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Este trabalho foi parcialmente financiado pela FCT, no âmbito do Programa do Fundo de Apoio à Comunidade Científica (FACC)
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OS SABERES DA CURA: ANTROPOLOGIA DA DOENÇA E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS
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TÍTULO: OS SABERES DA CURA: ANTROPOLOGIA DAS DOENÇAS E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS ORGANIZADORES: LUÍS SILVA PEREIRA / CHIARA PUSSETTI © INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA – CRL RUA JARDIM DO TABACO, 34, 1149-041 LISBOA 1.ª EDIÇÃO: OUTUBRO DE 2009 COMPOSIÇÃO: INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA IMPRESSÃO E ACABAMENTO: PRINTIPO – INDÚSTRIAS GRÁFICAS, LDA. DEPÓSITO LEGAL: 296587/09 ISBN: 978-972-8400-94-1
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L U Í S S I LVA P E R E I R A / C H I A R A P U S S E T T I (Organizadores)
OS SABERES DA CURA: ANTROPOLOGIA DA DOENÇA E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS
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A todas as pessoas que me lembram, quotidianamente, quanto é difícil contar a vida como ela é. À Sole, porque um sorriso dela vale mais do que qualquer livro. C.P.
À Teresa, à Inês e à Leonor. L.S.P.
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AGRADECIMENTOS
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Agradecemos o apoio do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), do Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS), de todos aqueles que participaram nas investigações, partilhando connosco os seus saberes, dos profissionais que contribuíram para a edição deste livro e dos seus autores. Este trabalho resulta da cooperação entre os membros de uma equipa e de reflexões comuns, cada capítulo reflecte o posicionamento teórico próprio de cada autor e é, portanto, de sua inteira responsabilidade e mérito.
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«… En disséquant les mots que nous aimons, sans nous soucier de suivre ni l’étymologie, ni la signification admise, nous découvrons leurs vertus les plus cachées et les ramifications secrètes qui se propagent a travers tout le langage, canalisées par les associations de sons, de formes et d’idées. Alors le langage se transforme en oracle et nous avons là (si ténu qu’il soit) un fil pour nous guider, dans le Babel de notre esprit». Michel Leiris
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INTRODUÇÃO
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A antropologia médica – que indaga os processos através dos quais fenómenos socio-culturais, políticos, económicos e biológicos se determinam reciprocamente – representa hoje uma das áreas mais dinâmicas no âmbito das ciências sociais. Nos últimos anos, também em Portugal, a antropologia médica tornou-se um campo prioritário, onde são equacionadas questões como, por exemplo, o pluralismo médico, a leitura social da doença, as biopolíticas em tempos coloniais e pós-coloniais, os saberes terapêuticos alternativos à biomedicina, o acesso diferenciado aos cuidados de saúde, as relações complexas entre saúde e políticas migratórias e do trauma, a mercantilização da farmacologia como processo de globalização, a intervenção comunitária face às pandemias, as múltiplas relações entre práticas terapêuticas e religiosas. No contexto europeu, além da definição “antropologia médica”, de origem anglo-saxónica, surgiu como área limítrofe, mas com as suas especificidades, a antropologia da doença, que se originou no contexto francês (Augé 1986). Estas correntes diferenciam-se por leves nuances terminológicas que reflectem as diferentes sensibilidades das duas principais escolas citadas, a dos EUA – mais orientada para a relação entre indivíduo, sociedade e doença – e a francesa – mais interessada na investigação sobre os sentidos culturais da doença e nas suas dimensões simbólicas.
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A pesquisa sobre os saberes da cura, como os diferentes ensaios presentes neste livro evidenciam, não pode, na opinião dos organizadores da obra, nem evadir a dimensão subjectiva do sofrimento, nem esquecer os factores sociais, políticos e económicos que o determinam, os históricos que fundam a sua genealogia, assim como os culturais e simbólicos que definem os seus idiomas. Decidimos não ficar limitados por essa divisão conceptual entre antropologia médica e antropologia da doença e propormos uma perspectiva abrangente, que, tentando ler corpos, sintomas e biografias, através das suas cicatrizes e dos seus conflitos individuais e colectivos, consiga interrogar-se sobre as dimensões múltiplas que definem a experiência do sofrimento. Esta nossa abordagem pretende problematizar de forma crítica os diferentes factores que contribuem para a definição e para a vivência individual do mal-estar, devolvendo dignidade aos outros idiomas do sofrimento, aos outros vocabulários da crise, aos outros registos da subjectividade e do simbólico. Se é prioritária a dimensão subjectiva e relacional – a que está no coração de qualquer encontro etnográfico, com seus interesses, dúvidas, equívocos e mal-entendidos –, os ensaios aqui reunidos não esquecem a importância da perspectiva histórica para poder reconsiderar vivências, conflitos e interrogações epistemológicas, éticas e políticas. A necessidade de repensar e reconstruir os tempos da História para descodificar o complexo enredo entre biografias individuais, memórias colectivas, heranças coloniais e violências económicas e sociais, representa hoje – para a comunidade antropológica – uma obrigação teórica e, sobretudo, política e moral. Seguindo estas propostas de análise, o projecto do qual este livro resulta, “Políticas da Saúde e Práticas Terapêuticas: Sofrimentos e Estratégias de Cura dos Migrantes na Área da Grande Lisboa”1, tinha originalmente como objectivo principal reflectir sobre o complexo processo de encontro entre diferentes saberes e práticas médicas no 1 Projecto Investigação e Desenvolvimento (I&D), financiado pela Fundação para a
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contexto multicultural da área metropolitana de Lisboa e sobre os problemas da gestão social do “pluralismo médico”. A partir deste desafio teórico, os investigadores envolvidos tentaram compreender os processos de transformação ou de ressignificação das experiências do mal-estar, decorrentes do engajamento em diferentes sistemas terapêuticos (inclusive o biomédico), bem como analisar comparativamente as práticas e os modelos de cura subjacentes a estes sistemas. A exigência de desenvolver uma reflexão acerca dos percursos de cura dos imigrantes pareceu-nos particularmente significativa numa área como a da Grande Lisboa, cujo espaço urbano é também o espaço da coexistência de mundos e lógicas autónomos, campo de mudanças dramáticas, de graves contrastes sociais, de novas dinâmicas identitárias, de formas imprevisíveis de subjectividade individual. Os diferentes trabalhos de campo dos investigadores deste projecto realçam que, por um lado, os técnicos de saúde se encontram cada dia mais envolvidos em situações nas quais está presente um gradiente de alteridade cultural que corre o risco de tornar inaplicáveis e inadequados os processos rotineiros de intervenção clínica, ou pelo menos de diminuir bastante a sua eficácia. Por outro lado, as nossas pesquisas evidenciam a frequente desorientação dos imigrantes face a uma “moral” biomédica – definidora de risco, doença, saúde e cura, e condicionante das representações e percepções do corpo – que para eles pode não fazer sentido. A procura de alternativas terapêuticas, na opinião dos organizadores deste volume, é muitas vezes uma das consequências da ineficácia da biomedicina face aos sintomas que os imigrantes apresentam. Sintomas que se manifestam como espelhos de outros paradigmas interpretativos, de diferentes modelos médicos, de outras modalidades de relacionamento com o mundo, o invisível, os antepassados, a dor e a morte. Sintomas muitas vezes intraduzíveis, se retirados do contexto das redes semânticas e dos universos locais de significado; sofrimentos, por outras palavras, que estão à procura de um horizonte de sentido que o
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recurso às estruturas sanitárias e às linguagens da biomedicina não pode oferecer e que o corpo dos imigrantes parece obstinadamente pretender. A fraqueza e a ineficácia terapêutica destas intervenções está, na nossa opinião, na escassa atenção prestada à específica concepção do mal, própria de cada caso, de cada história de sofrimento, e – por consequência – na falta de análise do modelo particular de sociedade que está na base da definição da doença, assim como das relações interpessoais e do tipo particular de pessoa próprio deste ou daquele contexto cultural. A reconstrução das histórias de vida, assim como das narrativas terapêuticas é um dos caminhos possíveis para reconstruir percursos fragmentados e perceber identidades fracturadas pela dor das perdas e das separações contínuas (Capítulo 5). A partir do desafio do encontro clínico entre biomedicina e pacientes imigrantes tornou-se imperativo investigar também as outras representações do mal, as outras técnicas e saberes da cura, os outros sentidos possíveis do sofrimento e da morte – “aqui” como “lá”, através do cruzamento de diferentes experiências de terreno, nos contextos de origem, assim como no do acolhimento, ou em contextos novos, alternativos, onde novos grupos e identidades se criam através da experiência do sofrimento (Capítulo 2). Ao mesmo tempo, os imigrantes são considerados como um grupo de contágio, com higiene insatisfatória, moralmente ambíguo ou desviante, portador de desordem social e de doenças “exóticas”, “infecciosas”, “estranhas”. O imigrante, ameaça potencial da ordem moral, política, económica e simbólica constituída, é um perigo: a sua presença – ou, ainda melhor, a sua dupla ausência (Sayad 1999) – assusta e contamina (Capítulo 8). É exactamente no seu “não estar” que reside a culpa originária do imigrante: é culpado de uma transgressão latente, da violação de uma fronteira, da permanência num país sem permissão. É alguém deslocado (déplacé), “suspenso entre dois mundos” (Nathan 1986), “órfão da própria cultura” (Ben Jelloun 1977), numa condição de “manque à être”
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(Bastide 1976). Numa crise identitária constante, num espaço que não lhe pertence, num tempo fracturado, cujas memórias são silenciadas, ocultadas, perdidas nos labirintos do trauma e que somente reemergem na expressão muda dos sintomas (Capítulo 4). O sofrimento dos imigrantes é simultaneamente social e político. Como nos lembra insistentemente Sayad (1999), os imigrantes provêm de países outrora colonizados, e muitas vezes residem nos países que foram colonizadores. A relação que o antropólogo cria com o seu informante nunca pode subtrair-se aos vínculos do passado, ao enredo das múltiplas relações (históricas, políiticas e económicas) constantemente em jogo. O encontro etnográfico já não admite um olhar inocente, que esqueça a questão do poder em causa. O uso da medicina em contextos coloniais é um tópico cada vez mais estudado no âmbito da antropologia médica e ilustra formas mais subtis (as biopolíticas das quais falou Foucault, entre outros) de disseminação de poder por parte do Estado colonial. Não podemos mais ignorar que a força da Verdade (biomédica/científica neste caso) pode-se impor somente através da verdade da Força (Capítulo 3). Não podemos ignorar essa ligação histórica dolorosa e difícil, essa “verdade colonial” geralmente omitida – como sustenta Homi Bhabha (2001) – que emerge através do sintoma, através da linguagem do corpo e do sofrimento. Neste sentido, o corpo doente aparece como um arquivo histórico e os sintomas como histórias incorporadas que estabelecem a relação entre o nível individual e o colectivo, o presente e o passado (Capítulo 6). Didier Fassin (2002) sugeriu a este respeito o conceito de “incorporação da história” para descrever o duplo processo através do qual, por um lado, o social se inscreve no corpo, e. por outro, o corpo e os seus estados contam histórias que relatam não só a vida individual, mas também a memória histórica sedimentada nesse mesmo corpo. Uma vez que o corpo é problematizado em termos fenomenológicos e culturais, emerge, como já antes salientámos, a possibilidade de pensar a saúde e a doença independentemente dos pressupostos
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ontológicos e epistemológicos da biomedicina. Neste sentido, falamos neste volume de um corpo consciente, que lembra, que age, que entra activamente em relação com o mundo social: de um mindful body, como é definido por Lock e Scheper-Hughes (1987). É neste sentido que a doença, como sugerem as duas autoras, pode ser considerada também como um momento de resistência à ordem constituída, um idioma configurado historicamente e socialmente legitimado para expressar o próprio mal-estar social, face à falta de outras possibilidades viáveis para exibir a própria indignação. O corpo que sofre torna-se então metáfora da relação desajustada entre o indivíduo e a sociedade (Sontag 1978), evidenciando o enredo profundo entre experiência pessoal, simbologias sociais e processos políticos (isto é, entre os três corpos referidos por Lock e Scheper-Hughes, 1987)2. O projecto referido visava delinear e explicitar as relações entre os diferentes níveis que incidem no processo de definição e construção da realidade do sofrimento dos imigrantes, analisando as diferentes formas de perceber, definir, explicar e agir face à doença. Examinando os itinerários terapêuticos dos imigrantes – enquanto processos de significação e interpretação das várias sensações de mal-estar – o projecto pretendeu investigar as problemáticas da mudança social e cultural que estas comunidades têm que enfrentar quotidianamente. Nesta perspectiva, revelou-se fundamental considerar quer o horizonte social, histórico e político no qual se situam as histórias individuais dos doentes – a partir da análise das vivências do mal-estar no contexto de origem até ao dépaysement próprio da experiência migratória –, quer as dimensões complexas da cura e da mudança (cultural, psicológica, social), próprias do contexto de acolhimento. Nesta perspectiva, tornou-se incontornável considerar, através de um posicionamento multisituado, as dimensões complexas da doença e da cura, onde não 2 O corpo individual, próprio da análise fenomenológica; o social, foco do estruturalismo
e da antropologia simbólica; e o político, evidenciado pela genealogia foucaultiana e pelos estudos pós-estruturalistas.
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somente os corpos migram, mas também as religiões, os sistemas simbólicos, as práticas terapêuticas (Capítulos 7 e 9). Analisar as complexas trajectórias dos imigrantes, as suas emoções e aflições, os seus comportamentos de busca de cura, levou-nos não apenas a abordar questões interessantes do ponto de vista da antropologia médica, mas também a considerar as relações entre saúde, estratégias políticas e de resistência, lutas pelos direitos e pela inclusão social, vivências íntimas, emocionais e religiosas, com uma perspectiva fenomenológica e reflexiva. O desafio foi tentar dar conta de todas estas dimensões através de uma análise etnograficamente densa e filosoficamente requintada do conceito e da vivência do sofrimento, não somente considerando a realidade nos países de origem, mas acompanhando o processo da diáspora (Capítulo 1). No interior deste quadro teórico comum, os textos aqui reunidos representam percursos de pesquisa originais e variados, correspondentes aos projectos individuais dos diferentes investigadores. Em todos, porém, as experiências somáticas são consideradas como verdadeiros discursos sociais e a doença como um processo ao mesmo tempo individual e social e não como uma entidade exclusivamente orgânica – como pretende a biomedicina. Se os sintomas podem ser lidos como metonímias de processos sociopolíticos e históricos mais amplos e o mal-estar como uma particular técnica do corpo ou como uma linguagem para falar de dinâmicas culturais, torna-se necessário propor uma interpretação capaz de analisar o enredo complexo das experiências pessoais, dos processos culturais e das forças sociopolíticas que são vividas somaticamente no concreto da experiência. O sofrimento é, neste volume, interpretado como uma prática social na qual o corpo se exprime através dos próprios repertórios históricos e culturais e a doença como algo que os sujeitos fazem de forma absolutamente original: através das categorias com as quais interpretam o mal-estar; através das forças sociais e das hegemonias políticas que produzem dispositivos discursivos que fundam regimes
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de “verdade”; através dos próprios corpos, ou da própria experiência incorporada. Neste sentido, o corpo e os seus sintomas foram aqui considerados, não em termos exclusivamente orgânicos ou naturais – como entidades que se dão além dos processos de produção cultural –, mas, melhor, como produtos sociais dos quais tentamos indagar os processos de construção. Ao mesmo tempo, o corpo não foi aqui considerado somente como objecto passivo destes processos de plasmação cultural, mas também como sujeito activo de produção de significados culturais. Os corpos, por outras palavras, não são somente constituídos por e através de práticas e discursos sociais, mas são também o terreno vivido destes discursos e práticas. Para além desta Introdução, o livro foi estruturado em três partes, de acordo com o nosso propósito de incluir uma abordagem de aspectos socio-históricos da doença, uma análise crítica de modelos médicos (especialmente o dominante, a biomedicina) e de algumas práticas terapêuticas no terreno. Concluindo, incluem-se apreciações finais do nosso colega e consultor internacional do projecto acima referido, Josep Maria Comelles. Na primeira parte, no texto de Ramón Sarrò, analisa-se a diversidade cultural do sofrimento e da dor, a sua concepção em diferentes religiões, as assimetrias das políticas coloniais, a secularização e as suas implicações nas políticas de saúde, mas também o modo como literatura e religião prometem o fim do sofrimento e da morte. O texto de Marta Maia remete-nos para as novas “comunidades” formadas na Internet e sua relação com a doença, no caso a hepatite C. O seu trabalho em França regista as experiências, trocadas em fóruns, pelos doentes. O contributo de Jorge Varanda cruza política, economia e saúde, analisando o caso da doença do sono em Angola, no período colonial. Através da análise dos dados obtidos no seu estudo de arquivo, o autor revela as claras ligações estabelecidas entre a biomedicina e a adminis-
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tração colonial no controlo das actividades sócio-económicas das populações “assistidas”, sublinhando o aspecto político do saber médico. Na segunda parte desta obra, Cristina Santinho recorre à observação participante em consultórios de psiquiatria, no “Centro de Acolhimento de Refugiados” (CAR), e às histórias de vida, obtidas no decurso do seu trabalho, como meios para analisar a verbalização do sofrimento entre refugiados em Portugal. A autora torna evidente porque é traumática a experiência de integração daqueles que são vítimas da “banalidade do mal” (como escreve Hannah Arendt, citada por Santinho), mas também como a identidade se reconstrói e, finalmente, como a compreensão da somatização remete para o inevitável conhecimento das condições de vida do refugiado. Ana Mourão investiga as rupturas identitárias determinadas pela emigração e pela doença crónica, nomeadamente a ruptura que designa como “descontinuidade biográfica”. A autora lança um olhar para além da diversidade cultural, para além da pluralidade dos sistemas interpretativos e terapêuticos, buscando a omnipresente necessidade de uma interpretação que apazigue a dor e dê sentido ao sofrimento. Chiara Pussetti analisa a concepção de doença dos Bijagós – a qual radica no desequilíbrio das emoções e dos sentimentos próprios e alheios –, cruzando “coordenadas situacionais, relacionais, históricas e morais”. A autora baseia-se em narrativas recolhidas naquele arquipélago da Guiné-Bissau e demonstra como a desordem nas relações sociais se pode traduzir em desordem no corpo físico, a qual, por sua vez, pode levar a um desequilíbrio de comportamento que pode afectar a saúde de membros dos grupos sociais próximos do doente. A este propósito, Pussetti questiona o conceito de “somatização”, tendo como pano de fundo a intervenção da biomedicina e o papel do curandeiro na construção de sentido sobre o bem-estar e a doença. Na terceira parte do livro, o texto de Clara Carvalho aborda o papel de terapeutas guineenses e senegaleses, imigrados em capitais
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europeias, portadores do seu saber médico, mediadores entre diferentes concepções de corpo, saúde e doença, agentes decisivos na relação entre diferentes grupos culturais. A história da diáspora guineense segue a pista das redes transnacionais dos terapeutas tradicionais (os marabouts, os mouros, como são designados na Guiné-Bissau, e os jambakus), em França, Espanha e Portugal. A autora identifica as estratégias de radicação nos países de destino, as suas concepções de saúde e de doença e as relações estabelecidas entre os diferentes sistemas nosológicos, ilustradas, por exemplo, com a análise do infortúnio e de vários cultos de aflição, bem como de dados recolhidos sobre a experiência hospitalar vivida por elementos da população migrante. Iolanda Évora estuda o comportamento de jovens cabo-verdianos face ao VIH/Sida, identificando a sua percepção de risco e a sua lógica de protecção, identificando as controvérsias inerentes ao binómio sida/imigração, no qual o Outro surge como ameaça à ordem estabelecida no país de destino. A autora aborda a situação de rapazes e raparigas entre 16 e 26 anos, de origem cabo-verdiana em Portugal, levando em conta a sua integração em grupos no país de origem e, depois, no país de destino. Situa-os nos bairros em que vivem (aqueles que são designados como de “realojamento social”, em centros urbanos portugueses) e contextualiza a sua condição, remetendo para o “universo do medo” de que fala Susan Sontag (citada por Évora). Neste texto são revelados vários aspectos inerentes à construção social das percepções sobre segurança e perigo, em estreita relação com as concepções dos jovens, com os quais Iolanda Évora fez o seu trabalho de campo, sobre sexualidade. Luís Silva Pereira analisa o estabelecimento, o funcionamento, a organização interna e o tipo de assistência prestada por um terreiro de candomblé em Portugal. O autor cruza a concepção de mundo do candomblé com as acções desenvolvidas no terreiro, directamente relacionadas com previsão, aconselhamento, diagnóstico e tratamento.
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Baseando-se em materiais recolhidos junto de adeptos e de consulentes, identifica as razões que levam essa população, na sua esmagadora maioria de nacionalidade portuguesa e de religião católica, a recorrer ao candomblé para solucionar problemas relacionados com a saúde e avalia a relevância da teoria e da prática desta religião nas vidas dos que a ela recorrem. A ciência não deve ser estranha ao sofrimento social – esse é um pressuposto que liga muitos dos trabalhadores da área da saúde e que, desde o ponto de vista dos organizadores deste livro, liga, pelo sentido, as contribuições dos seus autores. Uma leitura antropologicamente sensível do sofrimento e da doença é uma questão política e uma responsabilidade ética em relação a actores sociais, tantas vezes silenciados, e que consideramos, antes de tudo, como sujeitos políticos e morais que muitas vezes manifestam somaticamente os sintomas de profundas feridas históricas e sociais. É no seio deste panorama conflitual, móvel e mutável, no qual múltiplos discursos coexistentes entram em contradição e onde os problemas sociais podem ser incorporados como doenças, que tentamos desenvolver as nossas investigações individuais e o nosso projecto colectivo. O desafio foi trabalhar sem nunca perder a consciência das relações entre conhecimento, poder, autoridade e hegemonia; da multiplicidade dos factores em jogo (sociais, políticos e económicos, além de culturais); e da centralidade dos indivíduos em si, das suas interpretações, representações, emoções, ambiguidades, memórias e esperanças. Consideramos que este livro pode preencher uma lacuna na divulgação de trabalhos na área da Antropologia da Doença e da Antropologia Médica, desejamos que contribua para melhorar a comunicação entre representantes de diferentes áreas do saber que se cruzam no terreno (mas que nem sempre cruzam os resultados das suas investigações, inviabilizando uma visão mais informada sobre o
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doente, ou a pessoa que vive em aflição), e, finalmente, que seja um instrumento útil para a formação de alunos e trabalhadores da área da saúde e das ciências sociais.
Chiara Pussetti Luís Silva Pereira
BIBLIOGRAFIA AUGÉ, M., 1986, L’Anthropologie de la maladie, L’Homme, Volume 26, Numéro 97, pp. 81-90. BASTIDE, R., et al., 1976, Pesquisa Comparativa e Interdisciplinar, Porto Alegre: Ed. Karont Livreiro. BEN JELLOUN, T., 1977, La plus haute des solitudes, Paris, Éditions du Seuil. BHABHA, H.K., 2001, Locations of culture: the post-colonial and the postmodern Postmodern Debates. London: Ed. Routledge. FASSIN., D., 2002, L’invention française de la discrimination, Revue française de science politique, vol. 52, n° 4, pp. 403-423.
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LOCK, M., e N. SCHEPER-HUGHES, 1987, The Mindful Body: A Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology, Medical Anthropology Quarterly, 1 (1), pp. 6-41. NATHAN, T., 1986, La folie des autres. Traité d’ethnopsychiatrie Clinique, Paris: Ed. Dunod. SAYAD, A., 1999, La double absence: des illusions de l’émigré aux souffrances de l’immigré. Paris: Ed. Seuil. SONTAG, S., 1978, Illness as Metaphor, New York: Farrar, Straus & Giroux.
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PA RT E I GOVERNAR A DOENÇA: HISTÓRIA, POLÍTICAS E PRÁTICAS
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Capítulo 1
O sofrimento como modelo cultural: Uma reflexão antropológica sobre a memória religiosa na diáspora africana
Ramon Sarró*
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Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
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O SOFRIMENTO AFRICANO Certo dia de 1994, vivia eu numa aldeia da etnia Baga, na Guiné Conacri, surpreendeu-me que um ancião, que visitava a casa onde vivíamos, saudasse Arafan, o pai da família, com a frase initoro e que Arafan tivesse respondido iyoo, initoro. Geralmente, entre os Baga, quando se recebe um estrangeiro é utilizada a expressão jovial inisene, que significa ‘bem-vindo’ e não initoro, que é uma expressão de condolência usada, sobretudo, para transmitir pesar por um falecimento ou para dar apoio a alguém que está gravemente doente. O trabalho de campo é como entrar no cinema a meio do filme. Por isso, pensei que me tinha escapado algo, que a vida de Arafan tinha sido atingida por alguma desgraça que me era desconhecida e que justificava a utilização do initoro. Contudo, não era este o caso. Durante os anos que convivi com os Baga, ouvi os anciãos cumprimentarem-se com um initoro em vez de inisene noutras ocasiões, especialmente quando já não se viam há muito tempo: a explicação é, precisamente, que ao longo desse tempo de ausência teriam, com certeza, ocorrido várias desgraças na vida da pessoa que cumprimentamos, em especial se ela já tem muita idade. Mas, seria aceitável na Europa cumprimentar alguém, mesmo alguém de muita idade, com uma expressão de pesar?
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A África convive com a dor e com o sofrimento de tal forma que, no Chade, uma saudação corrente em francês é comment ça va avec la douleur?, frase que serviu de título a um filme do realizador francês Raymond Depardon (França 1996). Este documentário foi acusado de afro-pessimista, pois mostra uma África dizimada pela dor e pela tragédia, mas, de facto, a frase é muito semelhante ao initoro usado pelos Baga, ou, para dar outro exemplo, à forma que o valor da expressão crioula sufri tem na rede de intercâmbios verbais que tecem o quotidiano na Guiné-Bissau. Não querendo ser afro-pessimista (sei perfeitamente que também existe uma África que ri, que brinca, que dança e que joga futebol), parece-me evidente que os africanos estão muito mais familiarizados com o sofrimento do que os seus vizinhos do norte, nós os europeus, que talvez devessemos aprender mais sobre o assunto. Em 2003, quando tomei a liberdade de aconselhar um rapaz guineense que pretendia emigrar para a Europa, dizendo-lhe que iria sofrer muito, ele fitou-me como se eu tivesse feito a observação mais óbvia do mundo e respondeu-me, de forma lacónica, bien sure, mais la vie, c’est la souffrance, n’est pas?1 Tanto o sofrimento como a sua irmã gémea, a dor, são normalmente estudados pela antropologia médica e mesmo a sua dimensão social tem sido estudada, habitualmente, por especialistas desta disciplina (ver, p. ex., Kleinman 1958), com algumas excepções notáveis que assinalarei ao longo deste texto. Mas o sofrimento vai muito para além da medicina, como mostra a sua presença no cânone religioso e filosófico ocidental. Referindo apenas as duas tradições que julgo serem mais familiares ao leitor, lembremos as profundas reflexões sobre o sofrimento de autores cristãos como Santo Agos1 De qualquer forma, isto não significa que eu tenha mudado a minha sensação, que ainda
mantenho, de que os emigrantes africanos desconhecem ou minimizam o sofrimento que os espera quando chegam a uma Europa cada vez mais discriminatória, onde irão enfrentar muitos dos seus piores pesadelos e onde viverão situações desumanas graves. Sobre o sofrimento dos imigrantes e a frustração dos seus sonhos, ver por exemplo Sayad (1999), Bordonaro e Pussetti (2006), Sarró (2007).
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tinho, Unamuno, Kierkegaard, Gabriel Marcel e as de pensadores judeus como Spinoza, Martin Buber, Paul Celan, Emmanuel Levinas2. Como Rebecca Norris demonstrou num artigo recente, o estudo cabal do sofrimento e da dor pressupõe um equilíbrio entre a antropologia da religião e a antropologia médica (Norris 2009). Infelizmente, não é fácil elaborar um enquadramento teórico para estudar este ponto de encontro, dado o silêncio com que as ciências sociais se têm deparado nesta questão. Com algumas excepções (Bowker 1970; Sullivan 1989)3, a relação entre religião e sofrimento tem sido desprezada pelos investigadores sociais e as reflexões que encontramos a este respeito pertencem a teólogos ou historiadores da religião e não aos sociólogos ou antropólogos que poderiam ajudar-nos a entender o sofrimento como um facto social. É evidente que religião e saúde sempre andaram lado a lado, como bem demonstra a frase latina extra ecclesiam nula salus e fora da comunidade moral que denominamos de ‘igreja’ não existe salus (conceito latino que significa ‘salvação’ e ‘saúde’). Na realidade, a questão é bem mais complexa do que aparenta. Se é certo que esta frase dá a entender que dentro da igreja (cristã) encontramos a salus, a verdade é que o sofrimento não só não é deixado extra ecclesiam, como faz parte do ethos cristão segundo a maioria das denominações cristãs europeias. O cristão é aquele que compreende o sofrimento de Jesus Cristo e mais cristão ainda é aquele que consegue sentir esse sofrimento no seu próprio corpo: das lágrimas do peregrino na via dolorosa até aos misteriosos estigmas do místico, passando pelas auto-flagelações de alguns crentes (ver o estudo de Glucklich 2001). Como tal, sofrer não equivale a não ter salus. O cristão saudável é um ser que sofre. De qualquer forma, apesar do cristianismo 2 Para uma análise comparativa do sofrimento nas diversas religiões, ver Hinnells e Porter
(1999). 3 Obviamente, limito-me a citar os textos mais relevantes para as ciências sociais. No
âmbito da teologia, a literatura sobre o sofrimento é, obviamente, muitíssimo mais extensa. A meio caminho entre a teologia (cristã e judaica neste caso) e os religious studies, o livro colectivo organizado por Gibbs e Wolfson (2002) parece-me ser particularmente claro e inspirador.
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ter uma base histórica que assenta na compreensão do sofrimento, quantos cristãos ocidentais estariam totalmente dispostos a aceitar a frase do meu interlocutor guineense, segundo a qual a vida é sofrimento?
O SOFRIMENTO E A CRIAÇÃO DA COMUNIDADE RELIGIOSA Temos de agradecer ao antropólogo britânico Harvey Whitehouse por finalmente ter iniciado uma série de estudos sobre a associação entre sofrimento e religião. Este professor de Oxford, sem dúvida uma das vozes mais influentes da nova antropologia da religião, mostra-nos o papel fundamental que o sofrimento tem na criação de uma comunidade. Para Whitehouse, o sofrimento é fundamental naquilo a que os antropólogos chamam de ‘ritos de passagem’ e que ele rebaptizou de ‘ritos de terror’ (Whitehouse 1996). A sua teoria sobre a transmissão de ideias religiosas refere que é fundamental que estes ritos sejam dolorosos por várias razões, mas em especial porque, por um lado, a dor ajuda a gravar na memória a religiosidade que é transmitida aos neófitos e, por outro, porque a partilha da dor no campo iniciático cria uma comunidade muito forte, não só entre os neófitos mas também entre estes e aqueles mais velhos que os iniciam. Whitehouse alega que esta forma de criar a comunidade através da dor é própria das religiões iniciáticas, mas não daquelas que ele designa de ‘doutrinais’, as quais criam, a partir do livro e da doutrina relembrada nas cerimónias, um sentimento de pertença àquilo a que Anderson (1983) denominou uma ‘comunidade imaginada’. Whitehouse critica o seu antecessor mais respeitado, Émile Durkheim, para quem entrar numa religião é ipso facto passar a adorar a comunidade a que se pertence. Para Whitehouse, isto acontece nas religiões iniciáticas, mas não nas universais, onde a criação de um sentimento de comunidade passa por outros mecanismos para além da iniciação ao grupo. Whitehouse (2000) acusa Durkheim de analisar uma religião
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iniciática (a dos aborígenes australianos), tomando-a como modelo da religião em geral. Segundo Whitehouse nas religiões universais o sentimento de pertença é muito mais débil, precisamente por não submeter os noviços a rituais traumáticos que incutem as noções básicas e o sentimento de colectividade à força. A crítica a Durkheim parece-me acertada. No entanto, julgo que poderíamos afastar-nos da dicotomia de Whitehouse entre ‘modos de religiosidade iniciáticos’ e ‘modos de religiosidade doutrinais’ porque, na realidade, contrariamente à sua posição, penso que o sofrimento pode ser importante tanto para a memória das religiões iniciáticas como para a das religiões doutrinais. A história do cristianismo e a centralidade do sofrimento na sua teologia mostra-nos isso mesmo. Whitehouse está certo quando defende que o sofrimento colectivo é fundamental para criar a comunidade, mas falha quando defende que isso não acontece nas religiões doutrinais. Muito antes dele, já Max Weber nos tinha explicado que fazer parte de uma ‘comunidade de sofrimento’, construindo a partir daí uma doutrina, uma ética e uma teodiceia, cria laços muito fortes entre os seres humanos. Como referido, o cristianismo foi historicamente concebido como uma comunidade de sofredores, embora, ultimamente, algumas modalidades do cristianismo neopentecostal consistam, precisamente, em evitar o sofrimento. ‘Pare de sofrer!’ é um lema habitual da Igreja Universal do Reino de Deus em Portugal. Porém, conjuntamente com o neo-pentecostalismo chegam hoje a Portugal, vindas de outros continentes, novas formas de viver o cristianismo, incidindo algumas delas sobre o sofrimento, por vezes de forma mais incisiva do que o próprio catolicismo tradicional português. Poderá haver quem queira responder à observação que fiz a Whitehouse, alegando que os mecanismos de criação de uma comunidade nas religiões doutrinais, como o islão, o judaísmo, o cristianismo ou o hinduísmo passam pela imaginação literária e não pela vivência corporal: trata-se de um sofrimento metafórico e não de uma dor real, como aquela que é sentida pelos neófitos nos cultos de iniciação africa-
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nos ou melanésios. Seria porém uma afirmação muito arriscada, porque ninguém pode legitimamente dizer a outrem que o seu sofrimento não é ‘real’, mas antes ‘metafórico’. Gostaria de, neste artigo, ilustrar esta dificuldade com a análise de uma dessas novas formas de cristianismo que incidem no sofrimento das quais estávamos a falar.
O KIMBANGUISMO: DA REPRESSÃO COLONIAL À DIÁSPORA ACTUAL O kimbanguismo é um movimento profético que nasce no Congo (na altura, Congo Belga) em 1921. Convém ter em conta que o Congo é uma das regiões do continente africano onde a cultura religiosa é mais profética – possivelmente tanto como a própria cultura semita pré-cristã. Já no século XVII se desenvolveu o movimento profético que surgiu no seguimento das promessas e da trágica vida de Kimpa Vita (ou Dona Beatriz), uma mulher nascida na capital do Reino do Congo e queimada viva em 1706 pela lei Kongo (com a aprovação de missionários Capuchinhos italianos). Kimpa Vita denunciava a hipocrisia da evangelização europeia que, por um lado, promovia um discurso de igualdade e dignidade humana, mas, por outro, oprimia os africanos e colaborava activamente no tráfico de escravos. Esta profetisa indigenizava completamente a religião cristã, chegando a afirmar que Santo Antonio, tal como Jesus, Maria e José, eram negros do Kongo, e que um futuro messias nasceria em África para instaurar na terra o verdadeiro cristianismo, no qual todos os seres humanos seriam considerados iguais. No entanto, o movimento profético mais conhecido foi aquele que surgiu dois séculos mais tarde no sul do Congo Belga, quando Simon Kimbangu, um catequista mukongo (para muitos, era ele a promessa anunciada por Kimpa Vita), começou a curar pessoas através de meios espirituais e a convidar as pessoas a abandonar as suas crenças na
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bruxaria em nome do cristianismo. Milhares de pessoas deslocaram-se à aldeia de Nkamba (lugar de nascença de Kimbangu), não longe da fronteira com Angola, para serem curados e poderem encontrar um consolo junto ao profeta. Em Setembro de 1921, apercebendo-se da sua capacidade de mobilizar a população colonizada, o governo belga deteve-o, condenando-o à morte (pena posteriormente comutada em prisão perpétua). Kimbangu foi encarcerado pelas autoridades belgas em Elizabethville (mais tarde Lubumbashi) e viveu durante 30 anos numa cela de 120x80 cm. Morreu em Outubro de 1951, sendo, asseguram os kimbanguistas, o africano que mais tempo passou numa prisão. No entanto, apesar do encarceramento, sofrimento e morte do profeta, o movimento kimbanguista perdurou e, sob a tutela de um dos filhos de Kimbangu, converteu-se na década de sessenta numa religião oficial do Zaire independente. O corpo do profeta foi solenemente trasladado de Lubumbashi para Nkamba, onde se construiu um mausoléu – hoje visitado em peregrinação por kimbanguistas de todo o mundo. Em 1969, a Igreja Kimbanguista foi admitida no Conselho Ecuménico de Igrejas Cristãs e Nkamba foi oficialmente declarada sede da igreja. Por esses anos, o movimento também se começou a disseminar entre a população bakongo do norte de Angola, apesar da oposição da administração colonial portuguesa. Nas décadas de 1960 e 1970, os kimbanguistas sofreram uma perseguição brutal, sendo finalmente reconhecidos pela metrópole em 1974, pouco antes da independência de Angola (para uma história do kimbanguismo em Angola, ver Sarró, Blanes e Viegas 2008). Na década de 1980, precisamente quando os movimentos proféticos estavam a sofrer dificuldades em Angola, por causa da repressão religiosa dos primeiros anos do regime do MPLA, alguns angolanos emigraram para Portugal, trazendo consigo as suas formas religiosas. A ex-metrópole assumiu aqui um papel curioso na manutenção desta fé. Na década de 1980, alguns emigrantes conseguiram, graças ao facto de Portugal ter reconhecido o kimbanguismo na época
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colonial, instalar a sua igreja no Prior Velho (Loures) e manter viva essa religião tão africana e, no entanto, proibida em África. A chama do kimbanguismo angolano manteve-se viva na diáspora, enquanto as forças governamentais tentavam, por todos os meios, apagá-la no continente de onde havia embarcado (para um enquadramento teórico da diáspora kimbanguista, ver Sarró e Blanes 2009a). Hoje, a Igreja Kimbanguista de Portugal reúne-se todos os domingos em Loures. Para eles, como para muitos africanos, Europa é uma terra que precisa de evangelização. ‘Pouco imaginava o Europeu, que veio colonizar o seu irmão menor [mais jovem] Africano, que esse irmão mais pequeno iria um dia recordar-lhe que não se pode viver sem Deus’, disse-me numa ocasião um kimbanguista. Actualmente, existem congregações em muitos outros países – como Inglaterra, França, Bélgica, Espanha, E.U.A., Brasil –, constituindo um bom exemplo das redes transnacionais que compõem as religiões de hoje. A cidade de Nkamba continua, no entanto, a ser considerada o centro sagrado da comunidade mundial.
SOFRIMENTO E SECULARIZAÇÃO: PASSOS PARA UM ESQUECIMENTO DO SOFRIMENTO Actualmente, nos círculos académicos, fala-se muito da secularização da sociedade ocidental. A secularização é o desencantamento, a dessacralização, a ‘desmitologização’, o ‘desigrejamento’ (de-churching, em inglês). A secularização é entendida a maioria das vezes como uma perda, como uma despromoção de um estado de graça a um estado de natureza (em linguagem escolástica) e parecem ser poucos os que se atrevem a analisá-la como um êxito, como algo que ganhámos à custa do trabalho intelectual e como mais uma das formas de estarmos no mundo e de nos relacionarmos com ele (talvez a excepção mais notável
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seja Asad 2003). Ao pensar nesta estética da perda, recordo que existe um outro elemento da secularização enquanto perda, que é a progressiva ocultação do sofrimento no mundo em que vivemos. Poderíamos dizer, acrescentando mais uma palavra com o prefixo ‘des’ à nossa lista, que a secularização é um ‘dessofrimento’ do mundo (peço desculpa pelo péssimo neologismo). Hoje em dia, ‘sofre-se porque se quer’, como disse uma entrevistada à minha colega Maria-Manuel Quintela, especialista em antropologia da saúde (Quintela 2008: 302)4. Em minha opinião, a I Guerra Mundial e os anos imediatamente a seguir constituíram um momento-chave na história recente da secularização na Europa. É como se a Grande Guerra nos tivesse alertado que o esquecimento da religião tinha causado danos irreparáveis à consciência europeia. Foi nesse contexto que se escreveram obras muito importantes, que colocaram um travão ao entusiasmo pela secularização, promovendo um renascimento de aproximações académicas, num compromisso entre a ciência e a teologia, que convidavam a pensar o ser humano como fundamentalmente religioso. Ocorrem-me à memória livros como A Ideia do Santo, de Rudolf Otto (1917) ou O Eterno no Homem, de Max Scheler (1922) – que abriram caminho à fenomenologia da religião –, o Comentário à Epístola aos Romanos de Karl Barth (1919) – cuja segunda edição de 1922 fundou a denominada Teologia Dialéctica –, e também obras poéticas como The Waste Land de T.S Eliot (1922), que denunciavam a arrogância do ‘esquecimento de Deus’ e os perigos dos excessos de racionalidade. Paul Hazard viria a desenvolver mais tarde este último tema no seu livro histórico A Crise da Consciência Europeia (1935). Porém, julgo que o autor que melhor expressou a ambiguidade do Iluminismo na Europa do pós-guerra foi Thomas Mann em A Montanha Magica (1924). Neste romance, Mann criou um personagem, Settembrini, que 4 Não só hoje em dia. A invisibilização do sofrimento, bem como da religião, na Europa
moderna são analizados na litetarura do Século XVIII num inspirado livro de Chantal Thomas (2004).
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era o protótipo do homem ilustrado, do homem que encarnava os ideais secularizados da modernidade desencantada. Como qualquer leitor ou leitora que tenha lido a obra recordará, Settembrini pertencia a uma Ligue pour l’Organisation du Progrès internacional, cuja tarefa era a de ‘cimentar a felicidade da humanidade e combater e eliminar definitivamente o sofrimento humano’. Esta liga, que caricaturiza o racionalismo oitocentista, tinha como objectivo a elaboração de uma Enciclopédia do Sofrimento Humano ou uma Sociologia geral do sofrimento humano (o próprio Settembrini utiliza os dois títulos em momentos diferentes do romance), uma obra monumental em vários volumes na qual o sofrimento da humanidade, ‘em todas as suas categorias e variedades’, seria objecto de um estudo sistemático e exaustivo: [S]e expondrán los elementos químicos cuyas múltiples mezclas y combinaciones determinan los distintos tipos de sufrimiento humano y, tomando como directriz principal la dignidad y felicidad de los hombres, se propondrán los medios y las medidas que se consideren indicados para eliminar la causa de estos males5.
Para Settembrini e seus ilustres companheiros da Ligue progressista, o mundo ilustrado, moderno e racional deveria ser um mundo sem sofrimento e, consequentemente, também sem Deus. Talvez seja esta a filosofia subjacente à criação dos sistemas seculares de saúde pública, muito embora esse propósito seja apenas um sonho: o ser humano demonstrou ter grandes qualidades na arte de criar sofrimentos aos seus congéneres, mas muitas falhas na arte de evitá-los. Se uma sociedade sem sofrimento não é impensável e talvez não fosse de todo indesejável, penso que a própria consciência europeia teria dificuldade em considerar como totalmente humanos os membros dessa sociedade sem sofrimento. Um bom exemplo desta afirmação são os personagens supostamente felizes de outro grande 5 Mann, Th. La Montaña Mágica (cap. 5, secção ‘La Enciclopedia’). Cito a formidável
tradução ao espanhol de Isabel García Adánez (Barcelona, Edhasa 2005), p. 356.
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romance – Um Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932) – inserido, também, no contexto da ambiguidade do Iluminismo descoberta depois da Grande Guerra. Tal como a literatura, por vezes a religião surge como um mecanismo para imaginar sociedades sem sofrimento, existindo inúmeros movimentos proféticos que asseguram o fim do sofrimento e até da morte (ver Sarro, 2009 para um caso de promessas atanásicas entre os baga da Guiné-Conacri) ou que prometem uma ‘sociedade sem mal’, como o profetismo tupi-guarani estudado por Hélène Clastres (1975). Mais frequentemente, porém, a religião surge como um modelo para pensar e aceitar o sofrimento. Clifford Geertz recordou-nos que a religião é aquela encruzilhada de caminhos, própria do pensamento simbólico e única no ser humano, no qual os ‘modelos de’ se convertem em ‘modelos para’ (Geertz 1966). No caso dos kimbanguistas, o relato da vida de Cristo, o da profetisa Kimpa Vita e, sobretudo, o de Simon Kimbangu convertem-se em modelos da sua própria condição, que dão significado ao mundo em que vivem, ajudando os crentes a entender a história da sua comunidade. São também modelos para, que oferecem um esquema mental e comportamental que permite actuar e adoptar uma atitude ética perante o mundo. Kimbangu rezou por e ajudou os seus congéneres africanos colonizados e, hoje, os kimbanguistas rezam por e ajudam os imigrantes e outros co-habitantes marginalizados da população portuguesa, a quem prestam auxílio com todas as suas forças espirituais. Com efeito, os kimbanguistas de Loures estão sempre dispostos a ir rezar a casa de alguém, seja kimbanguista ou não. Há uns anos atrás, por exemplo, foram visitados por um homem que vivia muito longe do local da sede da Igreja, mas que tinha ouvido falar das orações colectivas organizadas por este grupo. A sua esposa não queria sair de casa em qualquer circunstância, nem mesmo para ir fazer compras na loja ao lado. A pedido do marido, os kimbanguistas deslocaram-se então à sua casa e rezaram por ela várias vezes. Ao fim de algum tempo, a mulher começou a sair e até se aventurou a ir de
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carro ao supermercado. Do ponto de vista biomédico, poderemos arriscar dizer que esta mulher apresentava, provavelmente, um quadro de fobia e, como tal, não há porque duvidar da eficácia de um bom serviço psiquiátrico, caso o marido tivesse procurado esse apoio, em vez de se dirigir aos kimbanguistas. Por razões que de momento desconheço, o homem procurou apoio na religião e não na medicina, e os kimbanguistas trataram-na como um ser sofredor, não como um doente. Por conseguinte, fizeram o que lhes é habitual fazer para apaziguar o espírito atormentado de um congénere sofredor: rezar. Após a recuperação, a mulher deslocou-se à igreja kimbanguista para expressar o seu agradecimento, embora não se tenha convertido à religião de Kimbangu.
A EUROPA PÓS-SECULAR: PASSOS PARA A RECUPERAÇÃO DA MEMÓRIA E DO SOFRIMENTO Noutro lugar escrevi, junto com o meu colega Ruy Blanes (Sarró e Blanes 2009b), que a imigração constitui o grande desafio à teoria da secularização. A Europa pode estar a secularizar-se (embora esta afirmação não deixe de ser muito discutível), mas não há dúvida de que os imigrantes que chegam de países meridionais (pensemos no Brasil e África, em especial) vêm mais religiosos do que seculares, trazendo um ar fresco de religiosidade à Europa. Algumas religiões, como o kimbanguismo, vêm precisamente recordar-nos que sofrer faz parte da nossa condição humana e histórica. Nas reflexões teóricas sobre a história do sofrimento humano (ver Escalante Gonzalbo 2006), é sempre dado destaque à Shoah (holocausto). De facto, a Shoah coloca-nos problemas ligados à transmissão do sofrimento na linha discutida mais atrás, que dificultam a distinção entre a vivência e a memória semântica, na qual se baseia, por
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exemplo, a teoria de Whitehouse. É óbvio que as gerações de judeus que não viveram nos campos de concentração, não sofrem a mesma dor que os seus antepassados que ali estiveram. No entanto, como nos ensinou Paul Ricoeur (1994), é importante distinguir dor de sofrimento: a história também pode ser sofrimento e também pode ser vivida como tal. O trauma pode transmitir-se de pais para filhos e a dor anteriormente vivida pode ser revivida, embora de formas distintas, pelos descendentes daqueles que a viveram. Como Lacapra argumenta, no seu livro sobre a memória e o holocausto, uma distinção entre ‘memória’ e ‘história’ iria confundir mais do que esclarecer a relação que existe entre o povo judeu e o seu passado mais recente (Lacapra 1998). A Shoah coloca também um problema ético muito delicado sobre a aceitação do sofrimento, pois podemos interrogar-nos até que ponto o esquecimento não seria melhor para os judeus que não viveram o Holocausto. Todavia, ainda hoje, para a sua maioria as expressões ‘pare de sofrer!’ ou ‘sofre-se porque se quer’, que mencionámos anteriormente, constituiriam um insulto à sua identidade e à história do seu povo. Julgo que, tal como na Shoah, a Europa irá assistir proximamente a um período de profunda reflexão sobre outros sofrimentos que a história da humanidade conheceu recentemente – e, muito especialmente, a do povo africano, que agora temos como vizinho em Loures e em tantos outros bairros das grandes metrópoles europeias. Até há bem pouco tempo, o sofrimento africano estava longe das nossas casas, era um sofrimento ‘à distância’, como disse Boltenski (1993), mas isso irá mudar em breve: hoje estamos rodeados de membros de gerações de africanos para quem a dolorosa memória histórica do tráfico de escravos, da colonização, da objectificação e da desumanização não deve desaparecer. E, de facto, não pode desaparecer, porque ela já faz parte do próprio habitus quotidiano de muitos cidadãos da África póscolonial, como Nick Argenti nos mostrou na sua etnografia sobre a persistência da memória e do trauma escravagista nos Grassfields dos Camarões (Argenti 2007).
