquer atividade, sem classificação, sem número, permanecendo ali por meses ou até anos. Ou mesmo em penitenciárias, onde o diretor freqüentemente não sabe qual é o efetivo carcerário, não sabe quantos presos têm direito a benefícios, o que configura uma realidade bem pouco ‘panóptica’.21 Seguindo a perspectiva da autora, poder-se-ia afirmar que nosso sistema de execução penal encontra-se, ainda, numa fase de ostentação dos suplícios, em momento de ritualidade artística na imposição de dor e sofrimento, num verdadeiro período de selvageria gótica. Se Rossi constatou que o modelo inquisitorial era a poesia de Dante posta em lei,22 entende-se possível a paráfrase de que o sistema penitenciário brasileiro se traveste na poesia de Dante posta em execução. Advogar, porém, que o sistema executivo não constitui empiricamente espaço disciplinar não significa falar em vazios de poder. Tratase de um campo social não homogêneo, organizado em mosaico, onde norma e repressão se agenciam de modo bizarro, produzindo no entanto dispositivos de elevada eficácia no sentido de seus efeitos de controle social.23 O discurso disciplinar incorporado pela LEP perpassa transversalmente as práticas e, legitimado normativamente, impede qualquer possibilidade de resistência dos apenados contra as violências do poder público. A tese ganha concretude na metáfora proposta por Marcos Rolim: se os presídios podem ser equiparados ao labirinto da mitologia grega, onde o Rei Minos recebia, anualmente, seu tributo de sangue, poderíamos afirmar que o Estado cumpre aqui a função da terrível criatura – metade homem, metade touro. Primeiro, assegura que os presos experimentem o cárcere como privação absoluta. Amontoados como restos em corredores úmidos e fedorentos, os presos gaúchos, em regra, experimentam a pena em galerias; onde estão, às vezes, mais de uma centena deles. Entenda-se: o regime prisional efetivo no Brasil – absolutamente ilegal – é o da prisão coletiva onde estão todos os tipos de delinqüentes separados não pela gravidade dos crimes pelos quais foram condenados, mas, normalmente, pelos laços de pertencimento, fidelidade, ou submis-
6.1.2. O carcerário: perspectiva periférica O grau de irracionalidade dos aparelhos repressivos do Estado na América Latina, fruto das novas relações político-econômicas, coloca em dúvida o processo civilizatório da região. Na execução da pena, constantes e insolúveis problemas revelam fatos cuja simples observação faz transparecer os mais fortes traços da barbárie: o irracionalismo, a inexistência de garantias e a tolerância às práticas penais genocidas.19 A tese ultrapassa o âmbito acadêmico e é percebida pelos operadores do direito.20 Desde esta perspectiva, lícito seria afirmar que o discurso disciplinar estaria em baixa sintonia com o cotidiano das instituições carcerárias. Assim, a realidade prisional brasileira revelaria formas de exercício de poder que não poderiam ser catalogadas como ‘disciplinares’. Cristina Rauter, em esclarecedor ensaio, revela: lancemos um olhar sobre nossas prisões e veremos que elas não podem rigorosamente ser 19
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Para Zaffaroni, a atuação de nossos sistemas penais caracteriza um genocídio em andamento dado o fato de que o genocídio colonialista e neocolonialista, em nossa região marginal, não acabou: nossos sistemas penais continuam praticando-o e, se não forem detidos a tempo, serão eles os encarregados de um genocídio tecnocolonialista (Zaffaroni, Em Busca das Penas Perdidas, pp. 123-125). Em carta aberta, publicada pelo periódico espanhol ‘Jueces para la Democracia’, Amilton Bueno de Carvalho alerta Perfecto Ibañez sobre a situação carcerária brasileira: la situación penitenciaria en Rio Grande do Sul (y en el resto del país) es caótica. El presidio Central de Porto Alegre tiene capacidad para alojar a 660 personas, pero está ocupado por 1.800 aproximadamente. Celdas de ocho metros cuadrados albergan a seis personas. En determinadas penitenciarias, los presos duermen por turnos, devido a la falta de camas (unos por la mañana, otros por la noche, otros por la tarde); unos duermen en el suelo, otros de pie, atándose a las rejas; la alimentación es propia de animales (algunos comen con las manos). Las violación de los derechos humanos es algo escandaloso y corriente (un colega encontró en una celda un preso herido de bala treinta días antes, que no había sido socorrido; otro apeleado por agentes penitenciarios, con fracturas, también sin atención). Los familiares de los presos, con ocasión de las visitas, sea cual fuera la edad, sufren examen visual ginecológico y anal, por parte de los encargados de la seguridad, que, según ellos, están preocupados por la entrada de drogas en el presidio (es la revista íntima). Además, está el problema del SIDA, que alcanza a un porcentaje de en torno al 25 por 100 de los presos (aquí el drama es fuerte: condenar alguien a presidio, donde probablemente será victima de violencia sexual, implica la probabilidad de resultar contaminado). Pero hay más, mucho más, que necesitaría un libro para ser descrito. En suma, casi todo recuerda, para peor, a las mazmorras de la Edad Media (Carvalho, Sobre la Jurisdicción Criminal em Brasil, p. 84).
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Rauter, Manicômios, Prisões, Reformas e Neoliberalismo, p. 72. Apud Foucault, Vigiar e Punir, p. 34. Rauter, ob. cit., p. 72. 219
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são a grupos organizados no mundo do crime, na medida da rivalidade entre eles. Depois de trancafiá-los assim, expondo os mais frágeis a todo o tipo de violência física ou sexual, o Estado encarrega-se de submeterlhes a uma noção de disciplina totalmente heterônoma procurando alcançar um controle interno equivalente à conduta de corpos dóceis. Incentiva, então, procedimento como a delação e oferece tratamento privilegiado aos internos que se revelarem ‘úteis’ ao objetivo de alcançar a dominação sobre o conjunto da massa carcerária.24 Na periferia, o discurso das disciplinas está aliado às práticas bárbaras. Coexistem nos mesmos locais de manifestação do poder penitência. Esta realidade carcerária (normativa e fenomênica) acabou unindo duas faces perversas de modelos hipoteticamente incompatíveis, potencializando sua crueldade: o suplício do corpo e a penitência da alma. Assim, poder-se-ia dizer que o sistema de controle penitenciário nacional está empiricamente voltado à penalização corporal; enquanto, normativamente, tem como norte a pedagogia disciplinar. Conforma, pois, um modelo otimizado de violação dos direitos fundamentais.
a normatividade e o cotidiano acaba por gerar situação indescritível: a brutalização genocida da execução da pena. Contra este regime de ilegalidades toleradas pelo poder público restam poucas alternativas aos apenados vítimas da violência oficial. Ademais, as reações às péssimas condições de vida nas prisões são tipificadas penal e administrativamente. Em casos extremos, quando da agudização das relações intramuros, os ‘indisciplinados’ são eliminados em execuções extrajudiciais – no correr da última década as condições vigentes nos presídios brasileiros desencadearam uma onda de protestos, rebeliões e tentativas de fuga. A maioria dos casos de rebelião de presos foi esmagada pela polícia, muitas vezes com o uso de força letal. É comum o espancamento em represália pela revolta de presos e há provas de ter a polícia, no passado, levado a cabo execuções extrajudiciais em conseqüência de rebeliões em presídios.26 Mesmo assim, ciente das conseqüências do ato sedicioso, a massa carcerária acaba por encontrar em condutas ilícitas (fugas, rebeliões e motins)27 a única maneira eficaz de romper com o silêncio totalitário dos muros prisionais. Tais manifestações geram o fenômeno da ‘conflitividade carcerária’.28
6.2. A ilicitude dos conflitos carcerários A realidade carcerária brasileira possibilita perceber o alto nível de ilegalidade das práticas do Poder Público.25 O vácuo existente entre 24 25
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Rolim, O Labirinto, o Minotauro e o Fio de Ariadne, pp. 44-45. Suprimiu-se, nesta edição, o capítulo intitulado ‘O carcerário: a realidade da execução da pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado’. Naquele momento, descreveuse a realidade carcerária brasileira, demonstrando os déficits materiais na vida do preso (saúde, educação, assistência jurídica, trabalho, estudo), bem como os altos índices de superpopulação nas instituições. Embora a experiência concreta demonstre que o sistema penal brasileiro, principalmente o modelo de apartação penitenciário, revela indícios de irracionalidade crônica devido às práticas ilegais (comissivas e/ou omissivas) dos poderes, naquele momento houve a possibilidade de levantar alguns dados. Todavia, sua defasagem e a inexistência de novos documentos nos forçaram a supressão do item. É que apenas no final da década de noventa surgiram alguns dados, obtidos por amostragem, sobre a ‘realidade’ carcerária, advindos, não episodicamente, do notável trabalho das Organizações Não-Governamentais. As fontes oficiais de informação reduziamse às estatísticas quantitativas apresentadas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) que, num lapso temporal de dois anos, apresentava o Censo Penitenciário. O material de pesquisa que possibilitou, naquele momento, razoável segurança, foram as publicações, em 1997, do ILANUD, sobre a mudança no perfil do apenado (Sistema Penitenciário: Mudança de Perfil dos Anos 50 aos 90) e da análise final da Campanha da Fraternidade (A Fraternidade e os Encarcerados: Cristo Liberta de Todas
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as Prisões) da Pastoral Carcerária da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); em 1998, do documento da Human Rights Watch (HRW/Americas – O Brasil Atrás das Grades); e, em 1999, o relatório sobre os presídios brasileiros divulgado pela Anistia Internacional (Aqui Ninguém Dorme Sossegado: Violações dos Direitos Humanos contra Detentos’). No entanto, a falta de periodicidade do Censo Penitenciário e o direcionamento do trabalho das ONG’s de direitos humanos para outros campos mitigou a possibilidade de atualização, o que levou à opção de suprimir os relatórios. Anistia Inernacional, Chegou a Morte, p. 07. Importante, neste momento, algumas distinções de ordem conceitual. Nomina-se três possibilidades de conflitos carcerários: fugas, rebeliões e motins. Fuga é o ato ou efeito de fugir, é a retirada, a saída sem consentimento (Cernicchiaro, Dicionário de Direito Penal, p. 228). É a evasão da pessoa presa ou do inimputável submetido à medida de segurança, de forma pacífica ou mediante uso de violência contra a pessoa ou coisa, ou sob ameaça. Os motins e as rebeliões são atos de resistência no interior da instituição total. Cândido Furtado Maia Neto define motim como sublevação de internos contra a administração prisional, implicando atitudes de desordem e tumulto, sendo que rebelião é ato ou efeito de revolta (Maia Neto, Direitos Humanos dos presos, p. 104). Percebe-se, pois, que o motim se diferencia da rebelião pelo fato de que no primeiro os detentos (amotinados) tomam conta ou inviabilizam a administração da unidade prisional. Em casos de rebelião ocorre apenas ‘desordem’ e incapacitação parcial das atividades normais da instituição; é um estágio anterior e/ou preparatório do motim. Diferenciam-se, pois, pelo estágio de aquisição do controle (parcial ou total) da instituição. Ambos, porém, são movimentos coletivos de rebeldia e levante contra determinada situação de fato. Além das fugas, rebeliões e motins, não se pode desprezar outros atos que servem como instrumento reivindicatório. Entre os atos não violentos, lembre-se a greve de fome. No 221
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Cezar Bitencourt, ao analisar a etiologia dos conflitos nas prisões, chama atenção para o fato de que os motins carcerários são os fatos que mais dramaticamente evidenciam as deficiências da pena privativa de liberdade. É o acontecimento que causa maior impacto e o que permite à sociedade tomar consciência, infelizmente por pouco tempo, das condições desumanas em que a vida carcerária se desenvolve... O motim rompe o muro de silêncio que a sociedade levanta ao redor do cárcere.29 Conclusões idênticas sobre os conflitos intramuros foram expostas pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em seu relatório sobre a situação carcerária: os Meios de Comunicação Social noticiam indistintamente fugas, rebeliões e motins. Fugas, sempre se podem esperar de quem se encontra preso. A rebelião geralmente é protesto contra maus tratos e injustiças, péssimas condições de vida, corrupção, falta de assistência médica ou jurídica. Pode ser também um modo de fazer pressão para obter transferência para outro estabelecimento em casos de violência interna... Normalmente a rebelião é o último recurso dos presos para defender seus direitos, pois correm o risco de perder tudo: a vida, a possibilidade de progressão de regime, benefícios judiciais... Mas há situações em que não agüentam mais, e tentam dizer à sociedade: ‘somos gente e queremos viver!’30 Como percebe Rolim, os motins acontecem no lugar da fala; ou, dito de outro modo, são eles mesmos a linguagem possível daqueles a quem nunca se concedeu a palavra.31 Em realidade, percebe-se que os atos de transgressão às regras impostas no ambiente carcerário indicam, na grande maioria dos casos, a única possibilidade de manifestação da massa carcerária contra a constante lesão dos seus direitos. Para Bitencourt, a imensa maioria dos protestos reivindicatórios massivos produzidos na prisão tem sua origem nas deficiências efetivas do regime penitenciário. As deficiências são tão graves, que qualquer pessoa que conheça certos detalhes da vida carcerária fica profundamente comovida.32 Nota James Cavallaro que as rebeliões mais recentes no Brasil têm relação direta com as péssimas condições carcerárias e os maus tratos sofridos nos estabelecimentos prisionais. Os detentos de celas em delegacias superlotadas, nas quais rebeliões são freqüentes, muitas vezes só
requerem sua transferência para penitenciárias, onde a maior parte deles deveria estar conforme a lei brasileira.33 A tese é comprovada no documento final da HRW/Americas sobre as condições das prisões brasileiras. O documento demonstra que em 1997, pior ano em registro de incidentes, ocorreram 195 rebeliões em estabelecimentos sob o controle da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. A causa dos conflitos, em sua imensa maioria, foi a superlotação – várias vezes, durante todo o ano, presos nos distritos policiais em São Paulo amotinaram-se pelo direito à transferência para presídios menos lotados.34 Durante o mesmo período, o Rio Grande do Sul registrou um total de 64 rebeliões, sendo 31 com captura de reféns. Estudo realizado pelo ILANUD constata que as principais causas de rebeliões são a demora do Judiciário na apreciação dos direitos dos presos; a deficiência da assistência judiciária; a violência e injustiças praticadas nos estabelecimentos; problemas ligados aos entorpecentes; superlotação carcerária; má-qualidade da alimentação, assistência médica e odontológica; problemas ligados à corrupção; e falta de capacitação dos funcionários das penitenciárias, principalmente os diretores. Assim, sequer a figura dos crimes contra a pessoa, em si mesmo, no que ela oferece de negação estúpida do outro, equipara-se à lógica perversa que emerge naturalmente do cárcere.35 Pertinente, pois, a colocação de Cezar Bitencourt: os motins penitenciários são a prova mais evidente da crise que a pena privativa de liberdade enfrenta.36 Pode-se concluir, portanto, que o fenômeno da conflitividade carcerária (fugas, rebeliões e motins) tem como principal fato gerador a violação, por parte das agências formais de controle, da legalidade estatal. Entretanto, a manifestação da massa carcerária gera novas incriminações, com a incidência de regime de sanções que inviabilizam a resistência contra as ilegalidades. A ilicitude dos atos de rebeldia encontra eco nos ordenamentos jurídicos, sujeitando os apenados a conseqüências de ordem criminal e/ou administrativa. Importante frisar que a conflitividade deve ser entendida desde um ponto de vista de normalidade institucional, ou seja, são situações não-episódicas e indissociáveis dos locais de apartação – as rebeliões são fato comum nas prisões... se devem ao ambiente anormal, autoritá-
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entanto, atos de extrema violência, como a execução de companheiros de cela, são igualmente utilizados como mecanismo reivindicatório. Bitencourt, Falência da Pena de Prisão, p. 205. CNBB, A Fraternidade e os Encarcerados, § 114-115. Rolim, O que dizem os Motins, p. 01. Bitencourt, ob. cit., p. 209.
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Cavallaro, Observações da HRW sobre o Sistema Prisional Gaúcho, p. 384. HRW/Americas, O Brasil atrás das Grades, p. 48. Rolim, O Labirinto, o Minotauro e o fio de Ariadne, p. 38. Bitencourt, ob. cit., p. 210. 223
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rio e opressivo, e ocorrem por toda a parte, periodicamente.37 Isto posto, ao invés de tratarmos os motins, simplesmente, como graves atentados à ordem disciplinar, seria mais correto concebê-los como sintomas, mais ou menos violentos, dessa mesma ‘ordem’ fundada no seqüestro institucional da cidadania dos encarcerados.38
como qualquer hipótese de resistência coletiva, positiva ou negativa, contra ordens ou regulamentos. Desnecessário, portanto, que se pratique violência ou ameaças, não exigidos no dispositivo em estudo, configurando-se a falta também nos movimentos pacíficos de recusa ao trabalho, de volta às celas, de ‘greve de fome’, de algazarra etc. Não importa, também, o fim visado pelo movimento, que pode até ser considerado ‘justo’, como é o de pretender melhores condições de trabalho, oportunidades de recreação etc.; tais reivindicações devem ser efetuadas na forma dos regulamentos.40 A configuração da evasão prescinde igualmente a violência, bastando sua simples tentativa para ser definida como falta discplinar.
6.2.1. A admistrativização dos conflitos carcerários 6.2.1.1. Falta grave: previsão legal O estatuto que regula a execução da pena privativa de liberdade estabelece padrões de ‘boa conduta carcerária’. Considerada como dever do preso, a boa conduta é prevista no art. 39 da LEP, concretizando os pressupostos de disciplina e segurança. São obrigações dos presos, entre outras, (a) comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença (art. 39, I); (b) obediência ao servidor e o respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se (art. 39, II); (c) conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou subversão à ordem ou à disciplina (art. 39, IV); e (d) submissão à sanção disciplinar imposta (art. 39, VI). Não obstante a LEP elencar a obrigatoriedade do apenado reagir à evasão, o que em realidade é absolutamente questionável dada a impossibilidade fática da conduta, no que diz respeito aos problemas de conflitividade prisional definiu como falta grave a incitação ou participação em movimento capaz de subverter a ordem e a disciplina (art. 50, I) e a fuga (art. 50, II). Para a restrita dogmática que se debruçou sobre o tema, o inciso I do art. 50 da LEP trata de colaboração (participação) ou estímulo (incitação) dos companheiros à prática de atos de subversão ou indisciplina de caráter coletivo, incidindo nas mesmas sanções aquele que, convencendo ou estimulando outros presos por meio de discursos, conversas ou qualquer outro meio a organizarem, deflagrarem ou continuarem com o movimento de rebeldia.39 O movimento idôneo para subversão da ordem e da disciplina poderia ser tanto aquele previsto no art. 354 do CP (motim de presos) 37 38 39 224
Fragoso, Direitos dos Presos, p. 22. Rolim, O que dizem os Motins, p. 01. Mirabete, Execução Penal, p. 153.
