Luiz David Castiel
Moléculas
Moléstias Metáforas
O Senso dos Humores
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INTRODUÇÃO Moléculas, Moléstias, Metáforas...
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Luiz David Castiel
Moléculas
Moléstias Metáforas
O Senso dos Humores
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INTRODUÇÃO Moléculas, Moléstias, Metáforas: O Senso dos Humores. Comecemos com "humor". Este vocábulo, como se sabe, apresenta variadas acepções. Temos, a princípio, sua significação "úmida" e, nesta perspectiva, no senso fisiológico, referente a seres vivos mais organizados, diz respeito aos líquidos corporais contidos nos seus respectivos interiores (voltaremos a este ponto). Mais conhecidas, porém, são as conotações ligadas à disposição de espírito, ânimo (bom/mau humor) e à capacidade humana de lidar com o cômico, engraçado, chistoso. Seja no sentido de perceber, como de apreciar ou, ainda, expressar tais manifestações. Freud, inclusive, chegou a considerar o chiste como uma das chamadas formações do Inconsciente (ao lado dos sonhos, atosfalhos, lapsos)1. É interessante notar a vinculação terminológica com a idéia de espírito, alma. Como se a manifestação espirituosa pertencesse à dimensão vinculada a este impreciso fenômeno chamado de diversas formas (que inclui, além das acima mencionadas, psiquismo, mente). Cabe, ainda, comentar outra expressão relativa a humor - graça, para indicar, também, dádivas originárias de entes sagrados, espirituais (ou por eles mediados) em relação aos quais estaríamos todos sujeitos, isto é, à respectiva "mercê". E, ainda, é importante incluir, nossa própria designação (o nome de batismo), algo que nos foi dado ao nascer. Deste modo, não é possível cogitar que a capacidade humana de produzir humor seria, no fim das contas, uma dádiva divina? Esta poderia ser uma forma de entender a expressão "presença de espírito"... Entretanto, o espírito presente pode não ser necessariamente "santo", tanto que "espiritar" significa, entre outras coisas, "meter o Demônio no corpo de"; "endemoninhar" (Ferreira, 1975)... Poderiam, então, "dádivas" solicitadas em rituais de "magia negra", fornecidas por espíritos ditos malignos também serem chamadas "graças"? Possivelmente não, pois, além de não serem originárias de fontes 1
.Freud distinguia humor de chiste. Para ele, o humor consiste em uma forma de obter prazer mediante atividade intelectual. Seria uma manifestação do Superego e, desta forma, o aparelho psíquico evitaria a opressão do sofrimento. Cf. FREUD, S. 1927. "El Humor". in FREUD, S. 1973. Obras Completas. Tomo III. Madrid. Editorial Biblioteca Nueva, pp. 2997 - 3000 e FREUD, S. 1905. "El Chiste y su Relación con lo Inconsciente" in FREUD, S. 1973. Obras Completas. Tomo II. Madrid. Editorial Biblioteca Nueva, pp. 1029-1167.
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santificadas, "dadivosas" por natureza, em geral, segundo mitos recorrentes na literatura, possuem um alto preço. Não são de "graça". Custam, muitas vezes, a própria alma... Mas, estamos nos afastando do "humor". Convém retornar. Especialmente porque, como se sabe, os precursores da Medicina - Hipócrates e Galeno, basearam suas teorias do adoecer humano no fluxo dos líquidos corporais. Como não se trata, aqui, de rever a teoria dos humores, mas, apenas, de assinalar aspectos relevantes a nossa discussão, vamos relembrar brevemente alguns tópicos. Segundo os gregos, em linhas gerais, o homem seria um microcosmo, manifestação localizada da physis - fundamento universal gerador de todas as coisas. Entre estas "coisas", destacava-se o corpo humano. Para entendê-lo, a fisiologia médica hipocrática operava com quatro conceitos: dynamis (potência), stoikheion (elemento), mórion (partes orgânicas) khymós (humor) (Entralgo, 1982)2. Assim, o corpo seria constituído por um agregado de conteúdos líquidos e de continentes sólidos. A atividade destes líquidos geraria os fenômenos vitais. Os humores básicos seriam: o sangue, a fleuma (ou pituita), a bílis amarela e a bílis negra (atrabílis3). O equilíbrio dos humores constitui a crase, o desequilíbrio, a discrasia (termos ainda consagrados na hematologia contemporânea). Uma breve digressão: a origem etimológica de idiossincrasia é "mistura privada" (Bohm & Peat, 1989), no sentido de particular, pessoal, própria. Assim, podemos pensar a constituição psicossômica humana como peculiar a cada um. Nossa mescla ("humoral") de hormônios, citocinas, neurotransmissores, neuropeptídeos, autacóides etc. (moléculas, enfim) produz uma resultante complexa que provavelmente define a singularidade de cada indivíduo e de seus modos de adoecer.
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.Uma consistente síntese destes tópicos pode ser vista em LIMA, T. A. 1996. "Humores e Odores: Ordem Corporal e Ordem Social no Rio de Janeiro, século XIX”. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Vol. II n 0 3, pp 44-96. 3 .Atrabiliário na língua portuguesa significa tanto melancólico como colérico, violento. Cf. FERREIRA, A.B.H. 1975. "verbete 'atrabiliário'". Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira, pp. 157.
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Sob esta ótica, pode-se proceder a uma releitura atualizada da teoria humoral e da correspondente doutrina holista dos temperamentos. Neste sentido, os hipocráticos consideram o organismo como um todo composto por elementos interatuantes, vinculados pelos humores. Assim, o temperamento seria o modo do indivíduo estar no mundo de maneira a lhe propiciar específicas modalidades relacionais com tal mundo. Assim, "a proporção dos humores é variável conforme o temperamento e condiciona a natureza deste acordo. Cada indivíduo reage segundo seu temperamento à ação do meio (...). O próprio temperamento não é estável e, tal como a natureza, evolui com as estações e com as fases da vida" (Vincent, 1986: 32).
Cabe, também, um comentário sobre o "humor negro", a atrabílis. Seu excesso (por variadas razões que levam à acumulação) era considerado responsável pela melancolia. Pois, resultava do processo de concentração da bile amarela, ampliando suas propriedades corrosivas e a correspondente capacidade de provocar danos. Vincent (1986) enfatiza o poder metafórico da expressão "negra", ao estabelecer uma relação entre o estado d'alma do deprimido e a idéia de invocação de morte evidenciada em sua condição. Mesmo assim, a explicação humoral dos males do espírito diz respeito às perturbações dos fluxos, da concentração e da temperatura da bile negra. Mais, ainda, caso as alterações sucedessem no cérebro, ocorreria a epilepsia. Neste sentido, o ponto de vista da psiquiatria biológica moderna em estabelecer nexos entre substâncias neurocerebrais (dopamina, serotonina, catecolaminas etc.) e distúrbios mentais evidencia seu enraizamento na racionalidade humoral hipocrática (Vincent, 1986)4. Com Galeno, temos a sistematização da teoria humoral. Assim, um dos locais onde a bile negra pode se acumular seria na região dos hipocôndrios, devido ao bloqueio do sistema porta - ocorreria, então, a opilação5. Do estômago, a atrabílis poderia emanar vapores que afetariam o cérebro, instilando aí
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.Esta perspectiva é vigorosa, com suporte de empresas farmacêuticas e se apresenta de tal forma que temos a "transformação" do chamado "mal-humor", comum no atribulado e desgastante cotidiano das nossas metrópoles, numa afecção (chamada distimia) passível de ser tratada com fármacos indicados para esta finalidade. 5 .Temos, aí, a origem da expressão hipocondria (que, por extensão, deu origem a "hipocondríaco") - que consistia numa afecção gastrintestinal difusa, caracterizada por náuseas, flatulência, mal-estar digestivo. E, também, do vínculo entre o humor e o riso em função de seu poder de esvaziar a bile negra do hipocôndrio, ou seja, desopilar o fígado e baço.
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pensamentos "negros", como aqueles relativos à morte (Vincent, 1986). Ou, ainda, além da melancolia, o humor errático poderia provocar "chiliques"6, no caso, devido ao espessamento do sangue (Pinel, 1991). A queda da teoria humoral ocorreu ainda no século XVIII. Progressivamente, ao longo deste tempo, o cérebro vai ocupando o centro do cenário explicativo das afecções mentais. No entanto, recentemente, notam-se tentativas de recuperar a concepção "temperamental" para explicar o funcionamento neurocerebral. Uma delas é a (já citada) psiquiatria biológica. A partir das idéias dos neurocientistas (premiados com o Nobel) Hubel e Wiesel (1977), a forma das estruturas cerebrais responsáveis pela construção de nossa experiência (e, também, pelas nossas percepções) é influenciada pelo meio ambiente. Tal "plasticidade neural" tornou-se o eixo central de diversos programas de investigação neurobiológica, que incluem estudos comportamentais, anatômicos, da fisiologia de células individualizadas e, também estudos moleculares (proteínas neurais associadas ao crescimento, receptores sinápticos). Os resultados destas pesquisas deram origem a uma prática psiquiátrica que se baseia na possibilidade de atingir a etiologia dos distúrbios mentais mediante o progressivo deslindar das intrincações envolvidas nas relações entre estruturas neurais supostamente responsáveis por nossa construção da experiência de mundo e o próprio mundo (Hundert, 1991). Proposta epistemológica que pressupõe a pretensão de chegar-se a um profundo grau de apreensão da hipercomplexidade cerebral e de suas vinculações recíprocas com o mundo. Proposta similar pode ser observada na área chamada psiconeuroendocrinoimunologia (ou, como é mais conhecida, psiconeuroimunologia)7. Como a própria designação indica, trata-se de uma área dita 6
.Os chiliques (ou faniquitos ou fricotes) tinham uma certa familiaridade "epistemológica" com a histeria. Diziam respeito a uma grande variedade de afecções psíquicas ou somáticas. Portanto, não dispunham de estatuto para atenderem às exigências de precisão para serem categorizados como objeto da semiologia médica moderna. Acabaram restritos aos salões mundanos para indicar caprichos, amuos, indisposições, venetas do sexo dito, ipso facto, frágil... Cf. PINEL, D. 1991. "A Loucura dos Chiliques" in LEGOFF, J (org.). 1991. As Doenças têm História. Lisboa. Ed. Terramar, pp. 137-145.