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CONCLUSÃO O, I have suffered with those that I saw suffer Miranda (Tempest I, 2)
Recuperando uma distinção de Max Scheler (1943: 29-58) – depois elaborada por Hannah Arendt (1967: 82-165) – Luc Boltenski recorda-nos, na obra que acabo de citar, que uma coisa é ‘ver sofrer’ e outra é ‘sofrer com’ (Boltenski 1993: 15-37), embora, na maioria das vezes – como Shakespeare já nos tinha alertado muito antes destes autores nas dolorosas palavras de Miranda – ‘ver sofrer’ se converta em ‘sofrer com’, porque a nossa humanidade nos conduz indefectivelmente à ‘empatia’6. Os diversos sistemas éticos africanos que estudei insistem nesta participação do sofrimento humano. Os membros da igreja tocoísta, estudada pelo meu colega Ruy Llera Blanes, para quem o sofrimento é também uma forma de entender a memória (Blanes 2009), tratam-se por ‘irmãos co-sofredores’. Um velho baga disse-me, em certa ocasião, de forma mais elíptica e metafórica, própria da comunicação das sociedades sem escrita, que ‘quando se pisa a cauda a um macaco, a dor sobe-lhe até à cabeça’ pois não é apenas a cauda do animal que sente a dor mas o animal no seu todo. Transpondo esta imagem para o corpo 6 Talvez seja conveniente recordar que a teoria de Scheler, neste aspecto, é complexa e,
de facto, considera quatro factos distintos: o ‘imediato sentir algo com outro, o ‘simpatizar em algo com outro’; o ‘mero contacto afectivo’ e a ‘genuína unificação afectiva’ (Scheler 1943: 29). A empatia (ou ‘simpatia’, no vocabulário de Scheler) tem sido o ponto de desencontro entre as ciências do espírito da escola alemã, baseadas em Dilthey e Scheler, ciência orientada para a compreensão (verstehen), e as ciências naturais empíricas, especialmente as cognitivas (Sperber, Boyer, Whitehouse), muito mais orientadas para a explicação e dentro das quais a empatia é uma ilusão de que devemos prescindir. No entanto, hoje há pontos de encontro muito interessantes, pois através do estudo científico do funcionamento do cérebro e do seu desenvolvimento cognitivo está a conseguir demonstrar-se que, com efeito, a empatia, ou seja, a faculdade que nos permite perceber os nossos semelhantes como nossos semelhantes, pode ser explicada cientificamente. Convido o leitor a ler, em especial, o artigo de Gallese (2003), que apresenta um feliz encontro entre a explicação científica e a compreensão hermenêutica.
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social, a dor que os primeiros tocoístas ou os primeiros kimbanguistas sofreram durante a repressão colonial não acabou após a sua morte. Tal como o sofrimento da Shoah, ela foi transmitida às gerações seguintes, aos descendentes daqueles que sofreram a dor, convertendo-se em história e num modelo para compreender a condição humana.
CODA O leitor ou leitora terá observado que ao longo deste texto apenas falei daqueles que sofrem o sofrimento, mas não dos que o infligem. Certo dia, um pastor Kimbanguista disse-me: ‘Deus disse que temos de amar o próximo e isso é o mais difícil, porque significa que tens de amar quem sabes que te odeia’. Esta frase, de uma enorme profundidade espiritual, levar-nos-ia a discutir a transição da ética do sofrimento à ética do perdão. Mas essa é, obviamente, outra história e será contada numa outra ocasião.
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Capítulo 2
Hepatite C: Vivência da doença, do tratamento e da cura
Marta Maia*
*
CEAS / CRIA, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
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INTRODUÇÃO Desde que tomou a saúde e a doença como um objecto de estudo, a antropologia questionou: os sistemas etiológicos e terapêuticos, profanos e biomédicos (Laplantine 1986); as concepções da saúde e da doença, do normal e do patológico (Canguilhem, 1966); as «ideo-lógicas» da saúde e da doença (Augé e Herzlich 1984); a relação médico-paciente (Fainzang 2007; Friedson 1984; Helman 2003); as conexões entre o sociocultural e o orgânico, nomeadamente a descrição dos sintomas (Zola 1966), a gestão da dor, a reacção à dor (Kleinman 1988; Zborowski 1952); as políticas e instituições de saúde (Carricaburu e Ménoret 2004; Fassin e Brücker 1989; Fassin e Jaffré 1992; Fassin e Memmi 2004; Peneff 1992); a distribuição social (Boltanski 1971; Bonnet 2000) e os aspectos culturais da saúde e da doença (Dufresne, 1985; Grmek 1983; Helman, 2003; Herzlich 2000; Trostle 2005). Numa perspectiva heurística, tentei explorar o caso da hepatite C, uma doença particular pelos seguintes motivos: é crónica mas tem cura; apresenta poucos ou nenhuns sintomas mas o seu tratamento tem habitualmente muitos efeitos indesejáveis, tornando-a sintomática no momento da tentativa de cura, o que cria um paradoxo, na vivência da doença, entre o processo de entrada na cura e o estado de debilidade causado pelo seu tratamento; e é relativamente pouco conhecida apesar de atingir 3% da população mundial.
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O campo escolhido para tal foram os fóruns na Internet, tendo em conta os novos espaços de socialização que proporciona a Internet, a importância crescente destes espaços na gestão e vivência da doença e a relevância deste meio de comunicação, não apenas pela democratização da Internet mas também porque permite uma conexão com os outros sem sair de casa, o que é, como veremos, fundamental para certos doentes em tratamento, cujos corpos se encontram debilitados pela medicação mas cujas necessidades de apoio e compreensão urgem nesse período específico. O enunciado e a avaliação da doença são atravessados por significados. A doença toma sentido para o doente como para as pessoas que o rodeiam. Ora, numa sociedade em que a Internet tem um lugar cada vez maior enquanto fonte de informação e meio de comunicação, os fóruns de discussão adquirem uma importância crescente como espaço de expressão da experiências e dos significados da doença. O trabalho de campo foi desenvolvido em França, no quadro de uma investigação pós-doutoral, com o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian et da Fédération SOS Hépatites. Cerca de cento e oitenta milhões de pessoas são portadoras do VHC (vírus da hepatite C) no mundo. Em França, cerca de seiscentas mil pessoas estão infectadas pelo VHC, ou seja, quase 1% da população1. A hepatite C é uma doença viral transmissível pelo sangue e por via materno-fetal, que pode tornar-se crónica. Até 1992, não eram tomadas as medidas necessárias para impedir a transmissão do vírus através das doações de sangue, intervenções cirúrgicas, actos médicos invasivos, etc. A severidade da doença hepática ligada ao VHC é variável, mas pode provocar uma cirrose ou mesmo um cancro do fígado (Cimbidhi 2003). O tratamento actual da hepatite C consiste numa biterapia que associa dois medicamentos: o interferão pegilado e a ribavirina. Este tratamento apresenta cerca de 50% de possibilidade de seroconversão, ou cura. Mas os seus efeitos indesejáveis são numerosos – depressão, febre, dores musculares, dores de cabeça, cansaço, náuseas, perda de peso, 1 Valor, contudo, inferior ao estimado para a população portuguesa, de 1,5%.
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alopecia, perturbações do gosto, perturbações do sono, perturbações psicológicas, perturbações oculares, pele seca, acne, neutropenia, disfunções da tiróide, etc. – e provocam um abandono do tratamento para 15% dos doentes que o iniciam (Pawlotsky e Dhumeaux 2004). De acordo com um estudo realizado em 2002 (SOS Hepatites 2003), 75% dos pacientes afirmam que a hepatite perturba a sua vida quotidiana. Em primeiro lugar, a doença provoca frequentemente um cansaço crónico. Em segundo lugar, obriga a um acompanhamento médico regular, que por sua vez reaviva a consciência da presença da doença e o sentimento de se ser doente. Por último, para os doentes sob tratamento, os efeitos indesejáveis podem ser particularmente importantes, impedindo-os de trabalhar e de, parafraseando um paciente entrevistado, «ter uma vida normal». A infecção pelo VHC é a causa mais frequente das hepatites crónicas virais2. Trata-se de uma doença crónica que, por vezes, é detectada vários anos após a infecção, e o doente passa, regra geral, vários anos antes de iniciar uma terapêutica3. Existem em França dezenas de associações de doentes de hepatites4. A invenção do termo hépatant para designar os membros das associações de doentes deve-se a um membro da associação SOS Hépatites. O termo alargou-se depois a todas as pessoas que vivem com uma hepatite5.
METODOLOGIA O presente trabalho debruça-se sobre a vivência da hepatite C e a identidade do doente com esta patologia Numa época em que o acesso 2 Existem, além da hepatite C, outras formas de hepatite viral, tais como a hepatite A, B e
Delta. Existe vacina para estas últimas mas não para a C. 3 Habitualmente, o tratamento é iniciado quando o fígado do doente começa a apresentar
lesões, a chamada fibrose. 4 Em Portugal, contamos apenas com uma asociação, a SOS hepatites, sediada em Lisboa. 5 Além das hepatites virais, existem as hepatites alcoólicas, medicamentosas, auto-imunes
e fulminantes.
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à Internet se democratiza e os fóruns de discussão sobre as hepatites se multiplicam, trata-se de perceber o que as pessoas infectadas pelo VHC exprimem a respeito das suas experiências da doença, nestes espaços de comunicação virtuais e anónimos. A Internet permite o anonimato, o que conduz as pessoas a exprimirem-se livremente sobre as suas vivências, impressões, angústias, etc. Começei por classificar as informações recolhidas nos fóruns de discussão na Internet, em 2004. Entrei posteriormente em contacto com membros destes fóruns de discussão, em 2005, para realizar entrevistas semi-directivas, a fim de melhor compreender as suas biografias de doentes e no intuito de penetrar os significados dos discursos dos hépatants. A confrontação dos dados recolhidos revelou realidades compartilhadas por um grande número de pessoas, para além da diversidade dos seus percursos biográficos. Encontrei e entrevistei cinco mulheres e cinco homens com idades compreendidas entre os 30 e os 65 anos e residentes na área metropolitana de Paris. As entrevistas foram gravadas com o acordo das pessoas inquiridas, cujos nomes foram alterados por razões de confidencialidade. Os testemunhos apresentados aqui, colocados entre aspas e em itálico, foram traduzidos do francês. Procurou-se saber até que ponto a doença, o tratamento e a cura influenciam tanto o quotidiano do doente como a sua identidade, a representação que tem de si e dos outros, os não-doentes. Reflectiu-se sobre a questão da identidade do doente, num contexto em que surge a formação de grupos de doentes através de associações de doentes e fóruns de discussão na Internet, tornando o apoio «inter-pares» muito importante na vida do doente com hepatite viral. O quadro teórico que sobressaiu como mais adequado à análise deste caso foi o da teoria narrativa (Bruner 1987; Good e Good 1993; Holstein e Gubrium 2000; Hydén, 1997; Kleinman 1988; Laplantine 1999; Ricoeur 1985; Rowan e Cooper 1999). O doente não é apenas uma entidade biológica e a doença não é apenas uma disfunção biológica, pois um corpo é sempre o corpo de
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alguém, com uma existência singular, com um passado, um presente e um futuro. O corpo é também o local onde se elaboram as relações entre o ego e o mundo (Draperi 2004; Leibing 2004). O corpo é mais do que o suporte físico da existência, ele situa o indivíduo nos espaços intersubjectivo, social, cultural e histórico. São estes espaços que a doença e, no caso da hepatite C, o processo de cura, modificam qualitativamente. A mudança da relação com o mundo provocada pela declaração da doença é descrita desde o início do século XX em vários trabalhos (Burry 1982; Charmaz 1983; Herzlich e Pierret 1984; Laplantine 1986; Ménoret 1999; Scarry 1985). O corpo médico, o corpo do doente e o corpo social constituem os vectores do enunciado, da definição e da vivência da doença. Como entidade nosológica, a doença é uma realidade identificável em termos orgânicos; como experiência subjectiva, manifesta-se nas histórias de vida, nas histórias singulares dos sujeitos, local de estruturação, destruturação e restruturação da identidade pessoal e social, e nas relações intersubjectivas (Duarte e Leal 1998; Guibentif 1991; Leibing 2004). Debruçar-se sobre estas histórias implica considerar a articulação de três questões intimamente ligadas: a da definição médica da doença, a sua expressão pelo doente e a partilha dos dados médicos e da experiência da doença entre o médico e o doente, entre o doente e as pessoas que o rodeiam, e entre doentes. Os fóruns de discussão na Internet são um espaço de encontro entre doentes, conheçam-se eles pessoalmente ou não, que partilham as suas vivências da doença e constroem redes de inter-ajuda. São espaços onde se constroem narrativas, expressões simbólicas que instroem sobre o drama social da doença, o processo experiencial da doença, a construção do seu significado e a tomada de decisões na vida do doente (Langdon, 2001). O corpo tem uma existência e é carregado de sentido. A linguagem da doença inscreve-se nesse corpo, que a antropologia tenta apreender através de uma abordagem que tome em conta os significados e as lógicas dos comportamentos (Augé e Herzlich 1984; Schutz 1971). Através de histórias pessoais, tenta-se descrever o
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aparecimento e a gestão da doença no quadro de existências singulares, no seio das quais o indivíduo tenta dar coerência aos acontecimentos. O surgimento da doença suscita a necessidade de a nomear, compreender a sua origem, dar-lhe sentido através de uma «rede semântica» (Good 1998), um conjunto de noções e símbolos que estruturam a experiência da doença, assim como a necessidade, para o indivíduo, de recompor a sua identidade (Bury 1982; Charmaz 1983). A narrativa explica o que aconteceu e o que está acontecendo e instrui acerca da acção, do modo como o indivíduo vai gerir a doença (Langdon, 2001).
O HÉPATANT A identidade pode ser considerada como um sistema de representações e de sentimentos a partir do qual se pode categorizar ou singularizar pessoas e grupos, que se definem e diferenciam dos outros. A identidade é composta por uma configuração de elementos identitários ligados a grupos nos quais participa o indivíduo; uma combinatória de elementos que ele mobiliza em função das circunstâncias, uma diversidade que gere esforçando-se por não ser dividido por ela. Num processo biográfico movente, o indivíduo recompõe permanentemente a sua identidade (Dortier 1998; Kaufmann 2004). Um grupo tem uma identidade específica quando os seus membros, assim como os não-membros, reconhecem as suas especificidades (Tap 1980). Ora, cada indivíduo participa na vida social de vários grupos, tem várias identidades, ou seja, a sua identidade pessoal enraíza-se numa pertença a várias identidades: nação, região, classe social, sexo, geração, grupo profissional, etc. (Berting 2001). A doença é, portanto, apenas um ingrediente na composição complexa da identidade dos nossos entrevistados, mas nem por isso deixa de merecer a nossa atenção, pois constitui um elemento com uma importância relevante para a construção da identidade pessoal,
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tornando-se também um elemento de identificação com os outros doentes. Esta investigação desenvolveu-se em França e importa referir que existeneste país uma palavra original para designar os portadores de uma hepatite crónica, inventado por um activista da associação SOS Hépatites: hépatant, com h, como hepatite, neologismo que se confunde com o termo épatant, sem h, que significa espantoso. O facto de existir um termo específico para designar um grupo de pessoas com uma característica comum afigura-se um primeiro revelador de uma consciência de grupo destes doentes, unidos pela consciência de uma doença comum, pela partilha das suas histórias de vida e pelas relações e diálogos que estabelecem entre eles através da Internet6. Existem termos médicos frequentemente utilizados pelos hépatants nos fóruns de discussão, dificilmente compreensíveis numa primeira abordagem. As abreviaturas utilizadas, assim como certas expressões particulares, acrescentam uma dificuldade suplementar a essa compreensão pelos neófitos, sublinhando a distinção entre os membros, os hépatants, e os outros. São exemplos disso os termos, abreviações e expressões seguintes: transa = transaminases ES = efeitos secundários ttt = tratamento INF = interferão riba = ribavirina QDV = qualidade de vida MG = médico generalista ou médico de família INF lambda = interferão não pegilado7 malade lambda = doente que não possui muitos conhecimentos sobre as hepatites. 6 A existência de termos específicos está, em parte, ligada à existência de associações de
doentes, que é reveladora da consciência do doente enquanto tal. Em Portugal, onde se crê que 1,5% da população esteja infectada pelo VHC, a mobilidade associativa é muito fraca. Só em 2005 é criada uma associação de doentes hepáticos, a SOS Hépatites Portugal. Ver em linha http://hepatitec.blogs.sapo.pt/ [acedido em 1de Dezembro de 2006]. 7 O interferão pegilado, mais eficaz que o “clássico”, surge em 2001.
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O que leva estes indivíduos a procurarem fóruns de discussão sobre as hepatites na Internet, é sobretudo a busca de informação, a procura de reconforto e a necessidade de diálogo com pessoas que têm a mesma doença, tidos como «pares». A necessidade de partilhar informações, experiências e sentimentos com outros doentes nasce ou reforça-se com o início do tratamento. Com efeito, Os hépatants falam dos membros que já passaram pela experiência, frequentemente penosa, do tratamento como «iniciados». Nota-se em alguns discursos uma valorização daqueles que já levaram a cabo vários tratamentos. Exibe-se por vezes o número de tratamentos como medalhas de condecoração ou provas de coragem e elogiam-se aqueles que as possuem. Transforma-se essa experiência dolorosa em instrumento de valorização de si. Também são alvo de elogios e felicitações aqueles que acedem à cura, como se o doente fosse o único merecedor por esse feito. O doente é assim valorizado (Taïeb, Heidenreich, Baubet, e Moro 2005). Frequentemente, o sentimento de estar doente surge apenas com o primeiro tratamento, pois a doença permanece imperceptível durante vários anos, sem sintomas muito visíveis. O tratamento, isto é, o facto de tomar medicamentos, por um lado, e de se sentir mal fisicamente e/ou psicologicamente devido aos seus efeitos indesejáveis, por outro lado, torna a doença tangível, traz consigo o sentimento de estar doente, e mesmo de ser doente. «[o primeiro tratamento] era ainda com o interferão três vezes por semana, mas tive doses de indução, tive doses de dez milhões de unidade durante quinze dias, e aí, efectivamente, estava tão fraca que realmente senti-me doente e aceitei o rótulo de ser doente.» [Mireille, 45 anos, em tratamento]
A necessidade de contactar com outros doentes prende-se igualmente com o sentimento de ser incompreendido. Os outros, os não-doentes, não podem entender o que significa ter hepatite C e sobretudo fazer o tratamento.
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«As outras pessoas não percebem nada... As pessoas que não têm uma hepatite, não lhes podes falar disso, quero dizer, é como com qualquer outra doença, apercebes-te rapidamente que as outras pessoas não conseguem partilhar aquilo que te está a acontecer... Como queres que compreendam, as pessoas? Não é possível. É necessário teres vivido tu mesmo as coisas, porque... Bom, além disso, eu não tinha ar de doente, estás a ver... Além disso, durante o meu tratamento, tinha engordado muito, por isso... Sim, podia-se ver que tinha engordado, mas tinha ar de quem está boa de saúde. (...) Por isso, as pessoas, se não ficas muito magra e toda... estás a ver...» [Aline, 50 anos, último tratamento terminado poucos meses antes da entrevista, realizada em 2005]
Existe um sentimento de pertença a um grupo que partilha uma experiência comum, a crença que os outros «não sabem» e «não podem entender» o que ela significa, e um desejo de comunicar com os membros desse grupo. O diálogo passa pela Internet mas também por encontros organizados a partir dos fóruns de discussão e de grupos de auto-ajuda de associações de doentes. A incompreensão dos outros prende-se sobretudo com uma incapacidade em ter plena consciência do sofrimento quotidiano do paciente, a dificuldade em apoiá-lo a longo prazo, tendo de fazer frente a dificuldades várias e a um sentimento frustrante de incapacidade para resolver os problemas que coloca a doença. Neste contexto, os doentes afirmam que os únicos capazes de compreendê-los são os outros doentes, o que os leva a procurar associações de doente e fóruns de discussão na Internet acerca da doença que os afecta. Opera-se, por conseguinte, uma reconfiguração relacional, a par com uma recomposição identitária. A hepatite e o seu tratamento situam o indivíduo numa dependência dos outros doentes hepáticos. O facto de se sentirem «entre pares» torna a sua palavra mais livre e oferece-lhes o conforto da certeza de serem compreendidos. A narrativa ganha sentido por endereçar-se a alguém que partilha uma experiência similar. Ancorados nessas experiências comuns, os outros podem contribuir para a
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narrativa do sujeito e participar no trabalho de tecelagem dos acontecimentos numa trama com sentido e coerência. A narrativa em diálogo influencia o modo como o indivíduo percepciona a sua existência e constrói a sua narrativa. As questões colocadas pela doença são produzidas para si, para os outros e com os outros (Quinche 2005). Além disso, a imediação deste meio de comunicação possibilita um trabalho de configuração do sentido dos acontecimentos biográficos no presente. A mise-en-scène, a apresentação de si é imediatamente comentada pelos outros membros do fórum e edifica-se ao longo das mensagens escritas, acompanhando os acontecimentos biográficos do sujeito. A pertença a um grupo de pacientes ou uma associação é uma originalidade do auto-prestador de cuidados de saúde no qual se torna o doente crónico. Este deseja quebrar o isolamento e procura um eco das suas experiências e dúvidas. Quando o apoio social é insuficiente, as associações prestam uma ajuda considerável, fornecendo serviços sociais e jurídicos, informação sobre a doença e os tratamentos, apoio psicológico e emocional, assim como um lugar de sociabilidade e encontros (Adam e Herzlich 2002). Estas associações fazem prova da importância do apoio emocional, psicológico, social e mesmo material, na gestão da doença. Existem numerosas estruturas associativas no contexto das doenças crónicas. O caso do VIH/SIDA é particularmente marcado pela mobilização associativa. Em França, nasceram também redes associativas em torno do problema de saúde pública que representam as hepatites, tais como os Pólos de Referência e Redes Hepatites8. Estas entidades têm como objectivo a informação e o apoio das pessoas afectadas pelas hepatites. O diálogo com pessoas que compartilham uma experiência comum traz ainda o benefício da luta contra o isolamento e a auto-estigmatização, pacificando a relação do paciente com a sua doença (Fainzang 1989, 2001). 8 Fédération Nationale des Pôles de Référence et Réseaux Hépatites. Disponível em:
http://www.hepatites-info.com [acedido em 2 de Janeiro de 2007].
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No caso da hepatite C, é sobretudo o tratamento que acarreta o sentimento de estar/ser doente. De facto, os efeitos indesejáveis do tratamento são por vezes tão importantes que o doente se vê obrigado a uma baixa médica. É neste momento que os laços com os outros doentes membros de fóruns de discussão na Internet se tornam mais sólidos. Por vezes, nascem apenas a partir desse acontecimento biográfico. O doente, sem energia para sair de casa, vê nesses sites um espaço de ligação ao mundo, mas não um mundo qualquer, o mundo dos hépatants, os únicos capazes de o compreender, os únicos com os quais, nesse período difícil, consegue manter uma relação. «Dei-me conta que havia um grande número de pessoas no mesmo caso, porque obviamente, vês passar os pseudónimos, vês que são os mesmos... Por exemplo, era a primeira coisa que eu fazia de manhã ao acordar. Ligava o meu PC e lia as novas mensagens no site hepatites.net. Estava aberto em permanência. Por isso, passava o meu tempo entre o meu computador, a minha cama e o meu sofá. (...) Durante o tratamento, há momentos em que dás em doida... Pensas: “Não é possível, estou farta, isto tem de acabar, vou parar o tratamento, não posso mais, porque estou de rastos, porque não tenho mais vida”, coisas assim. E aí, todas as pessoas com quem já falaste [nos fóruns de discussão], estão aí todas para te dizer: “tens de te aguentar, isso vai passar...” e tudo o que precisas... E, além disso, é verdade que ajudar as pessoas, em todo o caso tentar ajudar, permite... estás no teu pequeno canto, quase no teu pequeno feto, e... interessas-te pelos outros, permite-te voltar a interessar-te pelos outros, estás a ver? Porque uma pessoa a quem falaste com o teu coração uma vez, porque sentias que não estava bem, depois tens vontade de saber como é que ela está. Por isso, apetece-te continuar a seguir as histórias, e... isso permite não se sentir completamente fora do mundo. Porque é esse o problema, é que te sentes completamente fora do mundo. E isso [os fóruns de discussão] mantem uma relação.» (Aline) «Não saía, estava num buraco... Estava num pequeno estúdio, de vinte metros quadrados (...) Estava debaixo de uma mezanine, com estantes
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em toda a volta, aquilo fazia como uma espécie de pequena prisão... E estava numa grande poltrona em pele, de escritório, sabes, de director, que se move em todas as direcções, e pronto. Passei um ano assim, em frente ao computador.» [François, 40 anos, último tratamento terminado poucos meses antes da entrevista, realizada em 2005]
Os fóruns de discussão na Internet permitem ao doente narrar a sua doença e o seu percurso biográfico de doente. A escrita torna-se uma salvação para o doente em tratamento. A narrativa dá coerência aos acontecimentos dispersos, dando-lhes sentido, e contribui para a construção da identidade pessoal. Narrar é reconfigurar a percepção do vivido inserindo os acontecimentos numa trama significativa (Laplantine 1984; Ricoeur 1990). Os fóruns de discussão na Internet permitem uma narrativa-diálogo. A construção do sentido opera-se através de uma narrativa dialógica, onde o discurso é endereçado, partilhado e discutido. A relação que se estabelece com os outros doentes torna esta forma de narrativa particular porque dialógica (Quinche 2005). Além disso, o facto de ler as histórias dos outros doentes, dos «pares», permite ao indivíduo melhor situar e definir a sua própria história de vida.
O FIM DO TRATAMENTO E A CURA O que acontece com aqueles que terminam o tratamento e que se curam? Identifiquei dois casos de figura, ambos implicando uma «fase difícil» e uma «renovação» ou uma «mudança»: aqueles que fazem «uma viragem a 180 graus (...) o luto da doença» [Catherine, 38 anos, um tratamento que não foi levado até ao fim], que cortam totalmente os laços com tudo aquilo que recorda a doença; e os que permanecem ligados, de uma forma ou de outra, à doença. São aqueles que, membros activos de uma associação, dão continuidade ao contacto com o «mundo das hepatites» e se definem como «curados» ou até
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como «doentes curados», expressão que sublinha o elemento identitário em que se tornou a doença, apesar desta já não estar presente no corpo. Há uma necessidade de relembrar a experiência da doença, de não abdicar deste elemento identitário. Continuam a contactar com doentes através dos fóruns de discussão na Internet e a desenvolver os seus conhecimentos sobre as hepatites, nomeadamente no quadro das actividades associativas. A cura implica uma fase difícil e uma renovação ou uma mudança, tanto para os que fazem o luto da doença e se separam de tudo aquilo que recorda a doença como para os que permanecem ligados a ela. A cura é encarada como uma situação difícil porque se viveu anos de um determinado modo, indo ao médico regularmente, não bebendo álcool, etc., com a consciência da presença de um vírus, e depois da cura: «tudo desaparece. (...) De repente, o teu inquilino vai-se embora!» [Catherine].
Mas também porque exige uma recomposição identitária. A mudança no quotidiano como na percepção de si, provocada pela cura, acarreta uma perturbação identitária que o indivíduo vai tentar resolver. A pessoa infectada com o VHC que faz um tratamento e acede à cura passa, portanto, no seu percurso biográfico de doente, por duas mudanças que têm implicações na sua identidade: toma consciência do seu estado de doente – com o tratamento e os efeitos secundários que ele acarreta – e deixa de estar/ser doente – com a cura, depois do tratamento. Assim, um dos entrevistados, para quem o tratamento constituíu uma primeira alteração do seu quotidiano, a entrada num processo de cuidados de saúde e uma mudança da percepção que tinha de si, iniciou uma psicoterapia não durante o tratamento, como lhe aconselhara o médico, mas depois, quando se viu enfim curado. A cura representa uma segunda alteração: uma mudança de estilo de vida e de estatuto. «Parei com o álcool no início do tratamento... porque fiz quarenta anos (...) e também porque começava o tratamento quinze dias
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depois9. (...) Pensei: “preciso começar a mudar ou encontrar soluções... Estou gravemente doente...” Pesava cem quilos para um metro e setenta, tinha os cabelos compridos, oleosos... Não era o mesmo. Por isso decidi aproveitar. Pensei: “bom, vou estar doente durante um ano, é melhor mudar tudo.” Deixei de fumar. Fumava desde a adolescência. Por isso, disse para comigo: “mais vale sofrer durante um ano, pôr tudo no mesmo cesto, mas pelo menos fico desembaraçado (...) O tratamento vai acabar por limitar-me, mais vale aproveitar...” Havia como uma ideia de reparação. Há quinze anos que andava cansado por causa do vírus da hepatite C, cansado cronicamente... Pensei: “bom, é uma oportunidade para arranjar isto tudo”. A priori, livrar-se do vírus é uma reparação, tanto melhor reparar realmente, reparar-se totalmente, como se repara um veículo, pronto. Tanto melhor reparar tudo ao mesmo tempo. (...) Voltei para casa dos meus pais, onde cresci. Para o meu quarto de criança. Talvez seja simbólico... Além disso, isso acompanha a psicoterapia, retomamos tudo o que se passou na infância (...) É uma segunda vida que começa, talvez... Volto ao ponto de partida...» [François]
A fase de tratamento é vivida como um momento ambíguo, pois destabiliza a pessoa, o seu quotidiano, a imagem que tem de si, as suas relações com os outros, a percepção que tem dos outros, mas trás a esperança de uma cura e, consequentemente, de uma melhor qualidade de vida e de uma esperança de vida mais longa. É também um momento em que o indivíduo está «mergulhado na doença», é um «parentesis na vida». Ora, ao sair desse parentesis, o indivíduo precisa recompôr a sua identidade, enquanto não-doente e por vezes também enquanto ser social que trabalha, tem relações sociais, tem uma vida sexual activa, etc. Deve integrar novos elementos identitários para dar coerência à representação de si, integrando a experiência da doença. Um processo de recomposição da identidade que é, aliás, acompanhado de um processo de «reconstrução» física, visto que o paciente, durante 9 O consumo de álcool é desaconselhado às pessoas que têm uma hepatite.
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alguns meses, recupera o seu peso, os seus cabelos, o equilíbrio da sua pele, a sua vitalidade, o equilíbrio psicológico, a actividade sexual, etc. Quando «sai da doença», o indivíduo pode então sentir um «vazio». Porque “perdeu” o vírus, os laços sociais decorrentes do estatuto de doente, tais como o médico, o psicólogo e os doentes dos grupos de auto-ajuda, e também uma parte da sua identidade, a identidade de doente. «– Como te sentiste depois do tratamento e de ficar curada? – Isso é justamente uma coisa um bocado esquisita, acredita, porque durante o meu tratamento, senti-me um pouco como... Estava doente mas, ao mesmo tempo, tinha muito apoio, psicologicamente, tinha o psiquiatra que me acompanhava, tinha o psicólogo, havia o meu gastrenterologista que me seguia de perto, mesmo o meu médico de família, escutava-me e isso... Bom, além disso, havia o site hepatites.net que tem-me realmente... quero dizer, estava o tempo todo no site... Aquilo realmente ajudou-me muito... E, por isso, no fim do tratamento, de repente... É como se tu... Tudo pára de repente... O tratamento pára, por isso, é suposto não precisares mais de ajuda... És completamente despossado da tua vida... É pouco como quando páras com a droga, quero dizer... Quando és alcoólico, por exemplo, o espírito é preenchido por aquilo que te está a acontecer, quer o álcool, quer a droga ou, portanto, a hepatite... Eu só pensava nisso, estás a ver, estava aqui para me tratar e pensava apenas nisso. E, por isso, de repente, é suposto sentires-te bem porque está tudo acabado, mas tu já não tens nada com que preencher a tua vida... Isso chocou-me, era muito esquisito...» [Aline]
Ainda que hajam variações individuais quanto à vivência da doença, do tratamento e da cura, há certamente «um antes e um depois da hepatite», como dizia um dos indivíduos entrevistados que, após o diagnóstico da hepatite deixou de ser alcoólico, durante o tratamento divorciou-se, no final do tratamento começou uma psicoterapia e, uma vez curado, alterou os seus hábitos alimentares, tornou-se vegetariano e
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mudou de residência. A cura representa pois outra ruptura biográfica, após a do anúncio da doença e a do início do tratamento. É um momento difícil que pode também causar sentimentos de culpa. Uma culpabilidade por ter «conseguido» a cura quando outros «não conseguem» (Maia 2008). A narrativa «em linha» – na Internet – permite obter um sentimento de controlo da situação difícil, fornecendo mesmo estratégias para a sua resolução, mediante a interacção com os «pares» que servem de suporte psicológico e social além de funcionarem como receptores empáticos e compreensivos das mensagens do doente. A cura pode gerar um sentimento de perda dos benefícios secundários (isto é, aquilo que aparece como benéfico no estatuto de doente) ao paciente habituado a ser recebedor de cuidados e objecto de uma particular atenção por parte dos que o rodeiam, a ter um conforto social e afectivo particular, apoios sociais suplementares, etc. (Shützenberger 2009). Ora, a narrativa «em linha» ajuda o indivíduo a resolver o conflito provocado pela cura enquanto ruptura biográfica, prolongando o espaço de construção de sentido e recomposição identitária durante a fase de transição entre o estatuto de doente e o de curado.
CONCLUSÃO Nas representações sociais, a doença está associada ao patológico (Canguilhem 1966), à incapacidade e ao risco de morte (Kleinman 2002), o que provoca, para o doente, uma desvalorização de si e mesmo uma ansiedade perante a morte (Herzlich e Pierret, 1984). O anúncio da doença crónica é vivido como uma ruptura biográfica. O doente começa por rejeitar este novo estatuto anunciado pela presença de uma doença crónica que, como um carimbo aposto no corpo, modifica a imagem de si (Adam e Herzlich 2002). Por vezes, o doente
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não entra imediatamente num processo de cuidados de saúde e recusa desempenhar o papel do paciente, particularmente em dar início a um acompanhamento médico e a uma terapêutica, temendo que a doença invada toda a sua existência e a sua identidade pessoal (Evans, Barer, e Marmor 1996). «Durante anos meti a cabeça na areia, ou seja, não queria fechar-me nessa coisa, no inferno médico… Continuei a viver sabendo muito bem que devia estar infectado... Tomava as precauções habituais… Naquela altura, era toxicodependente… Não emprestava a minha seringue, mas frequentava apenas pessoas… (…) E é verdade que não me via sair daquele esquema, porque sair daquele esquema ter-me-ia obrigado a fazer um teste e a ser confrontado com a realidade… (…) Não ia ver o médico porque negava a realidade e acabei por ir parar às urgências...» [Boris]
A desdramatização da doença é outra das reacções face ao anúncio do diagnóstico, que ajuda o paciente a gerir tanto a doença nos seus aspectos orgânicos, corporais como este novo elemento biográfico e identitário: o estatuto de doente crónico. O paciente pode ainda inverter a escala de valores associada à doença crónica e percepcioná-la como «algo de bom», percebendo-a sob um ângulo diferente do do infortúnio (Taïeb e cols. 2005). «A mim, a doença trouxe-me muitas coisas boas. Sou certamente muito diferente do que seria... Penso ser uma pessoa melhor do que teria sido... Porque a escala dos valores torna-se muito diferente... Eu sempre fui muito tolerante, mas agora sou-o mesmo, realmente. E depois, porque nada é grave.» [Virginie, 41 anos, co-infectada VIHVHC há 20 anos]
A fase do tratamento é vivida como um momento ambíguo porque, por um lado, destabiliza o indivíduo, o seu quotidiano, a imagem de si, as relações com os outros e a percepção que tem dos outros, por outro lado, encarna a esperança da cura e de uma melhor
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qualidade de vida. É também um momento em que se encontra «mergulhado na doença», é «um parêntese na vida». Ora, no momento em que sai deste «parêntese», ele tem necessidade de reorganizar o seu quotidiano e, ao mesmo tempo, integrar na sua identidade a experiência passada da doença crónica. O diálogo com outros doentes ajuda-o nesse processo. Quando «sai da doença», o indivíduo sente por vezes «um vazio». Com o «desaparecimento» do vírus, perde também as relações sociais decorrentes do estado de doente crónico e o seu estatuto de doente crónico. O quotidiano deixa de ser ritmado pela doença e o indivíduo vê-se obrigado a adaptar-se ao novo estado que lhe confere a ausência de doença crónica, e a um novo estatuto, o de curado (Maia 2008). Para o doente, o corpo não é apenas um objecto físico, é uma parte essencial do seu Eu (Good 1998). A doença altera a percepção de si e a experiência da doença deixa marcas na construção identitária (Laplantine 1986). Dois padrões de comportamento foram apresentados relativamente aos indivíduos que se curam. No primeiro caso, esforçam-se por expulsar a doença do seu quotidiano, não a relembrando, operando uma ruptura e um renascimento. No segundo, após ums experiência da doença marcante, ao libertarem-se do vírus, sentem um vazio e a necessidade de permanecerem em contacto com doentes, nomeadamente através de estruturas associativas, de modo a dar uma continuidade biográfica ao estatuto de doente e evitando (outra) ruptura biográfica, chegando mesmo a percepcionarem-se e definirem-se como «doentes curados». Com efeito, a ruptura biográfica pode destabilizar o sujeito na sua identidade, na medida em que a identidade pessoal decorre do facto de se auto-percepcionar como idêntico a si mesmo no tempo (Tap 1980). Além disso, ajudar os outros doentes através da mobilização associativa concede uma utilidade ao sofrimento vivido, que se torna por isso benéfico. A experiência da doença ganha sentido e valor. 10 Ver em linha: www.soshepatites.org [acedido em 15 de Dezembro de 2008].
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De notar, por fim, que o activismo associativo pode favorecer a possibilidade, para o doente, de se tornar actor da sua própria existência. As associações fornecem não só apoio social, mas também informações sobre a doença assim como locais de encontro e troca, como é o caso dos Fóruns anuais realizados, em França, pela Fédération SOS Hépatites10. O trabalho de apropriação do saber médico das associações de doentes contribui para uma melhor gestão da doença, conferindo ao doente um sentimento de controlo assim como instrumentos, baseados em conhecimentos médicos, de controlo de situações difíceis decorrentes da doença. Local de fornecimento de dados objectivos sobre a doença, de partilha de informações, de tecimento de laços, de inter e auto-ajuda, de conquista de autonomia e de relações «inter-pares», as associações representam um elemento fundamental na expressão, vivência e gestão da doença. O trabalho de escrita que permite o fórum de discussão na Internet serve também de «salvação pela escrita», segundo a expressão de Laplantine (1984), permitindo assumir uma «experiência-limite» (Laplantine 1986) que participa na definição, experiência e gestão da doença, assim como na reconfiguração da identidade do doente.
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Capítulo 3
Um cavalo de Tróia na colónia?: As missões de profilaxia contra a Doença do Sono da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang)
Jorge Varanda*
*
Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA/ISCTE). Centro de Malária e Doenças Tropicais, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa
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INTRODUÇÃO Em 1965, o Dr. Santos David descrevia as Missões de Profilaxia Contra a Doença do Sono (MPDS) da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang) como um dos mais importantes instrumentos para estabelecer o Serviço de Saúde da Diamang (SSD) nas comunidades Africanas 1. Algo que pode ser caracterizado como um Cavalo de Tróia 2 nas vidas e corpos Africanos. No entanto, um olhar mais abrangente e crítico sobre a documentação das MPDS revela um palimpsesto de propósitos que ultrapassam a afirmação do médico chefe da Diamang e permite a caracterização mais sistemática da complexidade da situação colonial. Apesar da centralidade das MPDS nos espaços médicos da companhia, esta doença nunca foi uma causa relevante de morbilidade ou mortalidade na área da Diamang 3 . Este artigo centra-se nas diferentes fases do combate à doença do sono. Ao revelar as dinâmicas 1 Dr. Santos David 1965. Este médico entrou para a Diamang em 1946, tendo sido chefe
dos SSD entre 1957-1973 quando foi escolhido para representante da companhia. 2 Expressão retirada do A Eneida de Virgílio usada aqui sem conotação bélica, ilustrando
antes o uso de um truque para conquistar algo, no caso em discussão, a aceitação da medicina Ocidental. 3 Varanda 2007, capítulos 3 e 4.
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de cada fase ilustrar-se-á a presença de diversas agendas, metodologias e práticas biomédicas na colónia; como estas modificações metodológicas e práticas se relacionam com a presença de redes extra-imperiais que permitiam o acesso a novas tecnologias e conhecimento e uma diversidade na prestação de cuidados biomédicos nas colónias. As dinâmicas revelam também os constrangimentos que sitiavam a poderosa companhia de diamantes e a administração colonial; e como estas, alimentadas por tensões e negociações existentes com populações locais, moldaram a prática médica Ocidental. Pretende-se assim, iluminar concomitantemente a complexidade da situação imperial portuguesa e o agenciamento das populações africanas. Intenta-se contribuir para uma análise mais complexa da provisão de cuidados de saúde em Angola, nomeadamente no que concerne ao combate à tripanossomíase humana africana (THA). Partindo não de análises aos discursos, mas antes do colonialismo em prática, revelar-se-á a existência de um império não-monolítico e todo-poderoso, mas antes um império fragmentado, com várias agendas, coincidentes ou em conflito, poderoso nos enclaves coloniais e “frágil” no mato, e como este projecto colonial actuava por proxy, ou seja, colonialismo delegado 4. Ilustrar-se-á também a centralidade da Diamang neste projecto colonial e o papel charneira que os SSD tinham nas relações política internas e externas. Em síntese, partindo de uma etnografia de arquivo, questionar-se-á as diversas caracterizações, nomeadamente as imagens narrativas e caracterizações da aplicação biomédica em África, presentes na documentação da Diamang. Pretende-se ir além da conceptualização da medicina como instrumento do império ou da sua centralidade para a conquista dos trópicos5; da aplicação de argumentos ambientais acerca da dispersão da doença e o impacto das políticas coloniais no 4 Sobre análises de colonialismo em prática ver Stoler 2009; sobre a vulnerabilidade do
Império Português, ver Roque 2003, e sobre colonialismo delegado ver Porto 2002. 5 Headrick 1981, capítulo 3; Curtin 1990.
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equilíbrio ambiental6; das hipóteses acerca das várias abordagens de combate à doença – engenharia social, ambiental, ecológica, ou entomológica – e a influência destas no combate à doença do sono no SSD 7 ; da caracterização de africanos como corpos dóceis ou colonizados8, ou do discurso biomédico sobre os africanos9. Intenta-se sim, através de triangulações metodológicas e de leituras contra pêlo10, outorgar agência às acções/respostas dos doentes, familiares ou comunidades locais11, como estas inferiam na prestação de cuidados biomédicos em Africa relevando paralelamente o carácter politico-económico das missões e as diferentes agendas presentes no mesmo contexto colonial, e como estes elementos são centrais para uma caracterização mais sistemática do Terceiro Império Português.
COMPANHIA DE DIAMANTES DE ANGOLA – DIAMANG A Diamang foi uma companhia diamantífera que operou na região Nordeste de Angola entre 1917-1975. Apesar de actuar num canto remoto 6 Ford 1971; Gibblin 1990. Ambos os autores centram-se no distúrbio do equilíbrio entre
homens, animais, tripanossomas e moscas como factor explicativo para a expansão e as epidemias de doença do sono ocorridas; Lyons apresenta um estudo importante sobre a doença do sono no Congo Belga relacionando a conquista colonial e exploração económica como principais catalizadores para a disseminação da doença do sono no Congo Belga. Lyons 1991. Körner e Bell também tomam as explicações ambientais para explicar a epidemia de doença do sono no Uganda e Sudão. Körner 1995; Bell 1999, capítulo 5; Hoppe e McKelvey apresentam informação detalhada sobre o combate ao vector e doença, fármacos utilizados, acções levadas a cabo em diferentes territórios africanos e épocas, desde o século XIX até aos anos 70, Hoppe 1997; McKelvey 1973. 7 Worboys 1994. 8 Arnold 1988. 9 Vaughan 1990. 10 Gyan Prakash refere a dificuldade em escrever sob a perspectiva, ou seja, dar a voz a
trabalhadores indianos, que não deixaram documentação escrita. Prakash 1994. 11 Van Onselen 1975.
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do império Português, na circunscrição12 do Chitato, distrito da Lunda, a companhia foi uma peça central – económica, política e também a nível de prestação de medicina Ocidental – para a colónia e império. Em 1921, no primeiro contrato entre Estado e Companhia eram concedidos direitos de exploração diamantífera de vastas áreas do território Angolano à Diamang13. No decorrer das suas operações a Diamang tornou-se o maior empregador da colónia, com uma força de trabalho directa de várias dezenas de milhares de indivíduos, e o principal contribuinte para os cofres do estado. O contrato outorgava graus de liberdade especiais para gestão e provisão de cuidados de saúde – a companhia proveria cuidados médicos na sua zona, parte do Chitato, à população local, ou seja, aos habitantes presentes na sua zona, trabalhadores ou não, sem intervenção dos serviços estatais14. No entanto, ao longo da sua existência a área de actuação do SSD e a população sob sua ‘tutela’ alteraram-se drasticamente. A área inicial de actuação do SSD, 20.000km2 definida no contracto de 1921, ultrapassava 50.000km2, mais de metade da área da metrópole política, no final do período colonial. Este crescimento teve paralelo no dilatar da população de 60.000 nos anos 40 até mais de 130.000 pessoas em 1973, e no SDD que, de dependente de médicos da Forminière nos anos iniciais, incorporava cerca de 1000 indivíduos nos anos 1970s15. Para provir os cuidados de saúde na sua área a Diamang encetou um programa de ocupação sanitária16. Este projecto levou mais de 12 Sub-divisão administrativa normalmente do interior usualmente apresentado pouca
população Ocidental. 13 Diamang, Contrato entre o Governo-geral da Província de Angola e a Companhia de
Diamantes de Angola 1921, MAUC. 14 O uso do termo local em detrimento de Africanos, Angolanos, Nativos, contém a
percepção da variedade da populaça em termos étnicos, sociais, geracionais, etc. 15 Varanda 2007. 16 Expressão corrente nos SSD e Serviços de Saúde de Angola (SSA), referindo-se à
expansão dos serviços de saúde, através de meios de medicina curativa e preventiva, com a intenção de cobertura de uma determinada área, bem como toda a população presente nesta área.
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quatro décadas até ser implementado, tendo as MPDS um papel central ao quebrar as ‘barreiras’ dos enclaves coloniais e chegar às zonas rurais onde grande parte da população autóctone habitava.
MISSÃO DE PROFILAXIA CONTRA A DOENÇA DO SONO (MPDS) AS MISSÕES DE RECONHECIMENTO Diversos factores conduziram ao ‘nascimento’ das MPDS. A legislação de 1921, de Norton de Matos, que obrigava empresas a agir17; a pressão do administrador colonial do Chitato18; os problemas com a doença sentidos pela companhia diamantífera Belga a operar a escassos quilómetros; os avisos do médico-chefe da Forminière19, Dr. Gillet, sobre a situação no terreno20; e as considerações económicas de possíveis disrupções na produção causada por uma epidemia de doença do sono – todos apontavam no sentido de criar um serviço de combate à doença pela Diamang. A legislação do governo colonial obrigava as companhias privadas a controlarem a doença nas suas áreas, mas foram os problemas ocorridos no outro lado da fronteira, na zona da Forminière, que levaram a Diamang a actuar. Em Abril de 1925 com base no conhecimento da situação problemática na área da Forminière, a Direcção Técnica de Bruxelas da Diamang alertava a Direcção Técnica 17 Boletim Oficial de Angola Nº. 51, II série 1921, SGL. Para a relação entre o corpo
legislativo e o contexto político internacional ver Shapiro 1983, capítulo 5, parte I. 18 Carta 24/7/22 de Florival (chefe da circunscrição do Chitato), para Direcção Técnica de
Luanda (DTL), Pasta 126B, 5-1º, MPDS, 4/1/22 – 31/10/33, MAUC (Pasta 126B, 5-1º). 19 Esta ligação económica tinha o seu aspecto mais tangível nas administrações
metropolitanas, uma em Lisboa sob a tutela do administrador-delegado Ernesto de Vilhena, que tratava do pessoal e a de Bruxelas que tinha a cargo questões técnicas da exploração. 20 Carta 2/8/22 de Dr. Gillet para DTL, pasta 126B, 5-1º. O médico belga alertava para a
existência de moscas tsé-tsé na área da companhia e os perigos que estas constituíam.