6.2.1.2. Falta grave: sanção O cometimento de faltas graves, rompendo com os deveres de ‘boa conduta’ impostos pela lei, implica, necessariamente, sanções. As sanções administrativas cabíveis são o isolamento, a suspensão ou restrição de direitos (art. 53, III e IV, c/c art. 57, parágrafo único, da LEP) e a regressão de regime (art. 118, LEP). Um dos indícios mais notórios do rompimento com o regime de legalidade (taxatividade) é a carência de distinção entre faltas tentadas e consumadas (art. 49, parágrafo único, LEP). Muito embora sejam distintas as esferas de ilicitude, não esporadicamente as conseqüências da sanção administrativa são capacitadoras da sanção penal. A imposição de sanção disciplinar freqüentemente é um aditivo à irrogação de pena privativa de liberdade, daí a imprescindível judicialização com a transferência dos critérios estabelecidos em matéria penal e processual penal ao campo do direito penitenciário. Os efeitos da sanção disciplinar extrapolam a órbita administrativa e invadem o processo de execução penal, pois a ‘boa conduta’ é requisito objetivo para o gozo dos direitos subjetivos. Assim, não obstante ser de natureza administrativa, a decisão sobre as faltas condiciona a avaliação judicial dos incidentes da execução. O regime progressivo (art. 33, § 2o, do CP e art. 112, da LEP), lapidar de todo o processo executivo, é regido pela concepção meritocrática na qual o comportamento ‘adequado’ fundamenta a (in)flexibilização do cumprimento da pena. 40
Idem. 225
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Se a progressão de regime consiste alteração na qualidade da sanção, com a transferência para regime menos rigoroso, seus requisitos são (a) o cumprimento de, ao menos, um sexto da pena, (b) o mérito do requerente (art. 112 da LEP), e (c) a avaliação criminológica favorável. De igual modo, o critério meritocrático molda o instituto da ‘regressão de regime’ (art. 118 da LEP). Segundo o dispositivo, a execução da pena privativa de liberdade fica sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado praticar fato definido como crime doloso ou falta grave (art. 118, incisos I e II, da LEP). Logo, em caso de falta grave (fuga, rebelião ou motim), a jurisprudência tem sido unânime não apenas em impedir a progressão, como impor a regressão do regime. Os efeitos da sanção disciplinar decorrente da fuga, rebelião e/ou motim não são restritos aos casos de negação de progressão, livramento condicional (art. 83, inciso III, 1a parte, CP) e regressão de regime, porém. Segundo a LEP, o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena (art. 126, LEP). Apesar de a LEP dispor que o tempo remido será computado apenas para a concessão de livramento condicional e indulto (art. 128, LEP), o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) decidiu pela extensão do critério à progressão do regime.41 A remição pelo trabalho transforma-se, assim, em importante mecanismo de redução do tempo da pessoa no cárcere. Entretanto, se o condenado for punido por falta grave, perderá o tempo remido, iniciando novo período a partir da data da homologação da infração disciplinar (art. 127, LEP). A perda da remição pela falta administrativa rompe o entendimento de constituir o instituto direito adquirido, reiterando a idéia de os incidentes serem benefícios sujeitos à condição resolutiva (comportamento carcerário). Efeitos outros, em sede de execução da pena não privativa de liberdade, são atribuídos à falta disciplinar, como a revogação da saída temporária (art. 125, LEP) e a conversão da pena restritiva de direito em privativa de liberdade (art. 181, §§ 1o, d, e 2o, LEP). A quantidade de óbices aos direitos dos presos em decorrência das sanções administrativas leva a afirmar que o sistema de penalidades disciplinares, regulados inquisitorialmente pela LEP, constitui sistema sancionatório autônomo e adicional à pena imposta na sentença condenatória. Mais que um estatuto regulador do cotidiano do cárcere,
o regime meritocrático cria regime de (i)legalidades que se impõe e sobrepõe à sanção, transformando o apenado em objeto passível de ‘benefícios’ segundo sua (in)adaptabilidade à instituição total. Desde essa percepção realista das relações que se formam no interior dos muros das prisões é que se sustenta a necessidade de judicialização dos procedimentos. Realiza-se, em realidade, verdadeiro elogio ao direito e ao processo penal em decorrência da anomia e falta de critérios que vigoram nas entranhas do direito penitenciário.
41 226
Processo MJ no 8.926/94, Diário Oficial da União (DOU) 02/12/1994, p. 18.352.
6.2.2. A criminalização dos conflitos carcerários 6.2.2.1. Evasão violenta Reza o dispositivo do art. 352 do CP: evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa: pena – detenção, de 03 (três) meses a 01 (um) ano, além da pena correspondente à violência. Segundo a dogmática penal, o ordenamento jurídico não pune a evasão propriamente dita, porque não se poderia reprimir o anseio natural de reconquistar a liberdade perdida.42 Jurisprudência e doutrina acordam sobre a atipicidade da ação em si, pois o ordenamento reprime apenas a ‘evasão mediante violência’, diverso, por exemplo, da tradição penal italiana que pune a ‘evasão pacífica’ (art. 385, CPI). Conforme Hungria, o legislador brasileiro, embora enamorado do Código de Rocco, não se deixou convencer de tal argumentação, mantendo critério tradicional do nosso direito penal: somente incriminou a promoção ou facilitação da fuga por obra de terceiro e a evasão acompanhada de violência contra a pessoa.43 Tal posicionamento, todavia, parece um tanto redutor, pois transfere ao senso comum teórico dos juristas conseqüências discursivas alheias à realidade penitenciária, mascarando efeitos perversos como a aplicação cumulativa de penas e a imposição de sanção administrativa. O preceito do art. 352 do CP define um crime próprio, pois os sujeitos ativos são apenas os presos, independentemente da natureza jurídica da prisão (civil, administrativa ou penal), ou pessoas sujeitas à medida de segurança (art. 96, inciso I, CP). O sujeito passivo primário 42 43
Costa Jr., Direito Penal, p. 757. Hungria, Comentário ao Código Penal IX, p. 517. 227
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é o Estado, e secundário a pessoa contra a qual é praticada a violência. Trata-se, no rol de classificação dos tipos, de tipo misto alternativo, decorrente da previsão de duas formas de realização da conduta: a evasão e a sua tentativa. Para caracterização da figura típica, a conduta deve ser direcionada contra prisão legal – sua ilegalidade constitui circunstância descriminante do fato –, não podendo ser confundida com o tipo penal ‘resistência’ regulado no art. 329 do CP (opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-la ou a quem lhe esteja prestando auxílio). A tipicidade do ato, contrariamente das lições de Hungria,44 ocorrerá em situação tanto intra como extramuros (fuga durante transferência, por exemplo). Importante rememorar ainda que a prisão inicialmente legítima pode tornar-se ilegal com o transcurso do prazo de sua duração,45 caracterizando, assim, a atipia da evasão. O elemento subjetivo do tipo, segundo Fragoso,46 é específico (dolo específico), consistindo na vontade livre e consciente dirigida ao emprego de violência contra a pessoa para o fim de evadir-se. Magalhães Noronha, de maneira diversa, entende ser o dolo genérico, constituindo na vontade livre e consciente de praticar o fato, com ciência de sua antijuridicidade.47 O delito é consumado no momento do emprego da violência contra a pessoa, sendo inadmissível, no caso, a tentativa, pois o legislador elencou como segunda possibilidade típica a forma tentada. Mister ressaltar que a mera violência, que se constitui como meio idôneo para a fuga, preenche todos os requisitos do tipo, sendo a fuga em si, mais propriamente, um exaurimento de crime já consumado com o início da execução.48 Como a tentativa é equiparada ao crime consumado, não há possibilidade de redução na pena pela incidência do art. 14, inciso II, do CP. Importante frisar, ainda, que o eventual dano ao patrimônio público não configura delito, impossibilitando o concurso formal sem a constatação do animus nocendi. 44 45 46 47 48 228
Segundo Nélson Hungria, se a fuga ocorrer extramuros, eximindo-se violentamente o agente ao poder de quem o conduz ou transporta, o crime será o de resistência (art. 329), sem prejuízo, igualmente, das penas correspondentes à violência (Hungria, ob. cit., p. 520). Fragoso, Lições de Direito Penal, p. 546 Idem, p. 547. Noronha, Direito Penal, p. 407. Fragoso, ob. cit., p. 547.
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6.2.2.2. Motim A regra jurídica que versa sobre o ‘motim de presos’ é encontrada no art. 354 do Código Penal: amotinarem-se presos, perturbando a ordem ou disciplina da prisão. O bem jurídico tutelado é idêntico ao do tipo ‘evasão violenta’, ou seja, a administração da justiça. É – conforme Magalhães Noronha – a defesa do prestígio e do valor que devem ter as decisões judiciárias que impõem pena como meio de reeducação ou readaptação do delinqüente ou lhe determinam, por outra forma, a restrição da liberdade.49 Os sujeitos ativos do delito são os apenados, por isso o dispositivo legal, qualitativamente, define crime próprio. O sujeito passivo imediato é o Estado, e as pessoas vítimas da violência os sujeitos passivos mediatos. Quantitativamente, porém, é tipo penal plurissubjetivo, sendo o crime coletivo ou multitudinário, pois exige a presença de mais de um agente para que possa ser auferida a tipicidade do fato.50 Logo, o concurso de pessoas é necessário. Como o número de encarcerados não foi estabelecido pela norma, entende-se que o número mínimo de agentes para a configuração do tipo é de três pessoas. A conduta (amotinar) significa promover movimento rebelde e desordenado da massa carcerária, desestabilizando a ‘ordem e a disciplina’ prisional. Por se tratar de crime material, isto é, conduta que oferece iter que pode ser fracionado,51 admite, apesar da difícil verificabilidade, a forma tentada.52 Há consumação quando do comprometimento da regularidade da instituição prisional. Outrossim, cumpre não confundir atitudes coletivas de irreverência ou desobediência ghândica com o motim propriamente dito, que não se configura se não assume o caráter militante da violência contra os funcionários internos ou de depredações contra o respectivo edifício ou instalações, com grave perturbação da ordem ou da disciplina da prisão.53 Percebe-se, pois, que a ação violenta integra a ação de amotinarse, sendo a atitude pacífica mera manifestação reivindicatória ou simples ato indisciplinado, sujeito a sanção administrativa. Nélson Hungria define motim como movimento coletivo de rebeldia dos presos, seja para o fim de justas ou injustas reivindicações, seja para 49 50 51 52 53
Noronha, ob. cit., p. 410. Costa Jr., ob. cit., p. 762. Noronha, ob. cit., p. 411. Miotto, Motim de Presos, p. 298. Hungria, ob. cit., p. 522. 229
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coagir os funcionários a tal ou qual medida, ou para tentativa de evasão, ou para objetivos de pura vingança.54 Indica o autor que o tipo subjetivo da conduta é o dolo genérico, ou seja, a vontade livre e consciente dirigida ao motim. Segundo doutrina e jurisprudência,55 sua finalidade é irrelevante, sendo inexpressiva a legitimidade das reivindicações. A teleologia da conduta seria importante apenas para efeitos de dosimetria da pena. Fragoso ensina que o tipo subjetivo é o dolo genérico: vontade livre e consciente dirigida ao motim, tendo o agente consciência de perturbar a ordem ou a disciplina da prisão e de que se trate de movimento coletivo. O fim de agir é indiferente. Tanto faz que o motim tenha por fundamento reivindicação justa ou injusta e que com ele procurem os presos a evasão ou, ainda, vingar-se de guardas ou constrangê-los. A natureza de tais motivos, porém, deverá ser levada em consideração na medida da pena.56 O entendimento é corroborado por Paulo José da Costa Jr.57 A conseqüência jurídica prevista é a sanção detentiva de seis meses a dois anos, cumulada materialmente com a violência. O concurso material do motim com a violência contra a pessoa é questão pacífica, havendo divergência no que diz respeito à extensão da violência ao patrimônio. Parte da doutrina entende que a expressão ‘violência’ abrange a tutela da pessoa e da coisa, estabelecendo concurso material de crimes em ambas situações. Corrente oposta vê na expressão ‘violência’ somente aquela dirigida contra a pessoa. Apesar de existirem decisões que estabelecem o concurso material entre motim e dano, crê-se necessário restringir o cúmulo material da violência contra a coisa, pois, interpretando sistematicamente, quando a lei penal prevê a violência contra o patrimônio, o faz taxativamente.
Outra questão a ser levantada é relativa à fuga em decorrência do motim. Se o motim tem como intento a evasão, este passa a ser entendido como crime-meio, absorvido pelo art. 352 do CP. Contudo, se do motim decorre fuga, haverá concurso formal com o art. 352 do CP.58
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Idem. O crime de motim de presos consiste no comportamento comum de rebeldia de pessoas presas, agindo para o fim de reivindicações justas ou não. É a vontade livre e consciente dirigida ao motim, conhecendo o sujeito que sua conduta perturba a ordem ou a disciplina do estabelecimento prisional (TACRIM-SP, AC, Rel. Hélio de Freitas – RT 653/310). O crime do art. 354 do CP caracteriza-se pela revolta coletiva de presos com intuito de contrariar a autoridade ou poder constituído, tumultuando seriamente a ordem e a disciplina da prisão, mediante atos de violência contra guardas, funcionários ou instalações ou aos outros detentos não solidarizados com suas atitudes (TA-MG, AC, Rel. Edelberto Santiago – RT 615/341). Fragoso, ob. cit., p. 550. Para efetivação do juízo de tipicidade, basta a reunião tumultuária das pessoas presas, não sendo necessário indagar a finalidade do motim: reivindicações justas ou injustas, vingança ou motivos de outra índole. A ilicitude do fato reside na rebelião apta a desordenar a vida disciplinar da prisão (Costa Jr., ob. cit., pp. 762-763).
6.2.2.3. Fuga e motim: análise crítica 6.2.2.3.1. Crítica de lege lata A primeira crítica cabível ao tipo penal evasão mediante violência diz respeito à indiferença entre as formas tentadas e consumadas. A dogmática jurídico-penal tem sido fértil em demonstrar que tentativa somente pode ser concebida em relação a um tipo principal de delito. Esta é a regra geral da construção lógico-sistemática do instituto. Argumenta Machado que a tentativa representa um defeito de congruência, em que o tipo objetivo fica incompleto e o subjetivo, completo.59 Nada mais é, portanto, que fórmula extensiva dos tipos dolosos para abranger o iter imediatamente anterior à consumação.60 Não obstante a existência de vertentes diametralmente opostas no concernente ao fundamento da punição da tentativa (v.g., teoria objetiva e teoria subjetiva ou periculosista), o tratamento do delito tentado tomou nítido delineamento no ordenamento jurídico nacional. A regra geral do art. 14 do CP, adotando a teoria objetiva, estabelece diferenças inquestionáveis entre as condutas delituosas consumadas e tentadas, obrigando o julgador à redução da pena quando, iniciada execução, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Pune-se, pois, a tentativa, pelo perceptível e verificável perigo ao bem jurídico tutelado. Incrimina-se a ação de tentar consumar um crime, pois, por meio de atitudes univocamente dirigidas a um resultado delituoso, revela-se o desrespeito ao valor que dá fundamento ao tipo penal, criando-se situação de perigo a um bem jurídico.61 Assim, o núcleo da punibilidade da tentativa não reside na vontade ou ‘tendência criminosa’ (periculosidade) do autor. 58 59 60 61
Sobre o tema, conferir Fragoso, ob. cit., p. 550 e Miotto, ob. cit., p. 299. Machado, Direito Criminal, p. 155. Zaffaroni & Pierangelli, Da Tentativa, p. 27. Reale Jr., Teoria do Delito, p. 200. 231
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Diferentemente do fato consumado, o delito tentado não efetiva qualquer lesão ao bem jurídico. Tendo em vista essa diferença entre os resultados das condutas, dano no primeiro e perigo concreto no último, o direito penal, seguindo a fórmula da proporcionalidade, diferencia a pena, minimizando-a. A tentativa é punida menos severamente porque a pena deve estar em correspondência não somente com a gravidade do crime, como também com o dano efetivamente causado.62 A justificativa de Carrara é esclarecedora: imputamos menos la tentativa, no por atenuación o por benignidad, sino porque encontramos en ella algo que falta con respecto al delito consumado, y porque, naturalmente, la minoración en las condiciones de un ente debe producir una minoración de su valor.63 Embora pacífico o entendimento doutrinário das correntes humanistas acerca do minus da tentativa em relação ao delito consumado, o legislador equiparou, no caso da evasão mediante violência, as duas condutas, seguindo rumos de tradição legislativa autoritária (v.g. os crimes contra a segurança nacional, Lei no 7.170/83). Assim, de duvidosa constitucionalidade a equiparação das penas, em decorrência da lesão ao princípio da razoabilidade. Zaffaroni demonstra, de forma inequívoca, a inadequação deste tipo de incriminação às formas legislativas garantistas do Estado democrático de direito balizadas pelo princípio da secularização: la escala penal atenuada del delito incompleto se corresponde con la racionalidad de la pena que, por lógica, debe ser menor en un delito que, por no haber causado el resultado, presenta un contenido injusto inferior... La punición de la tentativa – y más aún de los actos preparatorios – en forma análoga al delito consumado, es violatoria de la racionalidad que debe regir en cualquier punición, porque olvida al bien juridico y pasa a fundarse exclusivamente en la voluntad contraria a la norma. El delito se convierte en un mero signo de voluntad contraria a la ley y pasa a segundo o ultimo plano su naturaleza de lesión al derecho. Se trata de una variable idealista de la teoría del acto sintomático, que lleva a la punición de la voluntad revelada con el acto inequívoco. Nuevamente se quiebra el dique que separa la moral del derecho y el Estado asume el papel de director ético de las personas, se convierte en un Estado ético.64
A desproporcionalidade da legislação na incriminação da evasão mediante violência não se restringe tão-somente à equivalência das condutas tentadas e consumadas. Ao estabelecer a pena em abstrato, o legislador obrigou o magistrado a cumular a pena da evasão violenta com a própria violência empregada. Portanto, há concurso material da ‘evasão mediante violência’ com a agressão praticada para viabilizar o delito, visto ser esta elementar do tipo – v.g. roubo, seqüestro, lesão corporal, homicídio entre outras ações em sua forma tentada ou consumada. A relevância que a norma incriminadora pretendeu dar ao impor sanção cumulativa é a negação e o repúdio ao ato lesivo. Somente existe delito no momento em que esta violência é praticada. Da mesma forma, a punição cumulativa inviabilizaria ao aplicador absorver (princípio da consunção) a evasão violenta no crime-meio. Contudo, urge que os critérios sejam revistos. A regra do concurso material é clara: quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido (art. 69, caput, CP). O vínculo do tipo em análise à regra do concurso material leva à conclusão de que o legislador acabou penalizando, de maneira indireta e sutil, a fuga propriamente dita. Se a violência é circunstância elementar do tipo do art. 352 do CP, e se o concurso material é a infração, mediante unidade ou pluralidade de ações, de tipos penais diversos, parece claro que a aplicação da pena em cúmulo configura bis in idem, com penalização subsidiária do mero ato evasivo. A opção pela incriminação da evasão mediante violência acaba justificando reprovação penal indireta da fuga. Se a grande ofensa que justifica a criminalização do ato é a violência em si mesma, despicienda seria a tipificação da evasão, decorrente do fato de que as diversas formas possíveis de violência contra a pessoa já constituem crime em si e, mais importante, a fuga já recebe reprovabilidade como ‘falta grave’ na esfera administrativa. Não se percebe, portanto, desde o processo de interpretação constitucional do direito penal, vínculo substancial do tipo com os rigores dos princípios inerentes ao texto da Lei Maior, desde a proporcionalidade à individualização. Veja-se, a título de exemplificação, o que ocorre com outro delito análogo. Na construção incriminatória do motim existe penalização, em concurso material, do ato em si (motim de presos) com a violência praticada. Contudo, o preceito não prevê elementar do tipo idêntica ao delito a ser cumulado. Incriminado o motim, é
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Mestieri, Teoria Elementar do Direito Criminal, p. 271. Carrara, Programa de Derecho Criminal, p. § 355. Zaffaroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina, p. 65.
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ressalvada a aplicação cumulativa da pena. Há reprovação penal do ato em si, sendo a violência (decorrente ou precedente) acrescida na penalização. A análise sistemática dos tipos leva a reafirmar a punibilidade oculta e subsidiária da fuga.
tum penalizador. Inova apenas na referência expressa à ‘pessoa legalmente presa’ no delito de evasão – evadir-se ou tentar evadir-se a pessoa legalmente presa ou submetida à medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa –, entendimento já consolidado jurisprudencialmente. Outrossim, o projeto prevê novo tipo penal denominado ‘tomada de refém’ (art. 346). A nova construção típica descreve a conduta de submeter alguém à condição de refém, privando-o de sua liberdade para permitir ou facilitar a fuga do agente ou de outrem. A pena projetada é a de reclusão de um a quatro anos, qualificada para dois a quatro anos se a vítima sofrer ameaça de morte e/ou se a privação de liberdade durar mais de vinte e quatro horas (art. 346, § 1o, incisos I e I). No § 2o, o projeto prevê a mesma pena da forma qualificada se o objetivo do agente for evitar a prisão ou a sua recaptura, determinando, no § 3o, cúmulo material da pena qualificada à violência empregada. Atualmente, o enquadramento típico da fuga com tomada de refém é o do concurso material da evasão violenta com o seqüestro,66 podendo a pena, em sua forma qualificada, ultrapassar oito anos de reclusão. Apesar da maximização qualitativa, a criação do novo tipo penal diminuiria quantitativamente a pena, visto ser sua previsão qualificada de, no máximo, quatro anos.