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interdisciplinar que investiga as interações entre três sistemas corporais: nervoso central, endócrino e imune. Pretende ir "além das perspectivas biomédicas convencionais" (Lyon, 1993: 77) ao lidar com aspectos essenciais relativos às interações entre comportamento e fisiologia. Ou seja, como pensamentos, emoções, sentimentos, (enfim, elementos ligados ao "mental") interagem com o sistema imune e, consequentemente, gerariam/desencadeariam o adoecer. Os construtos explicativos do campo podem ser categorizados em: 1)respostas disfóricas - medidas em termos de registros de infelicidade, afeto depressivo, ansiedade, hostilidade, solidão, depressão clínica; 2)comportamentos imunossupressivos - indicadas por dieta, consumo de álcool, drogas, ilícitas, sono; 3)experiências adversas de vida - luto, perdas afetivas, exames (desempenho escolar); 4)vulnerabilidade - "incapacidade" de prevenir-se ou aliviar o "distress", envolvendo "ausência" de disposições pessoais ou recursos interpessoais que supostamente previnem a ocorrência ou reduzam a disforia associada aos estresses (tanto crônicos como agudos) (Kaplan, 1991). Em linhas gerais, os diversos programas de pesquisa procuram, via de regra, estabelecer nexos entre os construtos acima mencionados e o funcionamento do sistema imune, mediante indicadores de atividade das células e substâncias que participam das reações imunológicas. Um exemplo (ao mesmo tempo interessante e pertinente a nossa discussão) consiste nos estudos que tentam de verificar a medida de imunoglobulina A salivar como indicador da função desses anticorpos antes e depois de "expor" indivíduos a filmes humorísticos (Lyon, 1993). Em outras palavras, averiguar os efeitos do humor sobre os humores... Uma das possíveis críticas a este campo aponta para a eleição do racionalismo/reducionismo como proposta satisfatória de conhecimento das relações entre o biológico e o social no ser humano. A rigor, estão em jogo interações entre mente, corpo e sociedade (Scheper-Hughes & Lock, 1987). Tais interações podem ser descritas a partir de concepções e modelos correspondentes construídos para 7
.Para uma revisão de trabalhos desta área referidos especialmente ao câncer, cf. número temático da publicação Theoretical Medicine 15 nº 4, 1994. Uma abordagem de divulgação científica: BONAMIN, L.V. 1994. "O Estresse e as Doenças". Ciência Hoje. Vol. 17 nº 99, pp. 25-30.
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este fim. Todavia, estes carecem de firmeza e pertinência e, em geral, não conseguem dar conta da complexidade envolvida. Um dos indícios deste fato consiste na abundância de hífens, barras ou justaposições de conceitos (muitas vezes já imprecisos quando considerados isoladamente), por exemplo psico-social, bio-psíquico, bio-psico-social, psico-somático. Se o racionalismo vigora como ética do pensamento contemporâneo ocidental de modo a impor a abordagem científica como paradigma das formas de conhecer, há limites práticos ao conhecimento que a natureza das coisas impõe às ciências. Temos de admitir que a razão científica se constitui em parcela reduzida no nosso cotidiano, uma vez que o racionalismo não é suficiente para definir as razões e os propósitos de nossas vidas, mesmo que possuam o potencial de contribuir para tanto (Moles, 1995). "(...)[Na] elaboração das linguagens formais lógico-matemáticas nas quais se eliminou qualquer ambiguidade de sentido, tudo ocorre como se a redução a uma significação única e sem ambiguidade - a da proposição formalizada que eventualmente permite aplicar logo um critério de decisão verdadeiro/falso não equívoco em sua projeção sobre uma situação concreta dada - tivesse que passar pela eliminação do mundo das significações no processo de formação das fórmulas, desde que se permaneça no nível, abstrato, desta formação. (...) [É] como se o mundo das significações só existisse na polissemia e na metáfora, como se todo sentido literal fosse ao mesmo tempo metafórico (...); de modo que a redução a uma só significação, literal, não metafórica, sem ambiguidade, se converte na eliminação de qualquer significação; Só escapa da arbitrariedade total da infinidade dos possíveis graças ao consenso, limitado no espaço e tempo, entre indivíduos que convencionam circunscrever este infinito e recortar nos domínios de aplicação, marcos de referência dos que emanam as regras de tal jogo de linguagem [Wittgenstein] particular, que este domínio particular institui por meio de seu recorte" (Atlan, 1991: 353).
Há, no entanto, outras aproximações que discutem a natureza das categorias e respectivos modos de produzir conceptualizações que ultrapassem as limitações dos modelos racionalistas/ reducionistas. Este é o caso da teoria dos mecanismos da "cognição" dos sistemas imunológicos (cognição, aqui, como metáfora) (Varela, 1988). Neste sentido, é interessante considerar as possibilidades semânticas de pensar anticorpos como metáforas moleculares, que podem assumir, conforme filiações a distintas correntes da imunologia, significações bélicas (Martin, 1990) ou cognitivas (Vaz e Magro, 1992). Aliás, a idéia de uma semântica molecular, onde o conceito de informação se destaca, está bastante difundida no meio das biociências. Por exemplo, fala-se no "alfabeto dos ácidos nuclêicos" e na "linguagem molecular fenotípica" que teria afinidade, por analogia, com o discurso humano, baseado na fonética (Eigen & Winkler, 1989). Alternativamente, também pode-se conceber palavras como
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detentoras de propriedades "moleculares", ou seja com a capacidade de provocar não só alterações no registro psicológico, mas, também, no nível orgânico - exemplos: o aumento dos níveis circulantes de hormônio do crescimento em crianças como consequência do acolhimento por famílias adotivas (Cyrulnik, 1995); os efeitos da sugestão/hipnose em termos de geração de flictenas (bolhas por queimaduras) ou alteração da reação tuberculínica (Chertok e Stengers, 1989). Há outras tentativas para abordar-se os humores/emoções de modo a superar as propostas objetivistas (quantificadoras). São aquelas propiciadas pela antropologia da saúde e suas técnicas qualitativas para investigar representações sociais ligadas às emoções e ao adoecer. Trata-se de um campo diversificado de investigação com várias linhas de pesquisa e publicações8. Para as finalidades desta introdução, basta dar um exemplo (bastante próximo a nossa realidade): os estudos sobre a relação entre emoções consideradas negativas (raiva, inveja, ansiedade medo) e entidades como mal-olhado, nervos, susto, peito aberto, frequentes entre as populações do Norte e Nordeste do Brasil (Rhebun, 1994). Agora, o "senso". A partir de Hollanda Ferreira (1975), temos tanto acepções ligadas a uma dimensão racional envolvendo a capacidade de avaliar, julgar, entender ou seus próprios atributos (juízo, tino, siso) como significações relacionadas à esfera afetiva: faculdade de sentir, apreciar. Ainda, pode ser compreendido sob dois "sentidos": a) como direção, rumo, orientação e b) em termos filosóficos, como a "faculdade de conhecer de um modo imediato e intuitivo, a qual se manifesta nas sensações propriamente ditas" (Ferreira, 1975:1288). Existem, também, as expressões relativamente conhecidas: "senso comum" e "senso moral", em relação às quais não é nosso intuito entrar em maiores detalhes. Contudo, cabe uma rápida reflexão quanto ao "bom senso". Seus dois aspectos são: "1.Faculdade de discernir entre o verdadeiro e o falso. 2.Aplicação correta da razão para julgar ou raciocinar em cada caso particular da vida" (Ferreira, 8
.Uma ampla indicação de referências sobre o tema pode ser encontrada em REBHUN, L.A. 1994. "Swallowing Frogs: Anger and Illness in Northeast Brazil". Medical Anthropology Quarterly. 8(4): 360-382.
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1975:1288). A própria expressão está impregnada de juízos valorativos (e, em 2., "correta"). Além disto, pode-se vincular o primeiro significado à lógica identitária, binária, base do pensamento predominante na atividade científica (este é um dos temas dos capítulos 3 e 4). Aliás, não é incomum ouvir-se esta expressão em situações onde cientistas descrevem seus procedimentos de pesquisa. Já o segundo traz implícita a idéia da razão como referência básica para nortear cada decisão nas nossas vidas (objeto do capítulo 7). Será este projeto possível? São importantes, neste ponto, alguns comentários sobre "razão". Pode-se entendê-la, a princípio, em relação às noções de razoável e de racional. A primeira diz respeito a uma idéia de caráter popular ligada a sentimentos práticos que nos levam a agir com "certa" consistência mental em situações similares, sem que isto implique em ser "racional". Esta, por sua vez, está vinculada a um aspecto mais erudito, como produto da razão que raciocina do modo mais dedutivo e científico que seja possível (Moles, 1994). Para Granger (1985), o termo admite interpretações vinculadas a ideal - sistema de princípios; atitude - forma de avaliação de eventos próximos a nós; método - regra nos processos de conhecimento (Granger, 1985). Mas, o humano não é habitualmente racional. Isto, porém, não o impede de ser possuidor de um padrão de valores e uma coerência interna que se atualizam cotidianamente. Agora, aparentemente dispomos de elementos para lidar com o subtítulo deste livro. A ambiguidade da expressão, porém, ficará de alguma forma mantida. Assim, seu potencial gerador de significados permanece. Mas, é preciso algum senso. Então, vamos partir da idéia básica de nossos humores como representação da imprecisa dimensão das emoções, afetos, sentimentos e suas expressões imunológicas, não adquirirem sentido (de modo a serem compreendidos) através da linguagem formal identitária, racionalista da ciência. Em outras palavras, nossos humores não são inteligíveis mediante proposições intencionalmente constituídas para este fim, através da aplicação correta da razão para conhecer regularidades últimas ou, mesmo, discernir entre verdadeiro e falso. Este acesso ainda não nos é viável.