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da Lunda do perigo da doença se espalhar para o Chitato, apresentando como solução a criação de um serviço móvel análogo ao da Forminière21. Em Dezembro, a administração de Bruxelas conseguia que a Forminière desse formação ao pessoal de saúde da Diamang. A intenção era clara, bem como o racional económico subjacente: “Nous n’avons pas besoin de vous dire combien est important pour l’avenir de notre Compagnie, le maintien d’un état sanitaire surtout dans la population ouvrière de la Lunda.”22
Ambas as administrações metropolitanas da companhia, Lisboa e Bruxelas, estavam de acordo com os médicos da Diamang no terreno acerca de necessidade de combater a doença23. Apesar disso, existiam fissuras dentro da companhia. Para o engenheiro Americano H.T. Dickinson, director local, a prioridade era o aumento da produção; somente depois se tratariam as questões de saúde 24 . Esta seria a primeira demonstração de um ‘eterno’ conflito entre produtividade e saúde. Semanas depois a visão da administração metropolitana era enfatizada: assuntos médicos relacionados com a doença do sono deviam ser tomados em consideração25. Em vez de pagar ao governo, e com a anuência das duas administrações metropolitanas, a Diamang criou o seu próprio serviço de combate à doença, privilegiando assim a independência face aos serviços do estado26. As missões da Forminière 21 Carta 18/7/25 de Direcção Técnica de Bruxelas (DTB) para DTL, pasta 126B, 5-1º,
MAUC. 22 Carta 10/12/25 de DTB para DTL, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 23 Carta 15/12/25 de DTL para DTB e Lisboa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 24 Carta 15/1/26 de DTL para DTB e Lisboa, pasta 126B, 5-1º, MAUC. Este engenheiro
fez parte da direcção durante a década de 1920, sendo na década de 40 conselheiro técnico da Diamang. 25 Carta 5/2/26 de Vilhena para DTB, pasta 126B, 5-1º, MAUC. 26 Nesta altura os serviços de saúde governamentais efectuavam campanhas em algumas
áreas da colónia. Dr. Damas Mora, “Relatórios da direcção dos serviços de saúde e higiene de Angola referente à II luta contra a moléstia do sono em Angola 1921-1934”, Pasta 126B, 5-2º, MPDS, 1/11/34 – 31/8/35, MAUC. (Pasta 126B, 5-2º).
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serviram de planta para as MPDS. Segundo o chefe das missões, Dr. Almeida Sousa, a companhia copiou as linhas mestras, metodologias, divisões territoriais e até os ficheiros das missões da Forminière27. Um travo político económico impregnava a génese das MPDS, um característica que seria intrínseca a estas missões. A posição unificada entre as administrações da Diamang revela que os actores estavam conscientes da sensibilidade que a provisão de cuidados biomédicos apresentava, bem como da existência de diferentes agendas activas no contexto colonial. Mas não era só entre os actores coloniais institucionais que existiam tensões dentro da companhia, era frequente encontrarem-se tensões e fissuras existentes sob um aparente manto de políticas bem definidas. As redes extra-imperiais, ou seja, que não seguiam a ortodoxia das relações metrópole política-colónia, foram desde o início centrais para a idiossincrasia das MPDS. As missões desta fase, 1927, 1930 e 1933, manifestavam metodologias e práticas similares. As duas primeiras obtiveram resultados semelhantes, enquanto a terceira marcaria o fim deste estádio, ou seja da fase de prospecção. Geograficamente, as actividades destas missões cingiam-se às zonas urbanas da companhia e aos sectores mineiros. Nas concentrações efectuavam palpação cervical e supra-cervical de gânglios a todos os suspeitos de estarem infectados, punções lombares e exame microscópico à linfa, sendo administrado uma dose de Atoxil in loco se o resultado fosse positivo29. Quanto ao tratamento, desde a 27 Carta 31/5/27 Dr. Almeida e Sousa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 28 Na área da Diamang as concentrações eram despoletadas por um solicitação da
companhia ao chefe-de-posto pedindo que toda a população se deslocasse em determinada dia a determinado lugar para ser recenseada, examinada e caso necessário tratada. Esta comunicação era posteriormente divulgada aos chefes locais, sobas, os quais apelavam à população para estar presente, caso contrário, poderiam ter que se responsabilizar pelas faltas individuais. 29 Dr. Almeida Sousa, “Relatório MPDS Maio 1927”, Pasta 126B,5-1º, MAUC.
Procedimentos similares foram descritos para o Congo Belga, Sudão e Gana, ver Lyons 1991; Bell 1999, capítulo 5; Addae centra a sua análise no desenvolvimento organizacional das Medical Field Units ver Addae 1996: capítulo 8, para incidência da tripanossomíase ver capítulo 18.
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missão de 1927-28 que o Triparsamide era o medicamento utilizado, embora o Atoxil pudesse ser utilizado em conjugação, algo infrequente devido à toxicidade deste fármaco. As missões eram acompanhadas por elementos da administração civil e do exército com a intenção de: levar a cabo convocatórias para o posto administrativo, regular as actividades diárias da população, como a pesca, monitorizar movimentos de populações, reorganizar e realojar aldeias30, perseguir e capturar pacientes fugidos31. Outra característica comum, especialmente nas duas primeiras missões, foi o fim prematuro das campanhas, relacionado com a escassez de pessoal de saúde e a persistência de várias doenças nas minas 32 . A prioridade da Diamang centrava-se na produção de diamantes. Quando a situação sanitária nas minas se tornava crítica a companhia redireccionava os seus parcos recursos para debelar os problemas da saúde dos trabalhadores, relegando para segundo plano o alargamento do pessoal de saúde e a continuação do combate à THA em toda a sua área e população. Enquanto a primeira campanha examinou cerca de 30.619 Africanos encontrando somente cinco casos de indivíduos infectados33, na segunda ficara-se por 19.900 com dois casos descobertos34. Estes resultados reflectiam a área reduzida de acção, nas zonas de operação da companhia, ou seja em enclaves coloniais35; a falta de pessoal de 30 Carta 12/12/27 de Lane, para chefe circunscrição do Chitato com “Relatório MPDS
Outubro e Novembro”, pasta, 126B, 5-1º, MAUC. 31 Carta 20/12/30 de Quirino Fonseca para Representante em Luanda com “Relatório
MPDS Nº.2 Novembro 1930” Dr. Almeida Sousa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 32 Dr Almeida Sousa “Relatório MPDS, Fevereiro 1931”, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 33 Com 6.000 trabalhadores é possível que as missões tenham centrado as suas acções
nestes indivíduos, nas suas famílias e população que habitava locais perto das áreas urbanas ou de exploração da Diamang. 34 Dr. Vasques Carvalho “Relatório dos SSD” 23/02/1935, p. 3, Pasta 126B, 5-2º, MAUC.
Como Lyons afirmou para o caso do Congo Belga, o equilíbrio ecológico podia ainda não ter sido alterado. Lyons 1991. 35 Arnold 1993.
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saúde e de condições para exames; e a não comparência de Africanos sem relação à ‘comunidade colonial’36, nas convocatórias. Para muitas populações locais as MPDS representavam o primeiro contacto com Ocidentais, um encontro que ficava na memória por diversas razões. As convocatórias eram impostas pela administração colonial aos sobas, os quais tinham obrigatoriamente de cumprir. Considerando que a última rebelião indígena na região fora debelada em 1926, qualquer africano que se deparasse com uma missão sanitária que incluía médicos, chefes-de-posto e militares identificava os serviços de saúde como mais uma dimensão opressiva da administração colonial37. Como refere Lyons para o vizinho Congo Belga, os médicos usavam intérpretes, que muitas das vezes, eram os administradores locais, ou capitas, intimamente relacionados com colecta de imposto e manutenção da ordem. Mesmo antes de procederam a qualquer exame, a constituição das brigadas com elementos administrativos, militares e o seu carácter impositivo e de parcas explicações causavam receio nas populações locais38. A biomedicina e a administração colonial inter-cruzavam-se em diversas áreas, como por exemplo na tentativa de controlo de actividades socio-económicas. Estas medidas produziam poucos efeitos, pois os africanos persistiam com as suas acções diárias, a movimentar-se, pescar e lavrar livremente enquanto que os poderes coloniais tentavam impor as suas próprias fronteiras e definir/organizar actividades39. A acção das MPDS em áreas seguras revelava a existência de uma situação de poder ténue por parte da Companhia e do Estado no contexto colonial da Lunda dos anos 20. Este caso apresenta pois similaridades com a situação descrita por Bell referente às campanhas contra a doença do sono no Sudão. Em 36 Balandier 1955. 37 Pélissier 1986-1988. 38 Lyons 1991: 85. 39 Para caso similar no Sudão ver Bell 1999: 140-143, 148-153.
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ambos os contextos as acções dos serviços de saúde/administrativos tinham de ser negociadas com autoridades locais, e só eram levados a cabo com a ajuda de pessoal administrativo ou militar40. As respostas dos Africanos às convocatórias reforçam ainda mais a imagem de um poder colonial circunscrito que tentava lidar com as tensões existentes com as populações locais e com as respostas dos indivíduos ao doloroso encontro médico-colonial. Tensões e respostas que se enquadram na caracterização de Hoppe do poder do estado colonial, e neste caso da Diamang, sempre circunscrito pelas acções dos Africanos41. A juntar à imposição das convocatórias, o diagnóstico e tratamento estavam carregados de significados negativos. O carácter invasivo, doloroso e desconhecido do diagnóstico envolvia utilização de instrumentos e acções invasivas (o uso de seringas e o retirar de fluidos orgânicos – linfa, sangue e líquido cefalorraquidiano), que amiúde não se coadunava com a cosmovisão autóctone, por outo lado, a toxicidade e baixa eficácia dos tratamentos deixavam um lastro de coerção e dor entre os africanos, já que por vezes, para se estabelecer um diagnóstico era necessário efectuar diversas colheitas de fluidos e 7-10 punções lombares42. Além disso as pessoas, nos primeiros estágios da doença, apesar de se sentirem bem, eram diagnosticadas como doentes e levadas para tratamento/internamento não tardando a aparecer rumores que afirmavam que a agulha espalhava a doença43. No entanto, as injecções 40 Bell 1999. 41 Hoppe 1997. Assunto discutido por Bell 1999: 143-184. Apesar de não ter encontrado
material que corroborasse abertamente esta questão, o facto de nos anos 60 enfermeiras africanas da companhia terem de persuadir sobas para que grávidas fossem levadas para as maternidades é revelador que negociações eram comuns no Chitato. Teresa Penedo entrevista 16/11/2004; Bernardo Montaubuleno entrevista 20/11/2004. 42 Apesar de não existirem documentos referindo abertamente negociações com sobas para
as convocatórias, uma leitura contra o pêlo aponta para o oposto, assim como testemunhos locais, bem como a ocorrência em outros contextos coloniais. Teresa Penedo entrevista16/11/2004; Bell 1999: 143-147. 43 Este rumor atingiu proporções tais que no Congo Belga considerou-se efectuar
diagnósticos baseados unicamente no exame às glândulas. Lyons 1991: 189. Ver também White 2000, capítulo 7 para o caso na Rodésia do Norte.
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para a sífilis, que proporcionavam uma recuperação célere, eram muito procuradas por locais, assim como acções biomédicas em tumores, hérnias, circuncisões ou qualquer outra doença para a qual a tradição médica local não apresentava solução satisfatória44. Pode-se ainda considerar que os significados émicos dos fluidos corporais extraídos pelas brigadas fossem mais relevantes que quebra da barreira da pele por um instrumento estranho. Africanos sem ligação ao sistema colonial não procuraram usualmente médicos europeus no caso de problemas internos. Segundo Lyons “(...) medicamentos para uso externo eram mais facilmente assimilados na farmacologia africana do que substâncias de acção interna. As implicações para as campanhas da doença do sono eram sérias já que as substâncias usadas tinham que ser injectadas. A juntar a isso, o facto de não haver resultados observáveis de imediato, tornava esta medicação muito impopular.45” Algo que despoletava no Chitato respostas similares às descritas por Lyons no Congo Belga: não comparência às convocatórias nos postos administrativos para exames e tratamentos (local associado a castigos corporais, recrutamento forçado, ou pagamento de impostos)46. Nestes dois territórios coloniais durante as primeiras décadas muitos africanos apreendiam as práticas biomédicas como parte da conquista das suas sociedades, ou com mira em grupos específicos de indivíduos, pois nos anos 20 os arsénicos usados para matar os tripanossomas eram altamente tóxicos causando vítimas entre doentes47. Nos anos 50, na área da Diamang as medidas 44 Lyons 1991: 183-184. Dr. José Picoto refere o impacto positivo que “curas
espectaculares” tinham no estabelecimento de confiança e consequente procura da biomedicina por Africanos. Picoto, 1954. 45 Lyons 1991: 197 tradução do autor. 46 Lyons refere que as provas de resistência dos africanos, fugir ou não comparecer às
concentrações e não completar tratamentos, revelam um outro nível de significado quando a coerção, as práticas dolorosas e intrusivas da medicina ocidental são tomadas em consideração bem como com as diferenças culturais e os diferentes conceitos de doença e visão do mundo. Lyons 1991: 180-189. 47 Lyons 1991: 183.
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entretanto tomadas na segunda fase das MPDS levaram a que a situação estivesse mais matizada, mas isso não significa que mesmo três décadas após o início das missões os africanos comparecem ou completassem os tratamentos voluntariamente. O número reduzido de casos identificados (uma vintena entre 1921-1928)48 levou o Dr. Almeida Sousa a afirmar a região indemne mas com glossina palpalis, o vector da THA49. Este facto poderia ter feito recuar as administrações metropolitanas; mas o administrador-delegado, Ernesto de Vilhena, estava consciente de que estas campanhas poderiam ser importantes trunfos em futuras negociações com o governo colonial. Esta visão seria uma das marcas na história da Diamang. “Quant à la mission de prophylaxie contre la maladie du sommeil, nous sommes d’avis qu’il ne convient pas de la suprimer, entre autres, pour raisons d’ordre politique.”50
Confiante com os resultados anteriores, em 1933 a companhia iniciava-se nova campanha que, face à negligência na provisão de cuidados de saúde por parte do Estado, pretendia estender-se à zona do Sombo de onde chegavam regularmente contratados infectados51. No entanto, esta aparente preocupação com a saúde dos africanos escondia conflitos entre produtividade e saúde pública, com disposições díspares a emergirem de vários departamentos da Diamang. Enquanto que o departamento de mão-de-obra indígena apelava à contratação de indígenas da região do Sombo, as directrizes médicas referiam a não 48 Este baixo número de casos poderia estar relacionado com o reduzido numero de
exames efectuados (em 1925 somente foram efectuados 215 exames) assim como a baixa qualidade destes, ou com a não alteração do equilíbrio ecológico. Lyons 1991; Ford 1971. 49 Carta 16/8/28, de Dr. Almeida e Sousa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 50 Carta 17/10/32 de Vilhena, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 51 Telegrama 11/9/33 de Quirino Fonseca, para Administrador do Cassai Norte, Pasta
126B, 5-1º, MAUC.
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contratação de trabalhadores originários de regiões infectadas52. Esta era uma situação paralela à do Congo Belga, onde a imposição de impostos forçava muitos africanos a trabalhar na colecta de borracha em zonas longínquas e infectadas, rompendo o cordão sanitário e colocando pessoas em confronto com as regulamentações de saúde pública, contribuindo assim para o disseminar a doença53. Os resultados da campanha de 1933 revelariam o parco investimento da companhia nas acções das MPDS em zonas rurais e as dificuldades em lidar com populações locais. No final desta missão, no início de 1934, o número de Africanos infectados era de 634 casos, sendo a área rotulada pelo Dr. Almeida Sousa como endémica à tripanossomíase, seguindo assim as pegadas da área da Forminière54. Desde a primeira MPDS que os esforços da Diamang ficavam aquém do planeado, mas tal não inibiu o governo de elogia-los. Na sua terceira visita à companhia em 1928 o governador da Lunda mostrouse muito impressionado com os serviços de saúde da companhia55. Os serviços prestavam assistência a uma variedade de indivíduos: soldados, outros empregados do estado e Africanos oriundos de outras regiões possivelmente infectadas, ou seja, os SSD substituíam o governo nas suas obrigações56. Em 1934, foi a vez do governador-geral de louvar os serviços de saúde da Companhia pelo trabalho efectuado, no Boletim Oficial de Angola e na imprensa diária nacional. Mas existiam vozes dissonantes dentro do estado. A secção da Lunda dos serviços de saúde de Angola pedia maior empenho na limpeza de mato e mais atenção aos trabalhadores da companhia que embora trabalhando na nova mina não tinham sido examinados57. 52 Carta 20/9/33 Osório Junior, Pasta 126B, 5-1º, MAUC. 53 Lyons 1991: 206, 208. 54 Carta 17/10/33 de Dr. Almeida Sousa, pasta 126B, 5-1º, MAUC. 55 Carta 4/11/27 de Lane, para Representante, pasta 126B, 5-1º, MAUC. 56 Memorandum 5/6/28, pasta 126B, 5-1º, MAUC. 57 Ibid.
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COMBATE À TRIPANOSSOMÍASE O aumento da incidência da THA em 1933 provocou alterações imediatas nos serviços. No final de 1934 a MPDS era incorporada nos SSD e as missões ganharam uma periodicidade bianual até 193858. A reorganização incluía também alterações administrativo-sanitárias com o aumento da área de actuação das MPDS fora da área contratual para regiões dos postos administrativos do Sombo, Cachimo e Luia onde a Diamang recrutava trabalhadores. No entanto, a principal alteração nas MPDS foi a modificação do seu carácter; segundo o chefe dos SSD, Dr. Picoto iniciava-se o segundo estádio, a “fase de combate”59. O corpo de pessoal de saúde das MPDS aumentou de escassas dezenas em 1934, para 150 indivíduos em 1938, atingindo 316 em 1952, quando era composto por um médico, cinco enfermeiros europeus, nove microscopistas, um enfermeiro auxiliar e 300 serventes e carregadores60. Um número que a partir do meio da década de 50, à medida que a ocupação sanitária abrangia a quase totalidade da área de intervenção dos SSD, diminuiria61. A maioria do pessoal das MPDS era local, encontrando-se divididos em várias ambulâncias que anualmente efectuavam itinerários exaustivos em cada sector. As brigadas iam para o mato “estabelecendo os seus percursos de modo a passarem em todos os aglomerados já conhecidos, ou naqueles que se haviam criado por afluxo de gente vinda do Congo Belga ou por desdobramento de ‘quimbos’ existentes”.62 58 Dr. José Picoto 1939 – “Relatório Médico – Doença do Sono, 1938”, Pasta Direcção
Administrativa, Serviço de Saúde – Relatórios Anuais (Doença do Sono de 1934 a 1955) e (Serviço de Saúde – 1926, 1932 a 1935, 1940 a 1952), MAUC (Pasta DA-RA). 59 Dr. Picoto 10/7/41, Pasta 126B, 5-5º, MPDS 1/1/39 – 31/12/45, MAUC (Pasta 126B, 5-5º). 60 Dr. José Picoto 1953 – “Relatório Médico – Doença do Sono, 1952”, Pasta DA-RA,
MAUC (Relatório Médico 1952). 61 Dr. J.H. Santos David 1957 – “Memória para a reunião médica regional de Luanda,
companhia de Diamantes de Angola”, Dundo, Angola, p. 48, MAUC (Dr. Santos David, “Memória”). 62 Dr. José Picoto 1952 – “Relatório Médico – Doença do Sono 1951”: 1, Pasta DA-RA
MAUC.
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As brigadas acampavam em locais estratégicos onde se efectuava a convocatória da população para ser recenseada, examinada e tratada. “Como sempre, cada ambulância iniciou o trabalho munida dos livros de recenseamento do ano transacto, da relação dos antigos tripanosados, de grávidas encontradas na volta anterior. Assim, é fácil em cada aldeia proceder à chamada da população recenseada e inspeccionada, procurando averiguar o paradeiro daqueles que não se apresentam no momento.”63
As estatísticas acompanhavam o aumento da acção das MPDS, com 1.136 aldeias visitadas em 1938 e 1.228 em 1954, registando-se 61.519 indivíduos em 1938 dos quais 45.812 foram examinandos, um número que aumentou para 71.090 com 73% destes inspeccionados64. O número de africanos infectados foi-se reduzindo paulatinamente, de 127 em 1936, para 44 em 1940 para 11 em 1947, 8 em 1954. No início desta fase o diagnóstico era construído com base no mesmo modus operandi. Após palpação para gânglios típicos da THA, efectuando os exames de linfa, os suspeitos e infectados eram tratados com Triparsamide65. Este fármaco permaneceria na linha da frente do combate durante a década seguinte. Nos anos 40 os indivíduos com resultados positivos repetiam exames com verificação laboratorial no hospital principal do Dundo, centro administrativo da companhia. O desenvolvimento da indústria química verificado na segunda Guerra Mundial produziu novos fármacos que permitiam tempos de tratamento mais curtos, o que leva a uma busca frenética pela Diamang66. No final da década o Triparsamide tinha perdido terreno na terapêutica para o Pentamidine, mais usado em acções profilácticas e terapêuticas pois reduzia o tempo de tratamento de nove meses para dez dias67. 63 Ibid. 64 Dr. José Picoto 1939 – “Relatório Médico – Doença do Sono 1938”; Dr. José Picoto
1955 – “Relatório Médico de 1954”, Pasta DA-RA, MAUC. 65 Dr. Vasques Carvalho “Relatório 1938, MPDS”, Pasta DA-RA, MAUC. 66 Petterson 1981. 67 Dr. José Picoto “Sono 1951”: 1, Pasta DA-RA, MAUC.
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Mas a terapêutica não era linear. Em 1945 o Dr. José Picoto, chefe dos SSD, referia casos de cura espontânea na primeira fase, hemolinfática, enquanto que na terceira fase, encefalite, “a escolha do medicamento [Triparsamida, Bayer 205 e Pentamidina] não está ainda perfeitamente estabelecida” bem como a dosagem, isto devido aos efeitos secundários – cegueira – e a resistência dos tripanossomas aos dois primeiros fármacos68. O uso da Pentamidina estava ainda nesta altura reservado para doentes triparsamido-resistentes, mas sendo a sua aplicação cada vez mais ampla a partir do ano seguinte. Como se ilustrará, a utilização do Pentamidine seria um foco de tensão entre governo e Diamang. Em 1955 a Diamang adoptava em todos os sectores os protocolos estatais de combate à doença do sono. As missões passaram a fazer exames de linfa fresca, exame de gôta espessa e ao líquido cefalorraquidiano, repetindo-se o procedimento no Dundo para os casos positivos69. Nesse ano surgia o Arsobal, que seria utilizado em conjugação com os restantes fármacos. Quanto ao combate ao vector, embora o uso de meios mecânicos continuasse, nomeadamente através da desflorestação e limpeza de mato, levado a cabo por grupos de Africanos organizados pela administração local70, a partir de 1945, o uso do DDT abria novas possibilidades para este combate, excluindo-se, no entanto, a pulverização através de aviões, utilizada na África do Sul, pois era considerada como ineficiente por não penetrar nas galerias florestais71. A destruição ambiental que a abertura de novas explorações mineiras a céu aberto era vista pelos SSD como um factor positivo na luta contra a mosca tsé-tsé72. Mas, mais de uma 68 Dr. José Picoto 1946 – “Relatório Médico – Doença do sono, 1945”: 5-6, Pasta DA-RA,
MAUC. (“Sono 1945”) 69 Dr. Santos David, “Memória”, MAUC. 70 Carta 1/8/35 de Henrique Santos Palma (administrador da Circunscrição do Chitato),
para DTL, pasta 126B, 5-2º, MAUC. 71 Dr. José Picoto “Sono, 1945”, pp. 6-7, Pasta DA-RA, MAUC. 72 Dr. José Picoto “Sono, 1952”, p. 1, Pasta DA-RA, MAUC.
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década depois, em 1957, o Dr. Santos David, chefe dos SSD, considerava a acção sobre glossinas pouco relevante. A vasta área da Diamang, 40.000km2, e a ubiquidade das moscas em galerias florestais e nas zonas arborizadas de rios e riachos tornava os esforços mecânicos de captura à mão ou com armadilhas de moscas infrutíferos. Assim, a companhia retomava as antigas acções mecânica em pontos-chave do território: “Diamang tenha limitado a sua actuação ao capítulo da profilaxia agronómica ao “cleaning” nos troços das estradas e cursos de água, nos pontos de passagens destas (pontes e jangadas) e nas proximidades das aldeias.”73
Embora despojados de qualquer protagonismo ou mesmo ausentes dos relatórios de saúde, o pessoal de saúde local foi central para a expansão das MPDS e a elevada percentagem de exames conseguida. Desde o início deste segundo período que o pessoal Africano enquanto examinava e tratava populações locais, persuadia-as a comparecerem nas convocatórias, completarem os longos e difíceis tratamentos; além disso coligia informações sobre os caminhos ou travessias de cursos de água mais usados pelas populações 74. As autoridades tradicionais também eram visadas; o pessoal Africano explicava a sobas e sobetas quais as função e objectivos dos exames e tratamentos: “No primeiro exame muitos indígenas houve que fugiram ou se esconderam à passagem do enfermeiro, conforme declararam. A boa politica adoptada junto dos sobas, explicando-lhes o fim que tínhamos em vista, trouxe-nos grandes facilidades quando se fez o 2º exame e assim muito mais gente se apresentou.”75
Outras acções desenhadas para persuadir os Africanos a completar os tratamentos e concomitantemente incutir confiança na medicina 73 Dr. Santos David, “Memória” p. 57, MAUC. 74 Carta 4/5/35 from Pinto Ferreira, to Rep, with the Dr. Vasques Carvalho “Informação –
4/05/1935”, pasta 126B, 5-2º, MAUC. 75 Ibid.
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Ocidental e na companhia incluíam a distribuição de comida semanal durante os nove meses do tratamento com Triparsamide e consequente seguimento76. Esta revelou ser uma das acções mais importantes e características, no contexto português, da Diamang77. “Tal como nos anos anteriores, distribui a Companhia a título de gratificação, a todos os tripanosados que nos dispensários ou locais de tratamento se apresentam a receber a sua injecção de triparsamida: 4 quilos de farinha de mandioca, 500 gramas de carne ou peixe, 105 gramas de sal. O sistema mantém as suas boas tradições, porque o preto espera sempre remuneração, mesmo quando dada pelo bem que se lhe faz.”78
A africanização dos SSD foi uma característica central para o sucesso das MPDS. Os escolhidos recebiam formação local para ingressarem no quadro de pessoal como enfermeiro(a)s auxiliares, técnicos ou serventes possibilitando que os poucos médicos e enfermeiros europeus permanecessem nos hospitais da companhia79. Cabia 76 Estes tratamentos exigiam viagens regulares às formações sanitárias, onde a Diamang
organizava as estadias para o doente e acompanhantes. Muitas vezes a Triparsamide era pedida e chegava não via Luanda ou Lobito, mas antes através da Forminière e via Congo Belga. Ver Telegrama 21/1/35 de Diamang Tshikapa to Brussels, pasta 126B, 52º, MAUC. 77 Esta estratégia pode ter sido importada do Congo Belga através dos contactos da
Diamang com Dr. Gillet or Dr. Motoulle. Sobre as acções do último na aplicação da politica de pró-nascimentos da Union Miniere du Haute-Kasai ver Dr. Motoulle, 1936, “Hygiène Générale et Politique Indigène”; 1941, “Notes sur l’Higiène et la Politique”, folder 86D-1o and folder 86D-2o, MAUC; Nancy Rose Hunt, 1997 – “‘Le bébé en Brousse’ – European women, African Birth spacing, and colonial intervention in Breast Feeding in the Belgian Congo”, in Tensions of empire: colonial cultures in a bourgeois world, ed. Frederick Cooper, Ann Laura Stoler, Berkeley, University of California Press, pp. 287-321. Dr. Santos David confirmou que nos anos 60 e 70 os programas materno-infantis incluíam a distribuição de rações semanais e roupa a grávidas, mães e crianças até aos três anos. Dr. David, entrevista 24/03/04. 78 Dr. José Picoto 1940 – “Relatório Médico Doença do Sono, 1939”, Pasta DA-RA,
MAUC. 79 Dr. Vasques Carvalho “Relatório do Serviço de Saúde” 23/02/1935, p. 5, Pasta 126B, 5-
2º, MAUC.
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portanto ao pessoal local realizar a maior parte dos exames médicos, diagnósticos e tratamentos, normalmente sob a tutela de um enfermeiro europeu. A africanização dos SSD era vantajosa para a companhia pois para além de ser economicamente proveitoso permitia ainda que as brigadas actuassem de forma periódica e sistemática e, em paralelo, matizava alguns aspectos negativos do encontro médico colonial80. A acção das ambulâncias sanitárias e do pessoal de saúde local ultrapassou desde os anos 30 a simples acção vertical contra a tripanossomíase. As ambulâncias tratavam localmente todos os enfermos afectados por diversas doenças e, se tal fosse impossível, devido à falta do material necessário ou à gravidade dos problemas, os doentes eram redireccionados para os hospitais e dispensários da companhia81. Face ao decréscimo da doença do sono e perante problemas no recrutamento e reprodução da mão-de-obra africana, as MPDS incorporariam novas tarefas. Nos anos 40 as MPDS incorporavam uma vigilância particular centrada no parasitismo intestinal, que se disseminava e causava inúmeras mortes por toda área da Diamang82. Grávidas, crianças e bebés começaram também a ser alvos das brigadas móveis que as dirigiam para as novas maternidades que entretanto eram construídas83. As grávidas eram persuadidas a darem à luz nas formações hospitalares da companhia e a continuarem em consultas pediátricas após o parto. 80 Para uma analise profunda sobre o papel destes actores como cultural brokers, na
tradução do conhecimento científico no Congo Belga, ver Nancy Rose Hunt 1999. A Colonial Lexicon – of Birth Ritual, Medicalization and mobility in the Congo, Durham, NC, Duke University Press. 81 Teresa Penedo entrevista 16/11/2004. Addae descreve como nas Medical Field Units
(Unidades médicas de Campo) do Gana os auxiliares médicos, embora com formação rudimentar, eram treinados para serem “especialistas” em diversas técnicas de controlo de doenças, tendo assim um papel chave contra a doença do sono. Addae 1996: 170-171. 82 Dr. José Picoto “Sono, 1945”, p. 4, Pasta DA-RA, MAUC. Nos anos 50 esta função a
ser realizada aquando da permanência dos doentes nos hospitais. Dr. José Picoto 1951, Relatório Médico – Doença do Sono, p. 4, MAUC. 83 Para evolução do SSD ver Varanda 2007, capítulo 3.
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“Desde há dois anos que procedemos a registo especial de mulheres grávidas calculando e anotando nesse registo o tempo provável de gravidez. (…) permite-nos-á colher indicações e tirar ilações que nos coloquem sob os olhos a realidade do problema – índice de mortalidade infantil, índice de natalidade.”84
Os resultados eram no entanto fracos, colocando o SSD o ónus da culpa na cultura das populações locais, devido à sua resistência em deixarem hábitos, crenças e até o medo de lugares desconhecidos. Algo paradoxal, pois no mesmo relatório, refere que, “A população da região é, bem se pode dizer, nómada por vício ancestral, deslocando-se com facilidade a pretextos de procura de trabalho nos centros de exploração mineira ou outros, e por algumas vezes demandar ao Congo Belga sob qualquer razão. Pouco fixa a gente, nem sempre encontramos nos mesmo lugares, de ano para ano, os mesmo indivíduos. (…) Saltitando daqui para acolá, mudando de nome com espantosa facilidade, são apesar de tudo sujeitos a exame, pormenor que interessa sôbre todos os outros.”85
As MPDS eram o principal meio para os SSD estabeleceram contacto com as populações rurais, referindo o Dr. José Picoto em 1951 que eram raros os casos de resistência à acção das ambulâncias. Estas acções tinham dado os seus frutos e perante a fraca incidência da doença, menos de 0,03%, o chefe dos SSD argumentava que, após terminar a ocupação sanitária, com postos sanitários por todo o Chitato, se poderia terminar com as brigadas para a doença do sono86. Algo que não se verificaria, pois o número de casos descobertos nas formações de saúde fixas era residual87. Embora o estado colonial e a Diamang estivessem sob o mesmo guarda-chuva colonial apresentavam agendas diferentes. A companhia 84 Dr. José Picoto “Sono, 1945”, pp. 2-3, Pasta DA-RA, MAUC. 85 Ibid. 2. 86 Dr. José Picoto “Sono, 1952”, Pasta DA-RA, MAUC. 87 Dr. Santos David 1957 “Memória”, MAUC.
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era vista pelo Estado como solução à provisão de cuidados de saúde na área da circunscrição do Chitato. A diferença de recursos financeiros na luta contra a doença do sono criava tudo menos uma frente unida de cuidados médicos Ocidentais em Angola88. Esta diferença entre os serviços da Diamang e do Estado seria explorada pela companhia em diversas ocasiões. Uma das características particulares das MPDS era o seu valor político, algo que, ao longo das décadas, foi usado pela Diamang quando as agendas de outros actores não estavam sincronizadas com a sua. Em 1935, perante uma queixa sobre como empregados da Diamang tratavam os trabalhadores locais, o capitão Brandão de Melo, representante da companhia em Luanda, argumentava com o chefe dos Negócios Indígenas, Manuel Mesquita Lemos acerca das boas condições apresentadas pela Companhia. O capitão afirmava que a companhia pagava salários superiores e dava melhores rações que outras companhias, tinha um serviço de saúde sem rival na colónia, com cuidados de saúde e medicação grátis para autóctones, e com missões de combate à doença do sono próprias89. A saúde não era somente um assunto para criar um bom ambiente e sobreviver economicamente, tinha também um cariz político importante. O elevado número de casos encontrados em 1934 fez com que a Diamang pressionasse o governo para pôr em pratica os seus deveres como colonizador. O Dr. Vasques Carvalho, chefe dos SSD, encontrou-se com o chefe dos serviços de saúde de colónia, Dr. Araújo Alvares, e com o Dr. Gomes da Costa, Chefe dos Serviços de Assistência ao Indígena Combate Doença do Sono, para expor a necessidade do estado de combater a doença nas zonas a sul da região da Diamang, 88 Em 1935 a redução do orçamento estatal levou à dispensa de 16 enfermeiras do quadro
de saúde do estado. Carta 13/6/35 de Brandão Mello para Vilhena, pasta 126B, 5-2º, MAUC. Embora não seja o espaço para tal, este caso de estudo, é útil para questionar os conceitos de Medicina Imperial bem como afinar o conceito de medicina colonial. Marks 1997: 205-220; Farley 1991. 89 Carta 24/4/35 de Brandão Mello, para Manuel Mesquita Lemos, Pasta 126B, 5-2º,
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dizendo que ‘esta era uma obrigação do estado face à lei colonial’. Numa comunicação interna Brandão de Melo era claro: “O Diploma Legislativo 463 de 9 de Dezembro de 1926 do Alto Comissário Vicente Ferreira, criou na Lunda uma zona de combate à doença do sono, com dois sectores: leste e norte, mas a verdade é que os serviços oficiais desta zona, nunca foram organizados e tudo quanto tem sido feito na Lunda, é obra apenas da Diamang.”90
Esta inversão de papéis revela a presença de diferentes agendas no contexto colonial, a natureza mutável destas e o colonialismo por proxy como característica do império português na Lunda. No limiar da década de 50, com a criação das Brigadas de Pentamidinização para a luta contra a doença e a assinatura de um protocolo com os serviços do Congo Belga para uma abordagem comum no combate à doença do sono, os programas de luta governamental ganham novo fôlego. Apesar dos baixos níveis de incidência da doença no Chitato, nos anos 50 o SSD foi forçado a negociar com o Serviços de Saúde de Angola (SSA) e incorporar a metodologia estatal e manter a independência de actuação na sua área 91 . Esta negociação é reveladora das tensões, ainda que matizadas, entre o Estado e a Diamang, mas também de mais um episódio que reforçava o colonialismo delegado – colonialismo por proxy – bem como as agendas diversas dos vários colonizadores. O governador-geral tinha a percepção que a Diamang desejava manter as suas próprias acções de combate. Este entendimento, explicitado no início das negociações entre Governo e Diamang sobre o uso da pentamidina, é revelador a força da companhia na colónia. Mas o Dr. Eduardo Ferreira (chefe interino dos SSA) argumentava que 90 Carta 13/6/35 de Brandão Mello, para Vilhena, pasta 126B, 5-2º, MAUC. 91 A variedade de denominações dos serviços de saúde da colónia ao longo dos tempos, o
facto de não serem objecto deste texto e considerações de espaço fazem com que se adopte a denominação de serviços de saúde de Angola para se referir os diversos serviços de saúde estatais e a visão que estes tinham.
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a metodologia das MPDS não apresentava o mesmo nível de sucesso que as novas campanhas de pentamidinização, e que lei determinava que somente o governo poderia usar esta metodologia92. No entanto, na reunião com o representante interino da companhia em Luanda, Sílvio Guimarães, o Dr. Eduardo Ferreira revelava que o decreto fora desenhado para prevenir o uso deste químico por grupos privados, mas ‘se Vilhena anuísse a uma reorientação metodológica para a bitola dos Serviços do Estado, não se levantariam obstáculos à continuação das MPDS’. A cooperação entre Governo e Diamang era vista como positiva, algo que traria benefícios internacionalmente93. A saúde tinha características políticas, local e internacionalmente, algo de que todos os actores estavam conscientes94. A Diamang era um actor primordial a nível internacional para outorgar credibilidade às representações coloniais de um império que tratava e cuidava atentamente das suas populações autóctones95. Estas negociações reajustavam as agendas, mas visões contraditórias, pelo menos na Diamang, permaneciam. Numa comunicação interna, o Director Geral na Lunda, o engenheiro Rolando Sucena Sousa, criticava esta imposição metodológica e a visita dos médicos estatais, argumentando que “nos últimos 24 anos a companhia tinha feito o trabalho do governo”96. Mas para Vilhena era primordial que os SSD se mantivessem operacialmente independentes, revelando ainda que o médico-chefe dos SSA, Dr. Francisco Simões do Amaral, era favorável à companhia, ou seja à visão de actuação autónoma. As instruções do administrador-chefe para o Dr. Picoto eram claras, deveria reunir em 92 Carta 24/2/51 de Sílvio Guimarães (Representante Interino nos anos 1950s e representante
depois) para Vilhena, pasta 126B, 6-7º, MAUC.; Pentamidização refere-se ao uso da em campanhas preventivas, embora este fármaco fosse também usado curativamente. 93 Ibid. 94 Para a relevância combate tripanossomíase nas diversas colónias e relação com contexto
internacional ver Shapiro 1983, capítulo 5. 95 Para o caso mais geral do Império ver Shapiro 1983, capítulo 3; para o caso da Diamang
ver Porto 2002, capítulo 3, para o caso dos SSD ver Varanda 2007: capítulo 2. 96 Carta 20/3/51 de Sucena, para Vilhena, pasta 126B, 6-7º, MAUC.
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Luanda com o chefe dos Serviços do estado, apreender esta nova abordagem e evitar a perca de autonomia da companhia nesta área97. Na reunião o Dr. Pinto Fonseca notou que “Diamang estaria a fazer um enorme favor ao Estado, se continuasse o seu trabalho com métodos internacionais”98. Para ambas as instituições era claro a a relevância de agendas sincronizadas. Os resultados eram positivos para ambas as partes: a Diamang mantinha a sua autonomia e o Estado cortava nas despesas. Uma vez mais o colonialismo por proxy saia reforçado. O fim desta negociação e a aderência dos SSD à metodologia das missões de pentamidinização do Estado marca o início do fim da relevância da doença do sono nas brigadas móveis da Diamang. Poder-se-á argumentar que é o fim da fase de combate e início da gestão das MPDS. Com a entrada em acção da nova direcção dos SSD em 1957 e implementação da pentamidinização em todos os sectores, os níveis da doença voltam a ser insignificantes, o tamanho das brigadas é reduzido, enfatiza-se a prospecção de outras doenças como Lepra, iniciada em 1955 e, posteriormente, TB e Bilharzioses. Os detalhes do combate à THA foram relegados dos relatórios anuais do serviço de saúde para os relatórios anuais dos censos que entretanto ganharam proeminência face às MPDS99.
CONCLUSÃO A análise às MPDS ilumina os problemas da introdução da biomedicina em África. Partindo de uma etnografia de arquivo pretendeu-se caracterizar o colonialismo em prática e revelar a complexidade do 97 Telegrama 29/3/51 de Vilhena para DGL, pasta 126B, 6-7º, MAUC. 98 Carta 12/4/51, Sílvio Guimarães, para Sucena, pasta 126B, 6-7º, MAUC. 99 Dr. Santos David 1957 “Memória”, p. 48, MAUC. No Gana a proeminência da
bilharzíase face à tripanosomíase fez com que fosse objecto principal das campanhas. A Lepra também presente tinha sido incluída muito antes nas acções de combate das MFU combate do que Diamang. Addae 1996: 171-175.
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mundo colonial. Apreende-se quão complexo, fragmentado e ‘vulnerável’ era o império. Esta entidade não era monolítica, dominante, nem operava sob redes de relações exclusivamente baseadas no estado-nação metropolitano. Era antes uma entidade que diariamente lidava com a sua fragmentação interna, resultado de uma miríade de actores com diversas agendas em acção; era forçada a negociar amiúde com autoridades, comunidades e indivíduos locais até ao final do período colonial; e que operava para além das redes metrópole-colónias, quer fosse na aquisição de conhecimento (metodologias e práticas médicas, formação) ou produtos (fármacos ou outros bens). Um olhar mais atento aos sujeitos africanos revela uma variedade de respostas perante a biomedicina e mostra quão “indomáveis” eram os seus corpos. Apesar da construção de discursos biomédicos sobre os africanos, na prática estes não estavam sem capacidade de agência, quer fosse para escapar a diagnósticos e tratamentos que não se coadunavam com a sua cosmovisão, cultura e experiência, ou para de livre vontade utilizar determinadas acções médicas Ocidentais que apresentavam resultados num curto espaço de tempo. Há que recordar que a biomedicina não foi aplicada somente em Africanos, mas quer era aplicada por Africanos. Estes sujeitos, poucas vezes objecto de estudo, foram centrais para a persuasão e tratamento, em suma para, neste caso, os baixos índices de prevalência da doença. Muitos destes enfermeiros ou auxiliares de saúde, efectuaram a transição para o contexto pós-independência nas mesmas instituições onde trabalhavam. São eles que, mesmo contemporaneamente, actuam nas brigadas de combate às tripanossomíases e lidam com respostas similares por parte dos doentes face a diagnósticos e tratamento que, fruto de um desinteresse de décadas da indústria farmacêutica nesta doença, pouco se alteraram100. 100 F.J. Louis, P.P. Simarro e P. Lucas 2002; P. Simarro, Jean Jannin e Pierre Catt 2008;
Pieter de Raadt 1999. Estes textos centram-se na evolução focada no combate à doença, com ênfase particular nas grandes figuras da medicina tropical no terreno como o militar Francês Jamot. Apresentam usualmente uma visão de topo, centrada unicamente
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Apesar das MPDS poderem ser consideradas como um Cavalo de Tróia para as vidas e corpos africanos, como inferia o Dr. Santos David, as missões apresentam dimensões sociais, culturais, políticas e económicas que não podem ser ignoradas. Relegar estas dimensões pode empurrar o resultado de qualquer investigação para os binómios coloniais que se pretendem criticar, perdendo-se assim a complexidade do contexto colonial e uma importante janela para o mundo pós-colonial.
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Entrevistas Entrevistas efectuadas em Angola: Teresa Penedo Data da entrevista: 16-11-2004 Relação do entrevistado com Diamang: Enfermeira, trabalhou com Missões das Grávidas Local da entrevista: Dundo Entrevistas efectuadas em Angola: Bernardo Montaubuleno Data da entrevista: 20-11-2004 Relação do entrevistado com Diamang: Enfermeiro Local da entrevista: Dundo Entrevistas efectuadas em Portugal: Dr. Santos David Data da entrevista: 24/03/2204 Relação do entrevistado com Diamang: Médico, Chefe dos SSD e do Gabinete de Antropologia Local da entrevista: Estoril
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PA RT E I I CORPOS QUE SOFREM: IDIOMAS DA DOENÇA
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Capítulo 4
Labirintos do trauma: A verbalização do sofrimento nos refugiados em Portugal
Cristina Santinho*
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Investigadora CEAS / CRIA, Aluna de Doutoramento do Departamento de Antropologia, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Docente da Universidade Lusófona Agradeço a disponibilidade demonstrada por todos os refugiados e requerentes de asilo que comigo colaboraram contando as suas histórias de vida. Agradeço também ao CPR por me ter permitido a realização deste trabalho de investigação. Agradeço ainda a todos os médicos e técnicos de saúde que acederam responder às minhas entrevistas ou que comigo partilharam as suas próprias apreensões no campo da saúde mental dos refugiados.
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“Os homens, senhor Faulques, são animais sanguinários. A nossa inventividade para criar o horror, não tem limites.”1
O presente capítulo decorre da prática de trabalho de campo com refugiados e requerentes de asilo em Portugal. A perspectiva adoptada, inscreve-se na antropologia médica e em particular nas práticas e políticas de saúde mental. Pretende-se discutir e apresentar propostas de investigação que tenham em consideração a história de vida e a história do trauma dos refugiados, reflectindo também sobre conceitos como sofrimento, trauma sequencial, somatização, escuta activa e PTSD. Pretende-se também olhar para o conceito de corpo como o cenário onde se reflectem as políticas de integração e exclusão.
BREVE HISTÓRIA DE S2 S é um jovem muçulmano com cerca de 20 anos, que saiu do seu país em 2004, tendo chegado a Portugal como refugiado resgatado pelas 1 Diálogo entre o jornalista de guerra Faulques, e Markovic, soldado croata. Extraído do
livro “O Pintor de Batalhas” de Arturo Pérez Reverte. Ed. ASA; 2006. 2 S: Nome fictício. Alguns detalhes desta história são deliberadamente omitidos para
garantir o anonimato do narrador.