6.2.2.3.2. Crítica de lege ferenda Quando da avaliação do bem jurídico tutelado, percebeu-se que as normas dos artigos 352 e 354 do CP tutelam a Administração da Justiça. Viu-se, na exposição dos critérios para contração do sistema penal, a necessidade de reprovabilidade penal apenas nos casos de ataque concreto contra bens jurídicos de ‘pessoas de carne e osso’. Sucedâneo a este entendimento, supérflua seria a inclusão da personalidade do Estado, da administração pública, da atividade judicial, entre outros, no rol dos bens jurídicos amparados pelo direito penal. Rememorando Ferrajoli,65 o Estado, nos ordenamentos democráticos, não pode constituir bem ou valor próprio, visto ser apenas instrumento de consecução dos direitos fundamentais. A tradição demonstra que as normas jurídicas mais autoritárias e, conseqüentemente, conformadoras de modelos maximalistas, foram aquelas emergenciais produzidas sob a etiqueta de ‘delitos contra o Estado’. Tais incriminações, normalmente elaboradas com grande ambigüidade e lacunariedade, acabam por sobrepor a razão de Estado à razão de direito, olvidando a ofensividade (ataque concreto) ao bem jurídico (palpável). Desse modo, a valoração crítica do bem jurídico protegido pelos tipos dos arts. 352 e 354 induz sustentar sua descriminalização, direcionando a ilicitude da fuga e do motim apenas à esfera administrativa (penitenciária). Desde os postulados do direito penal mínimo, o relevante na resposta penal seria responder à violência empregada contra a pessoa, em decorrência de evasões violentas e/ou motins. Aliás, este entendimento é insinuado pela obrigatoriedade do concurso material na aplicação das penas aos conflitos carcerários. Todavia, opondo-se frontalmente aos processos político-criminais minimalistas, o projeto de reforma da parte especial do Código Penal mantém a tipicidade da ‘evasão mediante violência contra a pessoa’ (art. 343) e do ‘motim de presos’ (art. 345), preservando idêntico quan65 234
Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 481.
6.3. Conflitos carcerários e direito de resistência 6.3.1. A ineficácia do modelo liberal-legal para resolução dos conflitos contemporâneos A perspectiva garantista centrada na primazia axiológica da pessoa impõe autonomia dos direitos fundamentais no caso de conflito com práticas jurídico-políticas arbitrárias. Lembra, porém, Ferrajoli,67 que atualmente as Constituições não positivaram, como no passado (v.g., art. 3o da Declaração de Direitos da Virgínia de 1776; o art. 29 da Constituição Francesa de 1793; a Constituição Siciliana de 1812; e o art. 20, IV, da Constituição da República Federal da Alemanha de 1949), um dos mecanismos de garantia dos 66 67
Nesse sentido, conferir as referências de Celso Delmanto à decisão da Apelação Criminal 10164 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (DJU, 20/3/1990, p. 5.559), em Delmanto, Código Penal Comentado, p. 281. Ferrajoli, ob. cit., p. 973. 235
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cidadãos contra as ofensas do Príncipe: o direito de resistência à opressão. Tal omissão decorre da ideologia normativista que supõe aprioristicamente a efetividade dos mecanismos positivados para sancionar e remover atos ilegítimos. No entanto, Ferrajoli indaga o que acontece quando esses instrumentos processuais elaborados pela atual teoria do direito tornam-se impotentes para a tutela dos direitos. Em realidade, o direito de resistência renasce quando o sistema ordinário de garantias não funciona,68 sendo verdadeira falácia normativa a idéia de o instituto ser incompatível com o Estado de direito porque neste o poder é vinculado à lei e as violações são por ela punidas.69 Como anota Estévez Araujo, na atualidade a defesa da Constituição encontra-se em um âmbito de decisão estatal insuficientemente procedimentalizado, pois os mecanismos existentes não estabelecem canais de participação democrática que reduzam o déficit de legitimidade dos órgãos encarregados da tarefa. Portanto, el problema de la justificación jurídica de la desobediencia civil debe inscribirse en este contexto de crisis de legitimidad de los procedimientos de defensa de la Constitución como consecuencia de la materialización del derecho constitucional. La desobediencia civil deve ser entendida como un mecanismo informal e indirecto de participación en un ámbito de toma de decisiones que no cuenta con suficientes canales participativos, aunque, en realidad, precisaría de ellos para poder presentarse.70 Da crise enfrentada pelo Estado contemporâneo em decorrência da inefetividade processual na defesa dos direitos constitucionais renasce o tema oitocentesco. Percebe Bobbio que é natural que, quando aquele tipo de Estado que havia pretendido absorver o direito de resistência, constitucionalizando-o, entra em crise, se reabra o velho problema, e se ressuscite, ainda que com outras vestes, as velhas soluções.71 Contudo, chama atenção para o fato de que o retorno dos velhos temas que pareciam moribundos não é uma exumação, nem uma repetição. Os problemas nascem quando certas condições históricas os fazem nascer, mas assumem aspectos diferentes segundo as circunstâncias.72
A revificação do ius resistentiae acaba ocorrendo no momento de incapacidade instrumental do direito em responder às complexas demandas do final do milênio, ou simplesmente devido à necessidade de solução de antigos conflitos acertados de forma insatisfatória pelo sistema tradicional. No último dos casos situa-se o problema da conflitividade carcerária. Estruturou-se, desde o primeiro momento do texto, o garantismo jurídico como modelo penal alternativo à violência e à guerra, pressupondo atitude pessimista em relação a todos os atos do poder público, por entender intrínseca sua predisposição à arbitrariedade. Teleologicamente, como modelo ideal típico de otimização dos direitos fundamentais, o garantismo dirige-se não somente à minimização dos micropoderes selvagens (privados), mas também à redução dos macropoderes bárbaros (públicos). Entretanto, constata-se que os instrumentos jurídicos positivados inviabilizam a plena defesa da Constituição ou proporcionam, de maneira tímida, a redução dos poderes privados. Como ressaltado, o traço mais marcante da modernidade foi a radical monopolização da violência pelo aparato estatal que, em nome da racionalização dos conflitos, separa os envolvidos e responde à demanda. Sabe-se, porém, que, em determinadas circunstâncias, existe previsão legal de legitimidade de o indivíduo agir, utilizando-se de violência, em defesa de interesse seu ou de terceiro, sem contrastar com o ordenamento jurídico. No caso de conflitos interindividuais, o direito penal permite a autotutela do cidadão se este estiver em situação de necessidade e/ou defesa de bem jurídico. Resolve-se, o problema, nestas situações, pelo fato de no interior do modelo liberal-legal existirem previsões para condutas nas quais o titular do direito afetado pode reagir contra o perigo (estado de necessidade) ou a agressão (legítima defesa), sendo excluída a ilicitude da (re)ação. Quando, porém, o sujeito ativo da violação (ou exposição ao perigo) do bem tutelado é o próprio Estado, e o sujeito passivo não é individual, isto é, o conflito perpassa a esfera do indivíduo e passa a ser transindividual, não há capacitação dogmática e legislativa para resposta. Há verdadeira aporia jurídica quando o dano, ou a concreta probabilidade de lesão aos bens jurídicos, resulta de conduta ativa ou omissiva da Administração Pública e sua titularidade é plúrima (v.g. presos). Concebe-se juridicamente a autotutela do cidadão contra agressões privadas, se preenchidos os requisitos do estado de necessidade e/ou da legítima defesa. No caso de agressão pública aos direitos fun-
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Ferrajoli, Notte Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su ‘Diritto e Ragione’, p. 514. Ferrajoli, Diritto e Ragione, pp. 973-974. Estévez Araujo, La Constitución como Proceso y la Desobediencia Civil, p. 143. Bobbio, La Resistenza all’Oppressione, Oggi, p. 168. Idem, p. 168.
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damentais, porém, as possibilidades de reação legítima são ineptas em decorrência da concepção normativista que pressupõe eficácia dos instrumentos processuais tradicionais. As soluções dadas pelo ordenamento não legitimam a ação defensiva, pois inexiste mecanismo eficaz de proteção de bens jurídicos transindividuais. Lenio Streck diagnostica o problema utilizando-se do ensino do direito como figura de linguagem. Segundo o autor, há predominância, no Brasil, de um modo de produção jurídica forjado para resolver apenas disputas interindividuais. A constatação é nítida nos manuais jurídicos que banalizam os conflitos nas disputas entre ‘Caio’ e ‘Tício’: assim, se Caio invadir (ocupar) a propriedade de Tício, ou Caio furtar um botijão de gás ou o automóvel de Tício, é fácil para o operador do Direito resolver o problema. No primeiro caso, a resposta é singela: é esbulho, passível de imediata reintegração de posse, mecanismo jurídico de pronta e eficaz atuação, absolutamente eficiente para a proteção dos direitos reais de garantia. No segundo caso, a resposta igualmente é singela: é furto (simples no caso de um botijão; qualificado, com uma pena que pode alcançar 08 anos de reclusão, se o automóvel de Tício for levado para outra unidade da federação).73 A aplicação do direito reduz-se, porém, tão-somente a esses casos banais, ou, como qualifica Streck, a dogmática jurídica coloca à disposição do operador um prêt à porter significativo que contém respostas rápidas e prontas. Mas – adverte –, quando Caio e milhares de pessoas sem teto ou sem terra invadem/ocupam a propriedade de Tício, ou quando Caio participa de uma ‘quebradeira’ de bancos, causando desfalques de bilhões de dólares, os juristas só conseguem ‘pensar’ o problema a partir da ótica forjada no modo liberal-individualista-normativista de produção de Direito.74 Conclui, portanto, que a crise do modelo se instala porque a dogmática, em plena sociedade transmoderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um direito cunhado para ‘resolver’ disputas interindividuais. No mesmo sentido conclui Ferrajoli, quando chama atenção para o fato de que a desatenção estatal relativa aos direitos sociais não é reparável com técnicas jurídicas eficazmente análogas às previstas para as violações dos direitos de liberdade.75
Em matéria penal/penitenciária, o legado ainda presente da concepção administrativista de execução, aliado à dificuldade de percepção dos direitos transindividuais, inviabiliza qualquer solução pacífica dos conflitos. A conseqüência desta miopia da dogmática brasileira, cuja estrutura teórica não permite conceber os detentos como sujeitos de direitos, é o resgate crítico do direito de resistência como possibilidade estratégica para recuperar sua cidadania. Enquanto a dogmática jurídica não potencializa instrumentos para obrigar o Estado ao cumprimento de seu dever em sede de execução penal (v.g. ação civil pública), a única alternativa admissível para o resgate dos direitos dos apenados é a inclusão do direito de resistência entre as causas supralegais de exclusão do delito, assim como os já consagrados princípios da insignificância, adequação social, consentimento do ofendido e inexigibilidade de conduta diversa. Entendido como descriminante transindividual, o direito de resistência permitirá ação política reivindicatória direcionada à mobilização da Administração Pública em prestar minimamente seu dever constitucional, a dizer, respeitar a integridade física e moral dos presos (art. 5o, XLIX, CF).
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Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, p. 33. Streck, ob. cit., pp. 33-34. Ferrajoli, El Derecho como Sistema de Garantías, p. 67.
6.3.2. Direito de resistência: notas conceituais O problema do direito de resistência poderia remeter o trabalho à bela e lúdica caracterização desde a tragediografia helênica, ou permitir incursões na filosofia clássica. Rui Barbosa, por exemplo, afirma que ninguém condensou melhor o alcance do direito de resistência do que o velho Farinaccius, colocando em uma fórmula clara, prática, justa e expressiva o sentido da desobediência legítima. Em suas Questões, Farinaccius afirmava: se o magistrado, faltando à justiça, já se não reputa magistrado, e passa não ser mais que um sujeito particular, do mesmo modo como nos é dado resistir à violência que qualquer particular nos faz, lícito semelhantemente nos será também resistir à injustiça do magistrado e seus oficiais, pois, obrando injustamente, não têm, repito, mais autoridade que se meros particulares fossem.76 Como foi estabelecido na matriz ilustrada o marco genealógico da justificativa do instituto da resistência (Boètie, Locke, Marat e Feuerbach), reestruturando-se na contemporaneidade a partir da concepção garantista, não haverá reconstrução histórica do direito de re76
Apud Barbosa, Teoria Política, p. 286. 239
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sistência como sói acontecer nos trabalhos sobre o tema. A análise que se pretende realizar é puramente conceitual e classificatória. Segundo Norberto Bobbio, a resistência compreende todo tipo de ruptura contra a ordem constituída, que põe em crise o sistema pelo fato de produzir-se, como acontece em um tumulto, uma sublevação, uma rebelião, uma insurreição, até o caso limite da revolução.77 Afirma o politólogo que o direito de resistência é um dos mecanismos jurídicos que servem para tutelar os direitos primários. Sua característica principal é de intervenção subsidiária, ou seja, quando são violados os bens jurídicos fundamentais: juridicamente, o direito de resistência é um direito secundário, do mesmo modo que são normas secundárias aquelas que dispõem a proteção das normas primárias: é um direito secundário que intervém em um segundo momento, quando são aviltados os direitos de liberdade, de propriedade e de segurança, que são primários. Diferente, também porque o direito de resistência tutela os outros direitos, mas não pode ser por sua vez tutelado, e portanto deve ser exercido com risco e perigo próprios.78 Mais que um ‘direito’, a resistência à opressão é um mecanismo tipicamente garantista, pois sua natureza reflete instrumentalidade à satisfação dos direitos humanos individuais, sociais e/ou transindividuais. É que o sentido do termo ‘garantias’ deve ser empregado para expressar as técnicas previstas, explícita ou implicitamente, que objetivam minimizar o vácuo entre normatividade e efetividade dos direitos. O exercício do direito de resistência para tutela de direitos individuais representa um dos traços mais característicos do pensamento liberal clássico – resistência armada contra usurpação, conquista ou exercício abusivo do poder. A atualização do instituto no século XX ocorreu com a luta pela tutela dos direitos sociais manifestados por movimentos que vão desde as reivindicações de minorias excluídas (minorias raciais, etárias, de gênero et coetera) aos conflitos laborais (v.g. greves). No âmbito dos direitos transindividuais, as manifestações das ONG’s ecológicas e dos movimentos de luta pela terra e espaço urbano parecem ser o melhor exemplo de prática resistente. Imprescindível nota a ser feita diz respeito às diferenças entre os termos direito de resistência, desobediência civil e objeção de consciência. Mister ressaltar o entendimento de constituirem a desobediência civil e a objeção de consciência espécies do gênero direito de resis-
tência. São resistentes as condutas, violentas ou pacíficas, que contestam determinada ordem constituída com intuito de transgredi-la, seja para estabelecer nova prática política seja para reestruturar pretérita. O ato contrariado deve, necessariamente, lesar direitos, restringindo o status de cidadão e o ideal democrático.79 Hannah Arendt demonstra que a desobediência civil aparece no período pós-Segunda Guerra Mundial como forma de reivindicação de necessidades da sociedade civil à sociedade política. Ao constatar a profunda crise da lei e dos canais tradicionais de comunicação entre os cidadãos e os governantes, Arendt vê nos atos de desobediência civil uma resposta à crise de participação da sociedade na tomada das decisões políticas. Assim, a desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.80 Dessa forma, o ato de transgressão às leis e/ou decisões adquiririam dupla funcionabilidade: pode servir tanto para mudanças necessárias e desejadas como para preservação ou restauração necessária e desejada do status quo.81 John Rawls define desobediência civil como um ato ilegal público, não-violento, de consciência, mas de caráter político, realizado com o fim de provocar uma mudança na legislação ou na política governamental.82 Passerin d’Entrêves segue a mesma trilha de Rawls e a define como ação ilegal, coletiva, pública e não violenta, que se atém a princípios éticos superiores para obter uma mudança nas leis.83 Tradicionalmente, a desobediência civil poderia ser conceituada como ato coletivo, de caráter público e pacífico, impulsionado por reivindicações dirigidas à modificação ou manutenção de direitos consagrados. Seria conduta em ultima ratio, caracterizada pela ilegalidade que sujeita os manifestantes às sanções previstas no ordenamento jurídico. As principais características do ato de desobediência seriam, portanto, a politicidade, publicidade e coletividade, utilizadas pacificamente como último recurso, sujeitando os desobedientes às sanções.
77 78 240
Bobbio, ob. cit., p. 159. Bobbio, La Rivoluzione Francese e i Diritti dell’Uomo, p. 106.
79 80 81 82 83
Carvalho, O direito de resistência e o seu alcance constitucional, pp. 87-115. Arendt, A Desobediência Civil, p. 68. Arendt, ob. cit., p. 69. Rawls, A Theory of Justice, p. 364. Bobbio, Dicionário de Política, p. 336. 241
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Pressuporia, pois, a aceitação da legitimidade do ordenamento jurídico vigente. Hannah Arendt sustenta, porém, ser desnecessário o concurso. Avaliando a participação de Ghandi no movimento de independência da Índia, a autora lembra que o arauto da prática política da desobediência civil e da não-violência em nenhum momento aceitou a legitimidade do modelo jurídico autoritário imposto pelo domínio britânico. Corrobora-se a afirmação, e entende-se necessária, para configuração do ato, a publicidade de ação realizada com o intuito de aperfeiçoar/garantir os direitos individuais, coletivos ou difusos não respeitados pelos poderes públicos constituídos. Desde esta caracterização, pode-se estabelecer, junto a Rawls, a diferenciação da objeção de consciência: a objeção de consciência não se baseia necessariamente em princípios políticos; pode fundar-se em princípios religiosos ou de outro caráter, desconformes com o ordenamento constitucional. A desobediência civil é a invocação de uma concepção comunitária de justiça, enquanto que a objeção de consciência pode ter outros fundamentos.84 Rawls afirma ser a objeção de consciência o não cumprimento de preceito legal ou administrativo mais ou menos categórico.85 A conduta de refutação pode estar fundamentada em princípios de ordem religiosa, moral, ideológica, ética ou filosófica. O fundamental, contudo, é que contrarie dispositivo de lei ofensivo aos princípios do agente. Cuervo-Arango define objeção de consciência como la actitud de aquel que se niega a obedecer un mandato de la autoridad, un imperativo jurídico, invocando la existencia, en el seno de su conciencia, de un dictamen que le impide realizar el comportamiento prescrito.86 Assim, a objeção de consciência difere da desobediência civil basicamente por ser ato individual. Mais, o objetor de consciência, além de atuar em nome próprio, não teria o intuito de modificar a lei em questão, simplesmente deseja não cumpri-la devido a imperativos éticos personalíssimos.
fenômeno da violência carcerária, caracterizada pelo total desrespeito aos direitos do apenado, aproxima o sistema de cumprimento de pena privativa de liberdade aos mais atrozes modelos de penalidade já conhecidos pela humanidade; e (2o) as únicas possibilidades de (re)ação dos condenados contra a brutalidade do sistema (fugas, rebeliões e/ou motins) implicam sanções (administrativas ou penais) que agudizam ainda mais sua permanência na instituição de apartação. Os tipos penais de evasão e motim, a disposição dos atos de sedição nas normas penitenciárias e o desenvolvimento jurisprudencial e dogmático sobre a matéria descartam qualquer possibilidade de justificação do ato, independentemente da finalidade ou da situação de fato que motivou a conduta. Na órbita do injusto penal, a inviabilidade interpretativa advém do fato de que na construção da norma penal inexistiu inclusão de elemento normativo do tipo descaracterizador – ‘justa causa’, por exemplo; e, também, pela inexistência de teoria que possibilite a construção de causas descriminantes para os referidos conflitos, refletindo o desinteresse da dogmática jurídico-penal tradicional em apreender a complexidade social. Os elementos normativos do tipo, constitutivos e integrantes da ilicitude, representam juízos de menor grau de antijuridicidade; são elementos de conteúdo variável, aferidos a partir de outras normas jurídicas, ou extrajurídicas, quando da aplicação do tipo ao fato concreto.87 Inúmeros tipos penais do CP brasileiro apresentam juízos axiológicos de referência à ilicitude.88 A inexistência destes elementos de valoração da conduta na estrutura formal da norma exclui qualquer forma de descontrução de sua tipicidade. Ao contrário dos artigos 153 (divulgação de segredo), 154 (violação de segredo profissional), 244 (abandono material), 246 (abandono intelectual) e 248 (induzimento a fuga, entrega arbitrária ou sonegação de incapazes) do CP, que são integrados pelo elemento ‘justa causa’, possibilitando a exclusão da tipicidade da conduta quando comprovado ter sido o fato praticado em ‘defesa de direito ou interesse legítimo’, os delitos previstos nos artigos 352 e 354 não possuem essa composição. Impossível, pois, a justificação dos atos
6.3.3. Direito de resistência, legítima defesa e estado de necessidade: aproximações e diferenças Nos últimos apontamentos, chamou-se a atenção para duas questões cruciais para o desenvolvimento das hipóteses do trabalho: (1o) o 84 85 86 242
Rawls, ob. cit., p. 369. Rawls, ob. cit., p. 368. Cuervo-Arango, La Objeción de Conciencia al Servicio Militar, p. 11.