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Neste caso, a afirmação de Moles (1995) é fundamental: "(...) [O] conhecimento de certas reatividades dos seres humanos, mesmo se elas forem fisicamente determinadas pelo estado de seus cérebros, permanece, no nível da observação corrente, pura e simplesmente inacessível, é portanto um dever das ciências sociais levar em consideração estas impossibilidades como domínios de ignorância dentro de seu campo experimental (...)" (Moles, 1995) (grifos do autor).
E, pode-se complementar, mutatis mutandis, isto também parece válido para as biociências. Pelo menos, no seu atual "estado da arte". Não há, porém, como negar os avanços alcançados pela Neurobiologia. Como exemplo, os trabalhos de Damásio e colaboradores (1995) acerca do papel fundamental de processos relativos a emoções e sentimentos na constituição da chamada razão humana. Estes pesquisadores postulam a existência de "marcadores somáticos" - que podem ser concebidos como registros cenestésicos que orientam os caminhos da razão em suas operações. Para Damásio, as emoções primárias (vinculadas a sentimentos de tristeza, raiva, alegria, surpresa, medo, interesse, nojo) seriam inatas e universais ; as secundárias, resultantes de interações com o meio (relativas a imagens inscritas nas experiências singulares de cada um), evocadas por categorias específicas de estimulações em função das situações experimentadas. As emoções seriam resultados compósitos de alterações no estado somático através de efeitos originários nas terminações nervosas. Os sentimentos (de emoções) consistiriam na experiência destas mudanças. Mas, haveria sentimentos - denominados de fundo (background), não vinculados a emoções. Seriam os sentimentos habituais, de base, que costumam predominar em nossos cotidianos, quando não somos afetados pelas emoções. Apesar da afinidade com a idéia de "humor", parecem ser mais estáveis (por certo participam nas definições humorais). O importante seria o fato de constituíremse como base para a idéia de si-mesmo ("self").(Damásio, 1995). Mas, é difícil conceber a noção de identidade completamente dissociada de referências emocionais. Apesar de não estar sob efeitos diretos de emoções, a concepção de si-mesmo que os indivíduos constróem devem incluir tais dimensões. Portanto, os sentimentos de fundo devem dispor, em alguma
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medida, de conexões com configurações "representantes" das emoções que identificam os modos singulares dos indivíduos reagirem afetivamente. Cada um de nós dispõe de, pelo menos, algum grau de reconhecimento de nossos modos emocionais de ser. Esta dimensão reflexiva do humano implica em apercepções e juízos sobre si-mesmo, produzindo mais uma instância de caráter recursivo ao próprio "mim" (poderia ser chamada, por hipótese, assimesmo). Então, pode-se supor que na interação entre a instância subjetiva computante ("eu") e a entidade objetivamente computada ("si") geram-se construções de "mim", mesmo (Morin, 1987), que retroagem, em giros caleidoscópicos identitários sobre si mesmo, incorporando, também, elementos da cultura, (re)produzindo-se assimesmo... De todo o modo, o resultado das interrelações de si-mesmo com instâncias biológicas/sociais não são previsíveis como se supõe (ou se gostaria), no sentido de propiciar afirmativas probabilísticas quanto à determinação de sua "participação", seja no sentido de risco da gênese ou da evolução de entidades nosográficas específicas, seja no estabelecimento das modalidades de adoecimento decorrentes das interações com o meio. Isto está especialmente bem sintetizado por Maturana (1993) quando se manifesta sobre imunologia e nos convida a: "olhar os fenômenos imunológicos como fenômenos biológicos, e não como fenômenos da saúde. A saúde é um fenômeno cultural, um fenômeno próprio de uma visão do que é desejável no viver. Os seres vivos vivem e, em seu viver, não tem saúde nem doença" (Maturana, 1993: 5).
Por sua vez, o termo "molécula" é de origem francesa (molécule) proveniente do latim escolástico molecula, diminutivo de mole (massa) e indica a "menor porção de uma substância capaz de existência independente conservando suas propriedades químicas". (Ferreira, 1975: 939). Não parecem necessários maiores comentários aqui sobre este vocábulo 9. Apenas, destacar o fato de sua forma adjetivada servir para atribuir um status de aparente maior avanço científico, rigor e grau de detalhamento aos empreendimentos identificados pelo correspondente substantivo (biologia, genética). 9
.Acompanhando o comentário de algum autor perdido pela memória, se os átomos se organizaram em formas estáveis foi, entre outras razões, para criar o químico para melhor se auto-compreender. Correspondentemente, o gen criou o geneticista molecular para a mesma finalidade...
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Neste sentido, apesar da crise de legitimação universal das ciências, estes campos seriam derradeiros bastiões, representantes da fé da Biomedicina nas mitologias da tecnociência e de seus produtos. Ambas constituir-se-iam em enunciados sumarizantes com vistas a construir proposições unificadas e predições consistentes para uma teoria da causalidade das doenças (Tsouyopoulos, 1994). Cabe, também, assinalar o emprego metaforizado de "molécula" no campo da referida psiconeuroimunologia: as "alterações" (termo vago que tende a englobar fenômenos físicos, biológicos ou sociais) no Sistema Nervoso Central em função de modificações intrínsecas ou extrínsecas ao organismo (tais como estresse, emoções, sofrimento) pode gerar a produção de "moléculas de informação". Estas teriam o poder de atuar no sistema endócrino através de hormônios e no sistema nervoso por meio de neurotransmissores (Lyon, 1993). Chegamos, agora, à "moléstia". Como justificar o emprego de um termo aparentemente arcaico no contexto médico-epidemiológico ou, então, pelo menos, pouco utilizado em relação aos seus correlatos? Claro que, implícita, pode ficar a impressão de que seu uso, além da função de identificar um elemento fundamental do referido contexto, serviu para conferir, mediante o recurso da aliteração, uma certa sonoridade ao título... Em parte, sim. Mas, além disto, os significados deste vocábulo carreiam algumas características de interesse. Pois, "moléstia" se refere à idéia de sofrimento. Algo que não fica tão explícito em seus correlatos (doença, enfermidade, distúrbio, afecção, agravo)10. E, ao nosso ver, isto constitui uma séria questão nas práticas de atenção vigentes no campo biomédico. Como a dimensão básica do sofrimento humano que acompanham os processos de adoecimento é usualmente encarado, ou melhor, contornado, nos contextos clínicos. Neste sentido, apropriadamente, "moléstia" diz respeito tanto a sofrimento físico como moral. "Molestado" também pode significar "maltratado" (Ferreira, 1975). Nada mais apropriado para designar as formas de tratamento dispensadas, em geral, a grandes contingentes de nossa população. Idéia que pode ser associada, por vizinhança semântica, às formas de terapêutica muitas vezes 10
.Uma possível exceção seria "transtorno".
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inadequadas (para não dizer lesivas) em virtude de um emaranhado de fatores - que incluem precariedade das condições de trabalho (em termos financeiros, materiais); despreparo técnico; negligência profissional, entre outros aspectos. Atualmente, diante das complexas relações epidemiológicas, sócio-econômicas, culturais, biológicas (tanto ecológicas como evolucionárias), entre outras que envolvem indivíduos e seu entorno - em "acoplamento estrutural" (Maturana & Varela, 1984), as infecções emergentes (onde a febre hemorrágica pelo vírus Ebola se tornou o paradigma) vêm sendo consideradas como resultantes de desequilíbrios nestas interações. Sob esta ótica, não é mais suficiente considerar as enfermidades humanas, mas, o fenômeno adoecimento de modo abrangente, com outros modelos para sua conceptualização. Aliás, sob este aspecto, o termo "moléstia" se mostra pertinente, pois também diz respeito a "doenças de animais e plantas", suposta origem das novas doenças infecciosas. Assim, é realmente possível que a taxonomia nosográfica, ao classificar as doenças em infecciosas, ambientais, psicossomáticas/auto-imunes, genéticas e degenerativas, permaneça válida somente em relação a um número bem delimitado de situações (Levins et al, 1993). Nesta perspectiva, as infecções ditas emergentes podem ser categorizadas conforme os fatores responsáveis por sua eclosão (demográficos; comportamentais; tecnológico-industriais; relativos ao desenvolvimento econômico e uso agrário; relativos a deslocamentos populacionais - viagens e comércio; capacidade de adaptação e mutação microbiana; falência de medidas de saúde pública), ao invés de fazê-lo por tipo de agentes (vírus, bactérias, protozoários, fungos, helmintos) (Institute of Medicine, 1992) Porém, não é nossa intenção mergulhar na intrincada discussão a respeito da pertinência dos conceitos e definições de doença e suas taxonomias11. Mas, alguns comentários se fazem necessários. Em primeiro lugar, a possível contradição de propósitos nas concepções de doença, de saúde e de assistência à saúde. Há evidências da possibilidade de se disporem idéias distintas sobre cada um destes aspectos conforme as circunstâncias, os "lugares" e "papéis" assumidos (Seedhouse, 1993). Por
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.Para isto, sugiro consulta ao número temático a este respeito da Theoretical Medicine 14 nº 4, 1993.