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Nações Unidas e pelo ACNUR3, em 2007. Optou por contar a sua história em português, apesar das suas limitações em se expressar neste idioma. De acordo com o seu relato, durante três anos e meio procurou um lugar para viver, tendo passado por diversos países, nos quais residiu em condições de extrema precariedade. Antes de ser obrigado a fugir do seu país, vivia com a mãe, entretanto falecida. O pai fora morto por uma bomba treze anos antes, no seu local de trabalho. Após a morte do pai, S e a sua mãe viveram da comercialização de leite e lã provenientes de um rebanho de ovelhas, seu principal património. O maior objectivo de vida de S era comprar um terreno, construir a sua própria casa e procurar a filha emigrada do irmão mais velho do seu pai, com quem em tempos a família o havia prometido casar. Os seus sonhos foram interrompidos quando milícias armadas entraram de rompante em casa e o prenderam juntamente com os amigos, sob a acusação de subversão e terrorismo. Após ter sido libertado, a mãe convenceu-o a fugir, pelo que venderam o rebanho, para juntar o dinheiro necessário à compra dos documentos que lhe permitiriam sair do país. Com parte desse dinheiro, comprou um passaporte e a passagem para o outro lado da fronteira. Foi então obrigado a fugir para a Líbia e daí para a Guiné-Conacri, onde residiu durante algum tempo. O seu principal objectivo era ir para os Estados Unidos da América ou mesmo para a Grã-Bretanha, onde se integraria mais facilmente devido ao domínio do idioma e à prévia existência de comunidades oriundas da sua região. Na Guiné, trabalhou por vários meses na reparação dum navio cargueiro, tendo ficado acordado com a tripulação, a quem entregou todo o seu dinheiro, que poderia viajar no barco até aos Estados Unidos. Um dia, quando chegou ao porto para começar o trabalho, o barco tinha partido. Tendo que enfrentar a decepção e frustração resultantes deste logro, acabou por conseguir embarcar num navio cargueiro, o qual se 3 ACNUR: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
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encontrava já repleto de imigrantes clandestinos. Esta viagem deveria demorar 10 dias, estando as rações de água e comida racionadas para este período. No entanto, as máquinas do navio avariaram e todos os imigrantes a bordo tiveram que suportar dois terríveis meses no meio do oceano, durante os quais enfrentaram condições extremas de sobrelotação, ausência de luz natural, falta de higiene e carência de víveres, o que motivou o consumo ocasional de água do mar. A luta destes “passageiros invisíveis” pelo acesso à comida, água ou espaço, era permanente. A chantagem e o abuso serviam como moeda de troca no acesso a alguma comida suplementar, ou no estabelecimento de hierarquias de poder. Cada dia que passava, mais pessoas adoeciam. Quando o navio chegou à Mauritânia, a maioria dos passageiros clandestinos, entre os quais S, foram encarcerados por vários meses num centro de detenção para imigrantes. Aí, as condições de vida eram igualmente desumanas: a pessoa desaparecia novamente, para dar lugar mais uma vez, à condição de corpo: não existiam janelas, nem corredores ou espaços exteriores por onde os imigrantes pudessem circular ou ter acesso a luz natural; a comida e a água eram racionadas; o acesso aos dois ou três sanitários, dependia de um regresso imediato ao fim da fila, logo após a saída, num circuito ininterrupto que podia levar duas horas, sendo a alternativa mais viável urinar numa garrafa, por exemplo. S, que não tinha amigos nem conhecidos com quem partilhar este contexto de extrema hostilidade e humilhação, relatava a intensidade dos sentimentos de solidão e desorientação então experienciados. Segundo o seu testemunho, o desejo último dos imigrantes detidos era a liberdade, independentemente do local ou país onde a mesma pudesse ser garantida. Enquanto aguardava a eminente deportação para o seu país, ocorreu uma rebelião nesse centro, durante a qual alguns dos detidos entre os quais ele próprio, conseguiram fugir para o único local que se apresentou como possível: o deserto. Esta fuga, culminou numa operação de resgate levada a cabo pelo Alto Comissariado das Nações
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Unidas para os Refugiados (ACNUR), que possibilitou o transporte destes imigrantes para as Ilhas Canárias, em Espanha. Posteriormente, S foi reinstalado em Portugal, tendo ficado um ano no Centro de Acolhimento para Refugiados (CAR) do Concelho Português para os Refugiados (CPR), na Bobadela – Loures. No momento de recolha desta “história de vida / história de trauma”4, S já não residia no Centro de Acolhimento. Neste local, apenas podem permanecer durante mais tempo os menores não acompanhados5, ou alguns casos particularmente vulneráveis. S, que ainda não conseguiu ter a tão desejada casa, partilha um quarto numa casa sub-alugada, com imigrantes que não conhece. Não possui, tal como a maioria dos refugiados em Portugal, comunidades de suporte. Recebe da Santa Casa da Misericórdia6 cerca de 200 euros, o que em 4 Consideramos que a história do trauma deve ser avaliada no contexto mais amplo que a
produziu, ou seja: a história de vida narrada pelo refugiado. Esta abordagem parece-nos essencial para a recolha de elementos determinantes, como por exemplo as referencias socioculturais em que a narrativa se insere, para além da própria concepção de saúde, doença e corpo. Só uma abordagem culturalmente sensível nos permitirá perceber a linguagem do sofrimento e do trauma. 5 Designam-se por “menores não acompanhados” todas as crianças, ou jovens menores de
18 anos, que viajam sem acompanhamento de membros da família ou tutores que por eles se responsabilizem. As políticas e práticas legais de acolhimento não são uniformes em todos os países Europeus. Contudo, chama-se a atenção para o modo como no Espaço Shengen se determina se os menores têm efectivamente menos de 18 anos. Em Portugal, e uma vez que normalmente uma característica dos refugiados é a impossibilidade de viajar com documentos de identificação, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras recorre à determinação da idade através da medição do osso do pulso e do raio-X dos maxilares. Este procedimento, que não toma em consideração o contexto étnico e cultural da criança (o desenvolvimento físico não é idêntico em todos os grupos, nem toma em conta as diferenças de desenvolvimento provenientes de carências ou excessos alimentares), pode resultar numa avaliação errónea da idade, a qual comporta consequências nefastas, tais como a negação do acesso a apoio social específico que lhe deveria ser prestado. O desenvolvimento psicológico é ainda mais subjectivo, dependendo das características culturais de cada grupo de pertença. Para informação mais detalhada sobre esta questão, consultar: «La migration des mineurs non accompagnés en Europe», nº 2, 2008; e-migrinter Maison des Sciences de l’Homme et de la Société (MSHS). 6 Entidade que na região de Lisboa assume parte do apoio financeiro aos refugiados. Fora
da região de Lisboa, este apoio passa a ser suportado pela Segurança Social.
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Lisboa é manifestamente insuficiente para fazer face às suas necessidades, mesmo as mais básicas. Como forma de complementar este magro rendimento, S recorre a biscates ou trabalhos pontuais, os quais tem tido dificuldade em manter devido ao seu mal-estar físico, e às consultas médicas ou de fisioterapia que tem que frequentar, e que condicionam a sua disponibilidade. Relativamente ao apoio psiquiátrico também existiram dificuldades. Após duas ou três consultas no Hospital Júlio de Matos, S decidiu descontinuar os tratamentos, por considerar que a abordagem adoptada era desadequada, relativamente às suas necessidades. Subsistiram grandes dificuldades de comunicação com o médico psiquiatra (neste serviço não existem mediadores nem tradutores), que baseava o tratamento na administração de medicamentos ou no aconselhamento a desempenhar uma actividade laboral, como forma de desviar as atenções do seu sofrimento. Sem comunidade de pertença, nem esperança de integração a curto ou médio prazo num emprego que lhe permita ter uma casa própria – um dos seus maiores desejos – S encontra um local de apaziguamento e partilha empática (e porque não terapêutica?) nos encontros do teatro Refugiacto7. Sempre que lhe é possível deslocar-se aos ensaios, S experiencia a única forma de suporte de grupo que, pelo menos pontualmente, se aproxima a um contexto comunitário de partilha de identidades em sofrimento. Um dos momentos de maior relevância para ele, dá-se aquando a apresentação pública do grupo. Numa das vezes em que tal aconteceu, quando questionado relativamente à sua procura de casa, respondeu: “Agora, procuro antes um castelo”. 7 Deste grupo, fazem parte refugiados de diferentes nacionalidades, géneros e grupos
etários. Partilham os mesmos sentimentos, as mesmas emoções e por vezes as mesmas experiências traumáticas. Logram “exorcizar” o sofrimento através da posta em cena de textos de crítica social elaborados pelos próprios e também de poetas e escritores relacionados directa ou indirectamente com os direitos humanos. Satirizam-se por exemplo as dificuldades de comunicação ou de exclusão, sentidas no acesso à consulta nos centros de saúde. O grupo de teatro tem como principal mentora a professora de português do CPR, Dr.ª Isabel Galvão.
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Analisando a anterior descrição fenomenológica, é possível afirmar que o sofrimento mental esteve presente ao longo da recolha da história de vida/ história de trauma. S emocionou-se várias vezes ao contar a sua história, em particular ao recordar as memórias do que nostalgicamente mantinha como objectivo de vida: ter uma casa só sua e encontrar uma rapariga para casar. Queixava-se igualmente de insónias frequentes expressando sentimentos de profunda tristeza e desalento. Quanto às suas narrativas de sofrimento físico, estas consistem fundamentalmente na sensação permanente de sede, dores de estômago, dores de cabeça, dores num dos joelhos (alegadamente provocada por uma queda das escadas íngremes no porão do navio), dores nas costas, diarreia frequente e perca de peso. No contexto do trabalho de campo, foi possível verificar que S, tanto em cerimónias públicas com a presença de figuras de Estado proeminentes, como na vivência quotidiana do Centro, manifestou emoções diversas. Na presença dos políticos, notava-se uma esperança renovada no seu olhar e nas suas atitudes, como se a simples proximidade destes, representasse o reconhecimento social das suas vidas, a possibilidade de retomar a dignidade do “eu” e o fim da invisibilidade social. Noutras ocasiões, mais quotidianas, S oscilava entre uma profunda tristeza, alheando-se do que se passava ao seu redor e momentos de prazenteiro convívio.
A HISTÓRIA DE VIDA COMO VERBALIZAÇÃO DO SOFRIMENTO Existe uma desproporção incontornável entre os relatos verbalizados pelos refugiados sobre a sua história de vida e a narrativa do sofrimento, a realidade quotidiana por eles efectivamente vivenciada em contextos de guerra e conflito permanente e por fim, a tentativa do antropólogo, tantas vezes infrutífera, de transmitir através da escrita, um testemunho suficientemente fidedigno, que respeite a veracidade dos
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factos narrados pelo refugiado em sofrimento os quais, de tão inverosímeis, correm o risco de ser interpretados como imaginação, fantasia dramatizada ou simplesmente delírio lancinante dos narradores. Os refugiados e requerentes de asilo8, acima de tudo, são pessoas com as suas próprias contradições, estratégias de sobrevivência ou integração, desejos e ambições, alegrias e também sofrimentos. Nem todos podem ser considerados vítimas de injustiças e atentados aos direitos humanos e sendo-o, não significa necessariamente que essa “circunstância de vítima”, historicamente constituída, seja em termos individuais, constante ou permanente. São também, ocasionalmente, autores do seu destino, calculado em histórias de trauma narradas deliberadamente para encontrar apoio das ONG’s ou das próprias instituições estatais, com vista à obtenção de documentos que lhes permitam residir legalmente na Europa. Algumas dessas histórias foram transmitidas com aparente sofrimento, teatralizadas através do pranto ou manifesta angústia. Nem todas vieram a comprovar-se como verídicas9. Não serão contudo essas histórias que aqui iremos analisar. No entanto para muitos – a maioria – o sofrimento, a tortura, a humilhação, são uma constante ameaça, que pode até estar bem perto, em qualquer rosto ou lugar desconhecido10, até percepcionarem um ambiente seguro e protegido, longe das redes de tráfico ou das máfias 8 Refugiados são aqueles que já possuem estatuto reconhecido pelas autoridades.
Requerentes de Asilo são os que ainda não possuem esse estatuto, podendo contudo residir no país legalmente, enquanto aguardam uma decisão, possuindo documentos de “residência por razões humanitárias”. 9 A questão da “verdade” das narrativas transmitidas aos agentes do SEF, ou a outros
responsáveis, ou não pela autorização da sua entrada em Portugal, é em si, algo que justifica uma análise antropológica em profundidade. Contudo, salienta-se que na maior parte dos casos, a “verdade narrada” equivale a uma versão da realidade relatada pelos próprios e com a qual eles podem efectivamente lidar. 10 Existem francas possibilidades de essa ameaça acontecer mesmo em contextos sociais
aparentemente seguros como é o caso de Portugal, em particular provenientes de redes mafiosas ou ligadas ao tráfico, com origem por exemplo na Colômbia ou em alguns países do Leste Europeu. Existe a possibilidade de o refugiado se encontrar com o seu próprio torturador.
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(redes criminosas internacionais) que se estendem sub-repticiamente em qualquer parte. Para além destes que transmitem a sua experiência através da história que nos narram, existem ainda todos os outros refugiados que, por impossibilidade de verbalização do sofrimento atroz, se remetem ao silêncio profundo de um tormento do qual não logram sair jamais e cujas memórias revivem nas longas noites de vigília e nos dias alucinados. Sobre estes, vítimas da “banalidade do mal”11 como referia Hannah Arendt, já não é sequer possível encontrar o rasto, perdidos que estão numa cidade/sociedade que desconhecem e que os empurra tragicamente para a invisibilidade dos corpos e da existência, na qual o próprio conceito de humano expandiu os seus limites. Neste campo, estão todos aqueles refugiados que, por não terem consulta ou mesmo após uma consulta psiquiátrica perigosamente estéril, abandonam a derradeira tentativa de reconhecimento do seu sofrimento, confundido por vezes entre o papel da vitima e ou de perpetrador que, já não se dissolve pelo uso da palavra, dissipando-se no mundo do invisível, nos labirintos do trauma. Enquanto observadora participante nos consultórios de psiquiatria, testemunhei os olhares angustiados, o frenesim dos gestos involuntários, a constante vigília procurando sinais invisíveis de alarme que possam pôr fim à sua vida periclitante, ali mesmo na sala de espera do consultório. Estes sinais permitem antever o percurso errante daqueles que por ausência de respostas terapêuticas adequadas12, renunciam a prosseguir com as consultas. Para estes 11 “Banalidade do mal é uma expressão criada por Hannah Arendt no seu livro “Eichmann
em Jerusalém”, cujo subtítulo é “Uma reportagem sobre a banalidade do mal”. Ed. Tenacitas, Coimbra; 2ª edição, Abril de 2004. 12 Ausência de formação específica por parte dos psiquiatras e clínicos generalistas, quer
no domínio científico da psiquiatria transcultural, ou mesmo da etnopsicologia; inexistência de pontos de contacto entre paciente e médico, ao nível linguístico, ou cultural; ausência de percepção do trauma como elemento que faz parte de um contexto muito mais amplo, em que se integra a própria história de vida, e o entorno sociocultural, económico e político.
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refugiados, normalmente vítimas de actividades forçadas como as “crianças-soldado”, existe a inefabilidade da experiência impossível de ser partilhada, ou sequer compreendida, pelos outros. Esta “experiência do extremo” a que se refere Richard Rechtman (1990) pressupõe a existência de um limite supremo que, para além da capacidade de sobrevivência de cada pessoa, não separará a vida da morte, mas reúne numa experiência comum, os mortos e os sobreviventes. Em última instância, esta experiência apenas distingue quem a viveu de quem nunca enfrentou uma situação desta natureza. Esta quase ausência de fronteira entre os vivos e os mortos vai passar a fazer parte integrante do sofrimento dos refugiados, em particular daqueles que presenciaram o assassinato dos seus familiares ou amigos e que, ao conseguirem fugir, sendo por vezes os únicos sobreviventes daquele contexto familiar, carregam consigo a culpa e o sentimento de abandono. Muitos dos refugiados que acompanhei à consulta de psiquiatria, relataram a angústia dos momentos de solidão (experienciada já em Portugal) em que eram permanentemente assaltados pelas memórias traumáticas do preciso momento em que, escondidos à pressa num canto da casa, testemunharam os militares entrando de rompante, agredindo e torturando até à morte pais, mães e irmãos, como se de um filme constantemente repetido em câmara lenta se tratasse. Silove (1999) refere a existência de vários sistemas adaptativos comuns que quando ameaçados isoladamente ou em conjunto, por profundas injustiças resultantes de contextos de guerra ou conflito e atentados aos direitos humanos, conduzem invariavelmente ao sofrimento e ao trauma. Um deles relaciona-se com este sentimento de perda de “união ou existência de laços afectivos”. As separações e as perdas são frequentemente múltiplas e incluem perdas reais e simbólicas. Para além dos familiares mortos ou perdidos, os refugiados ainda experienciam a perca do lar, da propriedade e dos bens (emprego, estatuto social, estudos). Perdem igualmente o sentido de
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coesão social, ligação com a terra ou os antepassados, bem como com a cultura de pertença e seus rituais e tradições. As reacções normais a estas perdas incluem uma constelação de sentimentos como o pesar, a nostalgia, por vezes a raiva e revolta e também a saudade. S, como tantos outros, transmitia sentimentos compungentes relacionados com a ausência destes suportes afectivos que lhe foram retirados de forma violenta, sendo ele próprio testemunha forçada. É de notar também que estas perdas são, na sua maioria, definitivas e irrecuperáveis. A ausência de uma abordagem adequada no campo da saúde mental pode conduzir ao desequilíbrio e ao “trauma sequencial”. Referencia-se aqui o conceito proposto por David Becker (2004), e que se baseia na noção de que o trauma é um processo que se desenvolve sequencialmente – iniciando-se na perseguição e decisão de fuga, a própria fuga, o pedido de asilo, o contacto com a sociedade receptora e o longo período que aí se segue – que só pode ser definido e compreendido num contexto específico e que deve ser descrito em detalhe. A principal noção que nos oferece Becker é a de que o trauma e a sua sequencialidade, contêm uma dimensão individual psíquica, mas também em simultâneo e interligada, uma dimensão colectiva e macro-social. Sendo o trauma um processo político que ocorre num determinado contexto social, apenas pode ser entendido num contexto igualmente cultural e também político. Deve pois ser considerado do ponto de vista do indivíduo, da sociedade, da cultura (inclusive nos aspectos materiais e espirituais) e também políticos, económicos e jurídicos, para além dos psicológicos. Refere ainda Becker (2004): The basic issues of power and social conflict are not only ignored but, worse, are conceptually redefined as part of an individual psychological illness, thereby further hindering a person‘s capacity to act upon the situation. Exaggerating a little, one could say that first we have war and destruction, and then we offer individual therapy instead of social change. É necessário ter em conta que a própria inserção dos refugiados na sociedade portuguesa, não está isenta de trauma. Este vai-se perpetuando nas diferenças culturais
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entre a pessoa e a sociedade de acolhimento, no tempo que demora a resolver a sua situação jurídica (dois, três, cinco ou mais anos), na dificuldade na obtenção de emprego, na ausência de reconhecimento social que a sociedade lhes vota. Como menciona Becker, o trauma não pode ser apenas encarado do ponto de vista terapêutico, mas também por uma multiplicidade de abordagens. Momentaneamente apaziguados pelo relato da história de vida – história do trauma, que comigo partilhavam na Bobadela13, alguns destes refugiados – em particular aqueles que pouco depois deixaram de poder contar com a residência segura do CAR – desapareceram, tanto das consultas previamente marcadas, como das frágeis redes de suporte que as instituições de acolhimento lhes estendem e que dificilmente serão suficientes para os integrar14, na medida em que nem sempre lhes é garantido trabalho ou assistência social e financeira condigna, que lhes permita sobreviver ou sequer aceder ao reconhecimento imprescindível para a sua existência enquanto cidadãos com iguais direitos. Por vezes a insuficiência de apoio social e de emprego, é agravada em muitos casos, pela recusa de atribuição do Rendimento 13 O Centro de Acolhimento de Refugiados (CAR), é estrutura integrante do Conselho
Português dos Refugiados (CPR) – Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados em Portugal (ACNUR). O CAR, possui várias valências sociais para refugiados e requerentes de asilo, sendo a mais importante, a residência aberta temporária. 14 O termo “integração” ou “inclusão”, tem feito parte nas últimas décadas das políticas
sociais que visam em particular os imigrantes em Portugal. Valoriza-se a inclusão como algo positivo, algo a que qualquer imigrante ou refugiado deve aspirar, e avaliam-se as instituições públicas (ministérios, autarquias, ONG’s) pela maior ou menor capacidade de efectivação de projectos que visem a participação destes imigrantes, através do exercício de cidadania. Mas nem sempre a integração é vista pelos migrantes, em particular por algumas minorias étnicas, como algo que possui um valor intrínseco. A fragmentação do social a que presenciamos nos dias de hoje leva a que muitos grupos ou indivíduos – entre os quais os refugiados, pela sua própria idiossincrasia, prefiram a ideia do “reconhecimento”, que lhes permite o direito à diferença, à ideia da “integração”, que os enclausure numa existência que lhes é penosa. Será este reconhecimento a única possibilidade de os retirar da invisibilidade a que a sociedade portuguesa os remete.
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Social de Inserção, justificado pela falta de cumprimento da obrigatoriedade de se apresentarem mensalmente perante os técnicos da Segurança Social. Na perspectiva dos refugiados, existe ainda a dificuldade na compreensão dos ofícios e minutas burocráticas, a eles dirigidas por estes organismos (Centro de Emprego; Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia) apresentados em linguagens burocráticas herméticas e incompreensíveis, uma vez que nem a língua portuguesa dominam integralmente. Para mais, a desatenção de alguns “prometidos empregadores” que adiam reuniões e encontros semana após semana, para estágios dos quais os refugiados desconhecem os contornos e ainda a falta de diálogo entre umas e outras instituições, empurra-os por vezes, para uma existência muito próxima da indigência que vem agravar dramaticamente a aflição. A identidade e o desempenho dos papéis sociais constituem outro dos pilares abalados pelo sofrimento e trauma provocado pelos maus-tratos e tortura. De acordo com Silove (1999), um dos objectivos chave da tortura é minar nas vítimas, o sentimento pessoal de identidade, de acção e de controlo. O isolamento, o ostracismo ou a propaganda, são instrumentos utilizados por órgãos opressivos de forma a corroer o sentimento de coesão e identidade de indivíduos ou comunidades inteiras. S sentiu esse isolamento na constante ameaça de que as reuniões com os amigos em sua casa bastavam para os catalogar como subversivos. Mais tarde, o anonimato perante a sociedade de acolhimento, a dependência do apoio institucional, a falta de reconhecimento do papel social, estatuto ou qualificações, nos países de recepção, a par com a interrupção dos referentes culturais, trazem aos refugiados um conjunto de ameaças à sua identidade. Como consequência, poderão ocorrer alterações dos papéis identitários, com o subsequente sentimento de impotência e passividade. Por vezes, a própria pertença religiosa é quebrada. São vários os casos de muçulmanos, por exemplo, que perante a situação de vida no Centro de Acolhimento, ou já fora dele,
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abandonaram deliberadamente os rituais de oração, a ida à Mesquita, ou romperam também com os tabus alimentares. A perca de “significado existencial”, resulta do sentimento de impotência perante as causas inexplicáveis do exercício da crueldade e do mal de que foram vítimas, podendo abalar a fé e as crenças mais profundas e pôr em causa o sentido da vida e da humanidade. Esta crise de confiança na fé, pode provocar sentimentos de alheação e isolamento emocional. Muitos destes refugiados em “crise de fé”, procuram o isolamento nos seus quartos do CAR, evitando o contacto com outros refugiados com os quais não partilham nem as tradições culturais nem os sentimentos de fé ou de ausência momentânea dela. Este factor remete para a necessidade de olhar para a questão existencial através da possibilidade duma abordagem terapêutica apropriada. Como refere Mollica (2006): Traumatized persons are not usually emotionally hardened by violence but are, in contrast, delicately attuned to the nuances of human interactions. Muitos destes “passageiros errantes” desaparecem frequentemente da mesma maneira que surgem: sem família, amigos, redes sociais de suporte, emprego, rendimentos ou sequer documentos que ajudem a recuperar o seu passado ou a sua identificação e identidade, saídos à força das entranhas clandestinas de um navio cargueiro ou das asas de um desejo fátuo que os trouxe a um país que desconhecem e a uma sociedade que lhes é alheia. Carregam o seu sofrimento sem interlocutor, acabando por desaparecer nas malhas de um lugar sem guerra, mas em disputa, onde a hostilidade se manifesta na faalta de adequabilidade dos apoios institucionais, frequentemente por mero desconhecimento da sua particular existência. Sem documentos que atestem a sua identidade e o seu percurso de vida; sem modo de provar a sua história académica ou profissional, que lhes permita continuar aqui e agora o seu percurso; impossibilitados de regressar às suas terras, sob pena de perderem a vida para sempre, estão irremediavelmente presos num limbo de indiferença social, confundidos
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que são com os imigrantes, com os quais não partilham a humilhação e a tortura, nem a viagem voluntária, nem a existência de comunidades de pertença e muito menos a possibilidade de um dia regressar.
O CORPO COMO LOCUS DE POLITICAS DE INTEGRAÇÃO E EXCLUSÃO Como refere Csordas (1994) (…) the body has a history and is as much as a cultural phenomenon as it is a biological entity is potentially enormous. Also, if indeed the body is passing through a critical storical moment, this moment also offers a critical methodological opportunity to reformulate theories of culture, self, and experience, with the body in the centre of analysis. Aos refugiados, resta-lhes portanto, o corpo e a sua história. É através destes que levantamos o véu sobre o conceito de saúde, doença, sofrimento, somatização, tendo em conta o contexto de proveniência, e a história do sofrimento e do trauma. Mais ainda, o corpo “lê-se” na sua relação com o poder e com a autoridade, numa sequência de lógicas múltiplas às quais não são alheios aqueles que intervêm sobre o corpo em nome dos poderes públicos (Fassin 2004). São processos de subjectivização impostos pelas políticas sanitárias e pelas práticas biomédicas. De acordo com Nancy Scheper-Hughes e Margaret Lock (2004) o corpo carrega consigo três dimensões: o corpo individual, o corpo social e o corpo político, correspondendo o primeiro à experiência vivida do corpo enquanto “self”, o segundo, aos usos representacionais do corpo enquanto símbolo da natureza, da sociedade e da cultura e o terceiro à regulação e controlo do corpo. Fazendo uso desta definição, proporíamos corresponder a primeira dimensão, ao corpo feito de memórias e experiências somáticas recorrentes da tortura e do trauma, e a segunda à forma como cada refugiado experiencia o sofrimento e o
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interpreta à luz dos seus próprios marcos culturais, transformando-os em linguagens somatizadas. Finalmente, o terceiro corresponderia a uma dimensão política que atravessa um largo espectro de contextos relacionais que vão desde a própria tortura perpetrada pelos abusos de uma política selvática de atentados aos direitos humanos, até às sevicias corporais na imposição das hierarquias de poder. Esta dimensão política encontra seguimento já em “território protegido”, onde o corpo é reinterpretado pela sociedade de acolhimento, que o regula através de normas jurídicas, confinando-o a espaços físicos que tanto possuem uma dimensão europeia (apenas pode circular legalmente no interior do espaço Shengen), como uma dimensão nacional (obrigando cada requerente de asilo a apresentar-se mensalmente à Santa Casa da Misericórdia ou Segurança Social, em troca da obtenção do subsídio de sobrevivência mensal15). Este “corpo político” que, de acordo com Foucault, estaria subjacente a todas as outras dimensões, ainda se reflecte nas práticas políticas no campo da saúde que remetem alguns refugiados para a sua inexistência institucional ao não poderem ser registados no Sistema Nacional de Saúde (SNS), nas situações em que o seu território de pertença não é reconhecido nos espaços geopolíticos internacionais, como é o caso por exemplo, dos Palestinianos. Os menores de idade podem igualmente encontrar dificuldades a este nível aquando do seu pedido de asilo, em particular nos casos em que a idade declarada não corresponde à suposta idade apreciada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com base em critérios subjectivos, como referimos anteriormente. Nestes casos, a idade que os jovens requerentes de asilo afirmam possuir é posta em causa pelos agentes da autoridade. As autoridades portuguesas (SEF), em caso de dúvida, solicitam ao Instituto Nacional de Medicina Legal a realização de testes destinados a estimar a idade dos menores requerentes de asilo, os quais consistem nomeadamente em Raios X efectuados à placa dentária, com o fim de avaliar o estádio de formação da raiz de 15Na maior parte dos casos, este subsídio é de 150€ mensais.
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determinados dentes. A nível internacional, o ACNUR estabeleceu a necessidade de utilização de técnicas que respeitem a dignidade humana, dando ao menor o benefício da dúvida, caso exista incerteza na idade. No entanto, não existem registos de dados concretos sobre os índices de suspeita, aceitação ou rejeição destes pedidos de asilo com base na afirmação etária. A este propósito, parece pertinente referir que ao considerar o conceito de juventude, frequentemente determinado por questões culturais muito mais que por determinantes biológicos, existe um paradoxo no que diz respeito aos jovens requerentes de asilo, o qual se situa entre a construção cultural de juventude e a obrigatoriedade jurídica de inscrição do corpo num marco biológico confirmado, ou não, pelas “políticas tecnobiológicas” actuais16.
CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA SOMATIZAÇÃO É, através deste corpo multidimensional threatened vehicule of human beeing and dignity” (Csordas 1994) que os refugiados encontram a única linguagem que lhes permite comunicar com o Outro: uma linguagem feita de narrativas somáticas como a de S e de tantos outros, que não encontra reflexo no consultório médico. Segundo os testemunhos dos médicos entrevistados, os quais dão 16As políticas biológicas de confinamento do corpo afirmam-se na proporção directa da
tentativa de encerramento do espaço europeu aos imigrantes do sul e do leste. Exemplo disto é a polémica lei francesa do governo de Sarkozy, que sofreu já a contestação de diversas associações humanitárias numa manifestação organizada em Paris em Outubro de 2008. Esta lei, visa restringir a entrada de mais imigrantes em França, bem como nas restantes fronteiras europeias, impõe a aplicação de testes de ADN a todos os imigrantes que, ao abrigo da lei do reagrupamento familiar, desejem reunir-se aos seus familiares. Colocam-se em risco a existência de estruturas de parentesco que não correspondam às ligações provadas geneticamente, conduzindo à hegemonia de padrões familiares ocidentais, eles mesmo questionáveis.
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consulta aos requerentes de asilo no Centro de Saúde da Bobadela, não havia a percepção exacta de que as queixas e sofrimentos que estes apresentavam fariam parte dum processo de somatização. Apenas referiam estranheza por os refugiados aparecerem sucessivamente nas consultas apresentando as mesmas queixas. De acordo com Lawrence Kirmayer (1991), somatização é um termo normalmente usado para cobrir um vasto número de situações clínicas: pacientes que se apresentam na consulta exclusivamente com sintomas físicos, apesar de terem também problemas psico-sociais, ou sofrimento emocional; pacientes que se auto-definem doentes, apesar de não demonstrarem evidencias de doença; e igualmente pessoas que apresentam um padrão de sofrimento frequente e inexplicável, ou ainda sintomas somáticos funcionais induzidos, que causam inaptidão. No caso dos refugiados, o sofrimento como consequência da tortura física e mental, ou enquanto testemunhas de atrocidades (mortes, violações, humilhações), marca no corpo, a necessidade de reconhecimento e apaziguamento da dor. A somatização é um problema extremamente comum em todas as áreas da medicina. É também um problema de saúde pública, na medida em que os sintomas funcionais estão entre as maiores causas referentes à desadaptação ao trabalho e à vida social. São também frequentes as queixas dos refugiados referindo que faltam ao trabalho por se sentirem em sofrimento. As somatizações provocadas por depressões e ansiedade devido a traumas passados na guerra ou durante a fuga, ou ainda no penoso processo de integração, são raramente detectadas pelos médicos generalistas, podendo levar a tratamentos desadequados ou ineficazes que apenas mascaram o sofrimento, conduzindo ao tal “consumismo da consulta”, como referiam os médicos de clínica geral entrevistados. Também aqui se coloca um problema frequente: a falta de comunicação, quer pela existência de barreiras linguísticas e culturais, quer por não haver uma prática clínica de escuta da história do paciente e
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dos motivos que conduziram ao seu sofrimento, quer ainda pela ausência de um mediador que, após a receita passada pelo médico, possa traduzir com eficácia, a posologia e a razão da prescrição ou o modo de aplicar ou tomar cada medicamento. Estas condicionantes levam a que, por vezes, os medicamentos receitados não sejam administrados de forma adequada, originando mais complicações e possível agravamento dos sintomas. Existem também rejeições convictas e deliberadas, dos medicamentos prescritos pelos médicos, preferindo a sua substituição por determinadas ervas ou outras práticas terapêuticas (leitura de certas passagens do Corão, por exemplo), consideradas por alguns refugiados, de acordo com a sua proveniência cultural, como mais eficazes, para o tratamento de determinados mal-estares. Nos consultórios psiquiátricos, a somatização é frequentemente desvalorizada, demonstrando desinteresse por esta temática no campo da psiquiatria (Kleinman 1988). Os clínicos incorrem frequentemente no erro de considerar que os processos psicossomáticos são uma dimensão de qualquer doença, não lhes votando a devida atenção, como é o caso da maioria dos médicos entrevistados. Enquanto que a teoria psicossomática está preocupada com as causas da doença, a somatização foca a atenção na experiência e expressão da doença revelada pelo contexto cultural, social e político em que o paciente se encontra. A somatização é pois definida como “a tendência de experienciar e comunicar um sofrimento somático e sintomas inexplicáveis através de descobertas patológicas, atribuindo-lhes doença física e procurando apoio médico através delas” (Kleinman 1988, p. 1359). Como tal, a somatização é vista como uma variação no comportamento da doença com a implícita necessidade de procura de atenção médica, atenção essa que por dificuldade de interpretação é entendida pelos clínicos como “consumismo de consulta”, como referenciamos há pouco. A relação entre a somatização e as doenças psiquiátricas ou as aflições psicossociais passam a ser mais uma questão empírica do que uma questão de definição do conceito, na medida em que depen-
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dem da história de vida e do próprio conceito cultural e individual de saúde e doença atribuído pela pessoa. A somatização mimetiza as doenças físicas, uma vez que a pessoa não produz o sintoma conscientemente. Quando as emoções fortes, como é o caso do trauma provocado pela tortura ou testemunha de actos violentos, não podem ser simbolicamente transformadas em linguagem verbal, tendem a ser “descarregadas” através de caminhos autonómicos, causando desordens fisiológicas, tantas vezes manifestas nas narrativas das histórias de trauma dos refugiados, como refere Lawrence Kirmayer (1991). Os sintomas mais comuns, também referenciados pelos refugiados entrevistados, incluem: dores musculares, distúrbios gastrointestinais, sintomas cardiopulmonares, sintomas pseudoneurológicos, e distúrbios menstruais e sexuais. Não se retira contudo a necessidade de efectuar rastreios médicos com o objectivo de despistar efectivamente algumas doenças. Kirmayer refere ainda um estudo que realizou com 700 famílias, tendo subdividido a somatização em 3 categorias: (1) Somatização funcional: altos níveis de sintomas medicamente inexplicáveis; (2) Somatização hipocondríaca: altos níveis de preocupação pela existência de doenças sem evidências que lhes correspondam; (3) Apresentação exclusiva de sintomas em pacientes com depressões profundas ou desordens de ansiedade. Neste estudo, Kirmayer conclui que dos 3 tipos de somatização, o 1º está mais relacionado com a utilização dos serviços de saúde e o 2º com uma auto-estima negativa ou pessimista, enquanto que o 3º se relaciona fundamentalmente com factores de angústia e stress. Em Portugal não existem ainda estudos científicos concluídos17, tendo como objectivo a análise do estado de saúde físico ou mental dos refugiados e requerentes de asilo, que nos possam elucidar sobre o modo como o sofrimento somático está relacionado com o trauma. 17Neste momento, está a realiza-se o primeiro estudo de investigação/acção nesta área,
coordenado pela autora, e co-financiado pelo Fundo Europeu para os Refugiados e Fundação Calouste Gulbenkian, através da Estrutura de Missão de Fundos Comunitários – Ministério da Administração Interna.
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Esse caminho poderá dar resultados positivos em termos do tratamento, se o enfoque incidir não meramente na observação da doença do ponto de vista da patologia, mas na experiência da doença sentida pelo refugiado e analisada por equipas terapêuticas multidisciplinares, cruzando os saberes e metodologias da medicina com outras áreas das ciências sociais e humanas – psiquiatria, psicologia, antropologia, sociologia, entre outras, tendo como eixo da abordagem principal o trabalho de campo e a recolha e análise das histórias de vida / histórias de trauma de refugiados e requerentes de asilo. Destes refugiados, em parte pela incapacidade ou desadequação do sistema de saúde mental que em Portugal lhes é colocado, ou não, à disposição, ficam apenas as compungentes histórias transmitidas em idiomas veiculares que nem sequer dominam, como o francês ou o inglês. Oriundos da Serra Leoa, Eritreia, Congo, Bósnia, Colômbia, Curdistão, Palestina ou qualquer outro lugar onde a vida obedece a códigos que tantas vezes desconhecemos, logram sobreviver a genocídios e extermínios étnicos nos quais testemunharam frequentemente a tortura e a morte, como já anteriormente referimos.
ENTRE A ESCUTA INSTITUCIONAL E A ESCUTA TERAPÊUTICA Em momentos anteriores fizemos referência ao trabalho de pesquisa etnográfica, efectuada fundamentalmente através da escuta das histórias de vida / histórias de trauma de refugiados e requerentes de asilo. No âmbito desta abordagem, não podemos deixar de salientar a importância da “escuta”, enquanto método de pesquisa científica e também terapêutica. Este conceito tem sido usado pela antropologia médica, nomeadamente por Didier Fassin (2004) numa perspectiva eminentemente política e social. Tem sido igualmente utilizado por psiquiatras transculturais, como é o caso de Richard Mollica (2006), e
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aplicado à história do trauma de que grande parte dos refugiados é portador. Neste contexto, é pertinente referir ainda a forma como o próprio poder político, securitário e social usa e estimula continuamente a escuta e recolha constante das histórias de vida dos refugiados e requerentes de asilo. Após o pedido de asilo, apresentado às autoridades portuguesas antes da entrada oficial em território português (dentro do aeroporto, por exemplo), o “requerente” fica provisoriamente retido pelas autoridades oficiais – a polícia de fronteira – Serviço Estrangeiro de Fronteiras (SEF), onde irá ser sujeito a uma entrevista crucial, uma vez que é perante a “performance” retórica e corporal apresentada pelo requerente de asilo numa primeira e fundamental escuta de narrativa de trauma, que lhe irá ser, ou não, atribuído o estatuto de refugiado ou outra forma subsidiária de protecção (ex. protecção humanitária). Nesta entrevista estão presentes, o agente da autoridade e um jurista do CPR. Apesar das diferenças culturais e sociais entre o requerente de asilo e o agente da autoridade, e da situação traumática em que o primeiro se encontra, frequentemente recém-chegado de um ambiente de terror e exploração (a própria viagem de fuga dos países de origem, está por vezes, sujeita a agressões sexuais perpetradas a troco de alimentos, mas também roubos e fome), não estão presentes mediadores, antropólogos, psicólogos. A única ferramenta que o requerente de asilo possui é a performance do seu próprio corpo, as “narrativas da sua memória”. O modo como conta a sua história, a forma como diz tudo com pormenores ou, por outro lado, exibe silêncios, a intensidade do olhar ou a fragilidade e submissão com que encara o agente da autoridade, as referências que oferece do seu país, a postura do corpo na cadeira, a capacidade de chorar ou, pelo contrário, reprimir emoções, toda a subjectividade contida neste acto, é o verdadeiro passaporte para quem não tem (ou não quer ter) outras formas de provar a sua identidade numa sociedade em que o papel, os documentos, a imagem do eu, substitui a própria identidade física do sujeito.
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“Um acto de identificação implica que a coisa de que se fala seja situada numa categoria”. Esta afirmação de Lévi-Strauss (1992, p. 21), adquire particular significação neste contexto europeu, em que o que se pretende incluir numa categoria, é um sujeito que representa, na perspectiva das autoridades, uma potencial ameaça para a suposta segurança interna. Seja refugiado ou imigrante, é sempre este sujeito que passa a ser sujeito a escrutínio, por não pertencer a uma cidadania nacional reconhecida, localizada e integrada nos supostos “valores ocidentais”. No entanto, esta necessidade de identificação estende-se para lá da esfera securitária. Por vezes, são instituições como o Centro de Saúde ou o Hospital que exigem do sujeito a assunção de uma identificação de nacionalidade que não a sua (por vezes não registada no sistema informático) para o poderem considerar inscrito no sistema. É igualmente no cenário da entrevista decisiva com o agente do SEF que o requerente de asilo possui nas suas mãos a possibilidade de recriar uma identidade. Sabemos que a identidade é um processo continuamente em construção que se vai criando e recriando em função do contexto social, histórico, cultural, resultando de uma negociação com os outros (Goffman 1963). As memórias de sofrimento e tortura a que a maior parte dos refugiados estão sujeitos, condicionam a sua visão retrospectiva do passado. Não necessariamente de uma forma patológica resultante de personalidades múltiplas, mas como necessidade de repetição continua de um passado (para si próprio e continuamente para os outros) que deriva, em parte, de uma reconstituição imaginária de uma memória que devolve ao refugiado o sentido da sua existência. Perante a exigência das autoridades de apresentação de uma história credível, o requerente de asilo recria uma imagem possível a partir de papéis múltiplos e por vezes socialmente aprendidos, com companheiros, vítimas de contextos de violência e provenientes de origens nacionais semelhantes (existem, por vezes, movimentos aprendidos, respostas que se reproduzem, contactos e conselhos facilitados pela comunicação na internet). Como referem Venna Das e Arthur Kleinman, na introdução do seu livro Violence and
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Subjectivity (2000): In either case it becomes necessary to consider how subjectivity – the felt interior experience of the person that includes his or her positions in a field of a relational power – is produced through the experience of violence and the manner in which global flows involving images, capital, and people became en tangled with local logics in identity formation. No entanto, a recolha da história do requerente de asilo, por parte das instituições portuguesas, não termina no momento da primeira entrevista à entrada da fronteira portuguesa. Ela vai estar continuamente presente a cada passo da suposta tentativa de integração dos refugiados em Portugal, quer na entrevista para atribuição de subsídio por parte da Segurança Social ou Santa Casa da Misericórdia, quer nas repetidas e frequentemente infrutíferas entrevistas para obtenção de emprego, quer ainda para tratar aspectos jurídicos relativos ao seu estatuto de permanência em Portugal, ou também para a remota possibilidade de ingresso numa escola pública. Contar a sua história torna-se assim um “ritual de promessa de integração”, mais do que um “ritual de passagem” para a sociedade portuguesa, a qual nem sempre está isenta de uma certa curiosidade mórbida por parte de quem a solicita insistentemente, sem provas de vantagens sociais, e muito menos terapêuticas, para o próprio. Referindo Didier Fassin, num artigo publicado na revista Ethos (2007): On the side of state agencies, it implies evaluating the extent to which observing the psychological traces of violence shakes the judgment practices of the bureaucrats charged with deciding what to do about each asylum seeker (Herzfeld 1992). In other words, we want to analyze how much of the rhetoric translates into practice. Escutar a história do refugiado, ou “a exploração do seu passado” tem, também segundo Fassin, duas funções: (a) terapêutica – porque pode conduzir ao tratamento psicológico (o que raramente se aplica ao caso de Portugal), e (b) institucional – porque permite que uma história seja validada pelos trabalhadores sociais. O corpo e a mente assumem
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assim uma importância vital neste processo. No entanto, para alguns refugiados, esta descontextualizada e repetida narrativa perante as instituições – em particular as empresas empregadoras – nem sempre é vista como algo de positivo, sendo antes considerada como uma invasão da sua privacidade por alguém que não tem nada para lhes oferecer em troca da narrativa do seu sofrimento. Voltando um pouco atrás, regressamos à importância dos “locais de escuta” ou “escuta terapêutica” na antropologia médica e na psiquiatria transcultural. Didier Fassin (2004) critica o modo abusivo com que, por exemplo, no contexto francês, desde a década de 1990, se “psicologiza” o sofrimento dos desempregados, dos adolescentes-“problema”, dos imigrantes indocumentados e dos sem-abrigo, entre outros. O Estado justificou a intervenção do poder público e privado através da criação de “locais de escuta” que se multiplicaram por aquele país e que, segundo Fassin, reflectem uma política que associa e relaciona pobreza e sofrimento, e cuja proposta de acção não se encontra, nem no âmbito social nem da psiquiatria, mas na complementaridade destas duas esferas. Fassin critica a ausência de envolvimento de especialistas na área, na medida em que se recrutam para esta tarefa quaisquer profissionais que possam vir a desenvolver apenas empatia ou afecto, relativamente ao público-alvo destas políticas, sem nenhuma formação subjacente. A ausência de profissionais adequados, não só prejudica directamente os envolvidos, como trata as desordens sociais de forma desadequada e sem fundamentação teórica, esvaziando qualquer reivindicação de justiça. Fassin adverte finalmente para os problemas destas acções de escuta que, na maior parte das vezes, se aproximam muito de um trabalho de animação lúdica, apresentada como terapêutica e pacificadora, sem espaço para a reivindicação para a denúncia de violências institucionais, ou sequer para a busca de medidas mais eficazes tanto na procura de justiça social, como na procura de respostas terapêuticas ou científicas.
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Por outro lado, e tal como referimos anteriormente, o ponto de vista de alguma psiquiatria transcultural, nomeadamente de Richard Mollica no Harvard Program in Refugee Trauma, é a de que a escuta da “história do trauma” feita a partir da contextualização cultural e simbólica da pessoa, é uma das metodologias mais importantes usadas pelos clínicos (médicos generalistas, psicólogos, psiquiatras, terapeutas), para a garantia da eficácia do tratamento do sofrimento mental dos refugiados e requerentes de asilo, sobreviventes de violência, humilhação e tortura. Não descorando a importância da “empatia” entre clínicos ou terapeutas e refugiados, considerando-a até um dos elementos fundamentais para a obtenção da cura – a par da importância da crença numa religião ou até da resiliência – Mollica atribui uma importância fundamental à escuta terapêutica e à história do trauma, proveniente do trabalho de campo e da investigação científica, como veremos mais adiante.
USOS E SIGNIFICADOS DOS CONCEITOS: “SOBREVIVÊNCIA”, “TRAUMA” E “HISTÓRIA DO TRAUMA” O conceito de “sobrevivência” a que nos referimos em linhas anteriores, necessita ser aprofundado: Sobreviver significa, nestes casos, escapar com vida, conseguir livrar o corpo de uma morte vaticinada, ser o herói que resistiu ao caos. Contudo, na maioria dos casos testemunhados, continuam visíveis as marcas da tortura, nos relevos das cicatrizes, no corpo deformado pelas marcas do confinamento durante demasiado tempo, num buraco que não possuía sequer as dimensões mínimas que permitissem à pessoa erguer-se verticalmente, ou estender-se em posição horizontal, e que dia após dia ali permanecem, para lembrar ao próprio os momentos limite por que passou e que fazem agora parte indelével da geografia da próprio corpo, manifesta através de dor física e das cicatrizes por ela deixada.
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Mas, por outro lado, sobreviver também implica conservar permanentemente na memória os momentos do perigo experienciado. É a esta memória que assalta os dias e as noites, que filtra a realidade agora outra, que provoca o choro e a aflição, que coloca o corpo em posição de constante vigília e que tolhe a possibilidade de preparar um outro futuro longe do perigo, que chamamos memória traumática. Não sendo este o objectivo específico deste artigo, apresentamos aqui de forma breve, o conceito, o qual está normalmente associado a uma categoria divulgada pela psiquiatria norte-americana que recorreu, inicialmente, a avaliações psiquiátricas a militares combatentes na II guerra mundial, definidas como “neuroses de guerra” e, posteriormente, a vítimas da guerra do Vietname, as quais, devido às suas características comportamentais, foram definidas e catalogadas pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) na DSM III18 em 1980, como “PTSD” (Post Traumatic Syndrome Disorders). Este conceito, alvo de grande controvérsia, que contrapõem em particular psiquiatras e antropólogos, tem sido adaptado largamente pela psiquiatria transcultural norte-americana. O conceito de PTSD não está isento de alguns reparos feitos pelos próprios psiquiatras, nomeadamente, pelo “Harvard Program in Refugee Trauma”. Mollica (2008-2009) propõe que se olhe para o prisma da PTSD como algo que teve um passado histórico, que começou por ser criado por perpetradores para perpetradores (médicos psiquiatras norte americanos para tratar militares norte-americanos durante a guerra do Vietname), mas que, apesar de tudo, é um 18O primeiro Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) foi publicado
pela “American Psychiatric Association” (APA) em 1952. Nele são apresentados vários diagnósticos para as doenças mentais. Passou a constituir uma ferramenta de trabalho inicialmente para todos os psiquiatras norte-americanos, espalhando-se depois por todo o mundo ocidental. O DSM é também usado por clínicos, investigadores, companhias farmacêuticas, companhias de seguros, políticos, entre outros. Actualmente, e apesar da controvérsia que sempre suscitou, não só entres os próprios psiquiatras, como entre outros cientistas sociais, está já em preparação a V edição que inclui um veque mais vasto de “desordens mentais”.