87 88
Reale Jr., Teoria do Delito, pp. 42-48. Alguns autores, inclusive, atribuem ao elemento normativo do tipo forma especial de ilicitude. Sobre o assunto e as devidas críticas, conferir Fragoso, Lições de Direito Penal I, pp. 183-184; e Marques, Tratado de Direito Penal I, pp. 141-142. 243
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de fuga e motins quando praticados em defesa de direito, decorrentes da inação do Estado no cumprimento de suas obrigações legais. A inviabilidade de justificação da conduta, porém, perpassa o problema da tipicidade e atinge, principalmente, a esfera da antijuridicidade, não obstante a íntima relação existente entre ambas. A tipicidade é ratio cognoscendi, adquirindo função indiciária da ilicitude. Esta, por sua vez, apresenta-se como juízo de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico; daí se deduz que, na prática, a função do juízo de antijuridicidade fica reduzida a uma constatação negativa desta antijuridicidade, isto é, a determinação de se ocorre ou não alguma causa de justificação.89 Muito embora determinados atos sejam considerados típicos, descritos negativamente e subsumidos à norma jurídico-penal, não existe relação necessária, desde a concepção tripartida do delito, entre a sua tipicidade e a sua ilicitude. Em determinadas situações específicas, o legislador, apesar de previamente desvalorar a conduta na elaboração do tipo, emite juízos permissivos devido às circunstâncias que compuseram o caso, avalisando a violência individual em nome próprio ou de terceiro pela ausência de sua presença tutelar – papel de garantidor. Apesar do pressuposto da modernidade estar centrado no monopólio estatal da violência, sendo tipificado como delito o exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP), existem determinadas situações-limite nas quais o cidadão está legitimado a usar da violência contra bens jurídicos tutelados. No que diz respeito à garantia dos direitos individuais, a autorização da violência como forma de autotutela é prevista, legal ou supralegalmente, nos casos de exclusão de ilicitude, como causa de justificação de atos que, de outra forma, seriam punidos como crimes.90 As descriminantes, como leciona Fragoso, podem defluir de situações de necessidade (legítima defesa e estado de necessidade), de atuação conforme o direito (exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal) ou de ausência de interesse pelo titular do bem protegido (consentimento do ofendido).91 Afirma-se, portanto, que a lei penal não podia deixar de reconhecer que, na impossibilidade de imediata e eficiente assistência do poder de polícia do Estado, deve ser outorgada (em acréscimo à permissão de autotutela do indivíduo) a
faculdade de intervenção protetora de um particular em favor de outro, pouco importando que haja, ou não, uma relação especial entre ambos.92 Todavia, a formulação legal das eximentes é estruturada em rígidos pressupostos que inviabilizam sua utilização aos casos de conflitividade transindividual, no caso ora avaliado aos problemas dos conflitos carcerários. Os institutos oriundos de situações de necessidade (legítima defesa e estado de necessidade) são moldados no interior de uma concepção meramente interindividual, na qual inexiste possibilidade de reação coletiva contra ato que coloca em perigo ou que agride bens transpessoais (v.g. conflitos carcerários, saques, ocupações de terras, apropriação de prédios públicos e/ou privados et coetera). Crê-se, no entanto, desde uma concepção garantista do direito e da prática jurídica, da viabilidade teórica para solução da problemática que envolve a questão carcerária a partir da assunção do ius resistentiae como causa supralegal de exclusão da ilicitude. Afirma Ferrajoli que é justo rebelar-se quando a lei é injusta; mas também é juridicamente legítimo quando os poderes públicos violam os direitos fundamentais e os meios e as garantias legais se revelam ineficazes em sancionar sua invalidade.93 Não se pode olvidar que o objeto de análise é a violação por parte do poder público de direitos individuais (vida, liberdade, saúde, integridade física e moral) partilhados por grupo homogêneo (massa carcerária), caracterizando, pois, lesão transindividual. Daí resultam a ineficácia e a impossibilidade de assunção dos mecanismos tradicionais, ou seja, da causas de exclusão de ilicitude previstas no Código Penal. A diferença entre estado de necessidade e legítima defesa é que na primeira o bem jurídico é colocado em perigo, enquanto na segunda há agressão. Se no estado de necessidade existe conflito entre bens em ações legítimas, na legítima defesa há lesão (ou ameaça) ao bem. Em ambas, contudo, a ação somente é admitida se impulsionada por conduta humana – excluindo reação advinda de força natural ou irracional no estado de necessidade. Inadmissível, pois, ser o Estado incitador do ato que requer garantia (sujeito ativo da lesão). Os pressupostos formais do estado de necessidade são o perigo atual, o salvamento de direito próprio ou de terceiro, a impossibilidade de evitar o perigo e a razoável inexigibilidade de sacrifício do direito
89 90 91 244
Muñoz Conde, Teoria Geral do Delito, pp. 85-86. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 954. Fragoso, ob. cit., p. 185.
92 93
Hungria, Comentários ao Código Penal I, p. 275. Ferrajoli, ob. cit., pp. 989-990. 245
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ameaçado (art. 24, CP). Na legítima defesa, os pressupostos elencados são a agressão atual ou iminente e injusta, a preservação de direito próprio ou de outrem e o emprego moderado dos meios necessários à defesa (art. 25, CP). Os critérios de validação do estado de necessidade inviabilizam a justificativa de contra-reações coletivas. Note-se, por exemplo, a questão da ilicitude do ‘saque famélico’. O requisito formal do perigo atual encontra na dogmática referência ao eminente perigo de dano, aquele cuja falta de ação instantânea do agente provoca lesão ou destruição do bem. Tratar-se-ia, pois, de questão de sobrevivência perante o inequívoco gravame ao bem jurídico. Neste sentido, Muñoz Conde argumenta que a conduta de necessidade não pode ser utilizada como a panacéia de todos os conflitos de interesses, não podendo (por exemplo) o desempregado assaltar um supermercado.94 Não bastaria que houvesse uma necessidade de alimentos, medicamentos, terras para plantar, empregos etc. Urge que a conduta, em face da iminência de lesão ou destruição de um bem (vida, p. ex.), seja necessária (inexigibilidade de comportamento diverso) e realizada em situação grave e atual, exigindo-se prova cabal e não mera alegação.95 A contida extensão dada à descriminante do estado de necessidade pela dogmática e jurisprudência reflete total e absoluta falta de percepção da realidade latino-americana. No caso das lesões aos direitos dos presos, não haveria, desde o ponto de vista tradicional, situação de perigo que justificasse o estado de necessidade; ou ainda injusta agressão, atual ou iminente, que viabilizasse a legítima defesa. É que, diferente da formulação legal liberal, se está diante de situação permanente de violência e lesão constante de direitos, o que não se enquadra nos requisitos mencionados. Mais, os sujeitos envolvidos no conflito impedem a admissibilidade do recurso às causas de exclusão da ilicitude, notadamente porque o sujeito ativo da violação é a Administração Pública. A reação dos apenados à constante violência deflagrada pelo poder público não admite, pois, legítima defesa ou estado de necessidade. Os pressupostos convencionais das descriminantes previstas para os conflitos interindividuais estão descartados. Exsurge assim, como justificativa do ato, o ius resistentiae. Não obstante a constância da violência, outra diferença entre o direito de resistência e as demais causas justificadoras radica no fato
de que o sujeito ativo da violação é o Estado e o sujeito passivo é um grupo de pessoas. Imprescindível, pois, seria perceber a ‘massa carcerária’ como sujeito de direitos. O grande problema é que o processo de jurisdicionalização da execução, que traz em seu bojo o reconhecimento dos presos como sujeitos históricos em relação, não se capilarizou pelo sistema. Os presos, mesmo após a Constituição de 1988, ainda são vistos como objeto de execução. A dogmática jurídica deve, a partir da interpretação constitucional da LEP e do CP, romper com esta visão e, enquanto não visualiza formas de normatizar os conflitos prisionais motivados por justas reivindicações, urge recepcionar o ius resistentiae como descriminante supralegal de ordem transindividual. A conseqüência advém da referida situação de violência constante provocada pelo Estado, colocando em perigo concreto ou causando dano efetivo e irreversível aos bens jurídicos da ‘massa carcerária’. Os presídios brasileiros são guetos de barbárie institucionalizada. Locais onde a civilização não se fez presente, por inércia ou desinteresse do poder público. Em casos extremos como este, no qual o Estado rompe os vínculos com a democracia e institucionaliza a violência, a contra-resposta deve ser admitida como legítima, isentando os agentes das conseqüências legais previstas. Motins, rebeliões e fugas, realizados conscientemente contra situações injustas como superlotação, falta de assistência material e atraso injustificado da prestação jurisdicional (que inviabilizam o gozo de direitos públicos subjetivos), não podem ser qualificados como delitos em decorrência da causa supralegal da resistência à opressão. Juarez Cirino dos Santos, quando avalia o problema da superlotação carcerária, é claro: o problema da fuga de presos (na verdade, um direito do encarcerado, especialmente nas condições carcerárias referidas) constitui forma ilegal (embora legítima) de correção das distorções do processo de criminalização, incidente sobre as classes dominadas (os marginalizados crônicos e eventuais do mercado de trabalho), constituindo elemento de alívio ou de redução das tensões geradas pela superpopulação carcerária.96 No mesmo sentido Dotti, ao afirmar que configuram atos de desobediência civil as reivindicações de presidiários que se rebelam contra a falta de atendimento de seus direitos humanos.97
94 95
96 97
246
Apud Jesus, Código Penal Anotado, p. 96. Jesus, ob. cit., p. 96.
Santos, Direito Penal, p. 296. Dotti, Curso de Direito Penal, p. 428. 247
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Na atual situação dos presídios brasileiros, os conflitos prisionais adquirem feição de ato político reivindicatório e, assim como foram as greves na década de setenta, adquirem a característica da licitude, como visualiza Armida Bergamini Miotto.98
Da diferenciação entre direito de resistência, estado de necessidade e legítima defesa decorre a necessidade de formulação de pressupostos de aceitabilidade da ação tutelar, sob pena de legitimação de condutas bárbaras. As particularidades da situação existente no interior das instituições totais inviabilizam, e por conseqüência descartam, alguns dos pressupostos tidos como necessários pelos doutrinadores do direito de resistência. O primeiro requisito que se encontra prejudicado pela peculiaridade da situação fática é a publicidade da conduta. Por se tratar de instituição total, cujo princípio configurador é o do isolamento, sendo decorrência natural a não visibilidade, a necessidade de publicização da ação inviabilizaria totalmente o ato reivindicatório. Apesar de el carácter público ser uno de los rasgos definitórios de la desobediencia civil que deriva directamente de la filosofía que subyace a esta forma de protesta,99 entende-se como relativa a publicização da conduta devido às circunstâncias particularíssimas do cárcere. O requisito da publicidade diz respeito à negativa de ocultação do fato e de sua autoria, ou seja, é a forma com a qual a sociedade apreende a manifestação. No caso prisional, porém, a ocultação decorre da ação do próprio sujeito violador, excluindo, assim, a absolutização do requisito. O segundo pressuposto a ser analisado é a questão do alcance do termo não-violência, visto ser um dos pontos pacificamente partilhados pelos autores que tratam o tema. A expressão não-violência é tradução do vocábulo sânscrito ahimsa. Seu fundamento é radicado nos julgamentos éticos que concebem a violência como negação da humanidade, retirando-lhe, pois, toda e
qualquer legitimidade. A violência anularia a ‘civilidade’ da conduta. Desde esta noção, a doutrina política deslegitima atos sediciosos nãopacíficos, excluindo-os da esfera do direito à resistência. Contudo, nota Nélson Nery Costa que a não-violência restringe-se somente às pessoas, não alcançando, por exemplo, propriedades: os desobedientes só se comportam com violência, em geral, como resposta às ações repressivas da polícia, ainda assim em circunstâncias especiais. A utilização da força não deve, de modo algum, ameaçar às pessoas, principalmente terceiros não envolvidos, porque ao se atentar contra as liberdades dos outros, perde-se a legitimidade do caráter civil. A violência pode dirigir-se apenas contra as propriedades, como ocupações forçadas de terrenos ou fábricas, quando for imprescindível para o êxito da campanha. A desobediência civil possui índole pacífica, mas está facultada a tática de empregar a força, quando esta significar o fortalecimento dos meios de expressão democráticos.100 Assim, a abrangência do requisito não-violência limitar-se-ia tãosomente à violação de direitos individuais (v.g. vida, integridade física e liberdade), não atingindo a propriedade material – patrimônio público ou privado. Muito embora relativizados os requisitos publicidade e não-violência, em face das circunstâncias particulares das instituições totais, entende-se como absolutos os pressupostos da proporcionalidade entre os bens em litígio e o emprego racional dos meios. Na relação de proporcionalidade entre os bens, a situação de violência imposta pela ação/omissão estatal não justifica o emprego da violência contra a vida ou a integridade física das pessoas implicadas no problema (funcionários da administração carcerária ou terceiros) – a esfera do outro fica intocada.101 No entanto, excluindo os direitos fundamentais das pessoas, qualquer outro bem jurídico pode ser danificado pela inexigibilidade de sacrifício daquele ameaçado/lesado. Quanto à utilização dos meios, a admissibilidade da violência contra o patrimônio é instrumental, visto ser uma das únicas formas de ação disponível no interior do cárcere. Ou seja, ocupação de prédios, depredação e/ou incêndio de bens da instituição ou de uso pessoal, fugas individuais ou coletivas, greves de fome entre outros, constituem meios idôneos. Exclui-se, no entanto, por falta de racionalidade e pro-
98 99
100 Costa, ob. cit., p. 51. 101 Viana, Direito de Resistência, p. 84.
6.3.4. Direito de resistência: condições de possibilidade da descriminante supralegal
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Miotto, ob. cit., p. 300. Estévez Araujo, ob. cit., p. 146.
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porção, por exemplo, a tomada de reféns e o sacrifício de companheiros de cela.102 Todos os requisitos avaliados até o momento são de ordem objetiva: (a) publicidade possível da ação, (b) não-violência contra a pessoa, (c) proporcionalidade entre os bens em litígio e (d) emprego racional dos meios. Cabe, porém, realizar o debate da necessidade da ação ser realizada conscientemente (cognição da realidade fática que legitima a conduta) com o fim de defender-se, ou seja, a (im)prescindibilidade do elemento subjetivo. Nélson Hungria103 chama atenção para o fato de que as justificantes seriam mais propriamente conceituadas como descriminantes ou ‘causas objetivas de exclusão de crime’. Com a presença de tais causas, o fato exsurge intrinsecamente lícito (e não apenas justificado in concreto), inexistindo crime. Diz o autor que a doutrina penal dominante é aquela que exclui qualquer interferência do ‘estado psicológico’ do agente. Para tanto, cita Pozzolini, o qual sustenta que a ação que externamente tem as características de ação criminosa torna-se legítima quando ocorre aquela determinada situação de fato, constituída pelos assim chamados casos de justificação. Todo conceito de imputabilidade e de elemento subjetivo é estranho a esta definitiva concepção das causas de justificação: é a natureza intrínseca da ação, objetivamente considerada, que a faz legítima em si e por si.104 Desde outro ponto de vista, Muñoz Conde defende que para justificar uma ação típica não basta que se dê objetivamente a situação justificante, sendo preciso, ademais, que o autor conheça essa situação e, inclusive, quando assim se exija, tenha as tendências subjetivas especiais que a lei impõe para justificar sua ação.105
Os autores contemporâneos consideram imprescindível o elemento subjetivo nas causas de justificação,106 por entenderem que a atual estrutura da teoria do delito exige avaliação do aspecto cognitivo e volitivo na relação entre a conduta do agente e o resultado por ele produzido. Requisitos objetivos e subjetivos são constantes em todos os níveis de avaliação no estudo estratificado do delito (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), sobretudo após o finalismo welzeliano.