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exemplo: a instância responsável pela alocação de recursos para a saúde vis a vis instâncias encarregadas pela prestação dos serviços; o médico em relação ao paciente; o serviço público de saúde versus o particular, o clínico em comparação com o epidemiologista etc. Outro tópico relevante se relaciona com as idéias contidas na distinção feita pela sociologia médica anglo-saxônica entre disease, illness e sickness12. Estas categorias tentam superar as dificuldades de delimitação das instâncias agregadas e reunidas sob a rubrica "biopsicossocial". Apesar de, aparentemente, este objetivo não ser atingido de fato, alguns autores apontam um interessante encaminhamento a partir destes conceitos. Propõem uma inversão de pontos de vista ao sugerirem que, a rigor, a categoria disease, mais bem definida, seria um caso particular da categoria illness - que pode ser traduzida por "moléstia" - sensação difusa de haver algo desagradável,incômodo (perceber-se molesto). Esta, sim, constituir-se-ia na "ponte" teórica entre as instâncias biológicas e sociais (Fulford, 1993). A nosso ver, esta função de articulação seria especificada pela metáfora, enquanto veículo de significação que busca trazer sensos "psicológicos" aos incômodos sentidos/sofridos13. Em outros termos, as dimensões simbólicas do adoecimento (enquanto moléstia) referidas ao indivíduo consistiriam em elaborações metafóricas que serviriam de mediação entre doenças (definidas pelo modelo médico-epidemiológico) e representações sociais de adoecimento14. Tais dimensões simbólicas 12
.Em síntese, a primeira indicaria a dimensão biológica do adoecer, a segunda, a esfera psicológica/peceptiva e a terceira, a repercussão e representação em termos sócio-culturais. Cf. SUSSER, M. 1973. Causal Thinking in the Health Sciences. Oxford. Oxford University Press. 13 .Um problema encontrado pela medicina preventiva é a utilização da categoria "risco" em pacientes assintomáticos de modo a convencerem-nos a adotar procedimentos cabíveis (às vezes desagradáveis) sem que estes se percebam como doentes em potencial. 14 ..As classificações de doenças para fins médico-epidemiológicos costumam ancorar-se em 3 critérios de estabelecimento de similaridades: semiológicas (diabetes, hipertensão), etiológicas (doenças infecciosas), fisiopatogênicas (intoxicações hepáticas por agentes químicos). Este enfoque taxonômico pode ser chamado "monotético". Assim, procuram-se delimitar requisitos comuns que identifiquem as doenças incluídas em determinada categoria. Tal termo, originário do vocabulário fenomenológico de Alfred Schutz, indica que o conhecimento de um dado objeto se dá direta e imediatamente, em uma unidade simples de apercepção (percepção com consciência do percebido) . Este tipo de definição unívoca se esteia na lógica formal e produz homogeneidades com propósitos ordenadores. Por sua vez, a definição "politética" se baseia em uma sucessão de apercepções, que são construídas mediante o distanciamento das situações, em um processo de integrações iterativas. Baseia-se, em grande medida, em procedimentos analógicos e realça a singularidade de cada sujeito. Alguns autores apontam a
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seriam, assim, formas de nexo (nos dois sentidos) entre moléstias, por um lado, e valores, crenças, atitudes e normas sociais, por outro (Lieban, 1992). Esta seria uma tentativa de lidar com dualismos improfícuos ao abordar as interações entre os registros da mente/corpo/sociedade e o adoecer humano. É preciso, antes, introduzir a noção de "metáfora". Esta palavra tem um uso relativamente trivial. Serve para designar, na língua grega, ao processo e, por extensão, aos meios de transporte de carga (Ferrater M., 1986). Em sua dimensão linguística (sem entrar em maiores aprofundamentos), refere-se a dois termos e à relação entre eles. O primeiro termo é denominado tópico, o segundo veículo. A relação que se estabelece é dita campo15. Por exemplo: "o sanitarista [tópico] é um médico de papel [veículo]". O "campo" estaria referido à idéia preconceituosa de um profissional de saúde de valor discutível (há um duplo sentido ao sugerir que equivaleria a "papel") que não trata de pacientes, mas, sim, lida com pesquisas, relatórios, artigos etc. (em suma, papel...). Em termos linguísticos, considera-se três concepções de metáfora que podem se superpor simultaneamente: substitutiva, comparativa e interativa16 (Rivano, 1986). A primeira pode ser ilustrada pela substituição direta de um termo metafórico por um literal ("A Aids é uma maldição" no lugar de "A AIDS surgiu para castigar a humanidade"). No segundo caso, teríamos uma conotação de caráter analógico: "A AIDS é como se fosse uma maldição". Quanto à dimensão interativa da metáfora, ao enunciarmos "A AIDS é uma maldição", temos a possibilidade de perceber dois pontos de vista
necessidade de definições "politéticas" para doenças como o câncer, onde os critérios classificatórios usuais (letalidade, invasividade, características histológicas, topografia, alterações moleculares etc.) não são suficientes para dar conta da diversidade das manifestações subsumidas por tal rubrica. Cf. Vineis, P. 1993. "Definition and Cassification of Cancer: Monothetic or Poythetic?" Theoretical Medicine. 14: 249-256. 15 .Esta é a definição proposta por Richards, I.A. em 1936, ainda consagrada por grande parte dos linguistas (cf. CORREA, M.C.Q., 1986. Raízes Cognitivas da Metáfora. Dissertação de Mestrado apresentada ao Depto. de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). 16 .Há discussões sobre as teorias linguísticas da metáfora. Johnson, por exemplo, aponta três teorias-padrão: * de essência literal ("literal-core") - teorias da "comparação" e da "similaridade" com realidades objetivas, existentes; * de proposição metafórica - teoria da interação, contrária à linha objetivista, com ênfase nos aspectos de criatividade e invenção, (cujo expoente é I.A. Richards); * não-proposicional (a metáfora serviria para "intimar" ou "sugerir" algo, consistindo em um uso especial do sentido literal da sentença (com seu conteúdo proposicional). Donald Davidson é o autor desta teoria. Cf. JOHNSON, M. 1987. The Body in the Mind. The Bodily Basis of Meaning, Imagination, and Reason. Chicago. University of Chicago Press.
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interrelacionados: 1)a existência de uma doença humana consuntiva e letal; 2) um "agente desencadeante" da enfermidade que atuaria deste modo por razões supostamente malévolas ou punitivas... Aqui, é importante assinalar tentativas de distinguir analogia de metáfora. Para Kirmayer (1993), a primeira diz respeito apenas aos aspectos cognitivos da relação, onde a similaridade prevalece. A segunda incorpora, também, aspectos afetivos e sensoriais e suas interações (Kirmayer, 1993). Assim, metáforas não se resumem à dimensão verbal. Podem ser perceptivas ou vinculadas a domínios nãoverbais. São facilmente lembradas as transposições que as crianças fazem ao substituir o significado de determinados objetos por outros (um graveto por um "foguete", por exemplo, ou mesmo, segundo a psicanálise, um carretel pela ausência da mãe...). Deste modo, a linguagem metafórica não pode ser julgada em termos das categorias "verdadeiro" ou "falso". Deve ser avaliada por sua eficácia, sua capacidade de ensejar encaminhamentos originais nas propostas de descrições do mundo, de representação da "realidade" (Rorty, 1991). No campo filosófico17, há autores que sugerem não haver discurso sobre a metáfora que não se enuncie em uma cadeia conceitual em si produzida metaforicamente (Ricoeur, 1983). Não obstante, é preciso enfatizar que a metáfora pode ser encarada como algo mais que simples figura de retórica, cujas origens remontariam a um estágio mental pré (ou anti) científico (voltaremos a este aspecto). Seria o mecanismo fundamental do processo de criação e invenção - na medida em que permite cogitar alguma coisa em termos de outra (Lakoff e Johnson, 1980). Portanto, a metáfora não consiste, tão-somente, no mapeamento de uma idéia em termos de outra possibilidade analógica. Neste sentido, "(...)A metáfora não imagina a coisa que ela procura caracterizar; ela fornece diretrizes que facultam encontrar o conjunto de imagens que se pretende associar àquela coisa [tópico]. Funciona como um símbolo, e não como um signo: vale dizer, ela não nos fornece uma descrição ou um ícone da coisa que representa, porém nos diz que imagens procurar em nossa experiência culturalmente codifificada a fim de determinar de que modo nos devemos sentir em relação à coisa representada (White, 1994: 108).
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.Uma detalhada discussão filosófica sobre a metáfora foi desenvolvida por RICOEUR, P. 1983. A Metáfora Viva. Porto. Rés Ed.; DERRIDA, J. 1991. Margens da Filosofia. Campinas. Papirus Ed. e JOHNSON, M. 1987. The Body in the Mind. The Bodily Basis of Meaning, Imagination, and Reason. Chicago. University of Chicago Press.
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Para Derrida (1991), "a metáfora seria o próprio homem" (Derrida, 1991: 287). Neste ponto, cabe indagar se o conhecimento humano estaria inapelavelmente dependente de construções metafóricas. Assim, "Que pensar se: a)o que podemos perceber de nosso si-mesmo é nossa própria metáfora: e b)somos nossa própria epistemologia; e c)nosso mundo interior é esta epistemologia, nosso microcosmo; e d)nosso microcosmo é uma metáfora apropriada do macrocosmo?" (Bateson, 1994: 296).