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instrumento que poderá ter vantagens no diagnóstico de vítimas de trauma no presente, em diversos contextos, desde que esteja salvaguardada a importância das narrativas e interpretações culturais para os conceitos de sofrimento e tortura, e a forma como cada comunidade lida na prática, e também ao nível simbólico, com a noção de trauma, reconhecendo que existem grupos culturais que não possuem sequer este conceito. Paralelamente, é necessário observar igualmente o contexto sociopolítico em que cada refugiado se encontra, de modo a ampliar a rede de suporte social de que ele irá eventualmente necessitar. Contudo, para além da anterior definição, por vezes discutível, de “trauma” ou de “doença de síndrome pós-traumático”, interessa-nos mais, do ponto de vista da antropologia, referir a importância da “história do trauma” contida nas narrativas dos refugiados em contexto das entrevistas em profundidade levadas a cabo no levantamento etnográfico. A definição de “trauma story” é ainda de acordo com Richard Mollica (2006), a seguinte: The trauma story is a personal narrative told in the person’s own words about the traumatic life events they have experienced and the impact of these events on their social, physical, and emotional well-being. It is not someone else’s interpretation of events, although it may contain observations on the reactions of family members and the local community… Nesta acepção, a história do trauma apresenta os seguintes elementos constitutivos: narrativa factual dos eventos; significado cultural de trauma; revelações da experiência do trauma; relacionamento entre o narrador e aquele que escuta. Este último elemento, passa a ser o ponto fundamental, a partir do qual irá depender o sucesso terapêutico, dependendo este de três importantes factores: a sensibilidade cultural do terapeuta, a empatia estabelecida entre o narrador e aquele que escuta e a consciência do entorno sociopolítico e institucional, em que ambos se situam. O Antropólogo Allan Young (1995) debruça-se em profundidade sobre os complexos contornos da memória e da memória traumática. Esta, clinicamente considerada até 1950, um fenómeno marginal e
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heterogéneo, foi posteriormente transformada pela Associação Americana de Psiquiatria (AAP) num sistema classificatório obrigatório19 que passaria a constituir a grelha de avaliação da desordem do stress pós-traumático (PTSD)20, tal como já anteriormente referido. Young, alerta-nos também para a importância de se considerar a memória como algo que nos molda o sentido de ser pessoa, sendo que simultaneamente, este mesmo sentido ou auto-percepção, é um produto da nossa própria concepção de “memória” que depende daquilo que em determinado contexto de tempo ou lugar é valorizado como tal. Algumas destas concepções têm-se modificado ao longo da história e em diversos contextos culturais, tal como as práticas através das quais as memórias são recuperadas, interpretadas e narradas. Vários autores referem que, a PTSD é um produto histórico com pretensões nosológicas ou descritivas, que surgiu da necessidade de tratar o sofrimento interiorizado pelos militares americanos durante a guerra do Vietname e que tem acarretado como consequência, enormes vantagens financeiras para a indústria farmacológica que produz os medicamentos que supostamente apaziguam os sintomas a ela associados. Menciona ainda Young: (…) This general accepted picture of PTSD, and the traumatic memory that underlies it, is mistaken. The disorder is not timeless, nor does it possess an intrinsic unity. Rather it is glued together by the practices, technologies, and narratives with wich it is diagnosed, studied, trated, and represented, and by the various interests, institutions, and moral arguments that mobilized these efforts and resources (…) (Young 1995). Uma das principais recomendações de Mollica (2006) na utilização das histórias de trauma enquanto elemento fundamental para o apaziguamento do sofrimento consiste na sintonia cultural, ou seja, na atenção dada às diversidades culturais, uma vez que as noções de trauma, sofrimento ou doença, e respectivas causas, possuem 19 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM III). 20 A PTSD: Post-Traumatic Stress Disorder, foi adoptada pela AAP como parte integrante
da sua nosologia oficial, em 1980.
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significados diversos de acordo com os contextos, não devendo portanto existir uma tradução literal das narrativas, sob pena de se distorcer o diagnóstico conducente ao tratamento terapêutico.
FACTORES SUBJACENTES À INTERPRETAÇÃO DO TRAUMA O trauma exige uma constante redefinição dos limites do sentido. Designar uma experiência como traumática não é ficar aquém ou além da história numa sujeição ao absurdo ou ao transcendente de uma natureza humana cujo perfil nos escapa. Trata-se de uma maneira de contornar a ameaça da intransitividade que parece pairar em tudo o que se situa nas fronteiras do que pode ser dito (Quintais, 2005/2006). Compreender o trauma exige pois que consideremos a interacção de processos em diferentes níveis de tempo. A complexidade destas interacções, e dos esforços permanentes dos indivíduos para se colocarem a si próprios de maneira a que sejam socialmente valorizados, resulta em muitas narrativas por vezes antagónicas. Posicionarem-se no papel de vítimas perante as instituições de saúde, omitindo o papel de perpetradores quando por vezes ele também existe (ainda que este lado possa ter igualmente consequências traumáticas), revela a decisão de privilegiar apenas uma narrativa – a versão da história com a qual conseguem lidar – e reflecte valores e interesses que podem ser explicados num contexto social determinado, como é o de uma sociedade democrática. Segundo Gregory J. Quirk, Mohammed Milad, Edwin Santini, e Lelimer Leblón (Kirmayer 2007), a maior parte das pessoas que experienciaram um trauma não desenvolvem PTSD. Isto significa que a grande maioria das pessoas são altamente resilientes face ao trauma, possuindo inclusive, como refere Mollica (2006), a capacidade de se curarem a si próprios através daquilo que ele designa por power of self
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healing, recorrendo a actividades como a prática religiosa e espiritual e o altruísmo, por exemplo. Salvaguardando a ausência de avaliação psicológica efectiva de alguns refugiados entrevistados, mas atendendo à sua história de vida / história de trauma no passado, e o actual percurso já em Portugal, podemos confirmar sem grande margem de erro que efectivamente, existem casos de salutar gestão dos sentimentos, atitudes e vivências do quotidiano que denotam a capacidade para self healing. É de salientar contudo que estes casos estão na sua maioria relacionados com duas situações: ou a existência de um núcleo familiar estável e o início de um percurso profissional satisfatório, ou ainda a existência de um suporte afectivo (família ou rede de apoio que a substitui). Em ambos os casos, existe por vezes, um certo evitamento em relação ao convívio com outros refugiados, como se a presença destes, trouxesse à memória o trauma passado. Também por outro lado, e relativamente aos primeiros tempos de permanência no Centro de Acolhimento de Refugiados, poderão ser levantadas questões relacionadas com a identidade: para além da partilha do sofrimento, que outras partilhas se poderão dar, num contexto em que as diferenças culturais, sociais, económicas ou religiosas chegam a ser tão díspares?21 Outro elemento fundamental é a confiança ou, dito por outras palavras, a empatia desenvolvida entre o paciente e o terapeuta. Este aspecto não pode ser desvalorizado, na medida em que existe uma relação biunívoca e reflexiva entre um e outro sujeito, concorrendo ambos para a eficácia da cura. O enquadramento biológico, sociocultural, político e religioso, são igualmente considerados como fazendo parte integrante do processo, constituindo o cenário onde o sofrimento se revela e a cura se deseja. 21 Alerto para o facto de que a continuação da investigação sobre esta matéria, poderá
futuramente trazer novos dados que permitam esclarecer melhor as ligações quase confidenciais que colocam em relação os refugiados com os requerentes de asilo residentes no CAR. Contudo pode-se afirmar que grande parte destas relações subsistem ou pela partilha de histórias de vida semelhantes no mesmo país de origem, ou com maior relevância, pela classe de idade (jovens e adolescentes).
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Autores como Arthur Kleinman (Kleinman et al. 1994), referem-se ao sofrimento da seguinte forma: “o sofrimento, é o resultado de um processo de resistência (rotinizado ou catastrófico) no fluxo da existência. É o lado negro da existência com as suas consequências morais ou sintomáticas...”22 Também Veena Das (2001), afirma que, muitos dos que encaram um sofrimento profundo, experienciam um mundo caótico e aleatório. O processo que leva a suportar um sentimento de perda quotidiana, as ameaças e a brutalidade das privações, passam a constituir experiências marcadas por um sentimento de terror, desolação e alienação. Silove, manifesta igualmente a preocupação relativa ao uso excessivo da abordagem focada na PTSD para a avaliação do trauma em refugiados. Segundo ele, numa perspectiva transcultural, têm-se vindo a apresentar alguns questionamentos sobre a validade de aplicação do “modelo ocidental do trauma” (PTSD) nalgumas culturas e sociedades onde prevalecem os abusos políticos (Bracken et al. 1995; Simpson 1993; Summerfield 1997). As críticas referem que a preocupação ocidental com a PTSD pode reflectir uma excessiva “medicalização” aplicada a angústias e sofrimentos compreensíveis. Uma posição alternativa, afirma que a PTSD pode não cobrir a complexidade das respostas psicológicas que surgem das graves violações aos direitos humanos (Herman 1993; Silove 1996). Os progressos neste campo de pesquisa requerem estudos ilustrativos adicionais, que façam uso de modelos conceptuais mais alargados, os quais possam fornecer mais dados a partir do campo. Existem igualmente vulnerabilidades e factores de protecção que podem, ou não, influenciar a resposta individual ao trauma. Por exemplo, um historial de distúrbios mentais anteriores parece ser, segundo alguns psiquiatras, factor de risco de futuras sequelas psiquiátricas em refugiados. Por outro lado, a fé religiosa, o compromisso com causas políticas, ou a preparação psicológica para a tortura (no caso de 22 Tradução livre.
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militantes políticos clandestinos a operar em regimes opressivos), são factores que sugerem providenciar alguma protecção contra consequências psicológicas adversas (Allden et al. 1996; Basoglu et al. 1996, 1997; Holtz 1998; Shrestha et al. 1998; Silove 1996). Alguns factores culturais em comunidades não ocidentais, podem igualmente fornecer protecção parcial contra o sofrimento mental. Tal é o caso de diversos contextos específicos moçambicanos (ex: planalto da Gorongoza), onde em situações de pós-guerra, o sofrimento de um membro da comunidade é resolvido por toda a comunidade através do envolvimento desta, em rituais de cura colectivos. A cura é entendida como o restabelecimento da harmonia social da pessoa. Também é necessário referir que segundo a exegese do sofrimento local, nada acontece por acaso e a dicotomia entre corpo e mente não existe sequer (V. Igreja 2008). Num contexto pós-traumático, a perda das redes sociais de apoio, bem como a separação dos membros da família, são factores marcantes que podem contribuir para a perpetuação de sintomas de sofrimento mental, particularmente de depressão, alheamento e tristeza. A idade, a desadaptação linguística, a adversidade social e económica e o receio de repatriamento, podem ser, ainda segundo Silove, factores que contribuem negativamente para a recuperação do sofrimento mental e outras formas de stress psicossocial em refugiados e requerentes de asilo. Entre refugiados, existe igualmente evidência da prevalência de outros problemas psiquiátricos, tais como as desordens depressivas, as quais podem ser mais comuns do que os definidos como pertencentes a um diagnóstico de PTSD (Mollica et al. 1993, p. 203). São ainda comuns os registos dos seguintes sintomas entre refugiados e requerentes de asilo: falta de motivação, instabilidade afectiva, enfraquecimento cognitivo, alterações de comportamento, somatização, momentos de fúria, culpa e vergonha, dificuldade de relacionamentos interpessoais, e uma tendência geral para a revitimização. Estas características possuem eco empírico entre os refugiados e
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requerentes de asilo entrevistados, sendo a falta de concentração e a dificuldade de memorização de tarefas correntes, alguns dos lamentos mais referidos, mesmo no caso de refugiados jovens. Paralelamente, alterações de comportamento que segundo os técnicos que prestam serviço de apoio23 aos refugiados e requerentes de asilo, oscilam entre a docilidade excessiva e a agressividade, podem ajudar a compreender o sofrimento provocado pelas situações extremas a que anteriormente foram sujeitos bem como a decepção por não conseguirem comunicar com os técnicos sobre as suas verdadeiras necessidades e preocupações. Será contudo necessário analisar estas demonstrações de sofrimento, não como manifestações de carácter patológico que encontram resolução terapêutica na eventual administração de fármacos, mas como a reacção natural a estímulos negativos exógenos, proveniente de desajustamentos sociais e desadaptação a um contexto ecológico do qual não logram reconhecer e interpretar as lógicas e os sinais. Será este ambiente social e institucional sentido como hostil que constitui o lugar a partir do qual as manifestações de sofrimento mental se revelam. A tortura física e mental, representa um exemplo extremo da violação dos direitos humanos, durante a qual o perpetrador ameaça violenta e deliberadamente a vítima, e a desumaniza, humilha e degrada. A traição e a denúncia, obrigam as vítimas a fazer escolhas forçadas e impossíveis, entre alternativas igualmente repreensíveis. São frequentes os casos de crianças-soldado que foram obrigadas a escolher entre matar um familiar ou sobreviver. O que acontece posteriormente – nomeadamente a assistência jurídica desadequada ou a falta de apoio social moldado às necessidades e idiossincrasias pessoais – contribui para a exacerbação do sentimento de injustiça, que pode conduzir a incompreendidos comportamentos agressivos. Por outro lado, estes comportamentos não devem também ser abordados numa perspectiva patologizadora, mas de reivindicação sociopolítica. Encontra-se aqui subjacente o direito à indignação perante a incompreensão dos 23 (CPR; SCLL; SS).
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conteúdos herméticos das normas e obrigações relacionadas por exemplo, com indeferimentos de solicitações de apoio do Rendimento Social de Inserção (já referidas anteriormente), transmitidas em cartas institucionais dirigidas aos refugiados, as quais, de forma sistemática, não contemplam as barreiras linguísticas e culturais, entraves à compreensão dos seus conteúdos e, consequentemente, à inserção dos refugiados na sociedade portuguesa.
CONSIDERAÇÕES PERSPECTIVAS
FINAIS:
OUTRAS
ABORDAGENS
E
Fica ainda em aberto uma outra perspectiva que não deve ser descurada: a da importância da religião e da espiritualidade no processo de cura de vítimas de trauma. Na recolha etnográfica das narrativas de trauma, bem como nas abordagens terapêuticas dos refugiados, explorar as suas crenças e práticas religiosas não significa que partilhemos ou não dessas crenças. Poderemos usar o nosso entendimento ou conhecimento de práticas religiosas no sentido de facilitar a obtenção da cura, daqueles para quem o factor religioso possui um significado holístico. Neste domínio, como em tantos outros, do ponto de vista de um trabalho de recolha etnográfica em profundidade, muito caminho está ainda por percorrer. Para finalizar, uma abordagem que coloque o eixo fulcral nas história de vida / histórias do trauma, e que aqui propusemos, advém de um modelo médico não existente ainda em Portugal e que incorpora para além da abordagem antropológica, a terapêutica, a investigação científica, a formação, a valorização dos recursos (empowerment) e a identidade recriada do próprio refugiado e sua incorporação, como um dos elementos fundamentais do tratamento culturalmente sensível. Também aqui, muita coisa está por fazer em Portugal, no domínio da pesquisa científica e das respostas terapêuticas. Esse trajecto passa
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enfim, pela transformação das histórias de trauma em narrativas de novas histórias que possam ser contadas não através da manifestação de sentimentos de vergonha e humilhação, mas de dignidade e orgulho, através de um caminho feito de vontades e escolhas deliberadas.
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Capítulo 5
Outras vidas, outras histórias: A consciência cultural na narrativa terapêutica com migrantes
Ana Mourão*
*
Bolseira de Investigação (BI), no âmbito do Projecto “Políticas da saúde e práticas terapêuticas: Os percursos de cura dos migrantes na área da Grande Lisboa” (Investigadora Principal: Chiara Pussetti), acolhido pelo CEAS / ISCTE, e financiado pela FCT-MCTES
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INTRODUÇÃO A abordagem das ciências humanas à experiência da “doença”1 – principalmente a doença grave ou crónica – tem vindo a concebê-la com alguma recorrência enquanto ruptura existencial ou assalto ontológico 2 . Tal ameaça pode ser sumariamente descrita como o soçobrar dos pressupostos básicos que o indivíduo mantinha sobre a identidade, o mundo, a vida e o seu próprio lugar neles previamente à doença. O carácter “existencial” desta experiência situa-se no seio das múltiplas dimensões de perda que a doença acarreta para o indivíduo. Com efeito, o doente crónico não experiencia apenas um sofrimento físico. A experiência do mal-estar afirma-se e assume importância para o sujeito nos seus diversos sentidos: físico, cultural, pessoal e social (Kleinman 1980: 364, 1988: 3-55). Perdas de eficácia e controlo (significativamente sobre o corpo); perdas de sentido e de certezas, entre as quais da noção de continuidade temporal e das expectativas de futuro antes tomadas como garantidas; perdas na autonomia, capacidade de acção e funcionamento produtivos na 1 Utilizo a expressão no sentido de illness, seguindo a distinção clássica entre disease, a
entidade patológica objectiva, biologicamente fundada, que é o foco da biomedicina, e illness, a experiência subjectiva e pessoal do mal-estar (Kleinman 1980: 72-73). 2 E.g., Hunt 2000: 88-90; Crossley 1999: 96; Sakalys 2003: 229-230; Crossley 2000: 539.
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sociedade; perdas no domínio dos relacionamentos sociais – estão entre as baixas causadas pela doença crónica (Charmaz 1999: 366; Crossley 1999: 96; Sakalys 2003: 229). A metáfora do “naufrágio” (Frank 1995: 54-55) é a esse respeito elucidativa: o indivíduo enfrenta subitamente uma situação desconhecida e liminar, que surge no (e pelo) rompimento abrupto com o mundo familiar até aí tomado como certo. E por entre as múltiplas rupturas experienciadas, o “naufrágio” da doença crónica gera, significativamente, uma ameaça existencial que é na sua essência biográfica e identitária3.
RUPTURA BIOGRÁFICA CURSO BIOGRÁFICO E IDENTIDADE A biografia é concebida como percurso continuamente tecido e recomposto pelo indivíduo a partir da sua perspectiva e preocupações presentes4, estendendo-se daí em dois sentidos: retrospectivamente, operando uma recomposição selectiva dos eventos recordados; e prospectivamente, fazendo conduzir esses eventos a planos e projectos futuros antecipados. Com efeito, o tempo em que sucedem os eventos é sempre para os indivíduos um tempo “existencial”, ancorado em preocupações subjectivas, e inseparável de um “esperar” (pelo futuro) e de um “reter” (o passado) (Ricoeur 1981: 169). A reflexão biográfica é marcada pela primazia da “memória”: trata-se de um processo em grande medida de recordação (recollective) (Freeman 1993: 29). Porém a memória autobiográfica não é meramente 3 Como sublinha Charmaz: “suffering poses existential problems of identity and
continuity of the self” (1999: 364). 4 Ver por exemplo Ochs e Capps 1996: 25; Baumeister e Newman 1994; Ricoeur 1981:
passim.
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reprodutiva, constituindo um acto em si mesmo hermenêutico-reconstrutivo, interpretativo e criativo, que não se cinge a relatar os eventos passados mas antes lhes atribui um sentido e uma forma, avaliando o seu significado e importância, e estabelecendo entre os eventos ligações relevantes – inevitavelmente guiadas pelo ponto de vista presente do indivíduo (Garro 2000: 70-73; Freeman 1993: 29, 54). Hacking chega mesmo a falar de uma dimensão de “indeterminação no passado” – na medida em que as acções humanas intencionais são acções sempre “sujeitas a uma descrição” (under a description), ela própria sensível ao decorrer do tempo e à mudança dos horizontes conceptuais e interpretativos do sujeito (cf. Hacking 1995: 234 et seq.). Este sentido de que são investidos retrospectivamente os eventos recompõe-nos reflexivamente numa trajectória conexa que conduz causalmente do passado lembrado ao presente vivido, num percurso que aparece como lógico e natural: nesta concepção da história de vida, a “ordem cronológica” dos eventos coincide com uma “ordem lógica” da sequência (Bourdieu 1997: 53-54). Os critérios selectivos e interpretativos – relacionados com as prioridades, interesses e perspectivas do sujeito5 – que orientam a recordação e a composição deste nexo sequencial dotam-no de uma unidade e coerência fundamentais, animadas pela “intenção” ou finalidade intrínsecas a um “projecto” comum: desde o início do relato, com a sua causa primeira, até ao final, no seu cumprimento teleológico (Bourdieu 1997)com contributo das expectativas, planos e projectos alimentados pelo indivíduo sobre o futuro (Garro 2000: 70; Ochs e Capps 1996: 24). De acordo com uma perspectiva “narrativa” que se tem tornado dominante nas ciências humanas nas últimas décadas6, é sobre esta continuidade biográfica que se alicerçam a integridade percebida do “Eu” (self) e a noção individual de identidade. 5 Cf. Baumeister e Newman 1994; Crossley 2000: 532. 6 Cf. Riessman e Quinney 2005; Cardoso, Camargo e Llerena 2002; Roberts 2000;
Crossley 2000; Mattingly e Garro 2000: 4-5, 7-9; Murray 1997; Gonçalves 1995: 139.
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A estabilidade postulada do “Eu” enquanto entidade una – face à experiência da sua variabilidade ao longo do tempo e do espaço, à “rapsódia das sensações singulares” que o sujeito experiencia (Bourdieu 1997: 55) – assenta sobre a noção da sua existência contínua ao longo do tempo. Assumindo o truísmo de que o fluxo da mudança é real e inevitável, alcançar alguma forma de “imobilização” do tempo torna-se, segundo argumenta Chandler (2000: 210 et seq.), condição de existência para qualquer conceito ou discurso operacional sobre o “Eu”, independentemente da sua época ou cultura (Ibid.: 226-227). Este autor fala-nos do “problema da continuidade do ‘Eu’” ou “paradoxo da persistência pessoal” face à mudança, descrevendo os dois tipos de solução que o pensamento filosófico Ocidental encontrou para esta questão ao longo da história. Designadamente, à tradicional visão “essencialista” da identidade7, fundamentada sobre a noção de uma qualquer substância intrínseca ao sujeito e perene face à mudança (por exemplo a “alma”), reagiu mais tarde uma consciência pós-modernista 8 da natureza contingente, transitória e discursiva do sujeito (Ibid.; Crossley 2000: 528-530). O autor argumenta, com base em alguma investigação transcultural9, que neste aspecto a “ontogenia reproduz a filosofia”: as respostas encontradas pelos indivíduos de diferentes culturas enquadram-se basicamente em algum dos dois anteriores posicionamentos teóricos – soluções ‘de entidade’ ou ‘relacionais’ (Ibid.: 218-228). Rejeitando ambos os extremos como redutores – o essencialismo, assim como as correntes mais radicais “pós-estruturalistas” – vários autores 10 encontraram em perspectivas de cariz “narratológico”, 7 Herdeira da filosofia grega antiga e do racionalismo modernista. 8 Num espectro variado, com diferentes posições e graus de crítica e niilismo, como
descreve o autor (Ibid.: 213-215). 9 Nomeadamente a pesquisa que um grupo de investigadores (incluindo o autor) conduziu
no Canadá, sobre o modo como grupos de adolescentes de dois contextos socioculturais diferentes resolvem o paradoxo da identidade. 10 E.g., Chandler 2000; Elliott 2005: 123-125; Crossley 2000: 528-531.
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hermenêutico e interpretativo o equilíbrio temperado entre as duas posições radicais, capaz de providenciar uma resposta sensata para o referido paradoxo da identidade. Reforçando esta ideia, o autor chega a afirmar que o mérito do segundo tipo de perspectiva (hoje corrente nas próprias ciências humanas) é evidenciado “pelo facto de ser regularmente empregue, nalguma das suas variantes, por indivíduos de quase todas as variedades culturais imagináveis” (Chandler 2000: 215). Ricoeur terá sido um dos pensadores mais influentes sobre este tipo de concepção (Elliott 2005: 124-125). Na sua abordagem à problemática da “identidade”, o autor resolve o paradoxo distinguindo duas acepções diferentes que o termo pode tomar, e adoptando uma delas em detrimento da outra: a identidade é definida enquanto “permanência” no tempo, sem implicação de “mesmeidade” através dele (Ibid.) – destarte fundando o conceito de identidade, pela própria definição, sobre a condição da continuidade temporal. Como anteriormente referido, esta continuidade fundamental que possibilita falar em “Eu”11 não é dada, mas antes deve ser, face à transitoriedade da mudança, construída pelo sujeito. As abordagens narrativas e interpretativas alicerçam esta continuidade identitária nas conexões de “sentido” passíveis de serem percebidas e estabelecidas pelo sujeito entre os diferentes momentos da sua existência – passada, presente e futura – conferindo-lhe um carácter coerente e totalizador. Contudo, certas experiências extremas na vida do indivíduo podem comprometer tais possibilidades de conexão, pela sua natureza caótica, desarticulada e desprovida de sentido, porque alheia à lógica causal unificadora que organiza o curso biográfico. A doença crónica surge como uma dessas experiências. 11 Como salientam Ochs e Capps, a visão convencional da psicologia sobre o
desenvolvimento humano, assim como o uso de pronomes pessoais e outras formas de referência, implicam a existência de um “Eu” unificado (1996: 29).
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DESARTICULAÇÃO NA DOENÇA Como já referido, a continuidade biográfica sobre a qual se fundamenta, numa perspectiva narrativa, a integridade identitária, é tecida sobre e está dependente de uma compreensão do passado – reconstruído selectivamente pela memória – enquanto antecedente lógico do presente, conduzindo até ele, e deixando abertas possibilidades imaginadas de progressão futura. Neste percurso linear limpo e ordenado, a doença surge como uma interrupção (Frank 1995: 56), um intervalo de tempo em que o ritmo normal da vida é quebrado, e em que as estruturas e papéis sociais são subvertidos (Hunt 2000: 88). As palavras de Frank sumariam este efeito de ruptura sobre a continuidade do curso biográfico do indivíduo: “Disease interrupts a life, and illness then means living with perpetual interruption. […] The interruption that illness is, and the further interruptions that it brings, are disruptions of memory. [...] The memory that is disrupted is a coherent sense of life’s sequence [...]: the present is not what the past was supposed to lead to, and whatever future will follow this present is contingent.” (Frank 1995: 56, 58, 59)
Metaforizada na supracitada imagem do “naufrágio”, a experiência da doença acarreta para o sujeito uma série de perdas e desafios, relacionados com as suas concepções interligadas do corpo, da identidade e do mundo (Crossley 1999: 96). O que é ameaçado, para além das capacidades físicas específicas que a doença compromete, são as expectativas e pressupostos antes tomados como certos (Hunt 2000: 88), o lugar que o indivíduo antes ocupava na realidade tal como ele a compreendia: a sua “visão do mundo” (Weber, Rowling e Scanlon 2007: 945). A mudança severa (e frequentemente repentina) da situação – física, mental, social, afectiva – do sujeito, criando uma disjunção evidente entre o passado e o presente e minando o seu edifício de auto-construção identitária, força-o a um novo olhar e interpretação sobre os eventos vividos, conduzindo frequentemente a
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tentativas de rearticulação e reconstrução daquele lugar perdido – que procuram integrar a nova experiência no contexto global do curso de vida, criando conexões significativas que permitam restabelecer a continuidade quebrada (Kirmayer 2000: 154-155; Charmaz 1999: 365; Crossley 2000: 541). Contudo, como sublinha Kirmayer, a vivência da doença – marcada pela intrusão dos sintomas nas tentativas de verbalização do paciente – apresenta-se à consciência muitas vezes sob uma forma fragmentada, “não-narrativizada” e “caótica”, que a torna “incompreensível” e pode impossibilitar a sua expressão articulada (Kirmayer op. cit: 153, 169, 171). O autor sugere a este respeito uma atenção à dimensão da metáfora no contexto clínico, enquanto elemento pré-narrativo, fragmento de linguagem poética capaz de exprimir os sentidos múltiplos, incompletos, tentativos e potenciais que a vivência da doença pode evocar no sujeito, e que não são ainda articuláveis na forma de um discurso uno e coerente (Ibid.: 155-157, 171, 175). Esta situação de ‘desarticulação’ corresponderá à “narrativa de caos” descrita por Frank (1995: 97-114), que se trata na realidade, como explica o autor, de uma “anti-narrativa”, uma vez que: “those who are truly living the chaos cannot tell in words” (Ibid.: 98). Um cenário mental desse modo dominado pela ausência de controlo sentido, e pelo gorar das expectativas de ordem temporal e causal entre os eventos, traduz uma incapacidade do sujeito em adquirir um ponto de vista exterior e reflexivo sobre a própria experiência (Ibid.: 97-100). Neste contexto torna-se pertinente a atenção de Kleinman às operações comunicativas de “designação” e explicação da doença enquanto uma das funções terapêuticas universais dos sistemas de cuidados de saúde (Kleinman 1981: 71). O autor refere a influência poderosa que a designação (label) e descrição têm sobre as sensações subjectivas do sujeito, na medida em que ajudam a interpretar a experiência do problema, dando-lhe uma forma específica e familiar – porque comummente retiradas do espectro de categorias culturalmente
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disponíveis ao sujeito. A designação “molda a qualidade da experiência”, atribuindo-lhe um determinado sentido e associando-a a dadas expectativas (culturais) de comportamento e sentimento (Ibid.: 76-77). Apesar da proposta teórica do autor colocar a tónica sobre a especificidade cultural da forma que toma este processo, a sua existência transcultural nos sistemas terapêuticos suporta o carácter fundamental que a articulação e atribuição verbal de sentido adquirem na experiência do sofrimento – tentativas que assumem frequentemente a forma de um esforço de revisão narrativo12. A situação da doença não é o único evento passível de gerar este tipo de ruptura existencial 13 e necessidade de rearticulação da memória. A este respeito, é possível encontrar descrições do processo de migração que sugerem paralelismos entre os dois tipos de experiência.
PROCESSO MIGRATÓRIO A vivência migratória pode acarretar, como a experiência da doença crónica, múltiplas perdas de referências culturais, afectivas, cognitivas e sociais, o que constitui uma causa significativa de sofrimento psicológico para os migrantes, e mesmo para os seus filhos – por entre diversos outros factores de ruptura decorrentes da migração (Sicot 2002: 6-7). Sayad (2004), relatando o caso de um emigrante argelino em França, descreve a condição estruturalmente “absurda” e “intolerável” do migrante, derivada da culpabilidade em relação ao “pecado original” da sua imigração: a ausência. Esta consciência é acompanhada de uma obsessão do indivíduo pelo “retorno ao passado”, ao mundo e à ordem antes conhecidos. 12 Cf. e.g., Porée 2002: 27-28; Mattingly e Garro 2000; Hunt 2000: 88-90; Charmaz 1999:
365; Frank 1995: 53 et seq. 13 O trauma é frequentemente referido, a par da doença crónica, como gerador deste tipo
de ruptura.
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Ahmed descreve implicações semelhantes para a experiência migratória, concebendo-a como um processo de “estranhamento” (estrangement) em relação ao mundo antes habitado como morada, produzindo uma ruptura temporal: [...] migration involves not only a spatial dislocation, but also a temporal dislocation: ‘the past’ becomes associated with a home that is impossible to inhabit, or be inhabited by, in the present. The question then of being at home or leaving home is always a question of memory, of the descontinuity between past and present (Ahmed 1999: 343). Tal situação paradoxal impele o indivíduo migrante a procurar continuamente reinvestir a sua experiência de sentido (embora isso nem sempre seja possível) sob pena da desordem irredutível intrínseca à sua condição poder comprometer a sua própria integridade psíquica (Sayad 2004: 137-143). Desta forma também na migração, como na doença crónica, a ruptura vivida toma um carácter existencial de descontinuidade biográfica (Lechner 2009: 175-178), hiato que traduz essencialmente uma “falha da memória” em conseguir verdadeiramente fazer sentido da nova situação – do novo espaço presente a habitar (Ahmed 1999). Desta forma, também a ruptura migratória exige e torna urgente um esforço de reconstrução de sentidos e rearticulação da nova vivência em palavras: “the stories of dislocation help to relocate” (Ibid.).
ABORDAGEM NARRATIVA NARRATIVA E IDENTIDADE A investigação sobre a narrativa nas ciências humanas tem assumido diversos pontos de vista e temas de enfoque (Riessman e Quinney 2005: 393). Esta diversidade acompanha uma multiplicidade
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de definições e terminologias relativas ao conceito de narrativa (Ibid.: 393-394; Mattingly e Garro 2000: 12-16). Numa revisão do trabalho sociológico publicado sobre a narrativa nas últimas décadas, Riessman e Quinney sistematizam os dois elementos que se têm mantido centrais e comuns às variadas definições do termo nesse universo, designadamente: a “sequência” e a “consequência” (Op. cit.: 394-395). Isto significa, em primeiro lugar, que a narrativa estrutura os eventos numa ordem sequencial, de acordo com um determinado critério de organização, geralmente temporal (sobretudo no Ocidente) – embora possa também ser espacial, temático ou episódico (Ibid.); e em segundo lugar, que a configuração do relato – a selecção dos eventos, as conexões estabelecidas entre eles, e a avaliação subjectiva implícita no relato – é guiada por um determinado propósito do narrador: nestes estudos sobre a narrativa, mais do que o conteúdo do texto, tornam-se relevantes o “como” e o “porquê” da narração (Ibid.). Este segundo elemento será o que diferencia a narrativa de uma mera sucessão cronológica, de acordo com Ricoeur (1981: 170-176). Com efeito, no termo “consequência” aplicado por Riessman e Quinney estão assim presentes as duas dimensões essenciais que para Ricoeur distinguem a narrativa da cronologia simples. As reflexões de Ricoeur sobre a natureza da experiência humana da temporalidade postulam uma “relação interna” (Porée 2002: 22) e “recíproca” (Ricoeur 1981: 165) entre tempo e narrativa14. Para o autor, a narrativa é a “estrutura de linguagem” onde se concretiza e exprime a “estrutura de existência” que é a temporalidade, o seu referente essencial (Ibid.). Graças a esta reciprocidade, a narrativa fornece à consciência individual o meio privilegiado para compreender e conceber a existência humana no tempo (Ricoeur apud Elliott 2005: 125). Mas o tempo narrativo não é para o autor o tempo da mera sequência. Distinguindo-os, Ricoeur nota por um lado o carácter 14 Este é precisamente o título da sua obra de três volumes consagrada ao tema, Temps et
Récit (respectivamente, de 1983, 1984 e 1985).
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“existencial” (e não abstracto) do tempo narrativo, fundado nas preocupações humanas presentes, e orientado pelo sofrimento e para a acção/intervenção do protagonista no mundo (Ricoeur 1981: 170-73; Baumeister e Newman 1994) – por outras palavras, o “porquê” que guia o relato. Por outro lado, estas motivações conduzem à organização da história de uma determinada maneira, construindo unidades significantes a partir dos eventos dispersos – o “como” que estrutura a narração. Para Ricoeur, neste sentido, o tempo da narrativa é também “dialético”, na medida em que combina ambas as dimensões “episódica” – composta de eventos sucessivos – e “configuracional” – que confere um “padrão” a esses eventos (Ricoeur 1981: 174-176). Esta última supera a simples sucessão de eventos ao agrupá-los em totalidades de sentido unificadas por um “tema”, “pensamento”, “mensagem” (point) ou “denominador” comuns (Ibid.: 175-176). Desta forma, enquanto recurso privilegiado para a compreensão humana da experiência temporal, a narrativa constitui-se simultaneamente como estrutura da organização desta experiência, ao estabelecer, através de relações de sentido, uma “unidade” no seio daquela multiplicidade vivencial. É precisamente essa unificação num todo significante que atribui ao relato o seu elemento de conclusão, conferindo-lhe um “sentido de finalidade”15 (de que depende, concomitantemente, o seu carácter totalizador) (Ibid.). É numa apreciação semelhante que a análise de White sobre a filosofia da história estabelece os critérios que distinguem a “história” propriamente dita – a única com uma componente de “narratividade” – dos “anais” e da “crónica” (White 1987: 4-25). À semelhança de Ricoeur16, o autor concebe a narrativa como superando a sequência cronológica na medida em que possui uma estrutura imanente e uma 15 Para uma crítica a este pressuposto de finalidade da narrativa no contexto da doença, ver
Wikan (2000: 215-217). 16 Cuja concepção filosófica da história, aliás, examina num capítulo posterior da mesma
obra (White 1987: 169-184).
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“ordem de sentido” (Ibid.: 5). Para White, o esforço narrativo é movido pelo propósito de estabelecer a continuidade, a coerência e o significado, preenchendo todos os vazios de tempo (ao contrário do que acontece nos anais) (Ibid.: 11). A descrição deste autor vai mais longe, referindo o carácter “moralizador” da narrativa (Ibid.: 14), que ao investir os eventos de um sentido que eles por si só (ou organizados sequencialmente) não possuem os transforma numa “totalidade” rematada (ao contrário da crónica) por uma conclusão (closure) (Ibid.: 16). Para White, a exigência narrativa de uma conclusão é em si a exigência de um “sentido moral”, que apresenta a realidade de forma ideal, tornando-a num objecto de desejo: “Insofar as historical stories can be completed, can be given narrative closure, can be shown to have a plot all along, they give to reality the odor of the ideal” (Ibid.: 21). A estrutura da narrativa expõe e propõe à audiência, de uma forma apelativa, a adesão a um determinado “universo moral” – aquele em cuja participação os eventos adquirem o seu sentido (Ibid.: 21-22). É isto que acontece também nas narrativas de doença e sofrimento, onde podem ser avançadas novas reivindicações e um novo estatuto moral pelo sujeito (Charmaz 1999: 372-374). Também a teoria da estrutura narrativa de Labov17 (apud Linde 1993: 69 et seq.; Elliott 2005: 42-46) assume a natureza moralizante como intrínseca à narrativa. O critério unificador da narrativa pessoal – a dimensão “configuracional” ou de “consequência” revista acima – revela (no seu carácter subjectivo e motivacional) uma afinidade fundamental com o elemento da “avaliação” definido por Labov. Segundo o modelo do autor, este material avaliativo – nas diversas formas linguísticas e paralinguísticas que toma – está omnipresente ao 17 O modelo de Labov prevê cinco partes essenciais na estrutura da narrativa: o “resumo”
inicial, seguido da “orientação” (descrição do contexto de tempo, espaço, personagens, etc.), das orações narrativas em si (a sucessão da acção passada, seguindo a ordem dos eventos), e da coda (que traz a narrativa de volta ao presente e indica o fim da acção). A quinta parte é a “avaliação”, que está disseminada ao longo e no seio de todas as outras partes (Linde 1993: 69 et seq.; Elliott 2005: 42-43).
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longo da narrativa e serve a função de comunicar à audiência a finalidade, relevância e valorização dos diferentes elementos do relato, guiando assim a forma como devem ser interpretados (Ibid.). Linde, na sua análise dos mecanismos de coerência nas histórias de vida, distingue dois tipos possíveis desta avaliação, correspondentes aos dois níveis de afirmação da coerência do relato. Por um lado, a avaliação sublinha o carácter “narrável” dos eventos, ou seja, a sua natureza significativa e relevante (por oposição a episódios banais ou ordinários, que não constituem boas histórias). Por outro lado, significativamente, a avaliação serve para frisar que os elementos narrados, sobretudo os relacionados com a personagem do narrador, estão de acordo com determinadas normas morais sociais (partilhadas com a audiência) – o que implica, no contexto das narrativas de vida, uma apresentação do “Eu” em termos valorizados e desejados (Linde 1993: 81 et seq.). Para Linde, esta reflexividade e avaliação moral sobre o “Eu” é apenas uma das três dimensões de criação da identidade (pessoal e social) pela linguagem na narrativa 18 , a primeira das quais é a continuidade temporal do “Eu” (Ibid.: 98-106) 19 . Esta dimensão constitui em si um pressuposto da narrativa. Segundo a autora, da “continuidade” temporal20 dos eventos – que retrata o passado como conectado de forma significativa ao presente – é inferida a “causalidade” da sequência (“post hoc ergo propter hoc”). Isto 18 Esta dimensão é estabelecida pela separação entre o narrador (exterior ao conteúdo do
relato) e o protagonista (Linde 1993: 120-122). 19 A autora refere-se também, a este respeito, à unicidade intersubjectiva do “Eu” no meio
social – simultaneamente distinto de, e em relação com, os outros. Esta dupla dimensão é estabelecida de diversas formas na narração, designadamente: no uso de pronomes pessoais, que são cambiáveis (shifters) consoante o referencial (Eu-Tu; Nós-Vós); na descrição de relações tecidas pelo narrador consigo e com os outros; na expressão de solidariedade e valores ou interesses comuns com outros; e no próprio acto relacional da narração (para uma audiência) (Linde 1993: 111-114). 20 Evidentemente entendida, à luz do exposto, não como mera sequência mas como
estruturada e investida de relevância (Linde 1993: 107).
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converte-a na forma mais básica de estabelecer a coerência do relato biográfico (Ibid.: 107-111), dupla exigência para o narrador: uma exigência social (que o comprova como um “membro competente” da sua cultura); e uma exigência pessoal – a de compreender a vida como dotada de sentido. Para Linde, esta segunda exigência de coerência torna-se visível precisamente quando surgem eventos (como a doença crónica) que não são passíveis de integração na história de vida, gerando desconforto e confusão até que o consigam ser (Ibid.: 14-17). Esta ideia é corroborada pela investigação dos psicólogos Baerger e McAdams (apud Elliott 2005: 48-50), que confirmam a existência de uma correlação entre a coerência dos relatos biográficos e o bem-estar psicológico do indivíduo.
ABORDAGEM TERAPÊUTICA Na resposta terapêutica ao desconforto existencial introduzido pela experiência da doença crónica, alguns autores sublinham a utilidade ou mesmo urgência de uma abordagem narrativa 21 . Efectivamente, são múltiplas as funções e benefícios terapêuticos reconhecidos à narrativa no contexto de experiências de sofrimento22. Este reconhecimento radica em diferentes tradições teóricas, das quais se destaca a psicanálise freudiana a par da psicologia e psicoterapias construtivistas contemporâneas. A escola mais “tradicional” (por entre as variadas orientações) da psicanálise (Murray 1997: 13) sustenta a premissa de que a causa do mal-estar psíquico que muitos adultos enfrentam se reporta a certas memórias de experiências adversas vividas na infância (Ibid.). Com 21 Cf. e.g., Sakalys 2003; Hunt 2000: 88-89; Crossley 2000: 541; Roberts 2000: 5 (na
abordagem específica à doença mental); Ochs e Capps 1996: 29; Frank 1995: 55; Freeman 1993: 114, 170-172. Para críticas a esta posição, ver as perspectivas dos autores em Mattingly e Garro 2000 – nomeadamente os artigos por Dreier, Wikan, e Kirmayer. 22 Para perspectivas críticas sobre esta posição, ver Kirmayer 2000; Murray 1997: 17.
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efeito, os escritos do próprio Freud advogam um enraizamento do significado do sintoma na experiência passada do cliente (Mattingly e Garro 2000: 6). Tais memórias geradoras de mal-estar são reprimidas para o inconsciente onde subsistem como fonte de sofrimento (Murray 1997: 13-14). Neste contexto, a tarefa do terapeuta será a de facilitar que essas recordações, persistindo sob a forma de “histórias pobremente organizadas”, fragmentadas e caóticas, emerjam à consciência e tomem uma configuração progressivamente mais concreta (Ibid.). O psicanalista, numa acepção freudiana, apresenta-se assim como um “mestre da tradição narrativa”, recuperando as associações, sonhos e memórias do cliente para as recompor e integrar num padrão coerente que lhes confere sentido (Mattingly e Garro 2000: 6-7). Por seu turno, as psicoterapias construtivistas encaram o encontro clínico mais como um processo hermenêutico de negociação entre os sentidos construídos e interpretações pessoais do terapeuta e do cliente. Nesta perspectiva, o sofrimento advém do carácter incoerente ou opressor da sua narrativa de vida, e o objectivo da terapia será gerar novas possibilidades de compreensão dos problemas, através de uma co-construção de narrativas mais libertadoras e positivas (Ibid.; Mattingly e Garro 2000: 7-9; Roberts 2000: 2). A explicação de Roberts sumaria adequadamente esta posição: “From a narrative viewpoint, symptoms can be seen as the efforts of a healthy self to find words and meanings that adequately express an individual’s struggle with altered experiences” (Roberts 2000: 5). Um exemplo23 recorrente desta abordagem na literatura é o modelo de terapia familiar narrativa de White e Epston (e.g., Roberts 2000: 6; Murray 1997: 14), onde o processo terapêutico procede constituindo o problema que aflige o sujeito numa entidade que lhe é exterior (“externalização do problema”), e reconstruindo em seguida com ele a narrativa desse 23 Ver Meichenbaum (1995: 23) para mais exemplos de abordagens de psicoterapia de
posicionamento construtivista narrativo.
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problema de uma forma que potencia o seu controlo sobre ele, através da ênfase sobre as “excepções” e capacidades do sujeito nessa luta24. Frisando a orientação motivacional da narração, Baumeister e Newman (1994) definem quatro categorias de motivos pessoais25 que regem a construção individual de narrativas sobre experiências de sofrimento. Esta classificação, assim como o carácter “pessoal” destes motivos, relacionam-se com diferentes tipos de “necessidades de significado” (needs for meaning) sentidas pelos indivíduos na interpretação das suas experiências. Designadamente, os autores distinguem entre necessidades: de propósito e finalidade (purpose); de justificação; de eficácia e controlo; e de auto-valorização (Ibid.: 680-8). O primeiro tipo de necessidade leva os sujeitos a organizarem os eventos na narrativa causalmente, procurando retratá-los como conduzindo intencionalmente a um fim – que pode ser objectivo/material (goal) ou subjectivo/emocional (fulfillment). Em segundo lugar, a necessidade de justificação orienta a descrição e interpretação das acções de uma forma consistente com determinados valores morais positivos, que dessa forma as justificam. Os autores enumeram a esse respeito múltiplas estratégias e padrões de descrição possíveis. O terceiro tipo de necessidade prende-se com a capacidade de exercer controlo sobre o ambiente circundante, o que motiva uma ênfase sobre a agência do protagonista ou o carácter previsível e favorável do ambiente mantido por ele. A última categoria de motivos reporta-se à necessidade de potenciar o sentido de auto-estima e eliminar ameaças a ele, ostentando o próprio mérito (Ibid.). Os autores salientam o acto da narração em si como uma resposta à terceira necessidade, de eficácia pessoal: ela constitui uma acção de “controlo interpretativo” sobre a situação ou episódio narrado, na medida em que estruturá-lo no relato permite a sua compreensão (Ibid.: 24 Cf. White e Epston 1990. 25 Foco-me sobre os motivos “pessoais” não obstante os autores referirem adicionalmente,
embora em menos detalhe, razões de âmbito “interpessoal”, i.e., ganhos buscados na interacção com os outros como guias da narração (Baumeister e Newman 1994: 680).
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686). Com efeito, as funções terapêuticas apontadas na literatura sobre a narrativa relacionam-se estreitamente com questões interpretativas e de sentido 26 , enquadrando e combinando os diferentes tipos de benefício enumerados. A multiplicidade de discussões e diversidade de perspectivas que reconhecem ou advogam os benefícios terapêuticos “pessoais”27 da narrativa dificultam uma súmula completa (ainda mais no contexto limitado desta discussão). Porém, julgo elucidativo expor as propostas de alguns autores de orientações disciplinares diversas dentro das ciências humanas, que no seu conjunto englobam muitos dos principais argumentos apresentados em defesa da narrativa. Começando pelo domínio da antropologia, Mattingly e Garro preconizam, no volume que dedicam ao lugar da narrativa (cultural) no contexto da doença, o seu papel enquanto forma de terapia, mitigando a perturbação gerada na experiência da doença (nomeadamente crónica). Com efeito, para as autoras, a narrativa permite ao indivíduo explorar as articulações possíveis entre a sua experiência e diferentes modelos culturais úteis para lidar com ela. Neste processo, toma especial importância a manutenção da própria identidade e propósito na vida, e do sentido de continuidade e ordem face à ruptura (2000: 27-29). No mesmo volume, Hunt (2000: 88-89) argumenta que ao período inicial de ruptura na doença crónica se seguem frequentemente esforços de reorganização e reconstrução do “Eu” e do seu lugar no mundo. A autora defende a esse respeito o potencial construtivo e transformador da narrativa, pela sua capacidade de integração da doença no contexto maior da vida do indivíduo, e sobretudo de 26 Alguns autores referem-se adicionalmente aos benefícios “interpessoais” da narração,
particularmente a possibilidade dada ao paciente de exprimir a sua “voz” e oferecer um “testemunho” sobre a sua experiência (cf. Frank 1995), e de assim estabelecer laços com outros através do acto recíproco de contar e ouvir (Sakalys 2003: 232). 27 Tomando como adquirida a atenção das psicoterapias (as cognitivas em particular [ver
Mahoney 1995: 9-10]) ao papel da relação e interacção com o terapeuta, continuarei a focar-me em benefícios interpretativos/“pessoais” em detrimento dos “interpessoais”.