102 Wanda de Lemos Capeller, ao avaliar o relatório da HRW/Americas de 1989, lembra: sobre las condiciones materiales de vida dentro de las cárceles, podemos leer que ‘en Rio, en particular, el sistema carcelário generalmente trata a los seres humanos peor que al ganado recogido para ser llevado al matadero’. Y, dicen incluso que ‘la única forma efectiva de protesta que tienen los presidiários para denunciar las pésimas condiciones en que viven es asesinar a un compañero de prisión. Solamente así consiguen atraer la atención de las autoridades (Capeller, Derechos Humanos y Cárcel, pp. 98-99). De igual modo, relata Kiko Goifman que na capital mineira institucionalizou-se a ‘ciranda da morte’, justificada pela escassez de espaço: em celas superlotadas é feito um sorteio, na maior parte simulado, de onde sairá o nome do preso que morrerá. Violenta estratégia para chamar atenção de autoridades para a precariedade institucional, a eficácia dessa conduta esbarra na banalização da morte (Goifman, Sobre o Tempo na Prisão, p. 15). 103 Hungria, ob. cit., pp. 267-268. 104 Apud Hungria, ob. cit., p. 268. 105 Muñoz Conde, ob. cit., p. 94. 250
6.3.5. Direito de resistência: efeitos jurídicos Estévez Araujo sustenta que toda doutrina que nega a justificação jurídica do direito de resistência sólo puede sustentarse desde los presupuestos de un positivismo estricto o de un decisionismo de corte autoritario.107 O ius resistentiae está inserido no rol dos direitos fundamentais do cidadão como instrumento subsidiário de tutela dos direitos primários – de todos direitos é abrigo, é instrumento, é braço o direito de resistência: abrigo e escudo para a defesa passiva da imobilidade expectante; instrumento e braço para a reacção activa pela força.108 Entretanto, ao contrário do que é anunciado com freqüência pela teoria política, sustenta-se a tese de que não há fundamentação legítima da decisão que submete os resistentes às sanções previstas em lei. Os tradicionais teóricos da desobediência afirmam que a aceitação da penalidade por parte do agente seria pré-condição do ato, ou seja, a submissão do indivíduo à lei contrariada seria pré-requisito da ação desobediente, pois reafirmaria o respeito do grupo pela legalidade estatal. Ora, se se trabalha na esfera dos direitos fundamentais (‘direito’ de resistência) – e com razão Maria Garcia afirma ter sido este direito incorporado pela Constituição em seu art. 5o, § 2o, como direito público subjetivo109 –, se se fala de reivindicações ‘justas’ contra a violação de 106 Entre os autores nacionais que adotam esta postura, conferir Fragoso, ob. cit., p. 185; Santos, Teoria do Crime, pp. 49-58; Reale Jr., ob. cit., pp. 218-219; Mestieri, ob. cit., pp. 183-184; Pierangelli, O Consentimento do Ofendido na Teoria do Delito, pp. 48-49; Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, p. 173. Zaffaroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, pp. 577-578. 107 Estévez Araujo, ob. cit., p. 145. 108 Barbosa, ob. cit., p. 293. 109 Garcia, Desobediência Civil, pp. 259- 265. No mesmo sentido, Repolês, Desobediência Civil como direito fundamental no Estado Democrático brasileiro, pp. 143-149 e Esteves, A constitucionalização do Direito de Resistência, pp. 195-224. 251
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bens jurídicos fundamentais por inadimplemento estatal, não se pode aceitar tal assertiva. Advoga-se, pois, que a exigência de submeter o cidadão ao poder repressivo é despótica. O direito de resistência, como leciona Canotilho, é a ultima ratio do cidadão que se vê ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por actos do poder público ou por acções de entidades privadas.110 Logo, inexigível seria submeter os atores aos efeitos penais e/ou administrativos. No caso penitenciário brasileiro, a observação empírica permite constatar a brutal violação da legalidade constitucional pelos organismos públicos responsáveis pela execução da pena. O direito de resistência, representado pela politicidade das condutas desobedientes (fugas, rebeliões e motins), exsurge, pois, como possibilidade única, e última, de resgate dos direitos dos encarcerados. A propósito, lembra Lenio Streck,111 ao apreciar a lei que estabeleceu a obrigatoriedade do Estado em indenizar os familiares das pessoas mortas ou desaparecidas em razão de atividade política contra o regime militar, que o próprio Estado reconhece, em certas ocasiões, o direito ao exercício da resistência, confessando formalmente práticas ilegítimas contrárias ao Estado democrático de direito. Com o labor investigativo da sociologia jurídica contemporânea direcionada ao reconhecimento da existência de novos sujeitos e de novas fontes produtoras de juridicidade face à insuficiência das fontes clássicas, criam-se novas possibilidades para o resgate da cidadania do preso. O paradigma garantista impõe à estrutura normativa a recepção destes direitos que muitas vezes contrapõem a legalidade estrita e o positivismo rasteiro. A inventividade democrática em seu processo de criação, ruptura e renovação de direitos e garantias, vincula o pensamento humanista ao reconhecimento de um sistema de necessidades humanas fundamentais que, se violadas, independentemente do status jurídico da pessoa, legitimam a resistência. Somente poderá ser legítima, porém, se ancorada por motivação justificada no total e absoluto respeito à cidadania. Em harmonia com os caminhos sugeridos pela teoria crítica do direito, entende-se que a forma de justificar as condutas da massa carcerária contra a situação de violência constante a que estão submeti-
das é a exclusão da ilicitude do ato em face da recepção do direito de resistência como causa supralegal.112 As causas de exclusão (dirimentes ou exculpantes) positivadas representam, em realidade, exercícios de direito. Contudo, ensina Pierangelli que as descriminantes não constituem sistema unívoco e formal que se exaure nos limites dos Códigos. Seria errôneo, nota o autor, pensar-se que as justificativas contidas no Código Penal estabelecem as fronteiras divisórias do lícito com o ilícito. Podem representar uma delimitação expressa, mas não esgotam as causas de justificação. Assim, em todos os casos em que a conduta não contradiz o direito, carece da essência antijurídica; tanto assim é, que não se apresentam antijurídicas quando subsumível em algumas causas de justificação que o Código Penal recolhe e regulamenta.113 As categorias supralegais de exclusão do delito, em nível de tipicidade (princípio da insignificância e princípio da adequação social), ilicitude (consentimento do ofendido) e culpabilidade (inexigibilidade de comportamento diverso), informam e possibilitam ao direito penal um grau de comprometimento e harmonia com a realidade social. São teorias elaboradas a partir de recorte jurídico-sociológico, estruturadas em concepções materiais de racionalidade, que viabilizam a inclusão e recepção de novas demandas sociais pelo direito penal, restabelecendo o vínculo genético entre as instituições jurídicas e a estrutura social. Neste sentido, Frederico Marques, ao analisar a questão das causas supralegais nos atos sem ofensa, sustenta: tal problema está ligado ao das fontes das regras jurídico-penais, e, por isso, não nos parece que se possa, a priori, repelir a possibilidade de justificativa supralegal. O legislador não é onisciente, não lhe sendo dado o dom de prever todas as hipóteses e casos que a vida social possa apresentar nos domínios do Direito Penal. Se as limitações do princípio da legalidade, impostas no Estado de Direito para salvaguarda do jus libertatis, não permitem suprir as omissões e lacunas das normas penais incriminadoras ampliando-se-lhes o campo de incidência através da analogia e dos instrumentos de heterointegração normativa (os costumes e os princípios gerais de
110 Canotilho, Direito Constitucional, p. 676. 111 Streck, O ‘Caso Marighella’ e a Lei 9.140/95, p. 54. 252
112 Interessante discussão sobre a localização do direito de resistência entre as descriminates ou exculpantes em Roxin, Derecho Penal, pp. 532-536, e Jacobs, Derecho Penal, pp. 731-733. Na literatura nacional, em Santos, A Moderna Teoria do Fato Punível, pp. 264-267 e Dotti, Curso de Direito Penal, p. 428. 113 Pierangelli, ob. cit., p. 56. 253
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direito), – o mesmo não sucede com os preceitos contidos na lei penal sobre a esfera dos atos sine injuria praticados no exercício do que Arturo Rocco denominava de direito penal de liberdade.114 É natural, pois, que emerjam dinamicamente na sociedade, em contraste com a produção e manutenção estática das normas penais, novos sujeitos de direito com novas demandas cujo teor democrático das reivindicações deve ser recepcionado como instrumento de resolução dos conflitos contemporâneos. Importante salientar, contudo, que a recepção das causas supralegais limita-se exclusivamente à restrição da incidência do direito penal, ou seja, são causas de exclusão da tipicidade (insignificância e adequação social), culpabilidade (inexigibilidade de comportamento) e, no caso, de ilicitude (consentimento do ofendido e direito de resistência). Nunca, porém, de inclusão. A produção normativa não-institucionalizada nasce da ampliação dos espaços de participação democrática, dos espaços públicos nãoestatais. Cabe, assim, filtrar negativamente estas demandas a partir de um rol principiológico valorativo para avalizar as condições de sua recepção e do seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico. Os limites da aceitação de reivindicações pelos novos sujeitos de direito, localizados à margem do ordenamento jurídico como a ‘massa carcerária’, estão restringidos no valor tolerância. Wolkmer chama atenção que excluem-se da legitimidade aqueles movimentos sociais não identificados com as ações civis e políticas justas, e com os interesses do povo marginalizado, oprimido e espoliado, bem como aqueles grupos associativos voluntários que não questionam a ordem injusta e a estrutura de dominação.115 Desde esta concepção, plenamente possível a inclusão das reivindicações dos presos na esfera da juridicidade, visto serem suas demandas absolutamente legítimas, fundamentalmente porque seu escopo é o de efetivação da própria legalidade estatal sonegada. Assim, olhar para o art. 23 do Código Penal e concluir, em seguida, que ali estão previstas, de maneira exaustiva e perfeita, todas as formas de exclusão da ilicitude, é supor que os fatos sociais se amoldam submissamente às categorias abstratas da legislação. Ou ainda, que a elaboração da lei sempre se realiza com perfeita e integral visão
de tudo quanto possa ocorrer, de futuro, ao serem postos em vigor os preceitos que a regra legislativa contém.116 Defendendo as fugas, rebeliões e motins como uma das poucas ações possíveis, no universo prisional, para manifestação e publicização das reivindicações em virtude da obstaculização fomentada pelos mecanismos de (re)produção do poder, classificam-se tais atos como formas de exercício de direitos. Presumir a legalidade das ações administrativas em sede de execução penal é padecer daquela mesma ingenuidade que supõe a constitucionalidade das leis pelo simples fato de serem Lei. Não só o labor legislativo, mas, principalmente, o exercício do poder tende à ilegalidade. Afirmava o jurisconsulto italiano Orlando que, quando o funcionário age ilegalmente, perde sua qualidade; ele se assemelha a um privado qualquer, que moleste a outro.117 Nestes casos, sustentava Rui Barbosa, nenhum outro limite deverá o indivíduo lesado respeitar senão aquele da legítima defesa, não se verificando nenhum dos dois elementos constitutivos do delito: não o elemento intencional, visto que a resistência se determinou pela ilegitimidade do acto; não o elemento objectivo, porquanto não se tolheu um acto de justiça, antes se obstou à consumação de um acto injusto.118 Assim, os conflitos carcerários previstos nos tipos dos arts. 352 e 354 do CP e nos dispositivos da LEP, quando justamente motivados, teriam (deveriam ter) sua ilicitude excluída. Apesar de típico, o fato estaria sob a chancela da cláusula supralegal, tornando-se lícito. Passível de resposta penal restariam apenas as ações de violência praticadas contra as pessoas durante os conflitos.
114 Marques, ob. cit., p. 143. 115 Wolkmer, Pluralismo Jurídico, p. 289. 254
116 Marques, ob. cit., p. 144. 117 Apud Barbosa, ob. cit., p. 290. 118 Idem, pp. 289-290. 255
Conclusões Os violadores que mais verozmente ofendem a natureza e os direitos humanos jamais são presos. Eles têm as chaves das prisões. Eduardo Galeano De pernas pro ar
01. Michel Foucault, na clássica obra ‘Vigiar e Punir’, percebe como complexa a função social da punição. Para explicar sua dinâmica, desenvolve dois modelos repressivos que pendem entre os suplícios e as disciplinas, ou seja, entre o castigo e a vigilância, sendo transpassados horizontalmente pelo objetivo da generalização da punição. Com a extinção da melancólica festa das punições, em decorrência do surgimento dos movimentos ilustrados humanistas, a teatralidade física da pena é abandonada. Todavia, sustenta Foucault que o verdadeiro objetivo da reforma, e isso desde suas formulações mais gerais, não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais eqüitativos; mas estabelecer uma nova economia de poder de castigar, assegurar uma nova distribuição dele, fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais entre instâncias que se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda a parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social.1 A apropriação dos corpos dá espaço, no novo modelo de sociedade (pré-industrial), às disciplinas. Surge, portanto, a necessidade de não punir menos, mas punir melhor; punir disciplinarmente sob a justificativa da Defesa Social. A legitimidade desse discurso seria fornecida pela teoria geral do contrato, na qual o direito de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade.2 A justificativa contratualista permite conceber o criminoso como um ser juridicamente paradoxal, pois violou o contrato por ele mesmo firmado, ou seja, participa ele próprio da sua punição. O que se percebe na tese foucaultiana é a figuração do garantismo ilustrado como um ritual de passagem entre os suplícios do modelo inqui1 2
Foucault, Vigiar e Punir, p. 75. Idem, p. 82. 257
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sitorial e as disciplinas da criminologia etiológica. Adquire, pois, uma função de legitimação das teorias da pena nas sociedades industriais. Os modelos dicotômicos formulados por Foucault polarizam corpo (suplício) e alma (disciplinarismo), sendo o discurso garantista clássico entendido como o elo de ligação entre a manifestação gótica do poder e o correcionalismo adestrador dos ‘corpos dóceis’ – as luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas.3 É importante perceber, no entanto, que sempre as manifestações do poder penal repressivo voltaram-se para a modificação da ‘alma’, do ‘ser’ do ‘Outro’. Mesmo no modelo jurídico inquisitorial os suplícios adquiriam forma de expiação e redenção pela dor: o herege submetiase à pena para reabilitar sua interioridade perante o Divino. Nos modelos disciplinares, é no adestramento psíquico que a prática substancialista encontra guarida. Ou seja, historicamente, o sistema penal direcionou-se à interioridade do agente, punindo a pessoa por sua condição diversa. A diferença entre os modelos normalmente ocorre em sua fundamentação moral ou naturalista. Na primeira, o desviante aparece como pecador; na segunda, enfermo.
minismo possibilitou. De Boétie, passando por Locke e Voltaire, aterrissando posteriormente na matriz jurídico-penal de Beccaria, Verri, Feuerbach e Marat, intentou-se fundamentar uma teoria heteropoiética5 do direito e do Estado, consolidada a partir do processo de racionalização. O processo histórico de reconhecimento de direitos fundamentais possibilita ao Estado moderno limites e deveres de ordem interna (Constituições) e externa (direitos humanos), auferindo legitimidade às normas e à atividade do poder. Ao configurar uma teoria limitadora do poder estatal na esfera penal, o garantismo fomenta, em igual ordem de importância, atividade positiva do ente público em prover ao máximo a sociedade no âmbito social. De teoria meramente restritiva, o garantismo contemporâneo constitui-se numa duplicidade de ações e inações. Inação no que tange à ingerência na esfera do privado (estrutura liberal), garantindo a diversidade e o pluralismo; ação no plano público, proporcionando a isonomia (estrutura social). Importante frisar, ainda, que a teoria garantista parte de uma visão pessimista das relações de poder – não existe bom príncipe que se possa opor ao mau tirano. Amável ou cruel, ele, de qualquer modo, não é ao príncipe a quem o povo serve?6 Esta premissa é a chave de leitura desta teoria filosófico-política. Admitir, porém, a premissa do Estado como entidade intrinsecamente má não leva, inexoravelmente, a uma concepção otimista do homem como bom selvagem. A propósito, esta discussão parece de todo trivial e sem maior relevância na atualidade, visto ser a natureza humana extremamente contraditória, residindo aí o belo. O que a matriz garantista possibilita é a compreensão de que o indivíduo é ‘humano, demasiado humano’, sujeito de virtudes e perversões, movido por desejos, pelas paixões e, quiçá, pela razão. E é efetivamente para sublimar as paixões e proporcionar um grau aceitável de composição dos conflitos sociais que nasce o Estado moderno, no qual o direito adquire importância como razão artificial.
02. No entanto, o iluminismo penal, ao contrário da proposição foucaultina, foi potencializado no trabalho. Não se concebe no texto o discurso da ilustração como mero ritual de passagem das punições em nome do Príncipe às sanções defensivas da sociedade sob o enfoque disciplinar; muito menos como arcabouço legitimante da transformação do ius puniendi. A doutrina da ilustração representa, sob a ótica garantista, verdadeiro discurso sedicioso e marginal que (cor)rompe este sistema. Estruturada na secularização e na tolerância, ergue a bandeira do direito à perversidade. Indubitável perceber, contudo, para que não se tenha uma visão romântica do movimento ilustrado, que a progressiva consolidação da ordem social e política burguesa soterrou esta virtude libertária do pensamento iluminista que tinha teorizado o não intrometimento do Estado na consciência do cidadão, a intangibilidade da esfera intelectual e moral das pessoas, a sua imunidade não apenas diante da punição mas também diante do controle do Estado.4 Muito embora presente este alerta, procurou-se demonstrar, no processo de construção do garantismo, o caráter de ruptura que o ilu3 4 258
Foucault, ob. cit., p. 195. Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 489.
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Consideram-se doutrinas heteropoiéticas todas as doutrinas segundo as quais a legitimação política do direito e do Estado provém de fora ou de baixo, isto é, da sociedade, compreendida como soma heterogênea de pessoas, de forças e de classes sociais (Ferrajoli, ob. cit., p. 924). Novaes, Experiência e Destino, p. 15. 259
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03. O modelo de garantias, apesar de sua pretensão generalista, surge como modelo jurídico-penal de minimização da violência (institucional e/ou privada); interpretando o exercício do poder como perverso, tendente ao abuso, e permitindo a constante reafirmação dos direitos fundamentais. Sob o signo da tutela do mais fracos – ofendido no momento da lesão, réu no momento do processo e condenado no momento da execução –, o modelo minimalista intenta viabilizar arcabouço teórico de radical contração dos processos de criminalização, delineando uma teoria jurídica de contração da violência da pena. A perspectiva realista do poder viabiliza, de igual modo, um deslocamento do problema da cominação, aplicação e execução da pena do espaço jurídico ao espaço político. A identificação simbólica da pena com a guerra, orientação já prescrita no século passado por Tobias Barreto,7 possibilita nova orientação ao direito e ao processo penal, principalmente em sua fase de execução. Sustenta Zaffaroni que existe paralelo bastante grande entre a guerra e o poder punitivo: la guerra es un ejercicio de poder que está deslegitimado incluso normativamente a nivel internacional. Sin embargo, existe. Existe como dato de la realidad, como un hecho político, como un hecho de poder.8 Chama atenção o autor de que se vive numa verdadeira ‘esquizofrenia secular’ ao tentar legitimar a pena, fundamentalmente a pena privativa de liberdade. Assim, para la pregunta por el fin de la pena, tengo una respuesta que creo que a estas alturas del siglo y del milenio es necessario asumir. La pena es un fenómeno político, no tiene absolutamente ninguna finalidad de caracter racional. La hemos inventado nosotros como necessidad para legitimar el ejercicio de poder político verticalizador y corporativizador de la sociedad... Creo que a partir de considerar a la pena como un hecho de poder, como un hecho político, es que podemos reducir el ámbito del poder punitivo, postular la reducción del ámbito de poder punitivo como un objetivo político sumamente claro.9 Em sendo fenômeno da política, a pena não afirmaria o direito; pelo contrário, simbolizaria sua negação, pois fundada na violência e da imposição incontrolada de dor e sofrimento. O caráter incontrolável, desmesurado, desproporcional e desregulado da política reivindica, no
âmbito das sociedades democráticas, limite. O direito, nesta perspectiva, resultaria necessário como alternativa à política, justificando-se exclusivamente como técnica de minimização da violência e do arbítrio. Frise-se, portanto, que não há, no interior da teoria garantista, (re)legitimação da pena. Legitima-se, ao contrário, o direito, entendido como regulador-inibidor da violência da sanção. A constatação de Zaffaroni é extremamente pertinente: se pueden hacer esfuerzos normativos por contener su violencia, por reducirla un día para que desaparezca pero, de momento, no puede desaparecer la guerra como fenómeno de poder. Quizá con el poder punitivo podemos pensar lo mismo: el poder punitivo no está legitimado y nos hemos ocupado de legitimarlo y con eso hemos separado el discurso de la realidad durante ocho siglos.10 Visualizar realisticamente o fenômeno da pena, deixando de lado a ‘esquizofrenia secular’ que busca metafisicamente a legitimação do ilegítimo,11 permite ao jurista orgânico realizar diagnóstico preciso do problema e, assim, elaborar discurso capaz de contrair o poder punitivo – podemos redefinir el derecho penal de la misma forma que el derecho internacional humanitário, y concebirlo como un discurso para limitar, para reducir, para acotar y eventualmente, si se puede, para cancelar el poder punitivo. Con esto volveríamos, de alguna manera, a refundar un derecho penal liberal, una segunda versión del derecho penal liberal, no la del comienzo del siglo pasado, sino una versión mucho más sana en su fundamento.12 Desde esta perspectiva, há possibilidade de recuperar a capacidade ilustrada do direito penal sem incorrer no falso dilema justificacionismo versus abolicionismo. Fundamental, pois, (re)fundar o direito penal a partir de uma teoria agnóstica da pena, teoria que denuncia como falso e irreal tudo o que foi dito sobre a punição, principalmente sua finalidade medicinal. A assunção do caráter político da pena permite ao jurista conceber a minimização dos poderes arbitrários, criando rígidos critérios para a cominação (proporcionalidade e razoabilidade), aplicação (objetivação dos requisitos judiciais) e execução (jurisdicionalização absolu-
7 8 9 260
Barreto, Fundamentos do Direito de Punir, pp. 647-650. Zaffaroni, Sentido y Justificación de la Pena, p. 38. Zaffaroni, ob. cit., pp. 40-41.
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Zaffaroni, Qué Hacer con la Pena? Las Alternativas a la Prisión, p. 04. Luiz Alberto Machado ensina que a pena é imposta como castigo, devendo estar livre de preocupações metafísicas de prevenção do crime e ressocialização do criminoso. Aliás, percebe o autor que, sobre a hipócrita afirmativa da recuperação, são mantidos os mais desumanos e medievais suplícios (Machado, Uma Visão Sistemático-Dogmática da Pena, p. 119). Zaffaroni, ob. cit., p. 03. 261
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ta) da pena. Permite, finalmente, ao operador da execução, atuar ciente da institucionalização deteriorante do cárcere, voltando sua ação para neutralizar ao máximo o efeito da prisionalização (programa de redução de danos desde a ótica da vulnerabilidade).
diferente’ que deve ser assegurado em toda sociedade verdadeiramente pluralista e democrática.14 Ingênuo pensar, entretanto, que a jurisdicionalização, por si só, nutre a execução penal das garantias necessárias. Além da tensão existente entre os sistemas de execução, outro obstáculo no interior do modelo jurisdicional inviabiliza o gozo pleno dos direitos pelo apenado, qual seja, a opção pela matriz processual inquisitiva. Não basta, como afirmado, jurisdicionalizar a execução se esta (jurisdicionalização) é pautada por modelo processual autoritário e se a este inquisitorialismo normativo é agregado a selvageria gótica da realidade penitenciária.