O conhecer a si próprio implica na criação de si, em uma invenção de nova linguagem, mediante, em suma, metáforas novas (Rorty, 1991). Se conceitos metafóricos orientam e estruturam nossas percepções, movimentos e relações com o mundo, pode-se dizer que a experiência humana em sua interação com a realidade ocorre mediante um sistema conceitual que está estruturado e opera, em grande medida, metaforicamente (Lakoff e Johnson, 1980). Este ponto de vista, baseado em evidências linguísticas (onde a metáfora se destaca), serve para questionar o mito do objetivismo no conhecimento. Isto é, a premissa do mundo estar composto por diversos objetos com propriedades inerentes e relações estáveis entre si. Lakoff e Johnson (1980) argumentam que a filosofia objetivista não consegue explicar satisfatoriamente como entendemos nossa experiência, nossas manifestações mentais, nossa linguagem. Para eles, uma explicação adequada demanda: "-ver os objetos apenas como entidades relativas a nossas interações com o mundo e com nossas projeções sobre ele, -considerar as propriedades como propriedades interacionais mais do que inerentes, -considerar as categorias como gestalts experienciais definidas por meio de protótipos em vez de considerá-las rigidamente fixadas e definidas segundo a teoria dos conjuntos" (Lakoff e Johnson, 1980: 254).
Por outro lado, há autores que sugerem, nos dias de hoje, a progressiva perda do vigor metafórico, em todos os domínios. Isto ocorreria em função do processo de confusão e interpenetração pelos quais passam as disciplinas, que perderiam, assim, seu caráter específico. Assim, nenhum discurso poderia constituir-se em metáfora do outro, diante do apagamento da diferença dos campos e dos objetos.
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Enfim, um processo de "contaminação" generalizada, gerando redes e circuitos homogeneizados, sem alteridade, condição básica para a eclosão metafórica (Baudrillard, 1990). Mesmo aceitando a existência deste processo, ainda assim, é discutível sua radicalidade, e, também, pode-se cogitar que, em um sistema aparentemente homogêneo, sua organização complexa pode gerar alteridades locais, suficientes para dar margem a diferenças e permitir novas possibilidades de caráter metafórico. É desta ordem a metáfora do hipertexto18, a partir dos avanços da informática nas denominadas tecnologias intelectuais (Lévy, 1993). Ou seja, mesmo admitindo-se que as metáforas "envelhecem" rapidamente e, com isto, perdem seu vigor criativo, ao mesmo tempo, servem de suporte e contraste para metáforas novas (Rorty, 1991). Assim sendo, os ensaios que compõem este livro podem ser resumidos da seguinte forma: Os capítulos um e dois tratam das relações da Saúde Pública com a Genética Molecular. Para isto, discute-se a noção de Saúde Pública e expressões correlatas, procurando estabelecer seu objeto de estudo e campo de práticas. Além disto, faz-se uma breve descrição do precário panorama sanitário no nosso país, destacando a pequena efetividade social do papel atribuído ao sanitarista. Apresenta técnicas e conceitos, desenvolvidos pela Genética Molecular e sua relevância em Saúde Pública. O risco genético é discutido e comparado com a idéia de propensão hereditária, enfatizando aspectos epistemológicos e repercussões éticas. Considera-se a noção de expert as questões postas pela Biologia Molecular/Genética Humana nos domínios da Saúde Pública. Por fim, a participação do Estado no estabelecimento das prioridades sociais em Saúde é discutida.
O capítulo três apresenta uma abordagem do raciocínio causal de Freud para as origens da moléstia chamada "histeria". Para isto, utilizam-se alguns cânones do "Sistema de Lógica" de John Stuart Mill. 18
.Em termos técnicos, o hipertexto consiste em um programa computacional onde há um conjunto de nós vinculados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos, sons, documentos complexos. Foi concebido para ser manipulado e transformado em interações com usuário(s) envolvendo um banco de dados original. Cabe destacar que é o ambiente virtual do hipertexto que proporciona o "meio" que viabiliza a interação destes usuários. Os exemplos mais conhecidos são as extensas obras editadas em CD-ROM, como dicionários e enciclopédias (cf. Lévy, 1993, op. cit.).
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Percebe-se que, mesmo sem evidências empíricas, a formulação freudiana em sua fase neurológica pode ser incluída dentro da lógica de Mill para a elaboração de hipóteses causais na pesquisa epidemiológica. O capítulo quatro se propõe a abordar as formas de educação em saúde com vistas à prevenção do HIV/AIDS. Levando em conta os resultados insatisfatórios das propostas de educação em saúde baseadas no conceito de risco visando ao controle da pandemia, discutem-se as possíveis premissas subjacentes às referidas propostas. Nelas se destaca a concepção de racionalidade do receptor de tais conteúdos educacionais. Assim, consideram-se noções que envolvem o entendimento público dos conceitos produzidos pela ciência epidemiológica. Dentre elas se sublinham as idéias de "recaída" e "natureza humana", entre outras. São discutidas limitações do instrumental epidemiológico para dar conta das dimensões interativas no adoecimento pela AIDS. Por fim, apresentam-se abordagens recentes (como as redes sócio-históricas nos estudos de AIDS) que procuram levar em conta tais aspectos. No cinco, discutem-se as metáforas e suas relações com o corpo humano e suas funções, seu adoecer. Para isto, revê-se, brevemente, a noção linguística desta figura de retórica, enfatizando sua dimensão intermediadora entre corpo, mente e sociedade. Destaca-se, também, a vinculação entre a atividade psicanalítica e suas elaborações metafóricas, tanto ao nível da prática como das suas teorias. O caso freudiano do "Homem dos Lobos" é apresentado como exemplo do papel da metáfora na articulação entre instâncias psicológicas e sociais. A prática metafórica também é abordada em relação ao contexto terapêutico da clínica médica, com ênfase em estudos antropológicos sobre pacientes de câncer. Também, mostra-se como a Imunobiologia emprega tais tropos em suas conceptualizações. Por fim, comentam-se aspectos que envolvem as difíceis relações do modelo biomédico com suas práticas metafóricas. Nos capítulos finais, abordam-se aspectos teóricos e conceituais da Epidemiologia, com ênfase nas dimensões metafóricas vinculadas à produção científica, de um modo geral, e à pesquisa
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epidemiológica, em particular. Nesta perspectiva, apresentam-se as relações da disciplina com a lógica identitária e metáforas empregadas, tanto em termos de causalidade como referentes à idéia de "risco". Para isto, procede-se à discussão entre a noção de metáfora, seus vínculos com o chamado senso comum e com a produção de conhecimento. Apresenta-se questões ligadas à percepção pública do conceito de risco, produzido pela epidemiologia e são descritas algumas tentativas de desenvolver métodos que avancem no conhecimento da situação de saúde/doença das populações. Por exemplo: a incorporação de aspectos qualitativos à pesquisa populacional em Saúde ; a aparente reabilitação dos estudos ecológicos; as tentativas de avanços conceituais ("população-sentinela" em vigilância epidemiológica). Antes de encerrar a introdução, uma petição de princípios (?!). Nossa abordagem se pretende "indisciplinar"19 (porém, de acordo com Soares (1994), com todo o rigor da indisciplina...). Isto se deve ao fato vivermos tempos de perplexidade no campo das demarcações disciplinares e das correspondentes estruturas normativo-paradigmáticas que referenciem nossas proposições de conhecimento. Longe de parecer, tão-somente, um jogo de palavras, esta idéia serve para contornar problemas gerados pela chamada interdisciplinaridade20 (Faure, 1992). Por exemplo: -obstáculos institucionais: as instituições não foram concebidas para esta finalidade. Nestas circunstâncias, a interdisciplinaridade pode ser relacionada, de fato, à indisciplina, isto é, uma subversão às normas de funcionamento vigentes.
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.Sigo, aqui, a sugestiva expressão enunciada pela epidemiologista Zulmira M. de A. Hartz. .Interdisciplinaridade pode ser definida de distintos modos, com inevitáveis pontos de contato: a)utilização de enfoques variados para abordar o mesmo objeto; b)sistema organizado para transferência de métodos (quantitativosqualitativos); c)resposta complexa/compósita a interrogações sobre o real-concreto; d)reunião progressiva e integrada de sistemas conceituais; e)elaboração de um corpo conceitual unificado resultante da fusão das disciplinas (tal integração quando totalizada levaria à introdução da idéia de transdisciplinaridade). Cf. FAURE, G.O. 1992. "A Constituição da Interdisciplinaridade". Revista Tempo Brasileiro. 108:61-68. 20
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-obstáculos intelectuais: movimentar-se entre disciplinas pode gerar problemas de legitimidade diante das regras de conformidade a cada uma delas. Outro problema diz respeito às imputações de contaminações "filosóficas" e/ ou "ideológicas" (Faure, 1992). -dificuldades teórico-metodológicas: mais especificamente, os problemas de transposição dos vocabulários (por extensão, dos conceitos) e métodos de um campo disciplinar para outro (Moles, 1995). Seguindo Moles (1995), é possível compreender a atividade científica acabada, constituída, como disciplinar (e disciplinada) - de maneira a permitir a catalogação para posteriores revisões bibliográficas sobre o (cada vez mais evanescente) "estado da arte" de determinado tópico de pesquisa. Assim, teremos enormes pilhas de publicações como um dos produtos do afazer científico (e, mais modernamente, os grandes bancos de dados da produção indexada como, por exemplo, o Medline, no campo biomédico). Todavia, no caso da ciência "sendo feita", pode-se pensar no campo caleidoscópico de possibilidades que se descortinam e se modificam no decorrer do processo, no qual os contornos dos tópicos de estudo ainda não estão bem delimitados e as categorias "verdade" e "falsidade" ainda não podem ser definidas satisfatoriamente. Enfim, o momento "indisciplinado" da produção científica. Por outro lado, é importante assumir a imprecisão21 como característica do campo das ciências humanas e sociais. Ou, dito de outra forma, a inexatidão, sem com isto endossar juízos de valor que, ao estabelecerem as disciplinas ditas exatas ("hard") como padrão de referência, passam a considerar as que não atingem os critérios de cientificidade destas como, quando muito, ciências menores, "moles" ("soft") ou (perdoem-nos o trocadilho irresistível) insufi-ciências... 21
.Segundo Moles, há três categorias do "impreciso": 1)fenômenos instáveis, complexos (sensíveis às condições iniciais) que fazem com que seja grande o erro probabilístico em suas determinações (ex.: fenômenos meteorológicos) ; 2)falta de técnicas apropriadas de medida para determinados fenômenos (ex.: medir a generosidade de uma ação); 3)fenômenos vagos por natureza, cujos conceitos que os delimitam são, também vagos (ex.: aqueles referentes à esfera emocional humana). Cf. MOLES, A.A. 1995. As Ciências do Impreciso. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira.