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reconstrução da sua identidade e papéis sociais (foco do texto de Hunt). Tal potencial radica, segundo Hunt, no carácter essencialmente performativo da descrição narrativa, passível não apenas de exprimir mas também “encenar” (enact) visões da realidade. De uma perspectiva semelhante, num artigo de revisão sobre a relação entre o “Eu” e a narrativa, Ochs e Capps (1996: 29-30) ancoram o poder terapêutico da última (nomeadamente em situações de doença e trauma) na sua capacidade para confrontar os sujeitos com “possibilidades não antecipadas” de sentido e existência, permitindo dessa forma a reintegração de experiências reprimidas ou difíceis de integrar. As autoras referem igualmente o seu poder para construir unidade e coerência face a elementos identitários multiformes e inconstantes (numa reformulação do já referido “paradoxo da permanência”). Langness e Frank (1995: 93, 103), a partir do seu trabalho antropológico sobre histórias de vida, salientam também o poder transformativo e terapêutico da construção autobiográfica. Este potencial aparece fundado no processo libertador de auto-criação que a biografia encerra, permitindo revolucionar a própria imagem de si, para além das possibilidades de criação de sentido ou coerência perante a ameaça de morte iminente ou dissolução identitária. Por outro lado, para Frank, sociólogo e ele mesmo um sobrevivente de doença crónica, a interrupção biográfica trazida pela doença crónica produz histórias “confusas e inconsistentes”, que exigem narrativas pessoais (self-stories) no curso das quais o “Eu” é formado – como forma de ultrapassar o naufrágio narrativo e reparar os danos existenciais provocados, reconstruindo os “mapas” e “destinos perdidos”. A doença, segundo o autor, “intensifica” a luta do sujeito para atingir a coerência narrativa – restabelecendo a ligação entre passado, presente e futuro num projecto contínuo. A este propósito, Frank fala de uma “ética narrativa”28 (Frank 1995: 53-60; 154-165). 28 Este autor foca também em algum detalhe benefícios do tipo “interpessoal”, que não
abordo aqui. Cf. Frank 1995 (sobretudo capítulos 7 e 8).
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De um ponto de vista afim, Charmaz refere a capacidade da narrativa de fornecer distanciamento e reflexividade sobre o sofrimento. Esta capacidade permite a emergência de novos padrões interpretativos, de uma nova definição do mal-estar e da relação com ele, bem como a aprendizagem de estratégias para gerir o sofrimento e a mudança. A autora foca igualmente o potencial narrativo para revisão e reavaliação do curso de vida, criando novos sentidos de conexão entre as suas etapas e refazendo a continuidade e totalidade destruídas face à ruptura (Charmaz 1999: 371-375). Murray frisa a importância do estudo das narrativas de doença no domínio da psicologia. Reproduzindo grosso modo as categorias de Baumeister e Newman, o autor evidencia igualmente o poder da narrativa de trazer ordem e distanciamento sobre a crise, constituindo um recurso para atribuição de sentido à experiência do sofrimento, assim como um meio para lidar com a incerteza, equacionando futuros possíveis (“propósito”). Articula esta capacidade com a de exercer controlo sobre essa experiência (“controlo”), defendendo ainda a sua operacionalidade na justificação das próprias acções do sujeito (“justificação”), e na construção da doença como experiência de crescimento pessoal (“auto-estima”). A estes benefícios possíveis o autor acrescenta ainda a possibilidade de contrariar e vencer o medo da doença patente nos discursos públicos sobre ela, construindo esperança para o futuro (Murray 1997: 15-16). Com um foco sobre os processos da memória na construção da identidade, o psicólogo Freeman concebe uma relação entre a primeira e a cura psíquica, advertindo que esta advém não da mera recordação, mas da construção de uma ordem narrativa plausível sobre o “Eu”, que integre as novas lembranças, alcançando num progresso cognitivo uma auto-compreensão inédita – uma operação de “rewriting the self” (Freeman 1993: 171-172). Reportando-se ao papel da narrativa na saúde mental de um ponto de vista psiquiátrico, Roberts descreve a narração como uma “defesa
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necessária”, que constitui parte da resposta apropriada do indivíduo perante uma situação ameaçadora, fazendo sentido dela através da sua articulação em palavras (Roberts 2000: 5). Partindo por seu turno da óptica da enfermagem, e contrapondo a narrativa de doença ao relato médico, Sakalys define igualmente o papel da primeira em lidar e superar experiências traumáticas, alcançando através da reflexão e reformulação por palavras uma nova consciência sobre a experiência fragmentada, e estabelecendo para ela novos padrões, explicações, sentidos e coerência (Sakalys 2003: 231, 238-239). Weber, Rowling e Scanlon (2007: 947-51), analisando as narrativas de sofrimento de estudantes universitários na perspectiva do trabalho social, advogam igualmente a importância da narrativa face a experiências de perda e trauma. As autoras examinam, em primeiro lugar, o seu papel em conferir sentido a essas experiências, através da reestruturação cognitiva e emocional que operam, revendo e criando novos significados, construindo padrões e ligações que conduzem a uma nova compreensão, e restabelecendo o controlo e a ordem sobre a situação. Nesse sentido, mencionam a capacidade da narrativa de reconhecer benefícios e aspectos positivos por entre a adversidade, e defendem adicionalmente o seu papel na manutenção de uma identidade coesa, contrariando a ameaça existencial do trauma e preservando os pressupostos básicos sobre o mundo e o próprio valor, ao reestruturar os eventos em torno do “Eu” protagonista. Partindo de uma proposta metodológica sobre o método da entrevista biográfica, Rosenthal (2003: 922-7) aborda os benefícios curativos de ambas as narrativas emergentes na entrevista: a narrativa principal de vida (livre, não estruturada) e as narrativas pedidas pelo investigador sobre temas específicos (semi-estruturadas), cujas funções terapêuticas distingue. Na primeira, Rosenthal foca-se sobre a nova visão e compreensão obtidas sobre a história de vida, nomeadamente a partir da integração de novos materiais assim verbalizados (superando
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a incapacidade de falar sobre traumas vividos), que contribui para a consistência identitária e a continuidade biográfica. No segundo caso, concentra-se (para além de benefícios interpessoais retirados da ligação com o investigador) sobre o distanciamento criado pela narrativa sobre a experiência passada e emoções por ela geradas, tornando-as desta forma mais compreensíveis, credíveis e reais (objectivadas), e justificando os “sintomas” presentes como normais por relação ao passado. Finalmente, seguindo uma filosofia de orientação fenomenológica, Porée preconiza a relevância da narração face ao sofrimento em geral: na medida em que desfaz a relação conexa entre o tempo e a narrativa – comprometendo a identidade do indivíduo e a sua pertença ao mundo, fechando o campo de possibilidades futuras e com ele o presente num eterno lamento – o sofrimento exige o relato, gerando esforços de se inserir numa trajectória coerente (Porée 2002: 27-8). Todas as diferentes posições abordadas, partindo de perspectivas diversas e reproduzindo argumentos complementares, expõem a ideia comum da utilidade e pertinência de adopção de uma abordagem terapêutica narrativa29 face a situações de ruptura ontológica – como a doença crónica – enquanto meio de satisfazer as múltiplas “necessidades de significado” sentidas face à perda. Os paralelismos encontrados entre a doença crónica e o processo migratório (vide supra) sugeririam as vantagens duma abordagem semelhante ao sofrimento psíquico dos migrantes, sobretudo como alternativa a uma óptica medicalizadora sobre ele (Lechner 2009: 177178). Contudo, antes de assumir a possibilidade transcultural de aplicação desse modelo à experiência da ruptura, torna-se necessário tomar em consideração a natureza culturalmente específica de alguns dos pressupostos nele incorporados. 29 Os benefícios desta abordagem de forma alguma pretendem ser exclusivos, sendo
compatíveis com e integráveis noutras perspectivas terapêuticas (cf. Mahoney 1995: 1415).
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CONSTRUÇÕES PARTICULARES DE SENTIDO O papel das convenções sociais e culturais na narração tem sido reconhecido dentro e fora do domínio da antropologia30. As narrativas pessoais são moldadas pelo mundo cultural e social de duas maneiras: em primeiro lugar, pela necessidade natural de adaptação à audiência a que são dirigidas; e em segundo, pela limitação dos repertórios culturais de narrativas conhecidos e disponíveis ao narrador (Elliott 2005: 126-7). Segundo Nelson, desde tenra idade a criança aprende com os outros através da palavra os elementos simbólicos culturais – os marcadores de ordenação e divisão do tempo, assim como os artefactos, lugares, pessoas e instituições culturais – i.e., o mundo partilhado que constitui o material a partir do qual é construído o seu conceito de si (self concept) através da narrativa (Nelson 2000: 192194). A esse respeito, Freeman evidencia, a partir duma análise da biografia de Helen Keller, a natureza linguisticamente mediada da existência no mundo, considerando a importância dos recursos culturais e sociais linguísticos disponíveis nessa mediação. Para o autor, a memória, assim como a consciência da existência temporal e a própria auto-consciência são função da linguagem, configuradas pelas convenções da ordem social – que criam o mundo enquanto realidade significante (meaningful) (Freeman 1993: 51-80). Referindo-se em particular à narrativa, Freeman sublinha o condicionamento social sobre as formas específicas da representação e do discurso (nomeadamente moral) em circulação, que circunscrevem as possibilidades de narração – em termos tanto do conteúdo como da forma (Ibid.: 185-202). Será talvez conveniente advertir que um reconhecimento deste condicionamento não implica uma perspectiva determinista. Como 30 E.g., Elliott 2005; Mattingly e Garro 2000; Tonkin 1995; Linde 1993; Freeman 1993.
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lembram alguns autores (entre os quais o próprio Freeman), o indivíduo é um agente activo na construção narrativa, que é feita à medida das suas motivações e do contexto da narração, explorando as possibilidades locais – situadas, interaccionais e “emergentes” – de articulação da sua experiência através dos materiais e modelos fornecidos pela cultura (Mattingly e Garro 2000: 263; Garro 2000: 7273; Mattingly 2000: 197; Elliott 2005: 129-131; Freeman 1993: 185198). Contudo, já desde Kleinman é reconhecida a necessidade de formas cultural e socialmente legitimadas na abordagem e tratamento do mal-estar (illness) (Kleinman 1980: 360-361). Assim sendo, e feita aquela ressalva, um reconhecimento e compreensão dos pressupostos culturais intrínsecos à narrativa pessoal ou biográfica permanece uma condição prévia necessária a qualquer tentativa de aplicação terapêutica do modelo narrativo a membros de contextos socioculturais diferentes. Neste sentido, examinarei em seguida, sem pretensões de exaustividade, alguns dos principais complexos de pressupostos incorporados (e interdependentes) na concepção da narrativa biográfica Ocidental, designadamente: o modelo de temporalidade, a concepção de coerência, e a noção de pessoa.
TEMPO A natureza social do tempo já é reconhecida nas ciências sociais desde o foco sociologista de Durkheim e Mauss (Munn 1992: 94-95). Depois disso, vários trabalhos clássicos na antropologia examinaram concepções culturalmente particulares de compreensão e experiência do tempo em sociedades específicas 31. A obra de Edward T. Hall 31 E.g., Evans-Pritchard entre os Nuer; Bahannan entre o Tiv; Tedlock entre os Quiché;
Geertz, Bloch e Howe entre os balineses; Christine e Stephen Hugh-Jones entre os Barasana; Herzfeld entre os cretenses; Gell entre os Umeda; para além das análises mais teóricas e transculturais Leach ou Lévi-Strauss (Munn 1992: 94-109; Gell 1996: 15-92).
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(1983) sobre a vivência temporal de diferentes culturas oferece um testemunho profuso desta diversidade. O interesse do autor sobre dimensões não verbais, ocultas e inconscientes do pensamento e da vivência social humana 32 conduziu-o nesta obra a uma análise da temporalidade enquanto “gramática cultural escondida [que] determina a maneira como os indivíduos percepcionam o seu meio, definem os seus valores, e estabelecem a sua cadência e os seus ritmos de vida fundamentais”. Para o autor, trata-se de “um nível de cultura primário”, interiorizado desde a nascença, definido por ser “subjacente, escondido, e muito estruturado, um conjunto de regras de comportamento e de pensamento não ditas, implícitas, que controlam tudo o que [os indivíduos fazem]” (Ibid.: 14). Hall adverte para a “concepção falsa” do tempo em vigor no Ocidente, que o considera como entidade una e simples e desvirtua a influência do contexto na sua percepção (Ibid.: 23, 167-168). Pelo contrário, advoga o autor, o tempo consiste numa realidade ampla de agregados de conceitos, fenómenos e ritmos 33 (Ibid.: 23). Hall identifica o pensamento Ocidental – desde as tradições filosóficas gregas até às concepções filosóficas e científicas contemporâneas – com uma lógica ou modo de pensar linear (Ibid.: 18, 23, 168), alimentada pela “transferência” para a vida dos ritmos de ferramentas de medição como o relógio e o calendário – assim tomados como a “realidade” (Ibid.: 154). Tonkin (1995), do ponto de vista da história oral, sustenta uma visão semelhante sobre o condicionamento cultural das estruturas de referência temporais pelas quais os indivíduos pensam e se expressam. A autora reconhece igualmente o papel das ferramentas do tempo (nomeadamente as cronologias), assim como das concepções cosmoló32 Interesse já manifestado em obras anteriores do autor, como The Silent Language
(1959), The Hidden Dimension (1969), e Beyond Culture (1976). 33 O autor suporta este argumento enumerando e descrevendo nove níveis possíveis de
análise do tempo, designadamente: biológico, individual, físico, metafísico, microtempo, sincronia e metatempo (Hall 1983: 27-38).
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gicas – que incorporam as teorias culturais humanas acerca da natureza do tempo e do espaço – sobre a modelação da percepção e cognição da realidade. No caso do Ocidente, a autora considera que a cronologia dominante, marcada pela ideologia cosmológica cristã, condiciona toda a cognição sobre a temporalidade, definindo o tempo como uma progressão desde um início (o nascimento de Cristo) até à eternidade, implicando noções de evolução e progresso e percebendo relações causais entre os eventos seguidos no tempo (Tonkin 1995: 68-72). De forma semelhante a Hall, Tonkin denuncia a ilusão, provocada por esta cronologia, da existência dum curso único de tempo, com uma “taxa de mudança fixa”, composto da repetição sucessiva de unidades e subunidades idênticas. Pelo contrário, existirão antes diversos tempos e percepções individuais deles, com diferentes velocidades, durações, escalas e contextos de mudança (Ibid.: 71-72) – ideia que é também suportada por Gell, no seu volume consagrado à antropologia do tempo (1996: 95-96). Tais concepções de tempo estão necessariamente presentes na narrativa, e em particular no relato biográfico. A este respeito, a história de vida é estabelecida por Tonkin como um “género oral” específico, como tal definido pela partilha de expectativas e regras de interpretação entre narrador e audiência. Desta forma, para a autora, a apresentação narrativa do “Eu” constitui um acto social, na medida em que antecipa e se ajusta a determinadas respostas e modelos sociais, seguindo certos cânones e convenções de retórica e propósito – que definem os critérios do que é apropriado e relevante numa autodescrição, o seu formato, estrutura organizativa e conteúdo, e as ocasiões e usos adequados para o relato (Tonkin 1995: 55-58). No mesmo sentido, Nelson sublinha em particular o lugar da aprendizagem social do tempo, nomeadamente dos seus modos culturais de organização e marcadores simbólicos de passado e futuro, na aquisição pelas crianças da capacidade de construir e narrar a sua identidade (Nelson 2000: 192-193).
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No contexto da modelação sociocultural da narrativa de vida, Tonkin valoriza então especificamente a influência exercida pela cosmologia e as representações colectivas vigentes sobre o tempo, nomeadamente as teorias, convenções e expectativas culturais referentes à duração, sucessão e pontuação do tempo, à sua divisão, periodização e modo de datação dos eventos, à velocidade e por vezes até ao género predefinido de narração sobre o passado (Tonkin 1995: 66-68, 79). Para Tonkin, estes aspectos temporais são estruturados pelo relato e incorporados no seu interior (Ibid.: 74-75). Isto exige a atenção dos investigadores à forma da narração dos seus interlocutores/informantes, com o fim de evitar uma imposição do próprio género profissional (por exemplo a entrevista) na recolha do relato (Ibid.: 54) – advertência que assume especial pertinência no contexto terapêutico.
COERÊNCIA À semelhança dos autores anteriores, Linde (1993) salienta igualmente o carácter social e cultural das expectativas e convenções que regem a história de vida, a nível tanto do conteúdo como da forma (Linde 1993: 7-11). A própria definição de “história de vida”, nomeadamente enquanto construção coerente, é segundo a autora culturalmente relativa (Ibid.: 4, 11). A coerência é definida por Linde como uma propriedade dos textos estabelecida pelo cumprimento de dois tipos de relação: em primeiro lugar, uma relação apropriada das diferentes partes do texto entre si, e com o todo do texto; em segundo lugar, a afinidade do texto com outros textos do mesmo tipo – do qual deve constituir um bom exemplo (Ibid.: 12). No argumento de Linde, a coerência é garantida pelo carácter adequado e significativo – partilhado por narrador e audiência – da ordem/sequência que estruturam o relato de vida (Ibid.: 13). Essa ordem supera a mera cronologia (cf. supra secção 2.1.), alcançando “mais do que a soma das suas partes” (Elliott 2005: 48). A
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esse propósito, Elliott foca a noção de “enredo” (plot), elemento constituído por “uma combinação de sucessão temporal e causalidade”, e que estabelece a conexão – de tipo causal – entre eventos anteriores e posteriores, gerando dessa forma a “mudança” no curso do relato. O enredo confere uma unidade fundamental ao texto, assim constituído por um início, um meio e um fim – numa configuração totalizadora e unificada sobre a qual se funda a sua coerência. A partir desta definição de enredo, Elliott preconiza a dependência mútua entre narrativa e causalidade (Ibid.: 7-8, 48). Contudo, acautela Linde, também os critérios da causalidade adequada estão dependentes de modelos culturais. O repertório possível, reconhecido e esperado dos eventos, causas e explicações que confluem na construção da coerência são fornecidas pela cultura (Linde, 1993: 19, 127). A autora especifica, para o universo cultural da língua inglesa, a ordenação temporal como o principal mecanismo utilizado para estruturar a sequência dos eventos (Ibid.: 13). Esta ideia é confirmada por Elliott (2005: 7) e também Riessman e Quinney (2005: 394-395), que – reproduzindo a convicção de Hall sobre a linearidade – consideram ser aquele o critério de organização que melhor responde às expectativas culturais dos ouvintes Ocidentais de um tempo progressivo (forward marching) de eventos sucessivos. Entre os “sistemas” de coerência culturalmente disponíveis e implicados na construção narrativa, é destacado por Linde o “senso comum” geral de cada comunidade, que preservando um estatuto de “factualidade” define hegemonicamente os padrões morais sociais do que é “normal” (Linde, 1993: 18, 192-195). Linde aborda para além deste outros sistemas de coerência particulares, visões populares ou teorias especializadas da realidade em relação às quais pode ser estabelecida a coerência de um relato34 (Ibid.: 18). Os sistemas de 34 No caso dos relatos de vida Ocidentais, Linde sugere a título exemplificativo o lugar da
psicanálise, behaviorismo, astrologia, feminismo ou catolicismo em tal conjunto de sistemas de coerência (Linde 1993: 163-164).
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coerência assumem um poder muito persuasivo sobre os indivíduos, promovendo certos tipos de pensamento e afirmação e restringindo os restantes. A sua influência age nomeadamente ao nível dos meios de compreensão, avaliação, construção e estruturação das narrativas biográficas – e particularmente sobre os recursos e vocabulário utilizados na criação do “Eu”/identidade (Ibid.: 164, 189, 216-218). A esse respeito, é elucidativa a análise crítica de Bourdieu (1997) sobre as implicações da noção de “senso comum” da “história de vida” (Ocidental) enquanto sequência unitária e coerente, e sobre a noção de identidade pessoal que a acompanha e justifica.
PESSOA Bourdieu sugere a existência duma “ilusão retórica” no seio da concepção comum da biografia ou história de vida. Esta ilusão biográfica prende-se com determinadas teorias sobre a filosofia da história (enquanto narrativa) e com uma dada tradição literária (anterior à modernidade) (Bourdieu 1997: 53-54). Para o autor, os pressupostos desta teoria promovem uma visão da vida enquanto unidade coerente, uma trajectória com início, meio e fim, movida por uma intenção una. O postulado fundamental subjacente a esta concepção, que afirma “o sentido da existência” humana, conduz a orientar a narrativa de vida pela preocupação de fornecer um “sentido” (vide supra) – implicando simultaneamente consistência e necessidade lógica – ao relato, que é estabelecido através da selecção e conexão, segundo critérios visíveis, de “acontecimentos significativos” na vida (Ibid.). Para Bourdieu, o cariz arbitrário e particular deste modelo é posto a nu com a invenção do romance moderno, que oferece uma perspectiva alternativa sobre a realidade: retratada como descontínua, fragmentária, aleatória e desprovida de propósito (Ibid.: 55). Perante isto, o autor explica a preservação de uma concepção coerente e unificada do “Eu” pela exigência social de constância identitária, promovida e sancionada por
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uma série de mecanismos e instituições sociais – designadamente o “nome próprio”, assim como os documentos e ritos de nomeação oficiais que o acompanham. (Ibid.: 56-57). Com efeito, Bourdieu fundamenta naquela “constância nominal” a possibilidade de unificação e totalização das sucessivas manifestações e fluxos particulares e contingentes da existência biológica e social do “indivíduo” no tempo e no espaço, reificados por um processo de abstracção e criação arbitrária de fronteiras rígidas (Ibid.: 56). À semelhança do que sucede com as dimensões da temporalidade e coerência, também esta especificidade cultural da concepção Ocidental do “Eu” tem sido reconhecida no interior da antropologia. Observações etnográficas têm suportado tal consciência e evidenciado a importância de tomar em consideração, na investigação e recolha de histórias de vida, a diversidade e condicionamento cultural das noções de “pessoa” (Ochs e Capps 1996: 32; Langness, e Frank 1995: 87-116). Langness e Frank abordam, como Bourdieu, as premissas incorporadas na noção Ocidental de identidade – nomeadamente a ideia da vida como uma totalidade unificada, cronologicamente estruturada, e centrada num paradigma causal – advertindo para as limitações da sua aplicação a outras culturas (Ibid.: 101-103). A análise de Kirmayer (2007) torna-se especialmente relevante no âmbito da presente discussão, na medida em que examina especificamente as implicações do conceito Ocidental de “pessoa” presentes no discurso e contexto da psicoterapia. O autor advoga, com recurso a múltiplos exemplos etnográficos, o carácter cultural, social e moral da construção dos modelos e valores imbricados nas noções de pessoa; e considera a influência daqueles valores ao nível quer das representações conceptuais sobre o “Eu”, quer da própria dinâmica psicológica e experiências corporais e afectivas sentidas pelos indivíduos de diferentes culturas (Kirmayer 2007: 237, 241, 246-247). A partir deste condicionamento, o autor sustenta a dependência das concepções e eficácia das psicoterapias em relação aos modelos
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socialmente vigentes de “Eu”, concedendo especial atenção na sua análise ao modelo Ocidental/Americano de pessoa (Ibid.: 233, 249250). Começando por distinguir a psicoterapia de outras modalidades terapêuticas pela sua “conversa explícita sobre o Eu”, o autor prossegue enumerando os valores morais e sociais implícitos na concepção psicoterapêutica de pessoa, entre os quais realça os valores ligados ao individualismo (Ibid.: 233, 235-239). Com efeito, a psicoterapia Ocidental assenta a sua intervenção sobre o carácter coerente e unificado, autónomo e articulado, racionalista e agencial, monológico e univocal do “Eu” (Ibid.: 235-240). Tais valores, tomados como características “factuais” de uma entidade psíquica “verdadeira” – o “Eu” reificado – são assim reproduzidos na e pela própria prática psicoterapêutica (Ibid.: 238). Propondo (a partir de sugestões etnográficas) alguns modelos culturais alternativos de pessoa 35 , Kirmayer sublinha a exigência de cariz ético e terapêutico que a diversidade cultural impõe à psicoterapia: a de considerar as noções particulares de pessoa interiorizadas pelos utentes, e aplicar no contexto clínico valores que sejam inteligíveis e integráveis no seio daquelas noções, evitando impor a sua própria noção individualista – sob pena de não deixar ao utente alternativas de reconstrução do seu “Eu” (Ibid.: 241-243, 249-250).
CONCLUSÃO A responsabilidade da prática psicoterapêutica sobre o bem-estar psíquico e emocional dos indivíduos faz da advertência de Kirmayer mais que uma simples consideração académica. No caminho a percorrer em direcção a uma melhor compreensão da diversidade 35 Designadamente: ecocêntrico, cosmocêntrico, egocêntrico e sociocêntrico, com
diferentes modos de terapia associados (cf. Kirmayer 2007: 242-246).
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cultural no âmbito clínico (como noutros), o papel preponderante da antropologia não deve ser ignorado pelas ciências da psique. A tradição antropológica de consciência e atenção ao relativismo cultural, bem como a sua capacidade de articular uma sensibilidade aos factores individuais com as dinâmicas do contexto social, devem tornála num interlocutor privilegiado das disciplinas que lidam com os desafios da comunicação cultural e suas falhas. Uma abordagem narrativa intercultural deve preservar este duplo olhar, capaz de reconhecer, no seio da diversidade de pressupostos culturais – sobre o tempo, a coerência, a identidade, e outros – como pessoas de todas as culturas partilham a necessidade (por vezes vital) de construir padrões que confiram sentido às suas vidas (Langness e Frank 1995: 116).
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Capítulo 6
Corações queimados: A dor da memória nas narrativas de pacientes Bijagós
Chiara Pussetti*
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PhD Università degli Studi di Torino, Senior Associate Researcher CRIA / ISCTE (Centre for Research in Anthropology – Portugal)
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Este artigo é dedicado à memória de Pedro Banca, prezado amigo e interlocutor de rara sensibilidade antropológica.
Durante o meu trabalho de terreno em Bubaque (Arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau, 1999-2001), eu passava muito tempo sentada em frente à casa de Tcharte, debaixo da grande árvore sagrada1. Tcharte é um dos curandeiros mais famosos do arquipélago, um odiáki2 que, além de ter os conhecimentos da farmacopeia tradicional, tem também de nascimento o poder de “ver com a cabeça” (n’ojón ta bú). Ele pode portanto ver o invisível, explorar dimensões espaciais e temporais impedidas aos outros, e assim diagnosticar os problemas, individuando causas e remédios adequados. Ao pé da sua casa, cada dia forma-se uma fila de pessoas que esperam de ser atendidas, visitadas, ajudadas a encontrar o sentido do próprio sofrimento. “Porque estou doente?”, “por causa de quem?”, “quem tem problemas comigo?”, “qual é o sentido 1 Para criar uma aldeia, nas palavras dos anciãos, é necessário escolher uma grande
árvore, geralmente uma mangueira (Mangifera Indica), como ponto central ao redor do qual organizar o espaço. Esta árvore é simbolicamente associada à figura da sacerdotisa okinka, chefe religiosa da comunidade. 2 O odiáki é um adivinho e um médico tradicional com conhecimento especializado de
farmacopeia e do mundo sobrenatural. Os seus remédios são chamados unikán, palavra que significa quer medicina de ervas, quer espírito. O termo odiáki deriva do radical – diáki que gera palavras como n’odiáki, curar e nhudiaáki, restabelecimento; no crioulo da Guiné-Bissau esta palavra é traduzida como kurandeiro ou djambakus.
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deste mal-estar?”, “estes problemas começaram quando e em relação a quê?” são perguntas frequentes, nas quais a necessidade de significação é o primeiro passo para uma explicação da própria experiência num sentido funcional que conduza à mudança. A doença exige um sentido, uma justificação, segundo um código que estará depois na base da procura da cura mais adequada. As interpretações podem ser as mais variadas: “apanhei um golpe de frio, uma corrente de ar, ou um mau-vento3”, “estou estressado, esgotado, consumi todas as energias, ou outros furtaram-na ou chuparam-na do meu corpo”, “fizeram-me um feitiço”, “partiu-se o meu coração”, “estou a morrer de desgosto”, ou qualquer outra definição útil que, por experiência pessoal ou por costume, estamos habituados a utilizar em situações parecidas. É só depois desta interpretação que se pode saber onde procurar a melhor resposta profissional: neste sentido, Tcharte oferecia uma dupla alternativa terapêutica, sendo ao mesmo tempo um curandeiro reconhecido e dotado de poderes extranaturais. Os sintomas que os seus pacientes relatavam eram os mais diferentes: perda da memória, dos sentidos, da vista, da audição, do apetite, do sono, do “orebok” (o espírito ou energia vital que anima o corpo humano)4, das forças, do controlo, da razão, dores de ventre, de cabeça, paralisia, queimaduras, amnésias, letargias, barulhos incómodos nos ouvidos. Cada narrativa de sofrimento relatava experiências e sintomas corpóreos específicos e pontuais: Tcharte afirmava todavia que a saúde das pessoas reflectia por um lado a qualidade das suas relações com os outros, pelo outro era 3 As interpretações que os iadiáki oferecem das doenças dos pacientes remetem na maior
parte dos casos para a intencionalidade de um agente: o mau-vento e o olhar penetrante das pessoas invejosas são considerados causa da maior parte das aflições humanas. 4 Podemos dizer que o orebok simultaneamente tem vida e é vida. Tem vida na medida
em que pode desenvolver actividades diversas independentemente do corpo, pode ser atacado, perdido, capturado, morto e comido por um feiticeiro desejoso de assimilar a sua energia. É vida no sentido em que a sua existência e a existência do corpo são, se não coincidentes, pelo menos intimamente dependentes. Por exemplo, se o orebok é capturado, o kugbí adoece; se o orebok é comido ou matado, o kugbí começa a decompor-se até – depois de algum tempo – morrer.
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espelho do próprio equilíbrio interior. As interpretações que Tcharte oferecia da sintomatologia dos seus pacientes não derivavam portanto de uma concepção da doença como algo fechado nos confins do corpo individual, mas levavam em conta ao mesmo tempo a situação biológica, psicológica e social do paciente e do seu grupo, inserindo aquele episódio particular de sofrimento numa rede de conexões muito mais ampla que juntava o passado com o presente, a memória individual e a colectiva, e os múltiplos domínios de experiência que cada indivíduo pode atravessar. Na leitura de Tcharte, que constituía o seu acto terapêutico, cada dor, cada sintoma contava uma história mais complexa, que tinha a ver com invejas familiares, conflitos conjugais, tensões com os antepassados, ataques de espíritos, ou desequilíbrios emocionais não resolvidos. O indivíduo não era portanto representado como um sistema fechado, em oposição ao mundo exterior, mas melhor como uma entidade permeável e em contínua transformação, sensível a todo o que está ao seu redor e à influência dos outros. A interpretação que Tcharte oferecia, e que se situava na base da sua intervenção terapêutica, parecia desmentir três teses fundamentais da medicina ocidental: os sintomas são signos de uma doença-facto; o móbil da doença está localizado no interior do corpo do indivíduo; o corpo responde sempre através de mecanismos naturais e portanto redutíveis a universais. Na perspectiva nosológica representada por Tcharte, os sintomas são signos de um desequilíbrio entre o indivíduo e o contexto; o móbil da doença está localizado no campo relacional do indivíduo; o corpo responde de maneira peculiar, construindo ligações criativas com as formas institucionalizadas da aflição. Qualquer doença, segundo Tcharte, radica em desequilíbrios das emoções e dos pensamentos (n’atribá)5 individuais ou no influxo dos sentimentos dos outros, que podem alterar o equilíbrio entre o corpo 5 A noção de kutribá (plur. n’atribá) junta na sua definição aspectos da esfera emocional
(como sentir tristeza, ciúme etc.) a elementos que nós consideraríamos próprios da esfera racional: podemos dizer que se refere a tudo o que nós definiríamos como estados psíquicos e os seus íntimos efeitos corporais.
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(kugbí) e a sua energia vital (orebok) indispensável ao bem-estar individual. Uma alteração da harmonia dos n’atribá pode provocar doença e até morte: existem sentimentos que podem queimar a garganta, cegar os olhos, oprimir o tórax ou bloquear as pernas; sentimentos negativos podem materializar-se na forma de uma substância preta no estômago; a barriga pode encher ou abrir-se pela raiva. Estes são com certeza órgãos físicos, mas também fonte de acção e consciência. A concepção local junta portanto a psicologia e a fisiologia humanas, incluindo enquanto aspectos do mesmo processo aquilo que nós distinguiríamos como pensamentos, emoções, desejos, tensões e os seus efeitos íntimos e carnais. Uma das causas mais típicas de morte é exactamente a fractura desta harmonia, que geralmente provoca a separação, a perda ou o roubo do orebok. Porquanto existam situações e contextos apropriados nos quais o orebok pode separar-se temporariamente do kugbí, como por exemplo nos sonhos ou nos rituais de possessão, uma separação fora destes âmbitos específicos será sempre causa de doença e morte. A ideia que a força vital possa ser capturada pelos feiticeiros que querem absorver a sua energia, ou perdida em momentos de grande perturbação emocional, é comum a muitos contextos etnográficos. Segundo Tcharte e outros iadiáki – curandeiros adivinhos das aldeias de Bijante e Ankamona – alguns n’atribá revelam-se particularmente fatais, causas recorrentes da perda da energia vital: kakpaná, o “susto”; e ikojóke, a “dor”.
EMBODYING COLONIAL MEMORIES6 Para tentar dar conta da pluralidade e da complexidade das queixas que os pacientes de Tcharte e dos outros curandeiros expressam, e para 6 Stoller 1995.
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mostrar como estas aflições reenviam não a um mundo interno e individual, mas a múltiplas coordenadas situacionais, relacionais, históricas e morais, iremos neste artigo reconstruir algumas das narrativas recolhidas no terreno. Frequentando a casa de Tcharte, tive diversas ocasiões para conversar com pessoas doentes e para escutar contos dramáticos de perdas, de lutos capazes de tirar qualquer força, de anos de sofrimentos crónicos, profundamente incisos nos corpos, de corações queimados e de lembranças que paralisam e tiram a voz. Tcharte, que sabe ver os espíritos erande7 e as almas dos mortos (iarebok), e que luta contra os feiticeiros (iabané)8, conduzia-me com as suas palavras no tempo rarefeito das visões, onde eu tentava obstinadamente encontrar os caminhos da lógica, não conseguindo acompanhar a sua incrível corrente de imagens. Nabon’a convidava-me a escutar a sua voz rouca de dor, depois de o sofrimento ter apertado a sua garganta até a sufocar. Tcharte, voando à noite na floresta dos espíritos perdidos, procurava a energia de Nabon’a, que pela angústia que bloqueou o seu passo anda agora saltando como um pássaro. Presa na rede das visões, dos sonhos, dos espíritos errantes, muitas vezes parecia-me que o comportamento das pessoas com as quais conversava era difícil de compreender. Mulheres que andam como pássaros, pessoas amarradas por fios invisíveis, lutas nocturnas que me lembravam, com as devidas cautelas, os duelos entre “feiticeiros” e “benandantes”, descritos e analisados pelo Carlo Ginzburg (1966, 1989). 7 O erande é uma entidade sobrenatural que pertence ao panteão bijagó e se distingue dos
antepassados e de Nindo, a suprema entidade criadora. Cada erande tem características individuais (nome, género, desejos, qualidades, gostos e idiossincrasias particulares) e poderes específicos sobre o mundo dos humanos. Cada clã matrilinear tem o seu próprio erande (erande enri kuduba), mas também se podem manter erande individuais, para obter vantagens materiais. Provavelmente a palavra iran em crioulo, que designa qualquer potência ou objecto ritual, deriva do termo bijagó erande. 8 No idioma bijagó de Bubaque existem pelo menos duas palavras para indicar a tipologia
de pessoas que em crioulo é chamada de futuseru: obané e omadók. Seguindo a distinção proposta por Evans-Pritchard (1937), witchcraft representa o poder incontrolado, inconsciente e perigoso do obané; e sorcery o poder controlado e exterior do omadók, que age através de instrumentos externos.
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Os sintomas apresentados pelos pacientes do Tcharte eram os mais vagos, diferentes, dificilmente reduzíveis a uma patologia específica. Através do acto terapêutico, Tcharte tentava encontrar uma explicação para estes “estranhos” sofrimentos. O seu poder era ao mesmo tempo pragmático e hermenêutico, pondo em relação três ordens de realidade: a existência individual, a social e a cósmica. Em primeiro lugar, invocava os espíritos para que lhe concedessem a faculdade de curar, assim como, por sua vez, o paciente invoca o medicamento unikán de forma a que este possa agir eficazmente. O unikán é o remédio, o espírito, a fonte da saúde, que permite ao curandeiro tratar os seus pacientes: o termo tem portanto uma conotação terapêutica, mas por extensão significa algo de sagrado e de sobrenatural. O unikán é de facto, materialmente, um composto de ervas, que se tornará eficaz somente através da conjunção de dois factores: a vontade de um espírito e a coragem e abertura do paciente. A coragem é virtude indispensável para retornar à saúde, porque o espírito só aceitará “carregar de energia” o remédio se o paciente e o curandeiro conseguirem mandar nele, ordenando-lhe que obedeça. Se o unikán serve para curar as doenças breves (n’oduban), para quem tem uma doença crónica ou uma dor que não passa (ikojóke) o tratamento é bem mais complicado. Para conseguir tratar este tipo de sofrimento é necessário em primeiro lugar interpretar os sintomas e dar uma explicação exaustiva de porque é que a doença aconteceu. A descodificação dos sintomas é o primeiro acto terapêutico e só a partir daí se poderá escolher o remédio mais adequado. Na maior parte das consultas que acompanhei, os sintomas dos pacientes com doenças ikojóke aludiam a conflitos sociais, traduziam numa forma somática emoções contrastantes, violências, desejos insatisfeitos, lembranças dolorosas. A dor permanecia ou regressava constantemente para manter vívida e lancinante a memória do que não pode ser esquecido. Às vezes os pacientes que eu entrevistava afirmavam não saber explicar a origem da doença, mas declaravam em simultâneo que o
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corpo sabia e lembrava tudo, e que eram as memórias que os faziam sofrer. Muitas vezes a dor que eles descreviam deslocava-se pelo corpo, acompanhando a narrativa das próprias vivências histórico-biográficas: os corpos enfermos, por outras palavras, constituíam o memorial de experiências penosas passadas. No tratamento da dor ikojóke, o acto terapêutico do Tcharte funcionava como uma espécie de arqueologia da memória, destinada a evocar e a trazer à luz as vivências passadas, as feridas, as penas: a dor era escutada não só pelo que comunicava sobre o estado do corpo físico, mas especialmente pelo que transmitia sobre a desordem e as crises individuais e da comunidade, metáfora e metonímia de domínios éticos e processos sociais. Podemos aqui considerar as narrativas através das quais os meus interlocutores significavam o próprio sofrimento não só como momentos de dramatização da experiência, mas como dispositivos de criação de sentido. O significado construído pela narrativa não apenas se enraizava no tecido existencial e biográfico do sujeito, mas transcendia a sua contingência específica: os discursos encenados, as metáforas, as formas tinham uma profundeza histórica que ultrapassava a vivência individual dos eventos. Quase todos os entrevistados situavam a origem da doença em concomitância com episódios dramáticos da vida pessoal. O agente causal, geralmente um evento traumático como a morte de uma pessoa querida, constitui sempre a imagem dominante a partir da qual o sujeito elabora a construção do sentido do próprio sofrimento. A alusão a um factor externo como causa primordial da aflição representa um mero anel no seio de uma cadeia conceptual mais ampla que liga no mesmo processo causal factores históricos, contradições políticas, tensões morais, definições de género e relações sociais. Obennó, uma das minhas interlocutoras privilegiadas, descrevia desta forma os sintomas que a afligiam: falava de um corpo “aberto” (okpaiok), “violentado, usurpado” (okpás) pelos desejos dos outros; de comportamentos contaminadores; de misteriosos banquetes nocturnos;
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de olhares penetrantes (n’oniné) 9 . Originária da aldeia de Bruce, Obennó teve que se mudar para Bijante, no outro lado da ilha de Bubaque, para se afastar das influências nefastas de pessoas invejosas pertencentes à sua família. Em Bruce passou anos sofrendo de kobané, termo derivado da palavra obané (feiticeiro) 10 que designa uma condição de angústia profunda e persistente, condicionando todos os aspectos da vida. Os sintomas típicos incluem opressão no tórax, sensação de sufocamento, taquicardia, dores no estômago, falta de ar, desassossego e insónias. Os sintomas agravam-se quando haja a impressão de que os olhos malvados pertencem a alguém próximo ou, ainda pior, da própria família. A figura do obané condensa as características de inversão dos valores sociais mais frequentemente encontradas em casos e contextos análogos: voos nocturnos, canibalismo, transformação em animais, nudez, furto da energia vital, pertença a uma comunidade da floresta, ofertas de parentes em sacrifício11. As suas práticas são consideradas tão nojentas que são associadas ao fedor da fermentação e da putrefacção, próprios da 9 N’oniné significa literalmente ter os olhos pontiagudos, cortantes, perfurantes. Como o
verbo n’okoní, que significa cuspir ou escarrar, e o verbo n’oróngbok, cujo significado se situa entre ciúme, antipatia e ódio, n’oniné indica um acto destinado a magoar, devido a inveja. 10 A reflexão antropológica recente sobre a política de representação etnográfica convida-
-nos a reflectir criticamente sobre o emprego da categoria de “bruxaria” ou “feitiçaria”. Estes termos referem-se a um conjunto de práticas e significados heterogéneos, delimitados por antropólogos para os adaptar às fronteiras de uma categoria própria da cultura ocidental. Considerando as implicações ideológicas desta categoria e a natureza insatisfatória de uma definição “ética” (por contraposição a “émica”), na qual se afirma em excesso a marca da história cultural europeia e que resume num único termo práticas muitas vezes irredutíveis umas às outras, privilegiamos neste trabalho as categorias e os termos locais. 11 Vejam-se por exemplo Evans-Pritchard (1937), Mair (1969), Douglas (1970). O termo
obané pertence à família semântica – bén, à qual correspondem verbos como: n’obén, que significa ser ou fazer algo horrível, e também tramar ou ligar; n’obénh, que indica os excrementos e o acto de defecar, mas significa também contaminar, infectar, perverter, danificar; n’obénen, enganar, corromper ou deteriorar; n’obeney, destruir, devorar, trair ou mentir.
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floresta, da transformação e da destruição operadas pela morte. Poder-se-ia pensar numa analogia entre a morte, situação prototípica na qual as relações sociais são destruídas, e a acção da feitiçaria obané: as duas constituem uma ameaça de desagregação dos laços, alterando e enfraquecendo o grupo. Como a decomposição “desconstrói” os corpos, assim a acção contaminante do obané destrói os laços familiares e a harmonia da aldeia. A inveja, tal como o ciúme (korammó, termo que indica também as outras esposas do próprio marido) são associados aos actos do obané, e pensa-se sempre que esta ameaça se esconde no seio da família, onde os laços são mais estreitos e as relações mais intensas. As mulheres que não podem ter filhos cobiçam os bebés das próprias irmãs e observam com olhos perfurantes os ventres das grávidas mais próximas. Cada olhar de sofrimento, de inveja, de rancor “penetra, corta, devasta”. Obennó perdeu todos os seus filhos devido a febre, diarreia, malária. “A doença que os matou está na minha aldeia, na minha família, nos olhos das minhas cunhadas: por isso é tão perigosa, porque são as pessoas que te conhecem bem que te podem infectar. Por isso tive que fugir e fui para Bijante” explica Obennó. Cada doença, cada morte deve ser interpretada reflectindo sobre as próprias relações com os outros. Obviamente, a dimensão empírica dos fenómenos não é ignorada, mas cada sofrimento depende da acção de alguém próximo, que quer o teu mal. O obané representa o “lado obscuro” do parentesco: a consciência do facto de que os ressentimentos e as invejas mais violentas nascem exactamente no interior do grupo familiar. Em todos os relacionamentos, especialmente aqueles de grande proximidade emocional e social, a interdependência muito estreita acaba por ser carregada de sentimentos ambivalentes. “A cada filho perdido, ficou uma dor que não passa, aqui no meu corpo” – comenta Obennó – “e a angústia dos ataques dos feiticeiros (kobané) tirou o meu sono, fechou a minha garganta, tirando-me o ar”. Um corpo invadido, possuído por ikojóke, a “dor que não passa”, por kobané, a “angústia”, e por kakpaná, o “medo”; um corpo aberto,
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contraído, que lembra um passado doloroso, individual e colectivo, e que não esquece as violências do período colonial. Obennó foi muitas vezes consultar Tcharte, “porque a medicina dos brancos não conseguiu ajudá-la”. A descrição dos sintomas falava metaforicamente das suas vivências emotivas: Tcharte podia ajudá-la porque “escutava e compreendia” (n’oguén) esta linguagem. Nos seus contos, “no tempo dos Tuga12” o seu corpo começou a fragilizar-se, a abrir-se: Tive muitas doenças, que começaram quando era criança e tinham os Tuga na minha aldeia. Nasci no tempo dos Tuga, toda a minha juventude foi no tempo dos Tuga. Os Tuga enviavam às nossas aldeias outros pretos, estrangeiros, às vezes Fula, Mandinga, Balanta13. Chegavam armados e levavam as pessoas para o trabalho forçado. No tempo dos Tuga, os pretos faziam mal uns com os outros: estes pretos estrangeiros violavam (n’okpás) as meninas, furtavam o que queriam, batiam nos que não pagavam os impostos, mesmo nas mulheres grávidas. Eles levaram o meu pai como um escravo, e a minha mãe morreu porque o seu coração se queimou (n’unummi konó) e eu fiquei órfã (n’unummi konó n’ojón kugbí kunrenh eti iató ebenten, literalmente “o coração queimado viu o meu corpo em frente à gente como órfão). Chorava o dia inteiro pelas desgraças da minha vida (nhidag enhenguená, “chorava miséria”). A consequência foi que me cansei de viver assim. E que fiquei doente, de uma dor que não passa (ikojóke), que não me dá tréguas. Cansei-me também de lembrar (n’éta) isso contigo. Agora estou muito cansada deste navegar; ser uma mulher é um castigo (Nhide Nagbok Tankpán Kutiti. N’onam Okanto Onam Kavénne, 12 Tuga é o termo crioulo para indicar os Portugueses. 13 Durante o período colonial, a circunscrição do arquipélago, com sede em Bubaque,
criou cinco postos administrativos, cada um gerido por um funcionário português (chefe de posto), directamente subordinado ao administrador da respectiva secção. Ao nível da aldeia tinha um papel de relativo poder o regedor, um agente do governo, geralmente de grupos étnicos aliados ao poder colonial, que se ocupava de obter – de forma às vezes violenta – os impostos devidos.
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literalmente “acabei de ser cansada de navegar entre as ilhas; Ser mulher é um castigo). Não quero lembrar-me daquele tempo tão mau. Só quero esquecer, não quero falar daquele tempo: estou cansada das tuas perguntas.
Do que causa mal-estar não se pode falar muito: as narrativas da dor são temidas e evitadas porque o sofrimento pode colar-se (n’otokán) ao corpo, pode pegar (n’otronnán), causando doença (ikojóke), loucura (orokóm) 14 , e perda de controlo (n’okandaré, literalmente “abandonar-se, deixar-se ir”) ou da energia vital (orebok). Falar do sofrimento significa de alguma forma concretizá-lo, evocá-lo e carregá-lo de poder, aumentando assim a possibilidade do contágio: o sofrimento, como uma doença infecciosa, pode transmitir-se por proximidade, penetrando facilmente os confins corpóreos. A insistência de Obennó sobre a vontade de não falar e de esquecer revela também uma relação complexa com as próprias memórias, e a tentativa de olvidar um tempo que evoca dolorosamente o passado individual e da comunidade inteira: um tempo e um sofrimento continuamente “presentificados” pelos seus sintomas. Face à necessidade de esquecer, a doença representa uma entre as técnicas culturais possíveis de construção ou reevocação do passado. Obennó está cansada de “navegar” no oceano das suas lembranças: as minhas perguntas incomodam-na. O seu corpo todavia recorda: o tempo das violências passou, mas a dor continua presente e não dá descanso. Obennó fala de uma dor crónica que mantém vivas as lembranças, de um sofrimento que desde então é a sua vida. Quando chegaram para a levar aos trabalhos forçados ela não conseguiu levantar-se. As pernas bloquearam. Não podia andar. Os missionários de Bubaque tentaram ajudá-la: trouxeram-na ao hospital Simão Mendes de Bissau e até ao hospital de Canchungo. Mas os sintomas, interpretados pelos médicos 14 O verbo n’orokóm literalmente significa “brincar, gozar, lutar”, mas se empregue com a
preposição ta, que exprime essencialmente a proveniência ou o meio, assume o sentido de “ser doido”.