04. A opção pelo rompimento teórico e ideológico com o modelo do tratamento advém, fundamentalmente, da imposição ilustrada de secularização do direito. A pena, desde uma perspectiva secularizada, não pode servir como instrumento de reforço ou imposição de uma moral. A interioridade do sujeito está imunizada contra qualquer tipo de intromissão estatal. O caráter e as inclinações pessoais não podem ser objeto de valoração pelo direito penal. Outrossim, ao advogar a constitucionalidade do princípio da secularização, entende-se que o fundamento ressocializador da pena não foi recepcionado pela Carta de 1988. Ou seja, o modelo do tratamento não preenche os requisitos mínimos para plena harmonização com a Constituição. A preservação da interioridade (verdadeira esfera do inegociável e inatingível) é profundamente abalada pela imposição legal da recuperação ao condenado, não podendo ser admitida sua assimilação pelo ordenamento desde um necessário processo de filtragem constitucional. Negar o fundamento ideológico da LEP não significa, contudo, descartar outros princípios decorrentes do seu texto como, por exemplo, o da jurisdicionalização. Pode-se afirmar, inclusive, que o modelo ressocializador é diametralmente oposto ao princípio da jurisdicionalização, visto que este obriga o Estado de Direito a reconhecer, no condenado, um cidadão – embora privado de alguns direitos e garantias – mantenedor de suas qualidades de ser humano.13 Desde a perspectiva exposta ao longo do texto, inconcebível obrigar o sujeito a qualquer tipo de medicina, visto o resguardo do direito à perversidade, o direito de ser e continuar sendo quem deseja sem interferências externas. Notáveis as palavras de Anabela Miranda Rodrigues quanto ao problema suscitado: o ‘tratamento’, quer seja realizado em liberdade, quer em caso de sua privação, é sempre um direito do indivíduo e não um dever que lhe possa ser imposto coativamente, caso em que sempre se abre a via de uma qualquer manipulação da pessoa humana, redobrada quando esse tratamento afeta a sua consciência ou a sua escala de valores. O ‘direito de não ser tratado’ é parte integrante do ‘direito de ser 13 262
Machado, ob. cit., p. 114.
05. Durante a última década do século XX, principalmente após o massacre na Casa de Detenção, Complexo Penitenciário do Carandiru (SP), inúmeras ONG’s delinearam o perfil do cumprimento da pena privativa de liberdade executada em regime fechado no Brasil. Anistia Internacional, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Human Rights Watch, Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa, entre as mais relevantes instituições não governamentais, foram unânimes em relatar a brutalidade do sistema penitenciário. As carências materiais descritas eram/são tamanhas que a simples presença de condições mínimas para manutenção de pessoas em regime de enclausuramento (v.g. material de higiene, produto de limpeza, gêneros alimentícios, material farmacológico, entre outros) eram/são percebidas pelos agentes do poder público e pela comunidade carcerária como conquistas imensuráveis. Não obstante o déficit material, sabe-se que o ambiente de enclausuramento é naturalmente propício a conflitos (rebeliões e motins) e ‘ações libertárias’ (fugas). O quadro de abandono administrativo, nestas circunstâncias, incrementa a violência e o sofrimento intrínseco à instituição total, potencializando ainda mais a reação por parte da ‘massa carcerária’. Desde esta perspectiva, analisaram-se as condições de possibilidade do ius resistentiae desde dois pontos: (1o) a criação de zonas de ilicitude nos atos de resistência da ‘massa carcerária’ ao status quo; e (2o) a ineficácia dos instrumentos normativos, bem como da arte jurisprudencial, para assegurar direitos aos apenados. Em realidade, notou-se que a estrutura do controle penal cria um sistema de (sobre)criminalização dos conflitos carcerários, partindo do 14
Apud Franco, ob. cit., p. 106. 263
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pressuposto da impossibilidade de justificação das ações dos apenados. Inexiste teoria que admita, em sendo as ações rebeldes pautadas por ‘motivos justos’ (reivindicações de luta da legalidade negada – v.g. contra superlotação, pela transferência de regimes, pela concessão de direito ao trabalho e, conseqüentemente, à remição, pela progressão de regime) incidência de causas descriminantes. Assim, mesmo consideradas ‘justas’ as reivindicações, o sistema obstaculiza a exclusão do ilícito por crer que os seus mecanismos positivados são idôneos para garantir os direitos dos apenados. O equívoco é fruto da incapacidade da dogmática jurídica para entender os novos conflitos sociais. A incapacidade técnica, porém, não pode gerar abstenção por parte do jurista, principalmente quando a omissão estatal instiga os conflitos. Conjugando teoria política e teoria do delito, o recurso visualizado como idôneo para justificar as ações dos apenados foi o ius resistentiae. Desta forma, nos casos de inefetividade dos direitos em sede de execução penal em decorrência da inação administrativa ou da incapacidade dos instrumentos de tutela, sustentou-se o direito de resistência como garantia externa de proteção dos direitos fundamentais. Entendido como causa supralegal de exclusão da ilicitude, seria o mecanismo legítimo para resguardo dos apenados contra a sistemática violação de seus direitos fundamentais. É que a realidade carcerária brasileira traduz uma incapacidade histórica do poder público em efetivar os direitos dos cidadãos. Mais, indica a incompetência na racionalização dos desejos de vingança de uma sociedade videocratizada isenta de filtros capazes de ofuscar a emoção e negar a punição desenfreada/generalizada. Nesse momento, parafraseando Beccaria, tudo se torna incerto e duvidoso, visto que as garantias são negadas pelo próprio sujeito tutelar. O garantismo aparece, pois, como discurso sedicioso, de resistência ao modelo defensivista de (re)produção da violência, negando falsas percepções da realidade e revitalizando a capacidade racionalizadora do direito. No atual estado de selvageria gótica em que se encontram as prisões nacionais imprescindível resgatar o discurso iluminista. Necessário, pois, ‘ritornare indietro’, soterrando os postulados da criminologia etiológica e neutralizando as sementes antiliberais do velho discurso penal clássico, propugnando uma práxis garantista fértil à efetivação dos direitos fundamentais e que tenha como norte a minimização do sofrimento das ‘classes convocadas’ pelo sistema penal. 264
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Posfácio Tântalo no Divã (Novas Críticas às Reformas do Sistema Punitivo Brasileiro) “Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade, e ela corre grave perigo, formas mais duras desse direito voltam a se manifestar” (Nietzsche, Genealogia da Moral, II, § 10).
01. O crime de Tântalo e a condenação aos infernos: o Tártaro Homero relata, no Canto XI da Odisséia, a descida de Ulisses, filho de Laertes, da estirpe divina de Zeus, ao Hades, em seu intuito de consultar a alma do tebano Tirésias. Após atravessar cachoeiras enormes e rios violentos, chegando de nau na região das trevas espessas a qual ninguém jamais ousara alcançar, Ulisses se depara com as mais atrozes purgações, impostas ao mais terríveis crimes cometidos. Entre os inúmeros pecadores, incluindo sua própria mãe, encontra “a mãe de Édipo, a bela rainha Epicasta, a quem o filho, assassino do pai, por esposa tomara.” Vê Tício, estendido ao solo, “(...) ao lado seu dois abutres vorazes laceravam-lhe o fígado pelas membranas rasgadas, sem que ele afastá-los consiga” (HOMERO: 1960, 168176). Assiste Sísifo na vã tentativa de arrastar gigantesca rocha, pois cada vez que chegava ao topo da montanha, a pedra retornava ao ponto inicial, impondo novo e interminável esforço físico. Depara-se também com Tântalo, governador da Frígia, descendente direto de Zeus, condenado pelos deuses a sofrer eternamente nos infernos. Segundo a mitologia, em decorrência do amor e da estima que os deuses nutriam por Tântalo, possuía livre acesso ao Olimpo, sendo convidado freqüentemente para participar dos festejos e banquetes. No entanto, em determinada ocasião, abusa da amizade e confiança, traindo os imortais. Inúmeras e controversas são as versões apresentadas para justificar sua condenação e a terrível pena imposta. A revelação de segredos 285
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divinos aos amigos mortais; o furto de néctar e ambrosía (bebida e comida exclusiva dos deuses) para deleite com suas concubinas; o falso juramento prestado a Zeus ao negar a posse do cachorro sagrado furtado por Pandareo do santuário divino e a ele confiado (em outra versão Tântalo teria prestado falso juramento a Hermes quando indagado sobre o desaparecimento do cachorro de Zeus); a negação da divindade de Apolo (Sol), afirmando tratar-se apenas de uma esfera de fogo; o rapto do príncipe Ganimedes, cuja beleza fizera com que Zeus, enamorado, se convertesse em águia para raptá-lo e levá-lo ao Olimpo... No entanto, de todos os delitos imputados o mais grave teria sido a tentativa de enganar as divindades com intuito de colocar em dúvida sua capacidade de discernimento. Embora as inúmeras faltas cometidas por Tântalo, gerando severas desconfianças, os deuses aceitaram o convite de hospedagem em seu palácio durante suas andanças pelo reino da Ásia Menor. Motivado pela curiosidade de comprovar se seus hóspedes eram realmente divinos, o anfitrião sacrifica seu filho Pélope, servindo-o cozido aos convidados. Com exceção de Demeter – que abatido com a perda de sua filha Perséfone (Plutão a havia raptado e a levado ao Hades) comera um pedaço do ombro do filho esquartejado –, todos os deuses perceberam a artimanha, negando-se a participar do insólito banquete. Por ordem de Zeus, o pequeno Pélope é ressuscitado, sendo o ombro faltante substituído por outro de ouro. O sacrilégio de Tântalo é punido severamente: a sanção é o confinamento no imenso asilo de almas que Plutão governava sob a terra. Os delitos (homicídio e sacrilégio) eram dignos da fúria das divindades, sendo o castigo a condenação ao Tártaro. Plutão, filho de Saturno, herdou o mundo subterrâneo dos mortos. A ele cabia julgar e encaminhar os espectros ao Hades – reino formado por uma imensa planície subterrânea na qual os que cometeram grandes delitos em vida vagam e sofrem à espera da reencarnação. O Tártaro, local mais profundo das entranhas da terra, é localizado abaixo do Hades. Após ter sido o Hades dividido em compartimentos – Campos Elísios (local temporário de purgação) e Érebo (residência também temporária de sofrimento constante) –, o Tártaro se tornou o local de suplício dos grandes criminosos. O julgamento impõe a Tântalo o eterno sofrimento da sede e da fome. Preso no abismo impenetrável do Tártaro a um imenso lago com água ao pescoço, o condenado não pode saciar sua sede, pois cada vez que tenta beber o líquido seca, recusando-se a umedecer-lhe a gargan-
ta. As árvores, carregadas de saborosos frutos e localizadas sobre sua cabeça, igualmente não lhe permitiam saciar a fome, visto que seus galhos, pela ação do vento, escapam das mãos na menor tentativa de aproximação. Ao adormecer, Tântalo sonha com assados e néctares dispostos em uma imensa mesa, cujo banquete é preparado com exclusividade para o seu deleite. O sofrimento, nas palavras de Ulisses, é aterrador:
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“Vi, também, Tântalo, e o modo por que ele, com pena indizível, num lago estava metido, com água a bater-lhe no queixo. Sede sofria; mas era impossível jamais minorá-la, pois quantas vezes o velho tentava beber e abaixava-se, era toda a água absorvida, escoando-se; negro surgia-lhe dos pés à volta do terreno, que sempre um demônio secava. Árvores altas com frutos vergavam-lhe sobre a cabeça; eram pereiras, romeiras, macieiras de frutos opimos mais oliveiras viçosas e figos de gosto agradável. Mas quantas vezes o velho tentava com a mão alcançá-las, o vento forte as tocava para o alto, até as nuvens sombrias.”(HOMERO: 1960, 176) Não obstante inúmeras interpretações do mito reforçarem a idéia da severidade da pena pelo delito de parricídio, uma das leituras do desatino de Tântalo visualiza em Pélope a representação dos desejos da carne, dos desejos do “humano, demasiado humano”. A convivência com os deuses subtraíra de Tântalo a capacidade de se sentir mortal, impondo-se o desejo de permanecer na falsa condição de divindade. O retorno do Olimpo representaria uma queda. Assim, se o filho representa os desejos naturais da carne, Tântalo, ao servi-lo, procura negar a mundanidade do mundo para atingir a suprema condição de Deus. O desejo humano da divindade, porém, realça a fúria divina, sendo a sanção implacável.
02. Os pecados do Poder: a vivificação contemporânea do Tártaro Comparada aos campos de concentração nazista, “a Casa de Detenção ganha em maldade, em sofrimento humano (...)” (REARDON: 1999, 28). A entrevista proferida em 1999 por Francisco Reardon para o periódico Caros Amigos parecia ser o diagnóstico intransponível do sistema 287
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penitenciário brasileiro. Os relatos sobre a crueldade no trato dos presos (provisórios e condenados definitivamente) no Complexo do Carandiru de São Paulo, naquele momento antecedente à sua desativação, sugeria que a “bomba relógio” chegava ao seu limite máximo de contenção. O sentimento generalizado das pessoas que trabalha(va)m, direta ou indiretamente com a execução penal, era de que, se medidas urgentes não fossem tomadas, o sistema não suportaria, culminando em eclosão de violência similar àquela que, no mesmo local, levara ao extermínio de 111 presos pelos órgãos do Estado (“Massacre do Carandiru”). À entrevista de Reardon somava-se o impacto causado nos organismos internacionais de tutela dos direitos humanos de inúmeros relatórios sobre a miséria da execução da pena no Brasil. A Anistia Internacional, após averiguar in loco 33 instituições em 10 Estados, sustentava que o descaso do Poder Público com o sistema penitenciário “inflige terríveis violações dos direitos humanos a muitos daqueles que passam pela sua engrenagem” (AI: 1999, 04). A Human Rights Watch em seu relatório concluía que “as condições carcerárias no Brasil são normalmente assustadoras” (HRW: 1998, 01). Ao final da década de 90 era notório o crescimento da população carcerária nacional, sendo que a omissão estatal em investir na infraestrutura fornecia sérios indícios de que a situação tendia a ficar cada vez mais grave. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) divulgava, em 1995, após superar as imensas dificuldades decorrentes da inexistência de dados palpáveis sobre a população carcerária nos Estados, o Censo Penitenciário Nacional. Naquele momento, as fontes oficiais indicavam que o número total de presos no Brasil era de 148.760, dos quais 28,4% eram presos provisórios. O índice de encarceramento – razão entre o número de presos e o índice populacional (100.000 habitantes) – chegava a 95,5. Em estabelecimentos inadequados, 29,8% dos apenados cumpriam pena; no regime fechado, 75,1% era o número de pessoas presas; o déficit funcional chegava a 75.887 vagas. Em 1997, este déficit subira para 96.010, indicando que em cada vaga prisional havia 2,3 pessoas – levando-se em conta os sempre otimistas números oficiais e os criticáveis critérios de consideração da existência de uma vaga, pois normalmente não são os legalmente estabelecidos no art. 88, parágrafo único, ‘b’ da LEP (06 m²/preso). Dados atuais corroboram o diagnóstico do crescente aumento das taxas de encarceramento. O Departamento Penitenciário Nacional, divulgando dados de junho de 2003, informa que a população carcerária do Estado de São Paulo, o qual possui 23% dos apenados do país,
crescera 13% em relação ao ano de 2002, chegando a um índice de encarceramento de 320 presos. O déficit funcional alcançava 43.659 vagas. Dos 118.389 presos, 32.856 estavam em prisão provisória e 74.580 cumpriam pena em regime fechado. Em Minas Gerais, na mesma época, embora a taxa de encarceramento fosse menor (124 presos), a situação não era diversa, pois eram 22.253 presos distribuídos em 5.059 vagas, gerando um déficit de 17.194 postos. Desta população, 7.639 pessoas estavam presas cautelarmente e 10.275 cumpriam pena no regime fechado. O quadro retratado em São Paulo e Minas Gerais, que não escapa substancialmente da realidade dos demais Estados da federação, demonstra, reconstruindo a fala de Reardon, ser possível algo mais que Auschwitz. A crueldade e o descaso da Administração Pública, do Judiciário e do Legislativo, poderes com capacidade direta de intervenção nesta triste realidade, simplesmente demonstram que “os presidiários comuns são as verdadeiras vítimas esquecidas das violações dos direitos humanos no Brasil, onde os detentos são submetidos a condições e a tratamento extremamente severos, como por exemplo uma superlotação de 500%, o recurso rotineiro a violência e tortura pelos guardas, más condições de higiene e freqüente recusa de acesso a assistência médica, mesmo no caso de presidiários paraplégicos ou portadores de doença terminal. Os incidentes de revolta, fuga e tomada de reféns são freqüentes, em parte resultante das pavorosas condições de detenção. Em várias ocasiões a Polícia Militar reage com a execução extrajudicial de detentos” (AI: 1998, 15). A conduta omissiva e comissiva do(s) Poder(es) vivifica, na contemporaneidade, os horrores do Tártaro, atestando ser a prisão o local mais abominável e de difícil acesso aos “humanos”. A atividade legislativa da década de 90, em muito potencializada pelo conjunto de normas constitucionais penais programáticas que impuseram ao legislador ordinário uma feroz produção de Leis, ampliou as hipóteses de criminalização primária (seleção de condutas delitivas) e enrijeceu o modo de execução das penas, na grande maioria das vezes indo além do permitido constitucionalmente (inconstitucionalidade por excesso). O resultado desta experiência legiferante foi a dilatação do input do sistema e o estreitamento do output. Assim, paralela à criação de inúmeros novos tipos penais, normalmente dispostos em Leis penais especiais, houve alteração na modalidade de cumprimento das sanções, sobretudo pela inovação introduzida pela Lei 8.072/90, no que tange ao aumento de penas, à impossibilidade de pro-
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gressão de regime, à maximização do prazo para livramento condicional e a conseqüente obstrução de comutação e indulto aos delitos taxados de hediondos. Não obstante, em matéria processual penal, a consolidação da inquisitorialidade do Código de Processo Penal (CPP) fomentou um alargamento da criminalização secundária (incidência das agências penais). Desta forma, não apenas as possibilidades de prisão cautelar foram (re)estruturadas – v.g. prisão temporária (Lei 7.960/89) e novas espécies de inafiançabilidade e vedação de liberdade provisória (Leis 7.716/89, 8.072/90, 9.034/95 e Lei 9.455/97) –, como foi criada, em absoluta ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência, modalidade de execução de pena sem o trânsito em julgado de sentença condenatória (Lei 8.038/90). Ao excesso do legislador é acrescido o terrível “pecado Judiciário”. Se padece o poder derivado de ter produzido inúmeras normas que maximizaram o sistema punitivo, em sua maioria em ofensa explícita aos dispositivos da Constituição, esta culpa deve ser dividida, pois o Legislativo encontrou no Judiciário conveniente cúmplice. Como se sabe, determinados princípios constituem a base do Estado Democrático de Direito, de forma que ao legislador não é defeso escolher aleatoriamente, como se possuísse “carta branca”, a matéria sobre a qual deseja legislar, ou seja, os princípios garantidores regulam esferas que não podem ser objeto de deliberação (esfera do indecidível). Em havendo abuso por parte do Poder Legislativo, o sistema de freios e contrapesos impõe ao Judiciário a tarefa de deslegitimar normas que ofendam a principiologia estuturante do ordenamento jurídico através dos mecanismos de controle de constitucionalidade (direto ou difuso). No entanto, ao contrário do esperado, o Judiciário tem se mostrado condescendente com os abusos do Legislativo, omitindo-se da fiscalização de constitucionalidade das Leis penais. Não apenas no que diz respeito ao controle concreto, mas principalmente em relação ao difuso, o Judiciário tem descuidado da necessária limitação dos excessos normativos. O Legislador, neste quadro, não encontra qualquer freio à violação da Constituição. Pelo contrário, encontra no Judiciário guarida do seu produto inquisitivo. Não é difícil compreender, portanto, a co-responsabilidade dos operadores do direito no caos do sistema penitenciário. A determinação do regime integral fechado pela Lei dos Crimes Hediondos, a banalização no decreto das prisões cautelares, a não aplicação das penas substitutivas à prisão, a omissão no que tange à intervenção nos pre-
sídios por força do excesso de execução, a burocratização na análise dos incidentes executivos e a criação de critérios ultra legem (metaregras) para apreciar os direitos públicos dos apenados são exemplos concretos de como o Judiciário tem sido partícipe na efetivação do suplício carcerário nacional. A terceira aresta da estrutura de vitalização do Tártaro na contemporaneidade é aquela fornecida pelo Executivo. Não apenas pela banalizada crítica da falta de investimentos em pessoal e infra-estrutura (omissão administrativa), o Poder Executivo, comissivamente, através das Secretarias de Estado de Justiça e de Segurança Pública, tem incrementado o “Estado penitência”. Se é certo que investimentos mínimos na melhoria das casas prisionais trariam uma qualidade de vida doméstica menos insalubre aos apenados, igualmente é correto sustentar que, em relação às políticas disciplinares, a omissão estatal produziria efeitos menos perversos do que os alcançados com sua ação terrorífica. É que durante a década de noventa, correlato ao incremento punitivo operado pelas políticas criminalizadoras adotadas pelo Legislativo e legitimadas pelo Judiciário, o Poder Executivo, sobretudo os estaduais, através de Portarias, tem (re)significado a idéia de disciplina trazida na Lei de Execução Penal. Desta forma, em que pese as críticas ao falso humanismo da Nova Defesa Social – substrato ideológico que informou a elaboração da Lei penitenciária – serem variáveis possíveis e precisas, nas atuais acepções auferidas à pena, o gosto romântico do ilusório humanismo parecer (re)nascer como triunfo não gozado.