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É inevitável encarar o adoecer humano como um objeto de estudo indisciplinado, que resiste a nossas tentativas disciplinares de enquadramento. Portanto, prosseguindo na trilha iniciada em trabalho anterior22, os textos deste livro não se definem a partir de um lugar disciplinar bem demarcado. Somente assim, acreditamos ser possível transitar por moléculas, moléstias, metáforas, assumindo os riscos de nos perdermos23 pelos (des)caminhos indisciplinares, em busca de explicações e intervenções menos insatisfatórias do que as prevalecentes no campo biomédico-epidemiológico atual.
22
.Cf. CASTIEL, L.D. 1994. O Buraco e o Avestruz. A singularidade do Adoecer Humano. Campinas. Papirus. .Aproveito-me, aqui, da idéia de "perdição" expressa pelo filósofo Clement Rosset, referindo-se ao estado onde nada é situável, onde não há referenciais qualitativos ou quantitativos que definam a priori categorias e escalas de ordenação e mensuração. Apenas intuições, sensações, indícios, aproximações. Cf. ROSSET, C. 1989. Lógica do Pior. Rio de Janeiro. Espaço e Tempo. 23
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UM Saúde Pública Molecular: Consonâncias e Dissonâncias I 1
A justaposição da expressão "Saúde Pública" com o adjetivo "molecular" produz, a princípio, um oxímoro - figura de linguagem capaz de provocar estranheza ao contrapor idéias supostamente antagônicas, ou, então, incompatíveis. E, neste caso, algum desconforto, pois, parece haver algo destoante na vinculação de idéias pertencentes a dois campos discursivos distintos, tanto em termos de seus marcos de referência como de suas práticas. O primeiro, por si só, pode dar margem a longas discussões quanto sua definição e eventual correspondência com noções veiculadas, muitas vezes, de modo equivalente, como "Saúde Coletiva", "Medicina Social/Preventiva/Comunitária", "Higienismo", "Sanitarismo". Neste aspecto, a conotação veiculada pela instância da "Saúde Pública" se refere a formas de agenciamento político/governamental (programas, serviços, instituições) no sentido de dirigir intervenções voltadas às denominadas "necessidades sociais de saúde"2. Já "Saúde Coletiva" implica no pré-requisito essencial da inclusão das idéias de diversidade e heterogeneidade para a abordagem dos grupos populacionais e das individualidades com seus modos singulares de adoecer e/ou representarem tal processo (Birman, 1991) (o que, diga-se de passagem, não costuma ocorrer ao nível da "Saúde Pública"). "Medicina Social/Preventiva/Comunitária" tende a indicar uma área disciplinar/acadêmica que estudaria o adoecer para além de sua dimensão biológica. Na verdade, em linhas gerais, está voltada para abordá-la ao nível de determinantes sócio/político/ econômico/ideológicos.
1
.Os dois capítulos a seguir consistem numa versão revista de "Saúde Pública Molecular!?" publicado na seção Debate dos Cadernos de Saúde Pública. Vol. 10 nº 3. Julho/Setembro 1994, pp. 285-319. 2 .Uma pertinente discussão a este respeito pode ser encontrada em PAIM, J.S. 1980. "As ambiguidades da noção de necessidade em saúde" in Planejamento. Salvador. 8 (1/2), pp. 39-46.
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Outra forma de encarar este problema demarcatório é buscar elementos nos diversos momentos históricos de reforma em saúde em diferentes formações sócio-econômicas. Deste modo, por exemplo, as origens da idéia de Medicina Social estão ligadas aos movimentos sanitários na França e Alemanha. Por sua vez, Medicina Preventiva, Comunitária e Familiar relacionam-se à correspondente história referida aos Estados Unidos e América Latina, Higienismo tem raízes européias e Sanitarismo sugere influências marcadamente britânicas (Paim, 1992). Há autores que consideram "Saúde Coletiva" como categoria que abrange a corrente crítica constituída pela Medicina Social, pelo movimento preventivista, representado pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Social de diversas Faculdades Médicas e pela própria Saúde Pública, institucionalizada em nível estatal. Frenk (1992) identifica pelo menos cinco conotações diferentes em que a expressão "saúde pública" é empregada (sem incluir hibridismos): 1)o termo "pública" equivale ao setor público, governamental; 2)pode incluir a participação da comunidade organizada, o "público"; 3)identifica-se aos serviços dirigidos à dimensão coletiva (por ex.: saneamento); 4)acrescenta ao anterior serviços pessoais dirigidos a grupos vulneráveis (por ex. Programas de Saúde Materno Infantil); 5)refere-se a problemas de elevada ocorrência e/ou ameaçadores (Frenk, 1992). De qualquer modo, parece haver consenso com a caracterização do campo da Saúde Pública mediante dois amplos critérios: a) a vinculação ao aparelho de Estado; e b) a dimensão coletiva como objeto de intervenção (Paim, 1992). Claro está que tal categorização é por demais abrangente. Conforme as circunstâncias, os campos se interpenetram e nem sempre é possível fazer distinções bem delimitadas quanto aos respectivos domínios e fronteiras3. Pode-se conjeturar, enfim, que a compreensão do que seja "Saúde Pública" resulte, em última análise, de pontos de vista dos indivíduos/grupos sócio-econômicos-culturais, 3
.Ver a este respeito SCHRAMM, F.R. 1993. A Terceira Margem da Saúde: A Ética Natural. Tese de Doutorado em Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro (cópia reprográfica).
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condicionados pelas suas idéias acerca do mundo circunjacente, conforme os respectivos interesses, crenças, concepções. Mas, sobretudo, sob as determinações da correspondente formação sócioeconômica (Pires-Filho, 1987). No presente texto, não há preocupação estrita em aderir incondicionalmente a qualquer das referidas tentativas de delimitação. Mesmo admitindo-se a importância das propostas demarcatórias citadas, para efeitos do escopo deste trabalho, iremos considerar, baseado em Sabroza (1994), Saúde Pública como um domínio genérico de práticas e conhecimentos organizados institucionalmente em uma dada sociedade dirigidos a um ideal de bem-estar das populações - em termos de ações e medidas que evitem, reduzam e/ou minimizem agravos à saúde, assegurando condições para a manutenção e sustentação da vida humana. Por outro lado, como se sabe, o adjetivo "molecular", a princípio, carreia referências a um conceito básico, bem definido, que dispõe de consagrado estatuto de cientificidade (proveniente da química uma "ciência natural"). Além disto, por servir como instrumento para operar instâncias as mais íntimas possíveis referentes à estrutura e aos mecanismos de ação, porta um vigoroso atributo epistemológico em sua potência explicativa. Atualmente, tal adjetivo encontra especial valorização ao se conjugar ao substantivo "biologia", designando um campo disciplinar extremamente prolífico e gerador de consideráveis progressos técnicos e conceituais (como veremos adiante). Portanto, subjacente à expressão "saúde pública molecular", buscam-se formas de pensar avanços da biologia molecular no interior da chamada Saúde Pública, sob o ponto de vista sanitarista4. Mais especificamente, como as práticas sociais poderão incorporar (ou não) conhecimentos e técnicas ensejados pela genética molecular. Isto levando-se em conta, não apenas sua faceta alvissareira, mas, também, especulando-se a respeito dos possíveis "efeitos colaterais" de tal processo. Antes, porém,
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.Uma introdução de aspectos da Engenharia Genética dirigidos ao conhecimento de profissionais da Saúde Pública (sob o ponto de vista da primeira) pode ser vista em CANDEIAS, J.A.N. 1991. "A Engenharia Genética". Revista de Saúde Pública. 25(1): 3-10.
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para fins do desenvolvimento do trabalho, é imperiosa a menção aos cenários onde se dão as atividades médico-sanitárias no nosso meio.
Mal-Estar na Cultura da Saúde Pública: a "Estética do Quase" Não há como contornar a constatação da precariedade do papel atual reservado à esfera da Saúde Pública no contexto dos seus agentes institucionais e de suas respectivas atuações com o propósito de propiciar melhores condições de saúde às populações. Seja no que se refere ao terreno dos modelos de prestação de serviços de saúde, seja em nível da pesquisa/ensino em saúde coletiva. Também não se pode evitar a observação da pobre contribuição que a epidemiologia indiscutivelmente, um importante instrumento do campo da saúde pública, tem proporcionado. Tanto na sua dimensão investigativa, como nas suas propostas de racionalização dos processos de planejamento e administração de serviços e programas de saúde. Há, nos dias de hoje, evidências flagrantes do campo sanitário enfrentar simultaneamente a múltiplos e intrincados desafios. Por um lado, encarar questões oriundas da necessidade de lidar com diversas crises (administrativas, políticas, econômicas, éticas) - internas e externas aos cenários do Setor Saúde5. Por outro, levar em conta a dimensão (mais geral) de complexificação/fragmentação de processos biológicos/sociais (Castiel, 1994a). Dentro deste quadro, têm recebido destaque dos meios de comunicação de massa as aterrorizantes configurações epidemiológicas de doenças infecto-contagiosas emergentes, dentre as quais, a AIDS e, mais recentemente, a febre hemorrágica pelo vírus Ebola se constituem representantes. Aliás, uma das tentativas de explicação pelo aparecimento destas novas "pestes" se vincula à invasão de nichos ecológicos pela dita civilização humana. Isto ocorre, ironicamente, no considerado berço dessa civilização - o continente africano...