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como manifestações de uma doença orgânica, não melhoraram: a medicina dos brancos não conseguiu curá-la. Os exames clínicos não evidenciaram disfunções orgânicas nem anomalias que pudessem justificar o quadro sintomatológico ilustrado pela paciente. Não sei que tipo de doença tinha apanhado, sei que me sentia a cada dia mais fraca e que as pessoas me perguntavam qual era a parte do meu corpo que mais doía: em todo o corpo eu tinha dor, o meu corpo estava aberto (n’okpaiok) e tudo o que entrava feria. Não conseguia falar, não podia mais andar. Tinha perdido o meu pai, a minha mãe e as minhas forças. Tinham-me tirado tudo, nada nos pertencia, aquela gente furtava, não pedia. Estava então como morta, deitada o dia inteiro e nada mais. Deixava as coisas acontecer ao meu redor, sem qualquer reacção. O meu irmão então carregou-me sobre as suas costas e levou-me até Bruce onde morava o meu tio Kokomoro. Levaram-me ao sítio onde fazem as cerimónias para me tratar e lá lavaram o meu corpo todo com yayi15 para a minha pele ficar dura e o corpo forte, para nada conseguir mais entrar. Tive que passar yayi no meu corpo todos os dias até este ficar impenetrável aos olhares penetrantes e ao desejo (edík) 16 dos outros. Só por causa disso não morri. Mas estas dores nas pernas que não me deixam andar continuam ainda hoje. Foi por isso que procurei Tcharte, porque ele pode ver o que os outros não vêem (“ver com a cabeça”, n’ojón ta bú).
Os sintomas de Obennó revelam as violências que ela sofreu no período colonial, o medo e a dor que abriram o seu corpo. Na sua narração, a doença constitui a imagem da desordem e do conflito, quer ao nível do corpo biológico, quer do corpo social. A doença pode ser 15 A infusão de raízes secas de yayi (Uvaria Chamae) é um remédio muito usado para
massajar os recém-nascidos para os tornar escuros (n’onitikokon), duros (n’onikpetí) e secos (n’odan) o mais rapidamente possível. 16 Edík deriva do verbo n’odík, que entre os seus significados compreende: querer,
pretender, desejar, insistir, ganhar, ser fortes, ser irrequietos, bater o ferro, competir, lutar.
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interpretada como “uma esponja que absorve os significados peculiares das vivências pessoais e das situações interpessoais” (Kleinman 1988: 31). O sintoma do qual se continua a queixar, além da genérica “dor” no corpo inteiro, é a incapacidade de andar: um acto de oposição e impotência face a uma realidade que não consegue aceitar. O verbo n’okojóke, “sentir dor”, muito presente no relato da Obennó, denota “ter uma doença crónica, que não passa”. Nas suas palavras: nhikojóke ankugbí eti ikojóke, “sofro no corpo para uma doença que dura há muito tempo”. O termo empregue para uma doença breve e passageira é n’oduban17, “ser quente, ter febre”, ou são utilizadas expressões onomatopeicas que indicam o tremor das febres maláricas: n’orenrénk, n’okpekekpekek, n’orikirikik. Mas é só um ikojóke que pode levar a enlouquecer, a perder o controlo sobre o corpo inteiro, a queimar-se vivo. Expressões frequentemente presentes nas minhas entrevistas incluíam: n’orokóm eti ikojóke, “enlouquecer pela dor”; n’ogó egod ta kugbí eti ikojóke, “vomitar o fígado do corpo pela dor”; n’ogont ta konó eti ikojóke, “queimar no coração pela dor”.
PERDER-SE Os sintomas lamentados por Obennó lembram as queixas de uma outra paciente de Tcharte, Koká, cujo percurso terapêutico acompanhei ao longo de dois anos. Koká foi uma das esposas de Tcharte, repudiada depois de alguns anos pela infelicidade e azar que ela trazia consigo. Pedro Banca, antes de informante um grande amigo meu, ao qual devo primeiro a aprendizagem do crioulo e depois do bijagó (básico), e que acompanhou com todas as suas energias o meu trabalho de campo, era o único filho sobrevivente de Tcharte e Koká. Pouco depois da rejeição 17 São consideradas n’oduban, doenças temporárias, por exemplo o sarampo
(n’unsúnsuru) ou a dor de barriga (kokpá).
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da mãe, Pedro entrou num período de conflito com o pai. Esta disputa familiar causou – em sua opinião – o acidente que sofreu em rapaz: a queda de uma palmeira que lhe custou a coluna, obrigando-o a ficar preso para sempre a uma cadeira de rodas. A paralisia de Pedro – espelho e resultado, nas suas palavras, da relação conflitual entre os pais – é somente uma das amarguras que Koká sofreu na sua vida e que marcaram o seu corpo. O seu destino de dor estava já escrito no seu nome. Quando era mesmo muito pequena a sua mãe e a sua irmã mais velha morreram, deixando-a sem ninguém para cuidar dela. Ainda me lembro dos gritos das mulheres da aldeia: orebok oisir, orebok okan kugbí: koká! koká omgbá! nhinam konó eti amo, omisonámo okpé, koká!, “o orebok descolou-se, o orebok abandonou o seu corpo. Coitada, coitada criança! Sinto pena por ti (sou coração por ti), a tua mãe morreu, coitadinha!” Koká, “coitada”, ficou como meu nome e meu castigo. Desde então todo o que se passou comigo é ligado ao meu nome e a gente na rua ao meu passar sussurra “Koká, koká…” (Coitadinha, coitadinha…). Pronunciando o meu nome, chamam o meu destino. No dia em que o meu primeiro filho compreendeu o castigo trazido pelo meu nome, decidiu cuidar de mim e ir trabalhar para os brancos, para os Tuga. Eu queria que ele frequentasse a escola, mas ele decidiu sacrificar-se para me sustentar, ele sabia que Koká é um nome que lacera o corpo e a vida. Ele foi deixar-se explorar por minha causa, no lugar de metal dos brancos (a fabrica alemã de óleo de palmeira na praça da Ilha de Bubaque). Todos os dias era humilhado, maltratado, tinhas que ver as condições, as condições… Tudo mudou em 1980, no dia 4 de Maio. O caldeirão da água quente, que usavam para preparar o óleo de palmeira, entornou-se e entre todos os que trabalhavam lá apanhou somente o meu filho, a sua cara, a sua barriga. Koká! Koká! Escutava este grito na rua: as mulheres chamavam o meu nome e outra vez com a palavra marcavam o meu destino. Disseram-me que tinha acontecido um acidente e que tinha que correr logo até à praça. Eu comecei a correr mas de repente as pernas quebraram-se e tombei no chão e não consegui levantar-me mais. O meu corpo lacerou-se
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pelo cansaço da dor. No chão implorava a morte, mas a morte não cedeu e levou consigo o meu filho. A morte é malvada, não cedeu às súplicas, mas como a chamei, colou-se ao meu corpo. Nindo18 quis-me dobrar, Nindo colocou-me no chão (n’okpeteká). Abati-me no chão e no chão é que eu fiquei até agora: olha para as minhas pernas, estão doentes, inchadas, pesadas. Desde então fiquei doente. Levaram-me ao continente aos hospitais de Canchungo e Bafatá, mas não conseguiram curar-me. A medicina dos brancos não me podia ajudar, eles não conseguiam perceber porque não podia mais andar, nem dormir, nem comer: tinha perdido a minha energia vital (orebok), tinha perdido o meu filho. Ele subiu na piroga dos mortos, e ao mesmo tempo o meu orebok desembarcou de mim. Koká, koká: esta era a minha doença. Não me lembro bem das palavras deles, esqueci o que se passou: na minha cabeça tudo era um barulho, o meu corpo estava a cada dia mais fraco e estava quase a morrer. Koká okpé kenken: “Koká está próxima da morte”. Koká omane tanona tandag: “Koká não pode mais parar de chorar”. O meu corpo ainda agora chora. Estou tão cansada de chorar por esta doença, pela dor (nhide nagbok tandag ikojóke inrenh): a dor cansa (ikojóke itin’an), sabes? E eu estou tão cansada… não me levanto mais, estás a ver? Eu quase não ando. A doença (ikojóke) ficou aqui nas minhas pernas (anmbe). Perdi as forças e agora só ando como um pássaro. A gente fala, diz que eu ando e choro como um pássaro; mas à noite os pássaros fartam-se de chorar e eu não. Onde posso ir agora, eu que choro e ando como um pássaro? Olha as minhas pernas: eu só quero esquecer (n’otanín) e o meu corpo lembra (kugbí éta).
A história da Koká, que relata as circunstâncias trágicas da morte do seu filho, as consequências emocionais devastadores e a dor agarrada ao seu corpo, fornece pontos interessantes de reflexão. O destino criado por uma palavra, koká, coitada, é o primeiro ponto da sua história que vale a pena explorar. No terreno aprendi que as palavras não são somente representações de algo, não veiculam apenas 18 Nindo é o criador supremo.
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conhecimentos e informações: são sobretudo poder, energia, acção. Ensinaram-me lá que se pode mesmo fazer coisas com as palavras (Austin 1962). O som mesmo das palavras tem poderes especiais e pode ter efeitos nos corpos, assim como na vida e nas relações dos indivíduos. Uma vez denominada a sua condição, esta torna-se o seu fado: toda a vida de Koká é marcada pelas perdas, pelos lutos, pelas doenças e pela solidão. Koká, Coitada. A ruptura de uma relação tão importante como aquela entre mãe e filho causa sofrimento e o sintoma físico (as pernas que quebram, o corpo que se lacera) é a metáfora incorporada desta fractura. A maior parte das histórias recolhidas no terreno mostra um padrão muito semelhante às narrativas de Obennó e Koká aqui apresentadas. Os entrevistados começam por apresentar os sintomas do ponto de vista físico, mas a dor é rapidamente historicizada, deslocando-se do corpo para outros locais, presentificando memórias, ligando espaços e episódios do presente e do passado. O corpo nestes casos lembra, torna presente e exprime os sentimentos lacerantes da perda. O conceito de perda é central na narração da doença que aflige Koká: a perda do filho é também perda da sua capacidade de andar, da energia vital, da força, da consciência. Koká não se lembra das palavras porque “na sua cabeça tudo era um barulho”, mas no corpo a dor deixa um rasto, uma lembrança: a dor fica nas pernas, diz Koká. Pela dor anda agora como um pássaro e como um pássaro chora. “Tornar-se ou andar como um pássaro” e “chorar como um pássaro” são expressões metafóricas típicas no universo do arquipélago para representar a dor da perda de algo importante, como a morte de uma pessoa amada. O choro da dor é associado ao “choro” dos pássaros. O canto (orai) dos pássaros é de facto considerado um “choro” (odag), que evoca o sofrimento extremo. Como pássaros andam os que perderam a direcção e o controlo de si mesmos, num andar desorientado, um saltar de um lado para o outro como empurrados pela força do vento, sem uma meta. Quanto mais a dor se intensifica, consumindo a energia vital, mais os sintomas se
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agravam até bloquear as pessoas aflitas num estado de pré-morte (não andam, não compreendem, não falam, não comem). A lembrança da perda de pessoas amadas marca particularmente os corpos, permanencendo na impossibilidade do movimento e na dor crónica. A incapacidade de se mexer, a paralisia, o cansaço extremo são sintomas omnipresentes nos relatos recolhidos. A mesma sensação de perda do controlo do corpo é também expressa às vezes através da impressão de “ser passivo”, “agido” ou “controlado” face a forças externas. Todas estas narrativas têm em comum a ideia do corpo como impotente, inerte, literalmente incapaz de se mover. O bloqueamento físico e a passividade total representam metaforicamente a resignação, a completa ausência de esperança e de energias para enfrentar a situação. Na medida em que a pessoa, na antropologia bijagó implícita, precisa da rede das relações sociais para a sua própria completude19, a perda de vínculos importantes constitui a perda de partes de si mesmo, uma perda física dolorosa. A solidão é encarada como uma doença, e a fractura dos laços afectivos como a pior dor possível. Ojentók, a solidão, é considerada a experiência em vida mais próxima da morte: n’ambonki anden nijón n’onó kan enho: n’ambonki anden nakán eti kuó deeki; iajoko iakanám eti kuó, “a casa está agora vazia, a varanda silenciosa, os tambores sagrados da aldeia fizeram-me ficar sozinho na varanda, ninguém fala mais comigo na varanda”. A varanda, espaço privilegiado de encontro e sociabilidade, está triste, desabitada, muda; os tambores sagrados, primeiro sinal de luto na aldeia, são empregues aqui como metáfora da morte, da solidão, da falta de apoio social, do abandono, todos factores potencialmente causadores de doença. Uma perda no corpo social é sentida como uma dor penetrante no corpo físico individual. Assim se fala de problemas sociais como se fossem problemas orgânicos, que são desta forma vivenciados e sentidos. O corpo físico adoece se o corpo social não é saudável. 19 Pussetti 2005.
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A DOENÇA DE QUEM VAI EMBORA Algumas das entrevistas recolhidas referiam-se explicitamente a sintomas relacionados com a fractura de laços íntimos ou com a separação de um familiar. É o caso da doença das pessoas “que disseram adeus” (n’odi) 20 . N’odi, a emoção que acompanha as separações, as distâncias, as fracturas de laços, é considerada muito perigosa para a saúde 21 . O afastamento dos filhos, bem como o distanciamento entre as famílias, são fontes reconhecidas do “n’odi”. Qualquer separação física ou ausência prolongada mina potencialmente as bases da relação, enfraquece os vínculos afectivos e abala as certezas do familiar. O n’odi atinge particularmente as pessoas que migram, seja de uma ilha para a outra do arquipélago, seja para Bissau ou outras cidades do continente, seja para a Europa, nos poucos casos em que o desejo de partir se concretiza na realidade. Apesar de ser desejada, a migração é percebida como uma viagem perigosa no mundo da alteridade e como tal representa uma fractura que pode levar as pessoas à doença e até à morte. Esta “saudade” assinala momentos cruciais da vida, marcados pela não adaptação ao novo contexto, a falta de relações sociais e, por fim, o desejo de voltar ao que se deixou para trás. N’odi é causa de sintomas diferentes, difíceis de categorizar nos quadros nosológicos da biomedicina: o resultado final é a loucura ou até a morte; a única forma de recuperar a saúde é a de voltar e recompor as fracturas. O n’odi é muitas vezes interpretado como uma “chamada”, uma prática “mágica” destinada a atrair e a fazer regressar às próprias origens os que foram embora, para reconstruir dinâmicas e laços assim ameaçados ou cortados. A manutenção e o fortalecimento da relação com a família parecem ser as razões mais importantes desta 20 A tradução dos termos locais, regida pela consideração atenta aos seus empregos nos
discursos com os meus interlocutores, é uma aproximação e enquanto tal deve assumirse uma perda parcial do seu sentido original. 21 Pussetti e Bordonaro 2006.
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“chamada”. São de facto geralmente os familiares, e em particular as mães, que efectuam rituais para chamar de volta quem está longe. Simbolicamente, um dos rituais para garantir o regresso do emigrante é o enterro duma placenta humana no interior da casa, no annani, literalmente “o ventre da casa”, o quarto onde os bebés nascem e os mortos são enterrados, e que representa simbolicamente o útero materno e a continuidade através das gerações. As consequências deste ritual – que tem pontos de contacto com o “wootal” dos Serer e dos Wolof do Senegal (Sylla e Mbaye 1990-1991) – determinam no destinatário uma sensação de tensão nervosa, de ansiedade ou angústia, que podem levá-lo a manifestar outros sintomas físicos: falta de ar, de voz, de forças, de sono, de apetite. O n’odi reflecte também relações sociais tensas, como por exemplo a ruptura de relações e a transgressão de regras sociais fundamentais. Os rapazes que saem das aldeias para estudar na praça de Bubaque22, e que se demonstram cépticos em relação a muitos aspectos ligados à vida “tradicional” dos anciãos, temem pela própria saúde e até pela própria vida. O corpo é de facto o lugar privilegiado onde o contraste geracional, de perspectivas e de objectivos de vida assume a forma concreta da doença. A história de Abas, um rapaz originário da ilha de Canhabaque, que se mudou para Bubaque para frequentar a escola católica, é a este respeito muito significativa. Quando durante o ano escolar os anciãos o chamaram a voltar a aldeia para enfrentar o manras, a iniciação na floresta, ele recusou bruscamente o convite. A sua motivação expressa era o ter já cortado os laços com a “tradição”, a sua escola não sendo já o mato “skola di matu” (crioulo) mas antes as aulas que frequentava todos os dias na missão, e o desejo de sair quanto antes das ilhas e continuar o seu percurso escolar em Bissau. A sua recusa foi interpretada como uma ofensa aos anciãos, uma fractura de relações de respeito 22 A praça é o centro comercial e portuário da ilha, e situa-se na extremidade setentrional
de Bubaque. Conta mais ou menos com mil habitantes, uma escola, uma igreja, pequenas lojas e alguns restaurantes.
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e dependência próprias da lógica do ciclo ritual n’obítr kusina23 e uma humilhação para a sua família. Após alguns dias, Abas começou a manifestar distúrbios estranhos: não conseguia concentrar-se nos estudos, manifestava problemas de visão, não conseguia andar, e em particular parecia não reagir às palavras. As irmãs da missão católica, enfermeiras, sustentavam que o rapaz não tinha nenhuma lesão dos ouvidos: ouvia e reagia aos barulhos (n’onni) e portanto não era surdo; todavia, parecia não escutar ou não compreender (n’oguén)24 o que as pessoas lhe diziam. Em diferentes ocasiões os meus interlocutores sublinharam a diferença entre n’onni e n’oguén, isto é, entre sentir os sons e decifrar os símbolos linguísticos. N’oguén constitui a pré-condição essencial da maturação social: o adulto é aquele que conhece os acordos e as convenções da vida social, aceitando as suas regras, a começar pelo mais importante sistema de símbolos culturais, a linguagem. É através da compreensão da palavra que se entra efectivamente na sociedade e que esta pode agir nos indivíduos. A família de Abas resolveu portanto consultar um odiáki para perceber o sentido desta doença. O seu diagnóstico foi que a súbita surdez era uma punição dos antepassados pela recusa de Abas em escutar a voz deles e aprender no mato a linguagem do kumbonki (o tambor sagrado)25. Já que a palavra omeguén, “surdo”, indica também a loucura e a idiotice, a leitura do odiáki abre-se a diferentes interpretações. A surdez de quem não escuta/compreende as palavras dos anciãos 23 Ciclo ritual que distribui a população masculina em classes e graus de idade e que prevê
uma forma de pagamento dos jovens pelos anciãos em troca dos ensinamentos necessários para se tornarem adultos. 24 O verbo n’oguén significa literalmente escutar, prestar atenção, compreender, saber,
conhecer. 25 O kumbonki é um tambor de fenda constituído por um tronco de árvore ôco, com uma
fissura longitudinal, a formar uma caixa de ressonância. Musicologicamente trata-se de um idiofone de percussão (Nketia 1986: 77). A difusão do tambor de fenda na região da Guiné-Bissau é muito ampla: além dos Bijagós, é empregue pelos Manjaco, Papeis, Mancanha e Balanta (Wilson 1963: 201). Sobre os significados simbólicos do kumbonki veja-se Bordonaro 1998.
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e dos antepassados, garantia de reprodução da tradição da aldeia, é loucura, e a pessoa deve ser considerada como tal. Também a expressão n’obeney konno, que significa literalmente “danificar as orelhas”, designa a loucura, ou seja a incapacidade de compreender lucidamente. Quem tem as orelhas lesadas ou fechadas não entende como os outros, não compreende o que a gente diz. A pior doença imaginável26 é a perda do ouvido (n’ougí): “se não escutas estás já morto, porque não entendes os problemas, as discussões e não participas do conselho dos anciãos, não entendes a voz do kumbonki e portanto não sabes nada do que se passa na ilha”. A “loucura” de Abas acabou também por atrair a desaprovação dos espíritos da aldeia: depois de poucos dias morreu de parto Punja, a sua prima, da mesma linha de descendência. A interrogação do morto27 indicou Abas como o culpado desta morte, predizendo que o seu comportamento errado teria outras consequências nefastas sobre o seu kuduba (a filiação matrilinear). Frente a esta nova situação, Abas fugiu, provavelmente em direcção a Bissau, decidindo sair do impasse e cortar qualquer ligação com a sua vida precedente. A doença que o levou a evadir-se das suas responsabilidades sociais, explicou-me Tcharte, é chamada otankasámak. A análise desta palavra é interessante: deriva do verbo n’osamák – “fazer cerimónias, respeitar as regras, rezar, obedecer aos antepassados, estar bem” – mas o seu prefixo é a negação otank. Por exemplo: Abas obdo tanbdo. Iató ianam otankasámak; onabdo woratraké, madék okpánke, “Abas anda sem destino. A gente diz que ele não respeitou as regras/obedeceu aos antepassados (não está bem); ele passou num lugar sagrado, mas não parou”. O verbo n’otankasámak significa também “ser culpado”28. A 26 Uma das causas mais comuns de suicídio – neste caso moralmente aprovado – entre os
anciãos é a surdez. 27 A interrogação do morto é um ritual destinado a individuar as causas da morte difundido
em toda a Guiné-Bissau (Pussetti 2003). 28 Como nestes casos: nhokor kanhóma, matankasámak, “desapareceu o meu pano, tu és
culpado”; iató iatankasámak tanam moo mowan’o, “a gente é culpada de fazer coisas que cheiram mal”.
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conexão semântica entre “ser culpado”, “não respeitar, não obedecer” e “não estar bem” é extremamente significativa: a sua culpa, o facto de não ter dado ouvidos à palavra dos anciãos, é também a sua doença. As poucas notícias de Abas que chegaram às ilhas eram preocupantes: ele estava cada vez pior, muito doente e já tinha sido internado sem sucesso no hospital de Bissau. A gente na aldeia dizia que alguém tinha feito uma “chamada” e que ele para sobreviver deveria voltar para casa e cumprir o seu dever. Abas não voltou. Depois de uns tempos chegou a notícia de que ele tinha morrido, sozinho, por (mais uma vez) não ter escutado, não ter ouvido a “chamada”. Uma alteração da ordem e do equilíbrio nas relações sociais pode-se portanto traduzir num problema físico, assim como um desequilíbrio comportamental pode ter efeitos sobre a saúde dos familiares. Não só a prima de Abas morreu, mas a morte não prevista do rapaz causou um grande sofrimento à sua mãe, que por consequência adoeceu. Toda a história de Abas, desde a vergonha que causou à família até à sua própria morte, marcou o corpo físico e social: cada aflição reflecte uma perda íntima, uma fractura de laços, uma mágoa. A confusão, ou o barulho na cabeça – como na narração da Koká – a perda de controlo, a loucura, a surdez – como em Abas – são sintomas referidos nos relatos da maior parte dos pacientes que entrevistei na casa do Tcharte. O barulho é muitas vezes relatado com a expressão oríbiribík, formada por uma dupla repetição do verbo n’orib (falar): meio vívido, mimético, quase onomatopaico para evocar a confusão de vozes na cabeça (oríbiribík ta bú). A desorientação é geralmente referida através de expressões que aludem à desordem interior ou ao desnorteamento ao nível do espaço físico. Por exemplo, são expressões comuns “não ter ordem nos sentimentos” (n’okasenei ann’atribá), “ir sem direcção certa, perdendo-se” (n’odó tandó okoróbo), “andar sem ter um destino” (n’obdo tanbdo) ou “sair do caminho certo da aldeia” (n’obdo n’apáda). A loucura (orokóm) é
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também indicada por dois verbos que escutei frequentemente nos relatos dos meus interlocutores: n’okor, “não ser, não existir, desaparecer”; e n’opetekam, “ser frágil, cansado, perdido”. Este último verbo em particular tem conexões semânticas interessantes: se considerarmos o campo de aplicação do radical – pet encontramos verbos muito significativos: n’opetek, que significa “perder, deixar fugir”; n’opetok, “abandonar-se, resignar-se, não se cuidar”. Esta desistência, o cansaço, a renúncia total de quem se abate no chão (n’okpeteká, literalmente a acção do vento e da tempestade nos campos de arroz) é a doença que leva à morte. Obennó e Koká chegaram a render-se completamente, esgotadas, derrotadas, a dobrarem-se no chão. A sua dor devastou como “vento”, “tempestade” e “incêndio” – nas palavras de Tcharte, ikojoke, a dor que não passa, mexe um homem como o vento (netí) as árvores; rebenta com a força da tempestade (kakpikpidí); queima com a fúria de um incêndio (ogoutí). Quem perde uma parte de si já não pode mais controlar-se (omatrák eti moo “explodir em baixo das coisas”), o seu peito arde (kabara kogónt), o coração queima (n’unummi konó), ou parte-se ao meio (n’okpéntok tan konó), o sangue pára de correr pelo corpo (n’orkessaké ta kugbí), o ventre abre-se (n’okpai ta naa), ou fica a ferver (n’odubán annaa). Poeticamente, Koká relaciona a partida do seu filho, que sobe na piroga dos mortos (uruté iarebok), com a perda da sua energia vital: o seu orebok desembarca (n’onáka) do seu corpo29. As memórias que causam dor têm assim o poder de causar doenças e até de levar à morte, efeito derradeiro da perda do orebok. Por causa disso as minhas interlocutoras insistem tanto sobre a necessidade de esquecer (n’otanín), ou sobre o cansaço de lembrar comigo factos passados, mesmo que o corpo e os seus sintomas insistam em recordar (n’éta), re-presentificando o sofrimento. A pena das lembranças provoca 29 Uma metáfora típica compara o corpo (kugbí) a uma piroga na qual se senta o orebok,
como a expressão que define a possessão feminina (uruté iarebok, ‘pirogas de mortos”) sintetiza perfeitamente (Pussetti 1998, 2001).
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loucura (literalmente, “o coração queimado torna a gente louca”, n’unummi konó n’obeney n’annó) e traz o desejo de descansar nas profundezas obscuras do oceano, no anarebok (o lugar dos espíritos dos mortos), onde dormem os defuntos de todos os tempos. Nemeguén konekponake anetó: madá ankopeketó!, “Vocês não ouvem que eles me chamam do fundo do mar: ‘vem ter connosco no fundo do mar’!”. Assim, um dos pacientes de Tcharte representa a sua atracção pela morte através da solicitação das almas que o convidam a ir ter com elas debaixo das águas. A energia vai-se embora, o sofrimento mata, o destino último é a consolação da morte: iarakán iakanenh, nhido n’odjábo munkude, “amigos meus, andarei a engordar as aves”, diz o mesmo paciente, recorrendo à imagem atroz e desoladora do seu corpo sem vida devorado pelos pássaros. Em muitas das entrevistas recolhidas no terreno, a morte chega a ser invocada como bálsamo para os sofrimentos deste mundo cruel. Neguén: nhikpánke tanbítr 30 nindo nababadé tan nalám nhodík tanobdo anarebok, ankalan’á, “Escutem: eu não paro de pedir a Nindo que ele aceite levar-me embora, eu quero ir para o lugar dos mortos, é um lugar já perto de mim”. N’unummi konó noka ankajóko. kanrenh nindo nababadé tan nalám, “A dor (coração queimado) mora na minha casa. Se ao menos Nindo aceitasse matar-me”31. Umisóm to kobentén, modon ka menelam nhoka n’unummi konó, “Mãe de filhos órfãos, volta e leva-me contigo, para que eu possa descansar desta dor (coração queimado)”. Koona onam n’odék n’unummi konó, nhirovónni na n’okpé, “A vida é só dor, tenho pressa de morrer”. Omgbá onenh makenerám, nhokwunyóna. Oténh makenerám, nhokwunyóna, “Meu filho leva-me embora, para que possa ir descansar. Meu pai leva-me embora, para que possa ir descansar”. Todas estas invocações da morte falam da resignação total de 30 O verbo n’obítr significa “pedir através de cerimónias” ou “rezar”. 31 O verbo n’olám significa: “levar de aqui para lá”, levar para um lugar que fica longe do
quem está a falar.
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quem não conseguiu encontrar um sentido, uma resposta para justificar e compreender a razão de tanto sofrimento. Face ao drama das próprias memórias e ao ataque ontológico que é a doença, especialmente quando crónica, a necessidade do sentido parece ser o primeiro passo de uma significação da própria experiência numa direcção que já é funcional para a mudança e a cura. A falta de respostas, de sentido face à crise, é vivida como a desfeita total. Numa das conversas gravadas, uma das interlocutoras interroga os espíritos para perceber o sentido do seu sofrimento. O Orebok Okotó, todavia, fica mudo face às suas perguntas, recusando-lhe a consolação de uma resposta. Kundjinnin kunarib n’orá orám kabonake, kundjinnin miján, miboj n’anog, “Kundjinnin32 diz-me qual é o problema, Kundjinnin encontra um sentido33, tu que o podes saber”. Orebok Obóke tannaguén, n’o ók obóke tannarib n’ódo nhikam n’okojóke, “o Orebok recusou-se a ouvir-me, por isso se nega a dizer-me porque continuo a sofrer”. A significação é fundamental para conseguir sobreviver (n’obójetin’o, literalmente “conseguir safar-se”, verbo cuja raiz – obój significa literalmente dominar o incêndio, apagar o fogo), e é o primeiro acto da cura.
PARA UMA ARQUEOLOGIA DO IMPLÍCITO Quem perde uma parte de si ou uma faculdade do seu corpo precisa de ser tratado, e a narração do próprio sofrimento é também para os iadiaki entrevistados o primeiro passo em direcção à cura. A intervenção diagnóstica do curandeiro, neste caso de Tcharte, é principalmente maiêutica e interpretativa: ele conecta a dor, os sentimentos e as relações sociais do paciente no passado e no presente, explicitando uma cadeia causal da qual o último anel é a doença e a 32 Nome próprio do Orebok Okotó. 33 É interessante o emprego do verbo n’odján, literalmente “conferir significado, dar
sentido”.
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crise. Ao mesmo tempo que acompanha a narração do paciente, o curandeiro concentra a sua atenção em tudo o que “goes without saying” (Bloch 1992). Neste sentido podemos afirmar com as palavras de Taussig (1980: 7) que: The real task of therapy calls for an archaeology of the implicit in such a way that the processes by which social relations are mapped into diseases are brought to light, de-reified, and in doing so liberate the potential for dealing with antagonistic contradictions and breaking the chains of oppression.
Talvez seja exactamente esta capacidade de reconstruir arqueologias do implícito que constitui o dom que Tcharte tem de “ver com a cabeça” o que não é óbvio nem superficial, o que os outros não conseguem ver. Para ver o invisível e saber ler os sinais do corpo, Tcharte invoca a protecção e a ajuda dos espíritos, recolhido atrás de um pano vermelho no seu altar privado. Oferece cana (aguardente de cana de açúcar) directamente ao ventre do Orebok Okotó, o espírito protector da aldeia, representado por uma escultura antropomorfa. Na sombra da cabana, atrás da tenda, ressaltam somente os olhos metálicos dos espíritos. Tcharte mexe uma pequena abóbora que contem grãos de arroz e presenteia os defuntos da comunidade e os antepassados, que respondendo à chamada vão reunir-se sob a forma de energia pura no interior do ventre do grande espírito. Tcharte murmura os nomes dos seus familiares extintos, encrespando o ar a cada nome com o toque cristalino de um pequeno sininho. Fecha os olhos e começa a tremer: o seu orebok, a sua parte espiritual, está a separar-se do kugbí, o corpo, a matéria, para voar à noite na dimensão dos espíritos, representada pela floresta – terra de aparições, de almas esquecidas, de animais selvagens – à procura da energia perdida pelo seu paciente. O espaço e o tempo liminares por excelência, a floresta e a noite, tornam-se a esfera ideal para Tcharte conseguir colher a mensagem fragmentada em sintomas, e assim libertar um corpo possuído por lembranças dolorosas. Tcharte escuta a dor não apenas por aquilo que comunica sobre o estado do
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corpo físico, mas também pelo que comunica sobre a esfera social e moral, tratando os pacientes pela intervenção também nas relações. A fim de recompor a ordem física e social, de atribuir e redefinir sentidos, restabelecer a saúde da pessoa e o bem-estar colectivo, o odiaki interpreta as metáforas incorporadas e as narrativas da doença que os seus pacientes lhe transmitem como mensagens de crise pessoal e existencial que também exprimem as feridas históricas, os problemas e as contradições da comunidade. Para melhor compreender a linguagem metafórica do corpo poderíamos empregar a noção de “somatização”, muitas vezes sugerida pelos médicos que tentaram tratar esta tipologia de sintomas. As queixas físicas muitas vezes não se mostravam ligadas a uma disfunção orgânica observável através de testes médicos: uma constante dos relatos recolhidos no terreno é que a resposta “oficial” biomédica, embora sempre procurada pelos pacientes, nunca se revelava eficaz, limitando-se a denunciar a ausência de problemas físicos “objectivos” ou “reais”. Ao mesmo tempo, a etiqueta de “somatização” bem pouco auxilia a compreensão da realidade e significado do sofrimento dos doentes: os estudos sobre a genealogia da categoria sublinham como a sua definição conceptual reflecte a dicotomia cartesiana “corpo/mente”, quer do ponto de vista epistemológico, quer ontológico. Epistemologicamente, o conceito de somatização serve para encaixar as excepções à regra de que doenças e distúrbios somáticos são legitimados somente à luz de uma evidência orgânica cientificamente demonstrável. À falta de tal evidência, conclui-se que o corpo está apenas a expressar algo relacionado com o mundo emocional, psicológico ou social do paciente. Os pacientes que se queixam de sintomas somáticos perante inexistência de confirmações fisiológicas colocam-se então numa posição equívoca face aos médicos. Esta falta de credibilidade dos sintomas na ausência de provas orgânicas legítimas suporta por sua vez a distinção ontológica radical entre doença física e transtorno psicológico. A leitura clínica dos sintomas continua portanto
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baseada numa representação dicotómica do ser humano, reproduzindo um contraste nítido entre doenças “verdadeiras”, pelas quais os doentes não são responsáveis, e doenças “imaginárias”, do foro psicológico. Assim, apesar do conceito de somatização constituir uma tentativa de ultrapassar o dualismo mente/corpo, acaba por reproduzi-lo. A noção de somatização reafirma de facto o papel passivo de um corpo que emerge como mediador de processos causados por transtornos emocionais ou por condições conflituosas próximas do paciente. Por outras palavras, o corpo funcionaria como meio de expressão de uma realidade que está para além e é independente do mesmo: a realidade psíquica ou social. O que falta ao conceito de somatização parece ser uma concepção do corpo em si como agente activo na produção da experiência e dos significados. Tal noção reforça a representação biomédica do corpo assim como uma ideia de cultura enquanto sistema de símbolos desincorporados. Carece, por outras palavras, duma leitura fenomenológico-cultural do corpo, capaz de reconhecer o papel e presença activa deste nos processos criativos da vida sociocultural. As entrevistas recolhidas no terreno testemunham que a dor, longe de ser um fenómeno isolado e exclusivamente físico, é elaborada através de narrativas que reflectem, para além da dimensão individual, também os mais amplos horizontes simbólicos e experienciais dos sujeitos. As narrativas de dor falam de diferenças de género, de questões políticas e económicas, de relações familiares, de emoções e de processos históricos, contradizendo o dualismo sugerido pelo discurso clínico dominante na biomedicina. Em vez da noção de somatização, consideramos assim mais apropriado o conceito de mindful body, proposto pelas antropólogas Lock e Scheper-Hughes (1987). Esta noção, como a de embodiment elaborada poucos anos depois por Csordas (1990, 1994)34, foi introdu34 É óbvio que a fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty (1979), e a teoria
do habitus de Pierre Bourdieu (1980), constituem antecedentes analíticos a este conceito.
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zida nas ciências sociais justamente para ultrapassar a questão espinhosa da relação entre corpo e mente. O termo embodiment indica de facto o estado ou processo que resulta da interacção contínua entre corpo e mente, ou melhor, da conceptualização destes elementos enquanto constituintes de uma unidade definida, o body/mind manifold (Samuel, 1990). Por outras palavras, embodiment designa a intersecção do biológico e do social no âmbito da experiência vivida, assim como a inscrição e codificação da memória sob forma somática, como proposto por Bourdieu (1972) e Connerton (1989), entre outros. A incorporação da memória social nos corpos individuais tem pelo menos dois aspectos que vale a pena aqui considerar. O primeiro é objectivo: a marca física deixada pela história, em termos de fadiga, violência, deterioração, desgaste, privações. Os corpos enfermos, os sintomas – múltiplos, obstinados, severos – dos meus interlocutores não constituem somente uma consequência imediata da pobreza, mas também reflectem o efeito duradouro da opressão histórica e da violência estrutural, para empregar uma expressão de Paul Farmer (2003) 35 . O segundo aspecto é subjectivo. É o rasto, no imaginário colectivo, deixado pela memória no domínio da interpretação do mundo social e da construção de metáforas e estratégias narrativas. Em muitos dos relatos recolhidos, especialmente quando ligados a acusações de feitiçaria, figuram imagens terríveis que têm as suas raízes na realidade da opressão colonial. Nas narrativas da doença os pacientes ligam as queixas corporais a histórias de sofrimento pessoal ou familiar mais amplas que 35 Utilizo aqui o conceito de violência estrutural em bruto, ainda que este pudesse
beneficiar de alguma elaboração, diversificação, e talvez até redefinição. Diferentes autores se têm empenhado em evidenciar as ligações complexas entre violência, sofrimento, controlo e poder, entre as quais lembramos noções como a de “violência simbólica” de Bourdieu (2000), a de “cultura do terror” de Taussig (1986, 1992), de “violência do quotidiano” de Scheper-Hughes (1996), ou de “sofrimento social” de Kleinman, Das, e Lock (1997). O que diferencia a definição proposta por Farmer das restantes é a sua formulação enquanto instrumento teórico, método de pesquisa e imperativo ético. A eficácia do conceito, como argumentam outros autores (Brendan 2005; McBride 2007), está na sua capacidade de tornar visíveis as dinâmicas sociais (e portanto também económicas, políticas e históricas) da violência e da marginalização.
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integram lembranças de ameaças e mortes, com os seus efeitos traumáticos (desmoralização, medo, desespero) e as suas fontes específicas (dominação colonial, violência, guerra, escravidão). Memórias corporais, vivências emocionais individuais e história social cruzam-se e fundem-se. As queixas corporais evocam queixas sociais que mais do que apresentadas ou discutidas publicamente são vividas e sentidas (lembradas) na esfera carnal. Esta metáfora vivida liga literalmente a anatomia individual ao corpo social: a rede de músculos, ossos, nervos e sangue reflecte a rede das relações sociais. Cada queixa, elaborada no contexto de uma narrativa que integra sofrimento social e corporal, constitui um comentário moral, uma crítica social, uma reconstrução da história colectiva. O odiáki transita e conduz o paciente através de diferentes dimensões individuais e colectivas, históricas e espaciais, e pelas tramas do tecido social, ressemantizando a ocorrência contingente e a causa imediata da manifestação da doença. Define assim os contornos do mal e os caminhos da sua reparação, atribuindo-lhe um nome, desvendando a sua origem e finalmente fornecendo novos enunciados que reconstituam ou criem novas relações e sentimentos de pertença. A actividade terapêutica do odiáki evidencia como a doença só pode ser conhecida e tratada no exercício de uma acção interpretativa, sublinhando que biologia, significados atribuídos e práticas sociais interagem na construção da doença como objecto social e experiência vivida vinculada a relações sócio-históricas de poder. A doença pode ser portanto lida como manifestação individualizada de um processo cujos contornos e mecanismos se definem e constroem no interior das tensões e conflitos produzidos nas tramas de relações, valores e dinâmicas históricas da sociedade e pelos seus paradoxos. As aflições dos pacientes que acompanhei no terreno podem ser interpretadas como sinais incorporados das dificuldades de estabelecimento duma relação equilibrada entre as próprias identidades diferentes, duma correcta distância entre o mundo do presente e o tempo dos antepassados, entre
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os próprios desejos, as possibilidades efectivas e as expectativas da família, entre a vontade de autonomia e os laços sociais. Os sintomas “esquisitos” têm que ser decifrados em relação a estas dimensões mais amplas, já que representam e renovam as tensões sociais e as memórias colectivas que atravessam estes corpos. O corpo emerge como um arquivo histórico e os seus sintomas como um comentário moral e político sobre as complexas relações que inserem a comunidade bijagó em processos sociais que ultrapassam amplamente o contexto local. Neste sentido, a doença pode ser interpretada, seguindo a perspectiva adoptada por Nancy Scheper-Hughes no seu trabalho sobre os ataques de nervos na comunidade de Alto de Cruzeiro no Brasil, como uma forma de acção corpórea, “uma coisa que os seres humanos fazem de maneiras absolutamente originais” (Scheper-Hughes 1994: 229).
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PA RT E I I I RITUAIS E ITINERÁRIOS DO SOFRIMENTO: PLURALIDADE TERAPÊUTICA NA ÁREA DA GRANDE LISBOA
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Capítulo 7
Pluralidade terapêutica entre os migrantes guineenses
Clara Carvalho*
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Investigadora CEAS/CRIA, Departamento de Antropologia do Centro de Estudos Africanos, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
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As capitais europeias são hoje locais de acolhimento para milhares de migrantes originários da África Ocidental que diariamente se cruzam nas suas ruas procurando trabalho, segurança, diferentes condições de vida, ensino e novas oportunidades. Estes movimentos populacionais inserem-se nas práticas actualmente definidas como globalizadas que focam, por um lado, a circulação de pessoas para os mercados de trabalho e, por outro lado, a transacção inversa de bens e referentes exportados dos países do Norte para os do Sul. Esta perspectiva ignora as múltiplas relações estabelecidas nestes movimentos que, para além de transnacionais, são transculturais. Neste artigo pretendo abordar as formas de circulação de saber terapêutico implementadas com as novas vagas de imigração das duas últimas décadas, focando o exemplo específico dos terapeutas tradicionais guineenses a operarem na zona da Grande Lisboa. A experiência do infortúnio, da doença e da insegurança que acompanha muitos dos trabalhadores migrantes é um terreno propício à busca de novos sentidos e significados para o sofrimento, onde actuam os terapeutas tradicionais. Assumindo-se como verdadeiros tradutores culturais entre diversos universos de conhecimento e de interpretação, estes ritualistas encontram no público migrante um grupo ávido de significado. Partilham com muitos dos seus pacientes as mesmas experiências de vida divididas entre diferentes mercados de trabalho e diversos contextos culturais e geopolíticos. Os terapeutas guineenses a operarem em Portugal dividem-se em duas grandes
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categorias, jambakus e marabouts, também conhecidos por mouros. Enquanto os primeiros são um grupo pouco conhecido fora do seu contexto de proveniência, os segundos inserem-se em confrarias e irmandades islâmicas, cuja actuação no Senegal, Mali e França tem sido longamente evocada. Neste artigo é proposta uma abordagem que contraria a visão habitual de uma circulação unívoca de bens e saberes dos países do Norte para os do Sul, a qual é notavelmente exemplificada pela exportação hegemónica da biomedicina e da farmacologia ocidentais (White et al., 2002). Procurando um olhar de proximidade que permita compreender a complexidade da actuação destes terapeutas, apresento diferentes estudos de caso ilustrativos das problemáticas com que se deparam estes terapeutas e da sua capacidade de adaptação a experiências de vida globalizadas.
A CRIAÇÃO DA DIÁSPORA GUINEENSE A Guiné Bissau é, desde há diversos séculos, um país de trabalhadores migrantes, o que conduziu à criação de uma verdadeira diáspora, cuja influência no país se tem vindo a adensar 1 . O incrementar deste movimento no último século conduziu à constituição de comunidades guineenses nos países vizinhos em África, bem como na Europa, principalmente em França, Portugal e Espanha. Procurando caracterizar a complexidade desta diáspora, distinguimos os diferentes momentos que levaram à sua criação. Os primeiros testemunhos sobre os trabalhadores migrantes na região datam do século XVIII e referem-se aos jovens trabalhadores 1 A utilização do termo “diáspora” pode ser contestada, nomeadamente pelo sociólogo
Fernando Luís Machado o qual considera que a longa tradição de migração da Guiné Bissau não levou à criação de uma verdadeira diáspora (Machado 2002: 76). Como defendo neste artigo o incremento do fluxo migratório, sobretudo após o golpe de estado de 1998, conduziu de facto à criação de uma diáspora guineense activa.
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manjaco das concessões europeias, e aos marinheiros que embarcavam nos navios mercantes, os quais vieram a fundar as primeiras comunidades intercontinentais guineenses nos portos franceses (Gable 1990, Diop 1996). Posteriormente, ao longo do século XX, acentuaram-se as migrações com destino ao Senegal e à Gâmbia (Hochet 1983; Diop 1996). Tratava-se de uma migração de origem rural, inicialmente masculina, originada na atracção pelas melhores condições económicas e liberdade política no país vizinho, que levou à constituição de numerosas comunidades manjaco no Casamansa, Dacar e nos arredores de Paris durante o período colonial (Diop 1996; Teixeira 2001). Inicialmente limitado às populações costeiras e do norte do país, o movimento migratório alargou-se a outros grupos da zona Norte e Leste (Hochet 1983). As deslocações transcontinentais a que assistimos até à década de 80 são uma continuidade da emigração rural para o Senegal e a Gâmbia, pelo que se dirigem preferencialmente para França e Inglaterra. Esta migração incluía os trabalhadores rurais empregados na cultura do amendoim, bem como artesãos e terapeutas tradicionais que se deslocavam sazonalmente aos países vizinhos. Nas duas últimas décadas, com a introdução dos Planos de Ajustamento Estrutural em 1987, a liberalização económica e a adesão à Comunidade Financeira Africana em 1997, criou-se um cenário de inflação e salários em atraso que rapidamente depauperou a população urbana e alimentou novos contingentes de emigrantes Actualmente os grupos de migrantes são pluriétnicos e maioritariamente constituídos por elementos de origem urbana com um percurso escolar médio ou superior. Este movimento é explicado pela pressão económica e política que se faz sentir nas últimas décadas na Guiné Bissau e afectou, particularmente, as populações assalariadas, geralmente empregues em serviços públicos. Estas pessoas não só vêm frustradas as suas ambições no país como estão numa posição mais frágil face ao progressivo enfraquecimento da economia nacional (Machado 2002: 79). Por outro lado, a migração rural acentuou-se, procurando alcançar
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directamente os destinos transcontinentais europeus, seja por avião ou de barco, via Cabo Verde ou as Canárias. A migração transcontinental que se dirigia originalmente para Inglaterra e França via Gâmbia e Senegal, é actualmente direccionada para Portugal, de onde podem passar para Espanha e França (Machado 2002). O contingente de migrantes guineenses em Portugal é constituído por três grupos distintos, dos quais o principal consiste dos trabalhadores indiferenciados que chegaram a este país nas duas últimas décadas. Um segundo grupo, que Fernando Luís Machado designa de luso-guineenses, é composto por um número significativo de membros da antiga elite nacional os quais, após a independência, escolheram a nacionalidade portuguesa ou a dupla nacionalidade. Os membros deste grupo caracterizam-se por pertencerem a famílias abastadas, obterem uma fácil inserção social no país de acolhimento, mantendo, contudo, as suas redes de relacionamento no país de origem. Um terceiro movimento migrante é constituído pelos estudantes. Desde a década de 50 que a elite guineense envia os seus filhos para completarem a sua formação no estrangeiro, sendo o exemplo mais conhecido o de Amílcar Cabral. Durante o período colonial, os destinos óbvios eram Portugal, e os países de Leste para alguns dos que participaram na guerra nacionalista2. Após a independência o grupo dos estudantes bolseiros aumentou, sobretudo os que realizaram a sua formação nos países da Europa de Leste, os quais eram, antes da queda do muro de Berlim, os principiais doadores de bolsas de estudo. Apenas um número limitado de estudantes seguiu para o Brasil e, em casos esporádicos, para os E.U.A. Estes licenciados e doutorados constituíram a maioria da elite governativa e dos quadros da Guiné Bissau desde a independência. Contudo, a falta de condições e a instabilidade encontradas na Guiné Bissau, bem como a atracção criada 2 A luta nacionalista começou na Guiné Bissau em 1963, por iniciativa do PAIGC
(Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde), só terminando em 1974.