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03. Do Tártaro empírico ao Tártaro normativo: o processo de (re)significação da disciplina Em meados do primeiro semestre de 2003, após a divulgação pela imprensa de projetos de modificação da estrutura normativa da política penitenciária, os principais institutos nacionais de estudos da violência – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC), Instituto Carioca de Criminologia (ICC), Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP), Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ) e Instituto de Ciências Penais de Minas Gerais (ICP/MG) –, mobilizaram-se na criação do Movimento Antiterror (MAT). Como objetivo principal, o MAT procurava “sensibilizar os poderes do Estado, os administradores e trabalhadores da justiça 291
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penal, os meios de comunicação, as universidades, as instituições públicas e privadas, e os cidadãos de um modo geral, para a gravidade humana e social representada por determinados projetos que tramitam no Congresso Nacional e que pretendem combater o aumento da violência, o crime organizado e o sentimento de insegurança com o recurso a uma legislação de pânico” (MAT: 2003, 07). O principal fator que mobilizou o MAT foi a tramitação no Congresso Nacional de projeto de Lei que instituía o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD): normativa cujo conteúdo criava, no caótico sistema penitenciário brasileiro, uma forma absolutamente diversa de apartação da pessoa presa rotulada como ameaça à segurança social. O conteúdo do projeto apresentado causou espanto à comunidade jurídica visto a adoção explícita de formas absolutamente desumanas de execução da pena privativa de liberdade, especialmente aquela cumprida em regime fechado. Se a Lei 8.072/90 produzira o incremento nos níveis de encarceramento e a barbarização do sentido normativo-humanitário previsto na LEP, a modalidade proposta de cumprimento da sanção surpreendentemente gerava espécie de regime integralmente fechado plus. O projeto fora baseado em Portaria que o Governo do Estado de São Paulo havia instituído para “controlar” uma série de incidentes em seu sistema carcerário (fugas, rebeliões e motins) durante o ano de 2002. A Portaria nominara o RDD, criando inúmeras restrições aos direitos dos presos considerados perigosos. O direito de defesa, p. ex., foi limitado sobremaneira, inclusive no que concerne ao contato do preso com seu advogado. Apesar da absoluta ilegalidade do ato, sobretudo porque a LEP delega ao Poder Público estadual apenas a atribuição de disciplinar sanções e procedimentos de apuração de faltas leves e médias, restringindo, pelo princípio da legalidade (art. 45, LEP), ao Legislativo federal a disciplina dos fatos considerados como falta grave (art. 49, LEP), o RDD obteve ampla aplicação na condução da execução da pena dos suspeitos de participação em organizações criminosas. Com forte apoio da imprensa, o Parlamento foi instigado a universalizar o regime diferenciado através de alteração na legislação federal. O projeto de generalizar o novo regime penitenciário atingiu seu ápice quando os veículos do mass media passaram a difundir e vincular a imagem do advogado, e subliminarmente a idéia de direitos e garantias, com a do réu/condenado preso – principalmente nos casos de crimes graves como tráfico ilícito de entorpecentes e tráfico de armas –, comunicando a falsa associação entre direito de defesa e conivência
com o crime. Assim, o elo do advogado com o criminoso passou a reforçar, no senso comum teórico do homem da rua (every day theories), a obrigação de restringir os “exorbitantes” direitos do preso (provisório ou condenado) possibilitados pela “frágil” e “condescendente” legislação penal e processual penal em vigor. O fértil solo discursivo, propício para irromper a legislação de pânico, estava cultivado: cultura de emergência fundada no aumento da violência; vinculação da impunidade ao “excesso de direitos e garantias” dos presos (provisórios e condenados). A resposta contingente seria conseqüência natural; e em 02 de dezembro de 2003 é publicada a Lei 10.792, alterando a LEP e o CPP. Não obstante consolidar alguns posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários de vanguarda que vinham sendo adotados por magistrados com compromisso constitucional no que tange à forma dos atos nos processos de conhecimento e execução penal, o Poder Público reiterou, no apelo simbólico às Leis de ocasião, sua incapacidade de gerir a crise na segurança pública, intentando entorpecer a sociedade civil com resposta inepta. Nesta ação meramente cênica, algumas migalhas servem como mecanismo retórico para minimizar os efeitos perversos da Lei 10.792/03. Na verdade, porém, o recente texto delimita uma forma de execução da pena totalmente inédita, consagrando em Lei o suplício gótico vivido pelos condenados nos presídios brasileiros. Se anteriormente havia possibilidade de desqualificar a desumana realidade carcerária nacional invocando a LEP, com sua alteração, a tragédia é subsumida ao texto. Logicamente não se está a referir a eventual legitimidade que a Lei 10.792/03 auferiria à péssima qualidade de vida doméstica (infra-estrutura material) imposta aos penitentes. Certamente o legislador não encontraria palavras para descrever a fétida realidade prisional; não teria coragem de redigir texto cujo conteúdo produzisse a adequação da Lei ao cotidiano de ostentação do sofrimento; não realizaria o ato de desvelar o gozo da “opinião publicada” ao ver seus excluídos penarem corporalmente. A Lei sempre foi um não-lugar; algo que se projeta como conquista; algo que não se tem mas que se deseja; algo que inexiste mas que projeta uma ação. A Lei 10.792/03, ao incorporar o RDD na (des)ordem jurídica nacional e alterar a LEP, vinculando o ingresso do preso no regime diferenciado quando apresentar alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade (art. 52, § 1o, da LEP) ou quando recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando” (art. 52, § 2o, LEP), manifesta o assenti-
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mento dos Poderes Públicos com práticas arbitrárias, regularmente toleradas nas penitenciárias nacionais. A ressignificação normativa da disciplina consiste na possibilidade de impor o regime diferenciado a determinados presos não apenas pela prática de falta grave, situação que por si só é absolutamente arbitrária, mas, sobretudo, pela adjetivação igualmente aleatória de sua conduta pessoal no cárcere ou fora dele. As sanções previstas no art. 52 da LEP são resultado de procedimento administrativo disciplinar (PAD) de averiguação de falta grave, regulada e taxativamente disposta no estatuto penitenciário. Antes da vigência da Lei 10.792/03, a sanção disciplinar imposta à falta grave constituía na suspensão de direitos e isolamento na própria cela (art. 57, § único), não podendo esta medida ultrapassar 30 dias (art. 58). Com a nova Lei, ao art. 53 foi incluído inciso no qual se prevê a inclusão do “preso perigoso” no regime disciplinar diferenciado, independente da apreciação formal de falta, ou seja, mesmo sem a prática de falta grave regularmente apurada pela administração da casa e posteriormente homologada pelo juiz, se o apenado apresentar as condições previstas nos parágrafos 1o e 2o do art. 52 da LEP, há possibilidade de ingresso no regime diferenciado. Igualmente redesenhado foi o art. 58, excepcionando-se a regra dos 30 dias como lapso temporal máximo. Sancionado o preso por falta grave ou sendo-lhe atribuído o rótulo de “perigoso”, poderá ser submetido ao regime diferenciado com as seguintes características: (a) duração de 360 (trezentos e sessenta) dias; (b) recolhimento em cela individual; (c) visitas semanais de duas pessoas, sem contar crianças, por 02 (duas) horas; (d) saída diária, por 02 (duas) horas, para banho de sol. Desde a edição da LEP em 1984, tem-se criticado o estatuto pela utilização, na definição de faltas graves, de termos vagos e genéricos, sem precisão semântica, que acabam por permitir ao agente penitenciário o uso de meta-regras em sua significação – v.g. incitar ou participar de movimento para subverter a ordem e a disciplina; descumprir obediência ao servidor ou o respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se; não executar trabalho, tarefa e ordens recebidas. A técnica legislativa utilizada no ambiente carcerário serviu historicamente para o uso arbitrário dos poderes pelos agentes prisionais, os quais utiliza(va)m-se da imprecisão terminológica para adjetivar condutas banais de presos incômodos.1 A volatilidade dos termos produziu gra-
dualmente a minimização dos direitos de defesa dos apenados nos procedimentos na averiguação das faltas disciplinares, gerando sérias irregularidades na configuração da conduta punível pelos Conselhos Disciplinares, em face da irrefutabilidade de determinadas hipóteses levantadas pelos órgãos de segurança. Talvez um dos exemplos mais notórios de condutas reivindicatórias pacíficas que acaba(va)m sendo definidas como atos de “subversão da ordem e da disciplina”, passíveis, pois, de sanção disciplinar por falta grave, é a prática da greve de fome. Não por outro motivo, em casos de movimentos reivindicatórios não-violentos, a Portaria 202, de 18 de dezembro de 2001, editada pela Secretaria de Estado da Justiça e da Segurança do Rio Grande do Sul (SJS/RS), no intuito de minimizar os efeitos perversos propiciados pela terminologia da LEP, determinou que “toda pessoa presa terá direito a expressar suas reivindicações, individual ou coletivamente, de forma pacífica” (art. 7o, § 1o) e que “a ‘greve de fome’, quando legítima, não será considerada falta disciplinar” (art. 7o, § 2o). Em sentido diametralmente oposto à concretização do princípio da legalidade, que imporia pela taxatividade o fechamento dos tipos abertos da LEP, a Lei 10.792/03 inclui categorias igualmente dúbias, gerando duplo efeito. Em primeiro lugar, deflagra efeito normativo no que tange à interpretação das faltas, sobretudo as graves. Assim, se anteriormente a falta de precisão decorrente da ambigüidade terminológica favorecia o arbítrio administrativo, com o novo texto a tendência é sua maximização. Por outro lado, produz efeito na gestão da política penitenciária, visto a importância auferida à ordem, à disciplina e à segurança do estabelecimento prisional, não apenas reforça a ideologia defensivista, mas ressignifica o sentido da execução, voltada na contemporaneidade à contenção dos “socialmente indesejáveis”, dos “corpos excedentes”. Abdica-se, pois, vez por todas, do ilusório e romântico fim ressocializador pregado no Estado Social em prol de uma administração das “massas inconvenientes”. Embora seja clara a inconstitucionalidade da Lei, não apenas por ferir o princípio constitucional da legalidade com a utilização abusiva de termos vagos mas especialmente pela ofensa ao princípio da humanidade das penas quando prevê a submissão do preso ao regime dife-
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Com intuito de cerrar a tipicidade penitenciária aberta, grupo de trabalho integrante de comissão para reforma da legislação penitenciária gaúcha propôs como definição de
“subversão da ordem e da disciplina” condutas direcionadas: (a) adesão e associação à violência; (b) manifestação violenta, individual ou coletiva, de reivindicações; (c) porte de armas; e (d) violação da integridade física e moral e a da liberdade sexual de pessoa que se relacione (CARVALHO: 2002, 333). 295
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renciado – a manutenção em isolamento por até 360 dias não pode receber outra denominação senão a de pena cruel, vedada pela Carta Constitucional (art. 5o, inciso XLVII, CR)2 –, o temor que se inaugura é o de que nossos Tribunais, a começar pelas Cortes Superiores (STF e STJ), inebriados pelos discursos de emergência, não utilizem os mecanismos de controle de constitucionalidade e, por conseqüência, acolham a barbárie posta em Lei como se fosse mera técnica pedagógica de isolamento. O Tártaro sancionatório no contemporâneo parecer ser o retrato da experiência punitiva brasileira: longe de projetar mecanismos constitucionais de redução do sofrimento imposto nas prisões, a Lei dobra a punição com a ressignificação da disciplina e da segurança, condenando o preso, para além da privação da liberdade, à inexaurível situação de penúria.
sanção: um sexto da pena no regime anterior. O pressuposto subjetivo, determinado pelo mérito do condenado. Previa, ainda, a LEP, no parágrafo único do art. 112, a necessidade de o preso ser submetido à Comissão Técnica de Classificação (CTC), encarregada de exarar parecer, e, quando necessário, ao exame pericial do Centro de Observação Criminológico (COC). Ambos documentos, porém, consistiam, quase na unanimidade dos casos, em prognósticos de não-reincidência e/ou medição do grau de adaptabilidade e arrependimento. Em relação ao livramento condicional – etapa do sistema progressivo e momento importante na lógica do sistema de individualização científica (art. 83 do Código Penal) –, a duplicidade de requisitos igualmente se impunha, quais sejam: (a) objetivo: vinculado ao tempo – cumprimento de um terço (condenado primário) ou metade (reincidente) da pena – e à reparação do dano; e (b) subjetivo: relacionado com o “comprovado comportamento satisfatório”. Outrossim, o parágrafo único do art. 83 do Código Penal previa, em caso de condenação por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, que a concessão do livramento condicional ficaria “subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir”. Não obstante, conforme determinava o art. 71, inciso I, da LEP, seria necessário parecer opinativo do Conselho Penitenciário. O comportamento carcerário satisfatório, apesar de ser requisito subjetivo, sempre esteve vinculado à comprovação processual, de forma a estabelecer objetivação do critério. Doutrina e a jurisprudência nacional fixaram como elemento a indicar o bom comportamento carcerário a ausência de registro, no prontuário do preso, de sanção por falta grave devidamente homologada pelo juiz competente. Ao magistrado, caberia avaliar se o procedimento de apuração seguiu os requisitos formais e materiais do devido processo legal (ampla defesa, contraditório, recurso, assistência de advogado et coetera). Em face de inexistência de previsão do tempo em que a falta grave continuava produzindo efeitos, em decorrência da interpretação sistemática dos decretos de indulto, suas implicações foram restringidas em 12 (doze) meses, i.e., para ser confirmado o bom comportamento carcerário do preso seria necessário o não cometimento de falta grave nos últimos doze meses. A estrutura meritocrática da LEP, porém, era potencializada pela presença de requisito subjetivo que nos casos de crimes graves ganhavam especial valor. Se a ausência de falta grave comprovava comportamento satisfatório no que diz respeito à adequação do condenado às regras prisionais e a sua boa relação de convivência com os demais
04. Tântalo e o saber ‘psi’: a normatização do sistema disciplinar-pedagógico O sistema progressivo-regressivo, fundado na idéia de (de)mérito pessoal do apenado, foi eleito em 1984 como o instrumento hábil para atingir a finalidade apregoada à execução da pena: a ressocialização do condenado. Típico de um modelo estatal intervencionista, o escopo ressocializador legitimou a ação dos aparelhos punitivos na avaliação e formatação do “ser” do preso. Assim, o preso ressocializado, no discurso conformador da LEP, passa a ser aquele adequado às regras do estabelecimento carcerário e ao programa individualizador, ou seja, o sujeito disciplinado e ordeiro que se submete e responde satisfatoriamente ao “tratamento penal”. A técnica estabelecida para averiguar o grau de ressocialização seria a capacidade de o condenado atingir condições de descarceramento progressivo (progressão de regime) ou, contrariamente, pela necessidade de reencarceramento (regressão de regime). Para alcançar o gozo dos direitos de progressão previstos na LEP, o apenado deveria cumprir requisitos de ordem objetiva e subjetiva, segundo a redação do art. 112. O critério objetivo foi vinculado ao tempo de cumprimento da 2
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Não é necessário ser ‘expert’ da área da saúde para notar que “o isolamento celular diuturno de longa duração é um dos instrumentos de tortura do corpo e da alma do condenado e manifestamente antagônico ao princípio constitucional da dignidade humana” (MAT: 2003, 09).
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apenados e com os agentes penitenciários, os exames criminológicos, que atestariam o grau de ressocialização do preso, indicariam ausência de “conflitos internos”. O mérito representaria o bom convívio com as pessoas com quem deveria relacionar-se (com comportamento) e atestaria a sadia relação do apenado consigo mesmo (adaptabilidade), sobretudo com a internalização dos limites estabelecidos pela Lei (prognóstico de não reincidência) obtida pelo arrependimento (consciência do delito). Definidos, pois, os critérios processuais de comprobabilidade do mérito: (a) ausência de PAD quanto ao bom comportamento; e (b) parecer técnico (CTC) e/ou laudo criminológico (COC) no que diz respeito ao grau de ressocialização. Os laudos e pareceres criminológicos que ingressavam no processo de execução penal como prova pericial adquiriram, no passar dos anos, tamanha importância que acabaram (re)criando um sistema de prova tarifada, a qual, embora não vinculasse a decisão do juiz por força da adoção do sistema do livre convencimento (art. 157 e art. 182 do CPP), instituia armadilha intransponível, mormente nos casos de pareceres desfavoráveis. Outrossim, por força de ser juízo empiricamente indemonstrável (“possibilidade de vir a cometer delito no futuro”), as perícias obstaculiza(va)m o direito ao contraditório, maculando o devido processo legal. Em que pese a deturpação material gerada no sistema de prova e a conseqüente revivificação da prova tarifada com a adoção de valores irrefutáveis, a crítica aos laudos foi historicamente direcionada à ilegitimidade dos técnicos realizarem julgamentos morais dos presos. A categoria ressocialização, encarada como signo de valoração da vida do “periciando”, invariavelmente cedeu espaço à violação de sua intimidade, vista a possibilidade de julgamento da história pessoal e das opções de vida do “objeto” de análise. Veja-se, p. ex., que, se eventualmente o preso silenciou ou negou o delito durante o processo de conhecimento, em caso de condenação tais posturas perante os técnicos revelariam a incapacidade de arrependimento e a torpeza moral, contra-indicando o direito postulado. O poder das perícias, em absoluta ofensa aos direitos básicos de tutela da intimidade e da vida privada (secularização), fora pautado numa inversão ideológica do discurso dos direitos humanos, dado ao fato de que superficialmente aparentava a humanização dos fins da pena. Não mais intimidar ou reprimir, mas criar condições de que o preso se arrependa e não volte mais a delinqüir. No entanto, diferentemente do divulgado pelo discurso oficial, notou-se a criação de um sis-
tema de otimização do positivismo criminológico que deixou os direitos dos apenados reféns de um discurso dúbio que pendia entre as noções, abertas e isentas de significado, porém altamente funcionais, de disciplina e ressocialização. Outrossim, agregava-se sistema administrativo altamente burocratizado que substancialmente se sobrepunha à jurisdicionalização da execução da pena. Com a edição da Lei dos Crimes Hediondos em 1990, um novo contorno começou a ser dado no sistema de encarceramento, dado ao enrijecimento das regras executivas e à ruptura no sistema progressivo. Além do aumento expressivo das penas às condutas classificadas como hediondas (art. 6o c/c art. 9o da Lei 8.072/90), duas alterações substanciais no que diz respeito à execução foram significativas: o estabelecimento do regime integralmente fechado e o aumento do lapso temporal para o gozo do livramento condicional. Em realidade, se se primar pelo rigor acadêmico, a Lei 8.072/90 não vedou absolutamente a progressão de regime aos delitos hediondos, ou melhor, a vedação da progressividade imposta atingiria apenas os reincidentes específicos em crime hediondo (art. 83, inciso V, in fine, do CP). Em sendo o livramento condicional parte integrante do sistema progressivo, e em não havendo obstaculização, mas aumento de lapso temporal, a Lei apresentaria uma contradição interna entre os artigos 2o, § 1o (que veda a progressão de regime), e art. 5o (que aumenta para dois terços o requisito temporal para o livramento). Todavia o que mais chama atenção na edição da Lei 8.072/90 é sua derivação constitucional, pois o legislador ordinário nada mais fez do que cumprir o comando do art. 5o, inciso XLIII, da CR. A natureza programática da norma constitucional auferiu legitimidade ao legislador para elaboração da Lei dos Crimes Hediondos. Lógico que o fato de o dispositivo constitucional ter sido cumprido, por si só não imuniza a referida Lei dos vícios de inconstitucionalidade. A propósito, tenho que o principal argumento de sua inconstitucionalidade é derivado do descomedimento legislativo, visto que o dirigismo constitucional-penal optou pela vedação exclusiva aos crimes considerados hediondos da fiança, graça e anistia, não sendo referida a questão da progressividade ou aumento de penas. Como o legislador ordinário não possui deliberalidade plena sobre a matéria legislativa derivada, conforme visto anteriormente, a imperfeição da Lei é substancialmente no que se circunscreve ao excesso, não obstante legítimas as críticas relativas à ofensa aos princípios da individualização, da humanidade das penas e
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ao princípio da extratividade da Lei penal mais benéfica – v.g. a revogação do art. 2o, § 1o, da Lei 8.072/90 pelo art. 1o, § 7o, da Lei 9.455/97. Resta claro, porém, que a opção legislativa reconfigura a finalidade da pena no sistema penal pátrio. Não que este remodelamento tenha abdicado integralmente do discurso ressocializador previsto na LEP. À ideologia da reforma moral do preso é aliada a idéia de contenção das massas indesejáveis, principal objetivo da sanção no nascente Estado Penal. Delineado, desta forma, o papel das agências penais na década de 90: controle pedagógico potencializado pela idéia de manutenção/exclusão dos corpos excedentes. A experiência ensaia o devir punitivo do século XXI.