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.Ver a este respeito Organización Panamericana de la Salud (org.) 1992. La Crisis de la Salud Pública: Reflexiones para el Debate. Washington. D.C. O.P.S. e SABROZA, P.C. 1994. "Saúde Pública: Procurando os Limites da Crise". Documento para debate. Departamento de Grandes Endemias. ENSP/FIOCRUZ. 17 ps. (cópia reprográfica).
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Solicito a compreensão dos leitores para tomar a liberdade de ilustrar caricaturalmente a situação de nossa Saúde Coletiva (tanto em termos de organização/prestação de serviços e da investigação/ensino) por intermédio de uma boutade: a "Estética do Quase"6. Isto é, o processo geral de "tardomodernização" se modaliza no nosso contexto público de modo incompleto (onde, na melhor das hipóteses, as "coisas" quase funcionam plenamente).
Exemplos: operação instável de nossos
equipamentos eletroeletrônicos e hardware/software informáticos - quase operam satisfatoriamente..., os resultados dos variados planos e programas de saúde elaborados periodicamente em distintos governos - quase dão certo...; os níveis salariais da grande massa de trabalhadores, tanto do setor público como privado - quase dão conta das respectivas necessidades básicas em saúde...; o grau de segurança pública proporcionado pelas instâncias responsáveis pela Segurança Pública - quase garantem a integridade dos cidadãos...; a magnitude de monitoração e/ou previsão de tendências de doenças infecto-contagiosas que voltaram a grassar (como cólera e dengue) - quase sob controle... É imprescindível, também, mencionar uma terrível e ameaçadora "epidemia" dos dias de hoje: a flagrante eclosão de múltiplas situações nas quais a violência, em suas diversas formas, desempenha papel preponderante. Trata-se, indiscutivelmente, de um problema de Saúde Pública com determinantes extremamente complexos e diversificados que demandam distintos saberes e disciplinas para sua abordagem (Castiel, 1994b). Mas, retornemos a nosso objeto. O surgimento de novas e avançadas técnicas de tipagem gênica propiciadas, por exemplo, pelos conhecimentos da Engenharia Genética pode trazer alterações ao panorama de morbimortalidade em formações econômicas ditas periféricas? Pelo visto, é possível isolar e identificar as espécies e variantes dos agentes responsáveis pelas infecções emergentes. Mas, as
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.É importante dar os créditos aos sanitaristas que, durante o II Congresso Iberoamericano de Epidemiologia em Salvador (Bahia), em 1995, esboçaram os "pilares" desta idéia: Prof. Henrique Guerra (Escola de Saúde da Secretaria de Saúde de Minas Gerais), Prof. Wagner Marcenes (London School of Hygiene and Tropical Medicine), Profs. Paulo C. Sabroza, Cláudia Travassos e este escriba (ENSP - FIOCRUZ) que tomou a liberdade de expressá-la, sem o consentimento explícito dos demais. Fato para o qual peço as devidas desculpas.
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possibilidades de controle mediante medidas como o desenvolvimento de vacinas eficazes é discutível (Haja visto o debate inconclusivo sobre a vacina contra o HIV). Mas, quais serão, então os possíveis efeitos de tais progressos no campo da Saúde Pública? Esta é uma das preocupações centrais deste trabalho. Para isto, é preciso proceder a um breve comentário sobre algumas aquisições especialmente significativas, pertinentes aos domínios da genética atual. A Perspectiva Molecular na Saúde Pública Nos dias de hoje, há uma certa aura, mescla de fascínio e desconfiança, quanto à função e ao alcance da Genética Molecular (e mais especificamente, da denominada Engenharia Genética). Este sentimento popular difuso tem sido explorado com frequência pelos meios de comunicação de massa que aí encontraram um excelente filão. Basta observarem-se as seções de "Ciência e Tecnologia" da imprensa leiga para perceber a presença constante de temas relativos a tal campo. A própria imprensa leiga já aventou a hipótese de se tratarem de efeitos resultantes da possível intrusão no imaginário popular da idéia do homem estar invadindo os recônditos terrenos reservados ao exclusivo domínio do Divino. Ou seja, dispor do poder de atuar no terreno da criação/alteração da vida7... Independente disto, os avanços da Biologia Molecular, e, especialmente, das técnicas de manipulação genética no campo das Biomedicina são apreciáveis. Chega-se postular, inclusive, a emergência de uma "Nova Genética", definida como "um corpo de conhecimentos e procedimentos baseados na tecnologia do D.N.A. recombinante que cria informação sobre os gens que os indivíduos e as famílias portam" (Richards, 1993: 567). Um dos exemplos mais revolucionários é o da Reação em Cadeia da Polimerase (P.C.R. Polymerase Chain Reaction). Esta é uma técnica concebida pelo bioquímico Kary Mullis em meados da década de oitenta (pela qual foi agraciado com o Prêmio Nobel de Química em 1993). Trata-se da
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.A percepção pública e a repercussão social dos avanços da Biotecnologia serviram de pretexto para obras de divulgação científica com a finalidade de esclarecimento de seus perigos "reais" e "imaginários" (ver, por exemplo, DAVIS, B. (org.) 1993. The Genetic Revolution: Scientific Prospects and Public Perceptions. Boston. Harvard University Press).
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ampliação de um processo natural mediado pela enzima Polimerase, através do qual ocorre a replicação de fitas complementares de sequências específicas de D.N.A. nas células de modo a facilitar e viabilizar o estudo e a análise de gens. Tais investigações, anteriormente, sofriam sérias restrições diante da reduzida magnitude constituída pela estrutura gênica e a consequente dificuldade de acesso. Com este procedimento, é possível, por exemplo, detectar infecções virais e bacterianas nas quais os microorganismos não costumam apresentar-se em quantidades suficientes para o diagnóstico nas amostras patológicas (P. ex.: Mycobacterium tuberculosis, Toxoplasma gondii) (Watson et al, 1992). Estes aspectos indicam a importância em Saúde Pública proporcionada por tal técnica. Assim, torna-se factível, mediante o P.C.R., proceder a mapeamentos geográficos de hospedeiros humanos, reservatórios e vetores8. Além disto, têm sido descobertos importantes métodos de detecção para um grande números de doenças parasitárias9 ou crônico-degenerativas. Por exemplo, uma demonstração da efetividade da abordagem molecular em Vigilância Epidemiológica pode ser vista no estudo de um surto de Doença dos Legionários em um hotel na cidade de Orlando, Flórida. A investigação utilizou anticorpos monoclonais e técnicas de eletroforese em gel para identificar a fonte ambiental de infecção (Hlady et al, 1993). Estudos de epidemiologia molecular têm servido para estabelecer padrões geográficos de diferentes cepas de HIV e possíveis indicações quanto às formas de disseminação entre regiões (Weniger et al, 1994). Expande-se, também, o conhecimento sobre as próprias doenças genéticas. É possível, mediante o uso de marcadores específicos, a testagem preditiva para determinar os portadores de gens defeituosos, tanto dominantes como recessivos, responsáveis por tais doenças (Richards, 1993).
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.Já é consensual a importância deste procedimento no estudo da AIDS. .Ver, por exemplo, BENDALL, R.P. & CHIODINI, P.L. 1993. "New Diagnostic Methods for Parasitic Infections". in Current Opinion in Infectious Diseases. Vol. 6, pp. 318-322. 9
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Além disto, já se começa a cogitar na possibilidade de, mediante terapêuticas da linha germinal (germline therapy), aplicarem-se "vacinações genéticas" nas futuras crianças para evitar enfermidades crônicas não transmissíveis, como câncer, doença coronariana e assim por diante (Tannsjö, 1993). Por outro lado, há indicações (pelo menos nos países ditos centrais), que uma parcela considerável das admissões em serviços pediátricos (ao redor de um terço) estão, de alguma forma, associadas a distúrbios genéticos. Da mesma forma, as doenças genéticas se constituem numa importante causa de óbito em menores de 15 anos. Isto mostra como a Saúde Pública se encontra comprometida com a dimensão genética, tanto em nivel das técnicas de detecção, como na verificação da morbi-mortalidade da população infantil, onde tais moléstias vêm ocupando um lugar de destaque (nos referidos países) (Watson et al, 1992). Este panorama (visto acima do Equador) sugere que tal constatação não deva tardar a manifestar-se entre nós. Especialmente, se for levado em conta o processo de transição epidemiológica que sucede no Brasil. No entanto, o enfoque "molecular" dá margem a discussões quando a Epidemiologia- investida no papel de instrumento racionalizador das ações em Saúde Pública - se orienta em direção aos conhecimentos da Genética Humana na busca de alicerces para agenciar determinados programas de pesquisa10. Especialmente, no que se refere a sua proposição de obter explicações científicas para deslindar os processos etiopatogênicos ou, então, estabelecer fatores predisponentes na eclosão de agravos à saúde nas populações.