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pelos países de acolhimento, conduziu à saída de muitos destes quadros que hoje formam uma verdadeira rede de imigrantes transcontinental mantendo inúmeros laços – familiares, de amizade e de interesse – com as elites do seu país. Esta “fuga de quadros”, como é por vezes chamada, acentuou-se depois do golpe de 7 de Junho de 1998 que conduziu ao afastamento do poder de Nino Vieira após um conflito militar que opôs a maioria do exército guineense aos efectivos senegaleses vindos em socorro do antigo presidente. A luta armada que decorria no interior de Bissau, a deterioração das condições de vida nesta cidade, a instabilidade política que conduziu ao afastamento cauteloso de muitas organizações internacionais e ONGs, que preferiram colocar as suas sedes em países limítrofes mais seguros, tornaram Bissau uma cidade instável. Muitos dos membros do governo e da elite local preferiram afastar-se e, servindo-se dos seus contactos internacionais, procuraram apoio noutros países. Estes diferentes trânsitos migratórios conduziram à criação de uma diáspora guineense diversificada na sua origem social, nos seus objectivos e nas suas formas de actuação, reflectindo a própria variedade social do país. O antigo país colonizador tornou-se o país de acolhimento mais significativo destes novos migrantes, e aquele onde as numerosas redes de organização da diáspora estão muitas vezes centradas, levando a uma maior projecção da comunidade guineense.
AS REDES TRANSNACIONAIS DE MARABOUTS Os movimentos populacionais abordados trouxeram numerosos terapeutas tradicionais que actuam no contexto migratório. Os elementos mais visíveis destes ritualistas tradicionais são os marabouts, ou mouros na terminologia adoptada na Guiné Bissau. Estes especialistas religiosos actuam como terapeutas, adivinhos, e providenciam de protecções rituais ou talismãs através da leitura do
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Alcorão. Integram-se num grupo que tem vindo a trabalhar na Europa há algumas décadas, obtendo projecção pública através da divulgação das suas actividades por jornais, folhetos e pela internet 3 . Os marabouts pertencem a irmandades islâmicas baseadas no Senegal, sendo o exemplo mais conhecido é o dos Mouride, uma congregação baseada em Touba (Bava 2005), que foi a primeira a apoiar a emigração e integração dos seus membros em grupos de suporte transnacionais e transcontinentais. Hoje as redes de marabouts estão amplamente difundidas em França, Espanha e Portugal, embora a maioria não possua a complexidade dos Mouride e esteja ligada a um wâli (homem santo) de influência local ou regional (Kuczynski 2002: 18). No Senegal e na Guiné Bissau estes actuam como dirigentes religiosos, comunitários e mesmo políticos, tendo assumido as funções dos líderes locais nos casos em que os chefados foram destruídos (Coulon 1981; Carvalho 2008). Em França os marabouts inserem-se nos fluxos migratórios que participaram na reconstrução económica do pós-guerra e se intensificaram nos anos sessenta. Em 1981 o governo socialista integrou-os como “profissões liberais” e 400 marabouts foram recenseados sob esta classificação até 1986, quando a regularização dos trabalhadores migrantes terminou. Contudo, os marabouts têm continuado a migrar para esse país, de forma permanente ou temporária, seguindo o fluxo global de migração actual e fugindo à degradação das condições económicas no Senegal (Kuczynski 2002). A chegada dos primeiros marabouts a Portugal ocorreu em 1974, mas a sua influência e número foram reduzidos até aos anos noventa. Embora não possuam o reconhecimento oficial de que gozam em França, a sua actuação é semelhante, integrando-se em irmandades e recrutando os seus clientes não só entre os guineenses e muçulmanos 3 Os anúncios à actividade dos marabouts têm uma divulgação alargada, nomeadamente
na internet no caso francês. Veja-se, entre outros os sites http://www.math.jussieu.fr/ ~cochet/marabouts/marabout.html ou http://www.echolaliste.com/l199.htm
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como na população em geral, sobretudo entre os imigrantes, com uma clara predominância feminina. Os marabouts que operam em Portugal vêm da Guiné Bissau mas podem estar ligados a irmandades baseadas no Senegal, nomeadamente na zona do Casamansa onde a influência do islamismo é secular e tem conduzido à conversão paulatina dos grupos djola e manjaco residentes. Algumas irmandades de marabouts constituem aí os seus centros, nomeadamente em Medina-Gonasse, Marsassoum ou Sédhiou (Kuczynski 2002: 63). Num estudo recente sobre os marabouts residentes em Lisboa, Eduardo Costa Dias retrata o perfil destes ritualistas (Costa Dias 2007). Os especialistas abordados têm uma origem rural e integram-se em grupos mandinga e fulas, onde a migração sazonal era uma prática habitual, sendo a emigração para a Europa a continuação lógica de uma actividade anterior. Os marabouts abordados por este estudo são os elementos polarizadores das suas comunidades, mesmo em contexto migratório. Operam em casas particulares, situadas tanto na periferia da cidade de Lisboa como no centro, recebendo os seus pacientes num espaço profissional constituído por duas salas, a primeira consagrada à sua actividade e outra como local de espera para os seus clientes, ambas integradas num apartamento arrendado para uso doméstico. Rodeiam habitualmente o marabout os seus assistentes, familiares e pessoas que mantêm com ele uma relação de clientelismo que Costa Dias define como os “amigos de tabanca4”. Os marabouts justificam o seu poder identificando-se com uma linhagem ou escola ou ambas, evocando a relação familiar com um anterior ritualista – pai, tio ou avô –, bem como o seu professor de Alcorão que é referido como o seu iniciador. A aquisição dos conhecimentos e competências necessários ao exercício de maraboutagem implicam uma longa aprendizagem, de seis ou mais anos, numa escola corânica e representam, para o interessado e para a sua família, uma forma de ascensão social. Mas o prestígio do marabout é atribuído igualmente à sua baraka ou bênção divina, e ao facto destes terem 4 Tabanca: termo crioulo que designa a comunidade local ou aldeia.
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cumprido as cinco obrigações da fé islâmica incluindo a peregrinação a Meca ou hadji. Como nota Costa Dias, no islão africano e em particular guineense o acesso ao saber religioso e mágico-terapêutico privilegia a tradição oral sobre a escrita, sendo uma prática essencialmente maleável que adapta numerosas tradições locais (Costa Dias 2007: 193). O seu percurso migratório decorre da prática profissional: a maioria dos marabouts abrangidos pelo inquérito referido não actuam na sua aldeia de origem, tratando-se de profissionais que pela sua situação genealógica (proximidade, ou distância, do iman ou responsável religioso; menoridade genealógica face outros marabouts) procuram outros espaços de actuação face à sua comunidade de origem. Note-se que o poder económico e, sobretudo, o prestígio religioso e político obtidos no contexto migratório são igualmente elementos essenciais no processo de capitalização religiosa e política destes profissionais. Os principais marabouts desenvolvem uma actividade multissituada exercendo a sua actividade em diferentes países e a sua passagem por Portugal, geralmente por Lisboa, nunca é entendida como definitiva. Viajando habitualmente com um visto turístico permanecem por períodos mensais em cada localidade. A actividade desenvolvida implica o apoio de numerosos indivíduos e uma logística complexa, com diversos locais de actuação e residência. A sua intensa mobilidade transforma-os igualmente em mediadores privilegiados entre diferentes comunidades, nomeadamente a aldeia, região ou mesmo país, de origem e as comunidades de imigrantes com as quais contactam, actuando como veículos de transmissão de bens e ideias entre diferentes grupos. Note-se que a sua ligação à comunidade islâmica em Portugal é ténue, enquanto mantêm laços preferenciais com a sua região e mesmo aldeia de origem. Nos casos mais bem sucedidos os marabouts lançaram as suas próprias organizações de desenvolvimento e associações locais. Um dos primeiros profissionais a actuar em Portugal, Mestre Kauso Baldé, é disto exemplo. Mestre Baldé chegou a Portugal nos anos setenta e foi
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dos primeiros marabouts estabelecidos neste país. Proveniente da zona de Bafatá, no centro do país, estudou com um iman no Casamansa, e é um marabout bem conhecido no meio migrante. Ao seu consultório acorrem pessoas de diferentes origens, incluindo portugueses, brasileiros, cabo-verdianos e guineenses. Além de ritualista e terapeuta, Kauso Baldé é o fundador e presidente da Associação Unida de Emigrantes da Guiné Bissau, umas das primeiras entidades do género que tem vindo a operar junto da comunidade guineense incluindo tanto os trabalhadores como os estudantes. A estas actividades, Mestre Baldé junta as de benemérito, mediador e conselheiro político 5 : o seu reconhecimento pela comunidade migrante, as suas actividades em operações de desenvolvimento e empresarias na Guiné Bissau fazem dele o representante escolhido pelos organismos portugueses e guineenses para representar os interesses da comunidade guineense em numerosas ocasiões. Note-se que a sua esfera de influência, apesar de transnacional e política, mantém os laços comunitários locais como base da sua actuação: Mestre Baldé é antes demais um líder comunitário, inserindo-se no perfil dos marabouts retratados por Costa Dias. Ele é o elemento central de uma rede que envolve o apoio e ligação entre as comunidades de origem e os trabalhadores migrantes, a circulação de pessoas e bens e, sobretudo, a divulgação de um saber cosmogónico e terapêutico africano na Europa.
CULTOS DE AFLIÇÃO NA REGIÃO DE CACHEU Nos contextos migratórios operam outros ritualistas provenientes da Guiné Bissau, para além dos marabouts. A maioria vêm de Bissau e 5 Nas eleições presidenciais de 2005 serviu como intermediário entre os dois principais
candidatos com origem no PAIGC, Malam Bacai Sanha e Nino Vieira, que concorria como independente. Esta acção foi largamente publicitada nos media.
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da região de Cacheu, a norte desta cidade, e a sua actividade insere-se nos cultos de aflição locais. As diferentes categorias de ritualistas das regiões costeiras deste país, referidas na literatura como animistas, definem-se globalmente pelo seu controlo de altares de espíritos locais. A relação que os homens estabelecem com os espíritos reveste a forma de um contrato, sendo pedida a satisfação de um desejo ou necessidade à entidade espiritual e prometida a devida recompensa. A falta de cumprimento deste contrato coloca o infractor em posição de vir a sofrer da vingança do iran (crioulo: espírito) ultrajado, expressa em numerosos infortúnios que se podem abater tanto sobre si, como sobre os membros da sua família ou mesmo as suas posses. Com efeito, a figura do iran, embora sedutora pelo poder que promete, não é benévola: os meus interlocutores definiam-no como um satanás, utilizando o termo crioulo de origem portuguesa que mantém o significado nas duas línguas. As suas características aproximam-no do Esu yoruba, o tritsker que convém agraciar tanto para assegurar a sua protecção como para evitar a sua vingança6. Alguns dos iran possuem um altar e são alvo de um culto público, integrando-se numa hierarquia constituída em torno do espírito que preside às iniciações masculinas. Todos os altares são considerados secundários em relação ao altar da iniciação, pelo que este se constitui no elemento topográfico e simbólico central tanto dos elementos de culto como da identidade local. Em seu torno define-se a “região de iniciação” (Binsbergen, 1984), que inclui todos as localidades cujos homens foram iniciados no mesmo altar, bem como todos os locais de culto secundários. Estes altares secundários, aos quais recorrem pessoas do exterior, podem-se tornar importantes centros rituais e de peregrinação, como é o caso do altar de Mama Jombo no território cobiana, a norte da Região de 6 Margaret Drewall refere que tanto o Esu yoruba como o seu sucedâneo Exu das ceri-
mónia de umbanda brasileiras, são manifestações de uma alteração de enquadramento: Frame slippage is dangerous because ir destabilizes a situation and throws it into a zone of ambiguity. At the same time, it sets up opportunities for alterations (Drewall 1992: 16).
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Cacheu (Crowley 1990: 474) 7. Os suplicantes levam consigo uma emanação do espírito interpelado, sob a forma de terra do altar guardada num chifre de gazela ou de bovino, que actuará como seu protector pessoal e será objecto de oferendas sacrificiais. O mesmo processo é utilizado para a criação dos altares secundários que são objecto de culto de uma congregação. Estas centralizam cultos de aflição, definindo-se os seus membros como intermediários entre dois níveis cosmológicos. Formam-se na região várias congregações de ritualistas, algumas com especificidades locais e mesmo étnicas, como é o caso do ussái fankas na ilha de Pecixe e dos balobeiros entre os pepel da ilha de Bissau. Entre todas estas congregações saliento aqui os jambakus, cuja mobilidade lhes permite actualmente exercer a sua actividade em contextos migratórios. Jambakus é um termo crioulo de origem felupe (djola) (Pinto Bull 1989: 281) que designa os “adivinhos e curandeiros”, ritualistas que oficiam em altares individuais e se encontram organizados em congregações de base local. Os jambakus evocam sempre uma origem étnica precisa, identificando-se como felupe, manjaco, pepel ou balanta, mas esta prática conhece uma larga difusão em toda a zona costeira da Guiné Bissau e, em particular, no meio urbano de Bissau (Einarsdóttir 2000 e 2005). Os jambakus definem-se localmente por fazerem diagnósticos e iniciarem processos terapêuticos. Muitos actuam como curandeiros, podendo vir a receber em sua casa os pacientes quando o tratamento é prolongado. Quando a sua reputação 7 Eve Crowley privilegia, para além da “região de iniciação”, a “região de espíritos”, assim
definida: For any shrine or set of shrines, the term spirit region (...) designates the largest ritual field including all clients who undergo a pilgrimage to make or pay a contract. (Crowley 1990: 475). Neste caso incluem-se todos os clientes de um determinado altar, independentemente da sua residência e origem. Este definição é tanto mais importante quanto a autora considera que os altares da região do Cacheu are multifunctional and draw clients from several different nations and over two dozen ethnic groups. The large number of pilgrims have a significant impact on the province’s economy and social structure and demonstrate the national and international importance of the Cacheu Region as a reserve for spiritual resources. (Crowley 1990: 475).
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se espalha, o fluxo de pacientes justifica a construção de alojamentos específicos junto da casa do jambakus, recenseados pelas autoridades locais como hospitais tradicionais. Em diferentes ocasiões o estado guineense procurou integrar estes especialistas, promovendo encontros e apoiando os hospitais por eles criados. Os diferentes atributos dos jambakus da Região de Cacheu foram inventariados por Eve Crowley e Rui Ribeiro numa tipologização baseada nos processos terapêuticos realizados (Crowley e Ribeiro 1987). Estes autores classificam a actuação dos jambakus nas seguintes fases: diagnóstico do problema por adivinhação; solicitação da colaboração do iran (crioulo: espírito) durante o processo terapêutico, geralmente através de uma oferta sacrificial em bebidas alcoólicas e do sacrifício de um galináceo em cujas gónadas se confirma a adesão da entidade espiritual e a terapia indicada. O processo terapêutico pode consistir na estação dos elementos maléficos do corpo do paciente, com a ajuda do ukwot (manjaco: chifre onde se coloca a terra do altar oficiado e que funciona como um altar secundário), ou ainda em processos diversos de tratamento de fractura ósseas, entorses, lesões musculares, desinfecção e tratamento de ferimentos. Finalmente os pacientes, uma vez restabelecidos, devem agradecer anualmente ao iran protector sob a forma de uma doação de vinho de palma efectuada no início da colheita do arroz preto (manjaco: lacai). Note-se que apenas os jambakus-curandeiros realizam todo este processo; outros tendem a especializar-se em doenças atribuídas a complicações internas, e às causadas por bruxaria (manjaco: koworatori). Encontram-se em Caió, na região de Cacheu, especialistas não-iniciados (curandeiros) que dirigem processos terapêuticos, mas não podem comunicar com os espíritos e de enfrentar casos atribuídos à bruxaria (Crowley e Ribeiro 1987). De entre as múltiplas atribuições dos jambakus é a sua capacidade de comunicação com os espíritos, obtida através de um processo de iniciação, que se constitui como elemento identitário central. Esta definição não se aplica apenas aos jambakus. Com efeito,
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encontram-se na região outras formas de mediação com entidades espirituais que são igualmente integradas em cultos de aflição. Mas, de entre todas, apenas os jambakus (e o culto comunitário do kansaré) acompanharam os circuitos de migração8, como é referido em estudos anteriores sobre o Casamansa (Teixeira 2001; Trincaz 1981), Portugal e França (Carvalho 1998 e 2001; Saraiva 2008). Para uma melhor compreensão da amplitude e âmbito de actividade destes ritualistas apresento aqui três casos diferenciados que nos permitem perceber as formas de adaptação do culto em contexto migratório e as suas limitações eventuais.
TORNAR-SE JAMBAKUS O primeiro jambakus que conheci, em 1992, era um emigrante em França de nome Sábor que regressara à sua ilha natal, Jeta, a norte de Bissau, para realizar o processo iniciático que o transformaria num jambakus (Carvalho 2001). A sua história era particularmente reveladora porque Sábor, filho de um jambakus emigrado no Senegal, se tinha sempre recusado a seguir os passos do pai. Tinha emigrado com a família para Dacar na sua infância, e daí partira para França, onde terminou os estudos secundários e se tinha estabelecido. Na sequência de várias hospitalizações consultou um jambakus residente em França que lhe prescreveu a necessidade de regressar a Jeta para realizar ofertas no altar do espírito da iniciação. Os vários contactos com os ritualistas locais determinaram que Sábor deveria tornar-se um jambakus por ser essa a vontade do pai, entretanto falecido, e a sua recusa era a causa dos seus problemas de saúde. Apesar das suas 8 O culto comunitário do kansaré, um espírito protector que se encontra no centro das
comunidades locais e pode ser transportado para outro local, também foi levado pelos migrantes manjaco para o Senegal (Carvalho 1998; Teixeira 1998). Não abordo este processo por estar fora do âmbito do presente texto.
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reticências iniciais, Sabor submeteu-se a este processo em Março de 1993, e as suas dúvidas foram sendo paulatinamente ultrapassadas ao longo da iniciação. No final da estação seca partiu para França, onde passou a actuar como jambakus9. A aquisição deste estatuto implica sempre a passagem de uma prova iniciática em que são transmitidos conhecimentos secretos ao neófito, sendo a sua iniciação entendida como a obediência a um sinal que lhe é transmitido por um seu ancestral, ele próprio ritualista. O novo jambakus identifica-se com os elementos da sua associação que actua como uma sociedade secreta, no sentido em que possui um conhecimento esotérico e reservado10. O longo ritual de iniciação, que implica a morte social do neófito (encenada como uma verdadeira morte) e o seu renascimento como jambakus, só pode ser realizado junto dos altares locais de pelos membros da comunidade que vai integrar. Protegidos pelo secretismo da noite, os jambakus iniciados transmitem ao neófito os conhecimentos esotéricos da congregação. Esta associação é caracterizada por uma hierarquia interna, onde se praticam actos de união como a comensalidade ou a partilha de ofertas por prestação de serviços. Note-se que características como a utilização de símbolos de morte e renascimento, o perigo e o medo associados à iniciação, a posição do neófito como um recém-nascido, a reclusão, a comensalidade e a partilha de bens no grupo, são comuns a numerosas iniciações em sociedades secretas11. O novo jambakus integra-se nas 9 Esta iniciação foi alvo de um estudo anterior (Carvalho 2001). 10 A adesão a sociedades secretas, ao contrário dos ritos de maturidade que se estendem a
todos os membros da comunidade do mesmo grupo etário e género, é sempre formal (La Fontaine 1985). 11 Como realça Jean La Fontaine, a adesão a estas associações creates the boundaries
which separate outsiders from members, for it emphasizes in dramatic form the distance that separates the two statuses between which initiands must pass. Experience of the ritual and knowledge of its meaning both constitute secrets, possession of which is the right of every member, and is denied to non-members (La Fontaine 1985: 58). O segredo e a protecção dos conhecimentos transmitidos assumem um papel essencial como marcadores da diferenciação dos membros do grupo, sendo protegidos por um juramento de inviolabilidade (Jamin 1977; Zempléni 1993).
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festas da sua congregação, realizadas após as primeiras chuvas, passando a oficiar no seu altar individual que consiste, como todos os altares individuais, em receptáculos contendo a terra dos altares centrais sobre a qual foram realizados sacrifícios propiciatórios. Durante a sua iniciação é construído um pequeno altar coberto (manjaco: puból) no quintal de uma casa da sua matrilinhagem ou no centro da localidade de onde é originário. O altar constitui-se invariavelmente em torno de um pequeno pote semi-enterrado, receptáculo das libações realizadas onde se acumulam sangue dos animais sacrificados, restos de vinho de palma vertido e de aguardente oferecida. Em seu torno aglomeram-se os crânios dos animais sacrificados, chifres que contêm terra dos altares nos quais o jambakus pediu protecção e com cujos espíritos pode entrar em contacto, os quais funcionam como altares secundários, e ainda conchas. Estas últimas, como todos os crustáceos em geral, representam os que “possuem carapaça”, ou seja, todos os que realizaram uma iniciação num culto de aflição e possuem um novo estatuto e identidade resposta cultural ao infortúnio prolongado que sobre eles se abateu, sinal óbvio de uma desadequação social. O ritual de iniciação que Sábor efectuou na associação dos jambakus foi, em simultâneo, uma performance terapêutica12. Note-se que, para Sábor, este foi entendido como um momento – quiçá final – de um longo processo que implicou o recurso a terapias variadas e mesmo à biomedicina. O seu percurso foi balizado pelos jambakus que consultou tanto em França como localmente, os quais estabeleceram um diagnóstico em conjunto com o paciente e indicaram o processo terapêutico a seguir. Ao longo deste processo foram negociadas e experimentadas soluções diversas: tacteamentos terapêuticos, práticas discursivas e sistemas causais diferenciados, da biomedicina ao sistema 12 As características terapêuticas dos processos iniciáticos nas congregações de jambakus e
de ritualista do kansará foi também referida por Maria Teixeira para o caso dos emigrantes manjaco em Ziguinchor (Teixeira 1996 e 1998).
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cosmológico local. Para Sábor os diferentes discursos nosológicos apresentavam-se como explicações heterogéneas, mas complementares que lhe permitiriam lidar com a dor e o sofrimento. No sistema nosológico local a noção de doença não existe isolada, não é entendida apenas como a consequência de uma causa patogénica. Pelo contrário, o conceito de doença está inserido na noção mais lata de mal (le sens du mal, na feliz definição de Marc Augé (Augé e Herzlich 1986), de infortúnio, de desordem ao nível pessoal, social e cosmológico: por isso apenas o discurso nosológico manjaco (por oposição ao da biomedicina) podia responder à angústia sentida por Sábor que relacionava os seus problemas de saúde e de trabalho. Uma vez identificado como paciente são-lhe propostos percursos terapêuticos. Estes podem ser variados e são entendidos como práticas que conduzem a novos equilíbrios sociais – tratam-se de processos ritualizados nos quais o paciente se assume como um neófito e que visam muitas vezes uma alteração de estatuto, como no caso de Sábor – e mesmo cosmológicos. De uma forma mais explícita do que nas práticas biomédicas não é esperada uma eficácia imediata, nem são invocadas causalidades unidireccionadas. Consequentemente, estes percursos são negociáveis e adaptáveis. O próprio processo ritual joga habilmente com o envolvimento do paciente, começando literalmente pelo seu funeral e avançando pelo controlo do corpo e dos conhecimentos ministrados para terminar na festa colectiva e agitada do kadjipa jambakus. Como se verifica noutros contextos, a eficiência deste processo está directamente relacionada com a crença do paciente e com a sua capacidade de tomar uma atitude diferente – positiva – face aos problemas individuais. Estas diferentes formas de relacionamento entre os homens e os espíritos configuram outros tantos cultos de aflição alternativos. Mas são os jambakus quem revela uma maior capacidade de adaptação e de resposta aos diferentes problemas e desajustamentos recorrentes em contextos de migração. Eles próprios emigrantes, dominando um
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discurso nosológico que relaciona a doença, o sofrimento e o infortúnio com as referências cosmológicas e culturais dos seus pacientes, estão particularmente aptos a indicar um percurso terapêutico significativo para aqueles que os procuram. O percurso destes trabalhadores migrantes é semelhante: após uma série de infortúnios – e aqui aplica-se o conceito no sentido lato que lhe foi dado por Edward Evans-Pritchard ou Jeanne Favret-Saada, de sucessão de acontecimentos nefastos de ordens diversificadas – o paciente consulta um dos “adivinhos” ou jambakus que exercem no seu local de emigração, o qual pode acusar um dos espíritos autóctones enfurecido com a falta de pagamento de uma promessa, ou interpretar o infortúnio como um sinal de descontentamento de um espírito familiar. O jambakus define com o paciente a oferta sacrificial necessária para satisfazer as entidades espirituais identificadas e estabelece o local onde deverá ser realizada, podendo indicar os altares autóctones. Esporadicamente o infortúnio é interpretado como um aviso de que o paciente deverá ser submetido a um processo de iniciação e tornar-se membro de uma das congregações locais de ritualistas. Uma vez iniciado e dotado de um novo estatuto, o emigrante é constrangido a actuar como adivinho ou ritualista junto dos seus conterrâneos nos locais de migração. Deste modo é mantida uma interligação ritual que se vai alimentando constantemente de novos recursos entre o local de origem (física, mas também simbólica e identitária) dos migrantes e o seu local de trabalho.
EXPORTANDO OS SISTEMAS TERAPÊUTICOS LOCAIS Como vimos, o exercício da actividade de jambakus em locais de migração implica sempre a ligação à autoctonia. Por um lado, os jambakus têm de estar inseridos em congregações locais e, por outro, todas as ofertas sacrificiais devem ser reportadas no altar do espírito de
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iniciação, através do seu consumo ritual neste local. Esta relação implica formas de circulação complexas aqui exemplificadas por um segundo estudo de caso, o de Luís Kapol, particularmente expressivo da adaptação das congregações locais aos novos processos migratórios. Quando conheci Luís Kapol, em 2005, este era um emigrante em Portugal vindo de Caió, a norte de Bissau. O seu percurso migratório iniciara-se nos anos 90 aproveitando o surto de obras públicas em Portugal, e a sua viagem fora suportada pela família que o considerava o mais apto de todos os irmãos para iniciar a longa aventura da migração. Posteriormente o seu pai, chefe de uma congregação local de jambakus, escolhera-o para ser o seu sucessor, e Kapol realizou o processo de iniciação na congregação dirigido pelo pai – o que em si representa já uma adaptação das formas de integração nestas associações em que os novos jambakus são sempre seleccionados pelos antepassados. Kapol foi iniciado em 1999 e, desde então, passou a actuar como ritualista (adivinho e curandeiro) no seu espaço doméstico, um apartamento que partilhava com outros imigrantes no Bairro do Fim do Mundo, no concelho de Cascais. Diferentemente dos marabouts e, em particular, de Mestre Kauso Baldé, evocado anteriormente, a prática desta actividade ritual e terapêutica não é a principal ocupação de Kapol. Em Portugal mantinha a sua actividade de pedreiro durante a semana e apenas exercia como jambakus nas horas livres e durante os fins-de-semana. Actualmente trabalha em França e continua a desempenhar a sua dupla actividade. Kapol recebe os pacientes e procura identificar o problema que os aflige através de técnicas de adivinhação específicas (Carvalho 1998). Os sacrifícios iniciais, de um galináceo e, em alguns casos, de um porco, são realizados neste espaço ou no exterior da residência, e o sangue é vertido sobre os chifre-contentores onde está depositado terra, aguardente e sangue das várias ofertas realizadas durante a iniciação de Kapol em Caió. Ele indica ainda o processo terapêutico a ser seguido e, sempre que tal se justifique, faz preparações à base de plantas que
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trouxe de Caió e que administra aos pacientes. A maioria dos processos terapêuticos seguidos implicam ainda a oferta de animais e bebidas nos altares em Caió, seja para propiciarem os espíritos ou para agradecer os resultados obtidos. Nestes casos os membros da congregação realizam os sacrifícios e ofertas nos altares locais, sendo as despesas pagas em Portugal e França pelos pacientes, geralmente da rede da Western Union. É criado um circuito de terapeutas, de práticas, de discursos nosológicos, de bens e dinheiro, que envolve diferentes actores em diferentes continentes, desde os pacientes enquanto migrantes de diversas nacionalidades às comunidades de ritualistas autóctones que se assumem como as últimas detentoras da legitimidade deste processo. Luís Kapol é um caso particularmente bem sucedido de um ritualista que potencializa a capacidade integrativa das práticas rituais e terapêuticas dos jambakus para as adaptar aos percursos transcontinentais dos migrantes. Os seus clientes são maioritariamente guineenses, embora se encontrem igualmente portugueses, caboverdianos, angolanos, brasileiros e senegaleses. Todos procuram uma mesma perspectiva holística e integrativa que lhes permita uma nova actuação face aos problemas que apresentam. Mas os espíritos e altares onde Kapol oficia não são universais: é a sua capacidade de interpretação e de resposta à ansiedade dos seus pacientes que pode explicar o seu sucesso como um ritualista transnacional. A actuação dos jambakus no meio migrante representa uma resposta activa a processos patológicos (do foro psíquico ou físico) sofridos pelos migrantes, enquadradas pelo constante fluxo de referentes culturais entre os pólos de vivência onde se processa a vida destes trabalhadores. Partindo da constatação que o corpo é o local onde se focalizam desadaptabilidades diversas, mas também o principal elemento criativo de processos simbólicos onde se experimentam novos referentes culturais, as performances terapêuticas manjaco são aqui entendidas como formas de criação cultural e adaptação a um novo percurso social e cultural.
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QUANDO TUDO FALHA: A EXPERIÊNCIA HOSPITALAR O sucesso do ritual depende do capital social e económico do neófito e nem todos os pacientes a quem os jambakus reconheceram a necessidade de encetar um processo de ofertas sacrificiais o podem fazer. O caso de Sábor é particularmente feliz na conjunção do apoio familiar, do suporte da sua congregação e comunidade, e na aceitação do neófito do seu novo papel. O capital investido no processo de produção de um jambakus implica recursos financeiros, mas também o manuseamento de um capital social aqui representado pelo seu entorno familiar e a sua legitimidade genealógica, e a competência de utilização de um repositório simbólico sincrético. Este processo congrega as definições heterogéneas de resposta ao infortúnio, na acepção clássica em Antropologia de repetição de elementos considerados nocivos para o indivíduo. Trata-se de uma actuação longa, morosa e dispendiosa, apenas acessível aos indivíduos que, para além da sua legitimidade genealógica e da pertinência dos prognósticos levantados por outros ritualistas, possam reunir o capital material e social necessários à prossecução do seu processo. No contexto guineense as iniciações são facilitadas pelo apoio das comunidades e famílias de origem, sucedendo-se durante a estação seca para terminarem com a cerimónia que celebra os novos jambakus. Em contexto migratório os custos desta instância são violentamente acrescidos. Os indivíduos que procuram interpretar os seus sintomas de infortúnio e desadaptabilidade nos termos de uma cosmogonia guineense mas que não possuem redes familiares ou comunitárias de suporte, são obrigados a socorrer-se dos terapeutas migrantes para os apoiarem. Quando os casos se agravam e o seu percurso os conduz ao meio hospitalar, são geralmente remetidos para as consultas psiquiátricas. Apresentam sintomas diversos que interpretam em termos culturais como “sinais” da sua necessidade de se entregarem a um processo iniciático. Contudo, estes mesmos “sinais” são lidos pelos profissionais de saúde, em particular no sector
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psiquiátrico, como alienação, alucinações, ou ainda delírio. O estudo de caso aqui apresentado foi seguido numa instituição psiquiátrica em Lisboa por uma equipa de médicos psiquiatras13. M. é uma mulher originária de Bissau que trabalhava entre Portugal e Espanha em serviços ocasionais, geralmente domésticos. Com dois filhos, um dos quais a seu cargo, encontrava-se numa situação próxima da indigência, sem trabalho regular, domicílio ou recursos para manter a família monoparental. O seu internamento na instituição visava responder aos seus problemas imediatos expressos num comportamento depressivo e persecutório, tendo sido requerido por familiares. Foi diagnosticada com Perturbação Esquizofrénica apresentando “humor depressivo, alucinações auditivo-verbais, alucinações visuais e ideias delirantes de conteúdo persecutório” (Tavares et al. 2009: 40). Contudo, na sua interpretação, encontrava-se num processo de realização de diferentes rituais que a conduziriam à posição de jambakus e portadora de defunto, encarnando um espírito ancestral. A sua incapacidade para realizar o longo e dispendioso processo ritual agravavam o seu estado depressivo, e os seus problemas eram interpretados como outras tantas provações induzidas pelos espíritos que pediam a sua atenção. O seu discurso e o dos profissionais de saúde pareciam irredutíveis na busca de sentidos diferenciados, apesar do empenho de ambos na compreensão mútua. Este esforço conduziu a uma melhor compreensão do caso mas não o solucionou, nos termos admitidos pela paciente. O caso de M. conduz-nos à questão do diálogo possível em contexto migratório sobre práticas terapêuticas, sobretudo no que concerne a comportamentos considerados psicopatológicos em meio clínico e hospitalar. A busca de diálogo encontra-se limitada pela necessidade dos profissionais de saúde enquadrarem os comportamento considerados desviantes em categorias nosológicas previamente definidas, e é agravado pelo facto do discurso e autoridade médicas não 13 Este caso é analisado em detalhe por João Tavares, o clínico encarregue da paciente em
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serem reconhecidos pelos pacientes, e pelas próprias limitações criadas pela instituição psiquiátrica e o seu carácter prisional. Estes factores promovem a apatia e desinteresse por parte de pacientes que procuram interpretar não apenas o seu mal-estar como a o discurso alógeno dos terapeutas que os seguem. Por outro lado a resposta da psiquiatria tende a interpretar os comportamentos desviantes de migrantes e membros de minorias em termos de “culture-bound syndrome” (Pusseti 2006), reflectindo a perspectiva dominante nos meios de nas sociedades de acolhimento em que os migrantes são classificados como possuidores de traços culturais irredutíveis e imutáveis. O determinismo cultural que enforma estas interpretações esquece a capacidade individual e social de adaptação, reacção, interpretação e manipulação de diferentes sinais e símbolos culturais. Como notam Rolland Littlewod e Simon Dein, “It is not that psychiatry’s inevitable grid, pathology, is necessarily inappropriate for different societies, but pathology is just one possible grid and one that carries with it particular assumptions about normality an abnormality, which explicitly ignore considerations of power and of context of observation, and what is observed, and how ‘observation’ itself might shape it.” (Littlewod e Dein 2000: 23). No estudo de caso referido, o principal problema vivenciado pela paciente prendia-se com a sua incapacidade de responder às solicitações requeridas, por não ter capacidade de assumir a sua família monoparental e o seu papel de ritualista na sua sociedade de origem. As respostas que podiam ser dadas em meio hospitalar não eram as que M. buscava, e ela rapidamente se esquivou a continuar o tratamento e diálogo que os médicos procuraram estabelecer.
CONCLUSÃO A experiência da migração é propícia ao desenvolvimento de diferentes patologias, mas igualmente ao experimentar de novas terapias e criações culturais, diversos discursos nosológicos e múltiplas
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experiências terapêuticas. Nos casos aqui apresentados estes circuitos representam um movimento contrário aos dos processos de globalização e à circulação hegemónica dos fármacos e da biomedicina. Enquanto mediadores entre diferentes contextos sócio-culturais, os migrantes são os principais agentes das trocas transnacionais, definidas por Nina Basch, Linda Schiller, e Cristina S. Blanc como os processos pelos quais são mantidas as redes de ligação entre as sociedades de origem e de trabalho (Basch et al. 1994: 7). Os trabalhadores migrantes são mediadores e criadores transculturais que negoceiam práticas culturais e interpretações simbólicas ao longo dos seus trajectos, como ilustram os estudos de caso aqui apresentados. A experiência da migração é particularmente propícia ao desenvolvimento de situações limite em termos de experiências da dor e da desadequação cultural, para as quais os terapeutas descritos neste texto encontram respostas maleáveis e desejadas, mesmo quando os referentes, espíritos autóctones da Guiné Bissau, não são imediatamente percepcionados pelos pacientes. Os diferentes casos aqui abordados permitem-nos entender a diversidade de situações experimentadas pelos terapeutas migrantes, desde a valorização do seu papel de líderes comunitários à adequação das congregações locais aos novos circuitos migratórios referida no caso de Luís Kapol. Por outro lado a iniciação de Sábor desenha um espaço múltiplo, onde são negociadas a sua identidade social e profissional e que lhe permite ultrapassar a crise vivida e actuar como um jambakus. Este acto exige o controlo de redes locais de apoio e de um capital social e financeiro de que nem todos os migrantes dispõem, como se verificou no caso de M. A experiência do sofrimento e a busca de uma explicação e solução criam o espaço para a criação de novos referentes e significados simbólicos. Marabouts e jambakus são, neste processo, os agentes mais visíveis de um processo criativo de integração de referentes culturais e discursos heterogéneos que se cruzam, pelas ruas de Lisboa, nos múltiplos espaços de consulta destes ritualistas.
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Capítulo 8
Percepções de risco e práticas de prevenção ao VIH/SIDA entre jovens de origem cabo-verdiana em Portugal
Iolanda Maria Alves Évora*
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Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento (CESA), ISEG Este trabalho tem por base o relatório do “Estudo sobre o comportamento de prevenção ao VIH/SIDA entre a população cabo-verdiana imigrada em Portugal”, coordenado por Iolanda Évora e tendo como assistente de pesquisa Irosanda de Barros. Os entrevistadores foram os seguintes: António Carlos Tavares, Cláudia Graça, Gabriela Cunha e Lavínia Soares de Carvalho. O estudo foi patrocinado pelo Banco Mundial e realizado sob proposta do CCSSida de Cabo Verde e Ministério dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde.
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A VULNERABILIDADE: CATEGORIAS E CLASSIFICAÇÕES CONTEMPORÂNEAS A curta história da epidemia da SIDA contrasta com o grande impacto da doença na ciência e na sociedade, como fenómeno que aflige sociedades e culturas enquanto o VIH mina a vida dos indivíduos. Neste tempo de medicalização social, em que o mundo age como se a Medicina tivesse resposta para tudo (Ariès 1977), o cancro e a SIDA é que tomaram as características hediondas e assustadoras das antigas representações da morte, pois “é preciso que a doença seja incurável (ou tenha fama de sê-lo) para que assim deixe transparecer a morte e lhe dê seu nome (Ariès 1977: 141). Esta citação aplica-se – definitivamente e recentemente – à SIDA e explica a força das metáforas que se lhes são associadas por nós “ocidentais civilizados” que “estamos perto de acreditar que não se morre mais, a não ser por engano, ou no fim de uma longa existência, por obsolescência” (Giovanetti e Évora 1989: 129). Os cientistas sociais e humanos procuram analisar e descrever a dinâmica e o rápido crescimento do espaço simbólico em torno da SIDA, o estigma que está relacionado à doença e o poder das roupagens metafóricas que a acompanham, num tempo em que os avanços da medicina transformam a infecção ao VIH numa condição crónica e permitem relaxar a sentença de morte iminente, aliviando parte do infortúnio dos que são informados de um resultado positivo. Em
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contraste, mantém-se a unanimidade sobre aqueles a quem se apontar a maior vulnerabilidade; a SIDA é a doença dos dissidentes, dos cidadãos marginais, dos isolados, das pessoas que são a parte mais vitimizada da estrutura social. Após três décadas de descobertas, as pesquisas não deixam dúvidas de que a SIDA tem apresentado um tipo de raio X social de quem é classificado como periférico, desviante ou normal, e transformou muitas populações “minorias” (i.e., homossexuais, prostitutas, usuários de drogas, etc.) em “grupos de risco”, enfatizando e projectando políticas de estigma e de marginalidade (Parker et al. 1991; Treichler 1999). Assim, “culturas” marginais, periféricas ou desviantes têm sido tratadas como “subculturas” inferiores e abaixo da cultura hegemónica, em especial, pelas abordagens que apoiam-se seja na noção clássica da cultura como normativa e a histórica ou nas actuais representações convencionais sobre comportamentos de risco ao VIH/SIDA que os definem como imorais e ilícitos. Tais noções e representações contribuem para as percepções gerais acerca dessas “subculturas outras”, definidas como “categorias de risco” – gays, trabalhadores sexuais, usuários de drogas intravenosas, hemofílicos, bissexuais e heterossexuais com múltiplos parceiros – e que são amplamente retomadas nas pesquisas sobre o VIH/SIDA. Em anos mais recentes, os imigrantes vêm sendo incluídos entre os referidos grupos, indicando que a cultura e a vulnerabilidade e marginalidade sociais a que estão sujeitos torna-os mais propensos aos comportamentos de risco e à ameaça ao VIH. Este capítulo debruça-se pois, sobre as articulações que são procuradas entre a vulnerabilidade social ao VIH/SIDA e a imigração. A reflexão considera a realidade de vida de pessoas que física e psiquicamente tornam-se vulneráveis, menos ao desenvolvimento da doença do que às representações, internalizadas ou não, do imaginário social. Este aponta-as como sujeitos (potenciais), por excelência, daquela doença que toda a sociedade precisa identificar “como o próprio mal, uma doença que torne culpadas suas “vítimas” (Sontag 1989).
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Pelo que acima foi descrito, considera-se que, nos últimos anos, as ciências sociais e humanas têm mostrado como as metáforas da SIDA transgridem “cultura”, ou seja, oferecem uma compreensão pandémica ou universal da doença, livre das convenções contextuais do lugar, status ou corpo. Neste sentido, muitos autores sugerem que a SIDA, tal como o cancro, está “além da cultura”, e as metáforas que a descrevem desmantelam fronteiras e categorias culturais, ao mesmo tempo em que as imagens que se lhes associam mostram além da disrupção das fronteiras internas do corpo, cruzam fronteiras nacionais e geográficas e ultrapassam transgressões sociais e marcações sociais internas. Um aspecto de concordância entre estudiosos é o de que a SIDA enfatiza categorias sociais, ao defini-las como “grupos de risco”, e a ligação entre SIDA e certos “grupos minoritários” realça quer a tão mencionada “cultura da SIDA”, quer os grupos de risco ou outros aspectos demográficos da doença. Os cientistas sociais também debruçam-se sobre as “culturas locais da SIDA”, e deixam claro que não existe “o soropositivo”, “o doente de SIDA” ou, igualmente, “os riscos”. Como afirma Rodrigues (1999), a questão não pode ser considerada generalizadamente: em cada subgrupo existe um tipo de risco, circunstâncias objectivas próprias, bem como comportamentos sexuais específicos, muitos deles fundados em experiências colectivas, crenças, valores e preconceitos comuns aos agentes de cada segmento. Retomando a perspectiva de Bourdieu sobre a importância dos contextos e dos habitus de cada grupo social (Bourdieu 1972: 174), a autora enfatiza como estes estruturam as representações e as práticas prevalentes e definem que para cada subgrupo sejam diferentes: a maneira de buscar prazer sexual, os limites dentro dos quais isso é considerado possível, o grau de transgressão social assumido anteriormente, a constância com que praticam os actos sexuais mais arriscados e o quanto acreditam ou não estar a correr riscos. Estes aspectos são especialmente visíveis quando se trata de jovens, particularmente sensíveis aos seus grupos de referência, cujas
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práticas parecem confirmar que, entre eles, a mudança comportamental nem sempre está ligada à informação sobre o mecanismo da SIDA, ao conhecimento sobre alguém afectado pela doença, ou ao nível cultural das pessoas. Com efeito, alguns estudos já realizados (Macrae, 1992; Rodrigues, 1999) encontraram como facto mais importante e com maior correlação com a mudança, se o indivíduo acreditava que seus amigos também estavam alterando as suas práticas. Os jovens também tornaram-se um dos grupos a alcançar com campanhas específicas de prevenção à SIDA, face à constatação feita a partir de inúmeros estudos, do crescimento da prevalência da actividade sexual entre este segmento social – nas duas últimas décadas – e a diminuição da idade das primeiras experiências. As pesquisas mostram, igualmente, que os adolescentes não parecem conhecedores das consequências da actividade sexual, incluindo os significados da transmissão da SIDA e as medidas a tomar para reduzir o risco. A literatura sobre este grupo é vasta e consensual a propósito do modo como, pelo menos em contextos das sociedades ocidentais, os adolescentes tendem a lidar precariamente com situações em que “ganhos imediatos se contrapõem a perdas só detectáveis a longo prazo, caso particular da actividade sexual, sua relação com a infecção pelo HIV e o desenvolvimento da Aids” (Monteiro 2002). Os dados também indicam que os jovens são os mais permeáveis às macro-situações que envolvem as suas famílias e amigos, e mais sensíveis a opiniões e ao controlo exterior (Monteiro 2002). Os aspectos acima referidos são particularmente relevantes tratando-se de jovens da comunidade imigrante de origem cabo-verdiana em Portugal, um importante grupo a abordar para o exame das percepções e do comportamento social face à ameaça da epidemia da SIDA e as concepções da vulnerabilidade social ao SIDA associadas à imigração. A comunidade cabo-verdiana é das mais antigas da imigração contemporânea em Portugal e constitui-se de uma população significativamente jovem que vive, sobretudo, nas periferias urbanas das principais cidades. Esta realidade mostra-se favorável à aplicação
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da análise da percepção do grupo em relação ao sentido de protecção e das situações que correlacionam à noção de perigo e aos sistemas de protecção que accionam visando o cuidado consigo mesmo. Com efeito, as condições materiais e simbólicas de existência no seio desta comunidade favorecem a relativização do enfoque epidemiológico de risco e a incorporação de aspectos da dimensão social, em particular numa abordagem à percepção do risco e dos cuidados rotineiros com a vida e com a saúde em que procura-se as articulações entre os estilos de vida e a localização dos sujeitos em posições sociais e históricas (Monteiro 2002).
SIDA E IMIGRAÇÃO. AS CONTROVÉRSIAS DE UM BINÓMIO O conhecimento da SIDA evoluiu quanto à imagem que dela se tem, os tratamentos de que se dispõe e as mobilizações a que dá lugar. Sobre a imigração, novas referências lhe são atribuídas em termos de políticas, verificando-se, igualmente, mudanças nas representações de que é objecto e nas realidades vividas pelas populações. No entanto, para todos os países, a diminuição da imigração autorizada, o aumento dos indocumentados e a emergência da “questão étnica”, além de provocar maior invisibilidade da SIDA nas estatísticas, evidenciou a actuação de antigas questões que continuam válidas quando aplicadas aos dois termos e dizem respeito à questão fantasmática do imigrado como vector de doenças. Como lembram alguns historiadores, toda a epidemia põe à prova a relação com o estrangeiro no que este encarna como o “outro perigoso”, construído como diferente – como suspeito – e vindo de algures – portanto ameaçador. Para além da questão do “perigo” infeccioso, o estigma vem sempre ancorar-se na desconfiança e rejeição que pré-existem à epidemia e na qual ela vem se confrontar o bem-estabelecido (Pollack 1992). Estes aspectos são suficientes para
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confirmar-se – no caso do binómio SIDA/imigração – a recorrência e a repetitividade dos esquemas que aplicam a ideia de uma ameaça, quer se trate do mundo do trabalho (ameaça ao emprego dos nacionais) ou do espaço da cidade (ameaça para a ordem social). No caso da imigração, estas posições estão reflectidas nos pressupostos que sustentam os programas de cuidados de saúde que os poderes públicos (nos países de imigração) reservam aos imigrantes e seus grupos, em particular, no que tange ao VIH/SIDA (Fassin 2001a). Conforme o autor, em essência, as dificuldades em abordar os dois termos se devem ao fato de que a preocupação central das autoridades sanitárias desses países recai muito mais sobre o risco implícito de contágio das suas populações nacionais por imigrantes do que sobre o estado de saúde destes (Fassin op. cit. 2001a). No entanto, ao contrário da controvérsia evidenciada pelas abordagens sobre contaminação e cultura, o autor prefere evidenciar aspectos importantes da desigualdade e do direito que o binómio faz emergir, em particular, nos países ocidentais que recebem imigrantes. Esta leitura parece-nos adequada ao caso da comunidade cabo-verdiana em Portugal, por constatar-se que, em geral, os programas de prevenção dirigidos aos imigrantes chamam a atenção para a possibilidade de aspectos culturais de origem serem potenciais bloqueios à assimilação das informações das campanhas. Estes programas desconsideram, porém, que estes imigrantes são originários de um país com baixos índices de prevalência ao VIH/SIDA e reconhecido pelo sucesso da sua prevenção à epidemia1. 1 Desde a identificação do primeiro caso de Sida em Cabo Verde (1986) que o país é
apontado como um exemplo a seguir, pela forma como organizou-se para enfrentar a epidemia e considerou o seu combate como uma das grandes prioridades nacionais. Com efeito, o Banco Mundial atribuiu a classificação de muito satisfatório ao desempenho de Cabo Verde na utilização dos recursos postos à disposição para o combate ao VIH/SIDA, apontando o país como pertencente ao grupo dos países africanos que melhor implementaram os seus projectos que o Banco Mundial financia na área da Luta Contra a Sida. Este desempenho garante que todos os parceiros internacionais continuem a apoiar o país na sua Luta Contra a Sida e a assegurar a sua permanência no grupo de países com fraca prevalência para o VIH/SIDA (