ordenamento executivo, redesenhando-se, por conseqüência, o papel de todos os sujeitos processuais (juiz, ministério público, defesa, conselho penitenciário, técnicos, agentes e diretores). O debate entre as partes (acusação e defesa) em contraditório, apresentando e refutando teses, pretende derrogar os procedimentos desjurisdicionalizados que tendiam a se sobrepor na execução, dandolhe, embora a incorporação normativa, feição administrativa (administrativização material). Desta forma, entendeu a reforma ser necessário reestruturar o modelo, aproximando-o da estrutura do processo de conhecimento. A reforma redesenha a pesada e burocrática máquina executivopenitenciária, alterando substancialmente o papel do “criminólogo”. Ao técnico penitenciário, segundo a nova redação do art. 6o da LEP, é possibilitado um ambiente de criação de condições minimizadoras dos efeitos perversos da sanção penal (paradigma da vulnerabilidade), em dissonância com o histórico papel de tarefeiro redator de laudos de prognoses delitivas (paradigma etiológico). Cabe, portanto, às CTC’s, a exclusiva missão de elaborar programas individualizadores e acompanhar o desenvolvimento da execução da pena privativa de liberdade e restritiva de direito. No que diz respeito aos COC’s, seu trabalho (perícia técnica) fica restrito à obtenção de elementos mais precisos àquela individualização, no caso de condenado ao regime fechado. Inexiste, portanto, na nova configuração da LEP, espaço para que laudos e pareceres vinculem a decisão judicial, sobretudo porque deixam de ser peça processual a informar o incidente executivo. Mais: penso que há verdadeira vedação às CTC’s e aos COC’s de produção de material opinativo destinado à instrução do incidente executivo, seja progressão de regime, livramento condicional, indulto ou comutação, nos termos da redação do § 2o do art. 112. A opção legislativa é clara, e eventual entrave ao alcance dos direitos em face de perícias desfavoráveis parece ser direta ofensa à legalidade penal, constituindo cerceamento de direito. Se o requisito subjetivo existia e a reforma penitenciária optou por sua remoção, nítido o fato de que havia falhas, distorções e/ou impossibilidades técnicas de realização da prova pericial ou parecer técnico, não cabendo, portanto, ao julgador, ao órgão acusador, ou a qualquer outro sujeito da execução, revificar o antigo modelo. Do contrário, estar-se-á empiricamente auferindo ultratividade à Lei penal mais gravosa que determina quantidade superior de requisitos para o gozo dos direitos, ofendendo a lógica formal e material do princípio da legalidade penal.
05. Os paradoxos da Lei 10.792/03: maximizar os poderes disciplinares, minimizar o discurso criminológico Não obstante a institucionalização do RDD como potencializador da idéia meritocrática-disciplinar, o que por si só macula a Lei 10.792/03 de forma a não poder dela retirar todos os elogios que a doutrina nacional tem apontado, a modificação na estrutura da individualização científica, operacionalizada pelo sistema progressivo-regressivo, merece atenção, notadamente em referência aos requisitos e ao procedimento de alcance dos direitos públicos subjetivos instrumentalizados nos incidentes da execução penal. No que tange ao procedimento, a nova redação do art. 112 da LEP reforça o devido processo legal e seus corolários de ampla defesa e contraditório, recapacitando o princípio de jurisdicionalização norteador formal da redação do código penitenciário. O antigo parágrafo único do art. 112, que previa a motivação de decisão judicial precedida de parecer da CTC ou exame do COC, é substituído por dois importantes parágrafos, os quais remodelam a forma dos atos processuais. O parágrafo primeiro define que a decisão relativa à progressão de regime deve ser fundamentada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor; e o parágrafo segundo projeta o procedimento à concessão de livramento condicional, indulto e comutação das penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes. À exceção da remição, comutação e unificação de penas, os principais incidentes em execução penal serão orientados pelo conceito trilateral típico do sistema acusatório, i.e., institui-se a noção de partes processuais até então ofuscada no 300
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Outrossim, correlata à tendência de diminuir entraves burocráticos, cuja existência apenas servia para tornar mais morosa e indefinida a execução da pena, a Lei 10.792/03 retirou a atribuição opinativa do Conselho Penitenciário nos casos de livramento condicional. Restringiu a atuação consultiva do órgão aos pedidos de indulto e comutação da pena – manutenção de justificação pouco compreensível –, reforçando seu papel fiscalizador de inspeção dos estabelecimentos penitenciários, emissão de relatório anual sobre as condições das casas ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), supervisão de patronatos e assistência aos egressos (art. 70 da LEP). Inominável paradoxo exsurge: a Lei 10.792/03, apesar de institucionalizar regime bárbaro de execução de pena (RDD), maximizando poderes da administração penitenciária no que diz respeito às disciplinas (relação entre preso e gestores do cárcere), inova na retirada dos laudos e pareceres técnicos, peças processuais cuja eficácia histórica foi a de manter absoluta sobreposição do discurso da criminologia administrativa sobre o sistema jurisdicional. Assim, elimina elemento de análise subjetiva do apenado corporificado nos laudos e pareceres, os quais postulavam extrair o grau de amoldamento interno e arrependimento do apenado, signos identificados, no discurso penitenciário, com “ressocialização”. No entanto, mantém-se o pressuposto subjetivo “bom comportamento carcerário”, sinônimo de disciplina e adequação às regras institucionais. Nota-se, pois, na alteração discursiva, que a permanência do requisito “bom comportamento” otimiza um discurso rígido e hermético, alheio aos (falsos) humanismos ressocializadores, cujo resultado é declarar abertamente toda crueza do novo fim apregoado à sanção no Estado Penal.
A alteração direcionada a otimizar/modificar o trabalho de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais, estruturou-se no entendimento de que a eles não caberia mais a função de emitir laudos/pareceres, mas sim de elaborar, para o apenado, um programa individualizado com escopo de tornar menos aflitiva sua pena, proporcionando-lhe, na medida do possível, retorno menos dramático ao convívio social. A justificativa, portanto, não foi apenas fundada na verificação empírica de que os técnicos não têm condições de acompanhar adequadamente os apenados de modo a lhes capacitar realizar diagnósticos/prognósticos. Neste particular, o objetivo da reforma foi claro: inverter a lógica administrativizada do paradigma etiológico que informa(va) o trabalho dos técnicos, determinando que os profissionais, ao invés de ficarem em seus gabinetes produzindo mecanicamente perícias e pareceres, trabalhem junto aos presos no sentido de lhes auxiliar no retorno menos hostil à sociedade. Todavia, no Rio Grande do Sul, a Secretaria de Justiça e Segurança (SJS/RS), após criticar violentamente a retirada da obrigatoriedade dos laudos e pareceres criminológicos, prontamente apresentou novo Regimento Penitenciário (Portaria 014, de 21.01.04, DOE 23.01.04), no qual, para que seja atestado ao preso “bom comportamento”, inúmeros requisitos são apresentados. O “bom comportamento” carcerário, requisito histórico para progressão de regime e livramento condicional, adquire importância significativa com o advento da Lei 10.792/03. Com o remodelamento da função dos técnicos, há uma objetivação dos pressupostos para o alcance dos incidentes executivos. A Portaria 014/04 da SJS/RS, porém, manifestando notório desagravo à legalidade federal, incrementou, através da tipicidade aberta “comportamento carcerário”, os requisitos, não apenas reinstituindo os laudos/pareceres, mas ampliando o rol que a própria LEP determinava como pressupostos para o gozo dos direitos públicos subjetivos de minimização da pena. Segundo o art. 15 da Portaria 014/04, “quando da emissão do documento que comprove o comportamento do apenado, previsto no artigo 112 da Lei 7.210/84, com as alterações introduzidas pela Lei 10.792/03, o Diretor/Administrador do estabelecimento considerará o seguinte: I - a classificação da conduta nos termos do artigo anterior [neutra, plenamente satisfatória, regular ou péssima]; II - manifestação formal, sucinta e individual de, pelo menos, três dos seguintes servidores com atuação no estabelecimento penal em que se encontrar recolhido o apenado: a) Presidente ou membro do Conselho Disciplinar; b) Responsável pela Atividade de Segurança e Disciplina; c) Responsável pela Atividade
06. A lógica de Lampeduza: recaída de Tântalo ou do terapeuta? Após a edição da Lei 10.792 em dezembro de 2003, as políticas penitenciárias do Governo Federal e dos Governos Estaduais passaram por um processo de reavaliação. Embora a finalidade precípua da nova Lei ter sido criar modelo de execução penal no qual o preso considerado “perigoso” sofreria inúmeras restrições aos direitos fundamentais, exigindo, portanto, adequação normativa e estrutural ao novo regime penitenciário, nítida a necessidade das Secretarias de Justiça e Segurança, mais propriamente as Secretarias de Serviços Penitenciários, reverem o papel dos técnicos, como anteriormente descrito. 302
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Laboral; d) Responsável pela Atividade de Ensino; e) Assistente Social. E, no parágrafo primeiro, estabelece que “se as características individuais do preso indicarem que a concessão do benefício pleiteado poderá gerar reflexos nocivos a ele ou à sociedade, o Diretor/Administrador poderá juntar ao documento referido no ‘caput’ deste artigo, avaliação psicológica e/ou psiquiátrica como subsídio à decisão judicial. Nesta avaliação, poderão ser referidas a prognose de reincidência e grau de adesão do apenado ao Programa Individualizador previsto no artigo 6o da Lei 7.210/84, com as modificações inseridas pela Lei 10.792/03”. Em realidade, através de uma burla de etiquetas, a SJS/RS reintroduziu ilegalmente, pois não possui atribuição, a Legislação revogada, recriando o modelo fracassado de avaliação psicológica do condenado que a reforma procurou alterar. Se o modelo de execução da pena no Rio Grande do Sul, cujas características não diferem substancialmente das dos demais Estados federados, atinge na atualidade níveis de insuportabilidade em decorrência da falta de condições materiais e de recursos para investimento em melhorias, com a publicação da Portaria 014/04, o Governo do Estado, através da Secretaria de Justiça e Segurança, consegue a proeza de “dobrar ilegalidades”. À ilegalidade fática que é a imposição do suplício da superlotação – ilegalidade sempre excusável e tolerada visto ser o problema carcerário “eterna fatalidade” –, o Poder Público consagra a ilegalidade normativa, pois viola abertamente a Constituição e a Legislação Federal, desrespeitando a estrutura básica das atribuições legislativas reguladas no art. 22, inciso I, da CR. Mais. Não obstante reinstaurar o modelo etiológico das práticas criminológicas, refunda a lógica burocratizante dos sistemas administrativizados. A Lei 10.792/03, ao abdicar do parecer do Conselho Penitenciário para grande parte dos incidentes de execução, procurou agilizar e tornar absolutamente judicializado o processo de execução penal. No entanto, em casos de condenados a longas penas, com histórico de fugas ou condenados por crimes hediondos ou equiparados, a Portaria da SJS/RS criou mecanismos internos mais morosos e obscuros que aquele previsto com o antigo Conselho. Determina o § 3o do art. 15 da Portaria 014/04 SJS/RS que “nos casos de apenados por delitos hediondos, ou equiparados, tais como: tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, ou com histórico de fugas, ou com envolvimento em formação de quadrilha, ou com pena superior a 20 anos, o atestado do Diretor/Administrador [atestado de bom comportamento] haverá de ser homologado por Comissão
da Secretaria da Justiça e da Segurança, presidida pelo Secretário, por maioria de votos. A manutenção da crença nas antigas práticas, cujos efeitos experimentamos diariamente pela iminência de conflitos carcerários, ofusca qualquer possibilidade de câmbio da realidade.3 Na verdade, atos desta natureza parecem apoiar falido modelo carcerário que vivificou o Tártaro na contemporaneidade. Enfim, presenciar esta realidade sugere que a única mudança permitida é aquela sugerida por Lampeduza: a mudança necessária para que tudo permaneça como está.
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07. A resistência de Tântalo aos ambientes severos e o trabalho de Sísifo Após reconstruir de forma fragmentária e entrecruzada os paradoxos criminalizadores e punitivos da Lei penal brasileira nas últimas décadas, penso ser possível o diagnóstico da gradual sobreposição, através dos discursos de emergência, do modelo de hiperpunibilidade do Estado Penal ao romântico escopo ressocializador presente nas políticas públicas do Estado Social. E se no Brasil o Estado Social é experiência não vivida, distante da realidade das pessoas e presente apenas nos longínquos discursos do(s) poder(es), o incremento da punição tende a ser absolutamente rústico, pautado numa ritualística de distribuição de martírios focalizada na segregação/contenção dos indesejados. 3
Não obstante os atos descritos, a jurisprudência de resistência vem atuando com intuito de demonstrar as irregularidades provenientes da recente reforma legislativa. Neste sentido, “AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. NOVA REDAÇÃO DO ARTIGO 112, DA LEP. REQUISITOS AO BENEFÍCIO. PORTARIA No 14, 21/01/2004, DA SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA DO RS: ILEGALIDADE DO INCISO II E SEUS PARÁGRAFOS 1o E 2o, DO ARTIGO 15. – O artigo 112, da LEP, alterado pela Lei no 10.792 (01/12/2003), exige, à progressão, apenas o cumprimento de lapso temporal e bom comportamento carcerário (desde que o sistema não a vede: crimes hediondos). – Não se pode impor outras condições, pena de imputação penal agredir princípio maior: prejudicar cidadão sem base em lei. – Ao órgão do MP e à defesa competem destruir a presunção vinda da declaração de comportamento expedida pela autoridade carcerária. – Critério para aferição do bom comportamento: inexistência de falta disciplinar – apurada via PAD – nos prazos do artigo 14, do Regimento Disciplinar Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul. – O inciso II e seus parágrafos 1o e 2o, do artigo 15, do RDP do RS, agridem o princípio da legalidade por impor requisitos – ao benefício – que a Lei Federal (artigo 112, da LEP) não exige – aliás, objetivo da sua nova redação. – Agravo provido” (AG. Execução no 70007705221, 5a Câmara Criminal TJRS, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 11.02.04). 305
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A veracidade da tese encontra guarida na progressiva barbarização das normas relativas à execução da pena, sobretudo da pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado. Com a corporificação contemporânea do Tártaro – no qual, não esqueçamos, os sofrimentos-pena são eternos –, as tendências acadêmicas pautadas na minimização da programação sancionatória dos poderes (minimalismo, realismo marginal e abolicionismo) aparecem quase como ideais de uma utopia irrealizável ou de difícil acesso. As novas formas de gestão penal da miséria, caracterizadoras da face terrífica do controle social na era pós-industrial, indicam que as agências sancionatórias seguem uma pauta programática absolutamente definida na qual o Estado passa a adquirir cada vez mais função policialesca. Os discursos sediciosos, portanto, se querem ainda ter algum sentido, devem inexoravelmente estar enraizados em uma concepção pessimista do poder punitivo (princípio da irregularidade dos poderes), pois apenas desde este local conseguirão, com muito esforço, obter (pequenos) ganhos na minimização das violências (garantismo). Penso, inclusive, que a biografia das práticas penais, apesar de sua sinuosidade, tem demonstrado que a regra do poder penal é o inquisitorialismo, ou seja, que o discurso garantista de gênese ilustrada configurou uma variável insensata na estrutura das formas de poder, uma cisão acidental na história das violências da qual somos herdeiros inocentes, românticos poetas de um passado imaginário. Neste quadro, creio que duas conclusões são possíveis sobre os sujeitos da discussão. Em relação aos apenados, a constante exacerbação normativa das penas – seja com o aumento da cominação em abstrato, com a subjetivação dos critérios judiciais de aplicação ou a obstrução dos direitos de progressão –, aliada ao ocaso empírico da execução representado nas inomináveis condições de cumprimento, refletem a capacidade hercúlea de o ser humano adaptar-se a ambientes hostis, de superar a cada instante os limites da própria humanidade. No que tange a nós, “pensadores humanistas e críticos do sistema penal”, vejo que o trabalho de denúncia e atuação processual voltada à contração do sistema de violência parece retratar, como reflexo da pena imposta aos indesejáveis que habitam os horrores do Tártaro, igualmente uma sanção. Talvez uma sanção apenas assemelhada a do Sísifo descrito por Ulisses: “Vi Sísifo, e o modo por que ele, com pena indizível, com as mãos ambas tentava arrastar uma pedra enormíssima. Firma os dois pés no chão duro, com ambas as mãos esforçando-se para levar para cima o penedo; mas quando pensava que já vencera o alto
monte, com força outra vez retornava. Dessa maneira, até o plano, rolava o penhasco impudente. Ele de novo a empurrá-lo começa, suor escorrendo-lhe dos membros todos, enquanto a cabeça de poeira se cobre” (HOMERO: 1960, 176).
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Bibliografia ANISTIA INTERNACIONAL. Aqui ninguém dorme sossegado: violações dos direitos humanos contra detentos. SP: Seção Brasileira da Anistia Internacional, 1999. _____. Defensores dos direitos humanos: protegendo os direitos humanos de todos. SP: Seção Brasileira da Anistia Internacional, 1998. CARVALHO, Salo (org.). Crítica à Execução Penal. RJ: Lumen Juris, 2002. HOMERO. Odisséia. 3a ed. edição. SP: Melhoramentos, 1960. HUMAN RIGHTS WATCH. O Brasil atrás das grades. NY: HRW/Americas, 1998. MOVIMENTO ANTITERROR. Carta de Princípios. Revista de Estudos Criminais (10), Porto Alegre: !TEC/PPGCCrim PUCRS/Notadez, 2003, p. 07. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. SP: Cia. das Letras, 1998. REARDON, Francisco. Entrevista. in Caros Amigos (25). São Paulo: Casa Amarela, 1999.
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