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.A Epidemiologia vinculada à genética molecular pode servir, também para orientar linhas de investigação sob a perspectiva vinculada a antropologia médica de cepa norte-americana. Por exemplo: efeitos genéticos relativos a dita variabilidade normal, análise de traços complexos e/múltiplos, enfoques evolucionários, estudos em populações humanas especiais ("isoladas" em termos étnicos, geográficos ou religiosos), pesquisas que usam modelos animais (primatas). Cf. MACCLUER, J.W. 1993. "The Anthropological Perspective in Genetic Epidemiology". Human Biology. Vol. 65, pp. 1025-1028.
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Para a Biologia, a característica essencial de uma "explicação científica" seria a proposta de um mecanismo. A previsibilidade não constituir-se-ia no ponto central, apesar de poder estar presente (Maturana, 1990). No entanto, para a Epidemiologia Moderna (voltada para as relações entre as medidas de ocorrência de exposição a supostos determinantes e correspondentes agravos à Saúde), a previsibilidade é fundamental. Pois, está intimamente vinculada à almejada racionalidade pragmática que permeia o campo, base das pretendidas intervenções no âmbito da Saúde Coletiva. Todavia, as operações do seu dispositivo metodológico não buscam estabelecer mecanismos biológicos. Na verdade, procuram basear-se neles (a "plausibilidade biológica" como um dos critérios para sustentar afirmações da existência de nexos causais nas associações estatísticas entre exposições e agravos encontradas nos estudos epidemiológicos). E, nestas circunstâncias, a Biologia Molecular proporcionaria tais mecanismos com aparente firmeza. É ilustrativa a posição de Vandenbroucke (1988) ao considerar que a ênfase dada por alguns epidemiologistas aos fatores do ambiente (no sentido mais amplo), mimetiza a discussão entre miasmistas e partidários da teoria contagionista. Tal afirmação se dá em função das críticas do citado autor ao trabalho de dois conceituados epidemiologistas britânicos - Doll e Peto, que elaboraram em 1981 uma detalhada revisão chamada "The Causes of Cancer" . Aí, afirmam, em síntese, que cerca de 80% dos cânceres poderiam ser explicados por alterações no ambiente (Doll & Peto, 1981). Vandenbroucke discorda do sentido vago atribuído à idéia de ambiente. Para ele, a adesão dos ("jovens") epidemiologistas a um aparato conceitual alternativo à posição "miasmático-ambiental" lhes traria uma superioridade epistemológica em relação aos primeiros (Vandenbroucke, 1988). Esta seria, portanto, a via proporcionada pela proposta de "molecularização" da Epidemiologia, da qual se mostra partidário.
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Vandenbroucke considera que a saída para a epidemiologia seria direcionar-se para programas de pesquisa que abordem a interação "ambiente-gene", sem, contudo, especificar (do mesmo modo que faz ao criticar Doll e Peto) a que "ambiente" se refere. A rigor, esta ordem de problemas demanda abordagens bem mais elaboradas do que sugere. Pois, é preciso dimensionar efeitos extremamente complexos: a)dos gens; b)do ambiente11; c)da interação entre gens e ambiente12. Na verdade, tem-se a impressão que sua perspectiva, ao dirigir-se rumo à "epidemiologia molecular", seja a de alcançar a "otimização" do programa epidemiológico de pesquisa reducionista13. Em outras palavras, esta, basicamente funciona mediante reduções: a transformação de conceitos em variáveis, que, por sua vez, tornar-se-ão indicadores que assumirão valores quantificáveis para permitir comparações. Aliás, a prática reducionista na Ciência diz respeito ao processo lógico de separar um todo em seus constituintes, com o intuito de achar nas propriedades dos componentes as explicações para aquelas relativas ao todo (Atlan, 1991). Neste sentido, a necessidade de precisão do dispositivo epidemiológico em definir "precisão" se justifica para viabilizar sua operação, (bem como "risco", "probabilidade", "validade", "confiabilidade" etc.). Mas, infelizmente, nem sempre as palavras se aquietam nos conceitos em que são colocadas. Inclusive, conceitos epidemiológicos como "validade", "precisão", "exatidão" podem não ser exatamente bem definidos entre os próprios epidemiologistas (Porto, 1994). Na verdade, não é abusivo dizer-se que a epidemiologia sofre de um profundo anseio de constituir-se como uma ciência dita exata, e, assim, sofre dos efeitos da "ditadura metodológica da medida". Ou seja, "da medida como método, passa-se à medida como frenesi e do frenesi da medida passa-se ao frenesi da precisão (o "frenesi do racional" não é em si uma racionalidade). Por isso, sai-se, digamos da ciência para passar para a ideologia e para os julgamentos de valores sobre os conhecimentos do mundo exterior que podemos ter" (Moles, 1995: 57).
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.Além do mais, deve ficar claro que a idéia de ambiente requer uma definição criteriosa. Especialmente no que se refere à incorporação de aspectos sócio-culturais. 12 .Jacquard faz um interessante desenvolvimento estatístico numa tentativa de operar com tais dimensões. Cf. JACQUARD, A. 1988. A Herança da Liberdade. São Paulo. Ed. Martins Fontes, pp. 83 e segs. 13 .A posição de Vandenbroucke foi posteriormente contestada com pertinência por Loomis e Wing (Ver LOOMIS, D. & WING, S. 1990. "Is Molecular Epidemiology a Germ Theory for the End of the Twentieth Century?". in International Journal of Epidemiology. Vol 19. n° 1, pp. 1-3).
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Não é absurdo pensar que tal pretensão visaria conferir à disciplina epidemiológica um estatuto científico (e social) correspondente àquele desfrutado pela Genética Molecular. Esta posição é vista com muita simpatia por outros autores que chegam, inclusive, a adotar uma postura, digamos, "casamenteira", ao sugerir que existem muitas afinidades entre as duas disciplinas (Epidemiologia Clássica e Genética Humana), uma vez que: "cada uma delas estudam variações em doenças nas populações, baseiam-se e estimulam progressos na Estatística e fazem uso especial da gemelaridade. Na prática atual, epidemiologistas tendem a negligenciar hipóteses genéticas e geneticistas falham ao estudar determinantes ambientais" (Mulvihill e Tulinius, 1987).
Como se, ao conjugar os dois campos, adquirir-se-ia maior poder demarcatório para, em última análise, abordar o propalado problema inato/adquirido (nature/nurture). O que, diga-se de passagem, para certos autores, seria uma questão equivocada. Pois, diante de tantas dificuldades (conceituais/metodológicas) para abordá-lo, este empreendimento se torna pouco promissor. Na verdade, interessa é saber o que se passa entre a informação inicial e o resultado final (Cohen e Lepoutre, 1988). Para Oyama (1985), o problema inato/adquirido não se resolverá a menos que encaremos a relação organismos e respectivo contextos como estruturas onde ocorrem colamentos e descolamentos recíprocos nas suas interações. Assim, os genes podem ser concebidos como unidades que especificam e fixam determinados elementos do ambiente para operarem como gen. Deste modo, em sua reprodução, organismos transmitem genes, mas, também, um âmbito em que estão situados: o genoma estaria incrustrado ecologicamente (Oyama, 1985). Independente disto, é perceptível a relevância das perspectivas da abordagem da Genética molecular contemporânea (com a Epidemiologia Moderna como ponta-de-lança) para a Saúde Pública14.
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.Uma relevante abordagem sobre princípios, métodos e aplicações da chamada Epidemiologia Molecular pode ser vista em SCHULTE, P.A.; PERERA, F.P. (eds.) 1993. Molecular Epidemiology. Principles and Practices. New York. Academic Press.
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Agora, é preciso introduzir (e justificar) a apresentação da noção de imprinting genômico, desenvolvida com maior detalhe. Pode-se atribuir sua importância ao fato deste conceito constituir-se em uma recente descoberta. mais do que isto, por trazer duas notáveis decorrências: 1)amplia o alcance da Biologia Molecular para além da Genética. Pois, avança por terrenos considerados epigenéticos, produzindo uma abordagem bioquímica para etapas mais precoces da ontogênese. Distinta, portanto, do significado atribuído aos processos mais tardios do desenvolvimento embriológico, por um lado, ou, dos processos iniciais de interação com o ambiente, por outro; 2)abala a hegemonia dos modelos mendelianos de explicação dos processos de transmissão hereditária. A escolha deste tema aparentemente especializado prende-se, além disso, ao fato desta concepção constituir-se em tópico ainda pouco difundido no campo sanitário. Atualmente, está sendo encarado como um conceito promissor para as perspectivas da pesquisa biomédica (Alarcon, 1993). Será que esta afirmação se aplica, mutatis mutandis, para o terreno da pesquisa epidemiológica? Em caso afirmativo, em que medida e quais seriam as possíveis limitações de tal proposição? Este terreno de indagações aponta, em termos mais amplos, para possíveis desdobramentos e repercussões de descobertas no campo da pesquisa de D.N.A. recombinante na Saúde Pública. Uma vez que, desta forma, dispor-se-iam de novas e importantes ferramentas técnicas e conceituais para o estudo de um grande número de enfermidades. Torna-se necessária, assim, uma breve descrição de aspectos relacionados a conhecimentos genéticos, essenciais para a percepção da amplitude dos problemas envolvidos. O 'Imprinting' genômico Para melhor compreensão desta noção, é importante proceder a uma breve revisão de suas origens etológicas (inclusive, para justificar o emprego do termo inglês). Uma definição sucinta de imprinting é aquela proposta por Steven Rose: "o processo em que aves recém-nascidas adquirem uma forte preferência por um objeto móvel proeminente" (Rose, 1984: 42). No entanto, Hess relata que pode
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acontecer em insetos, peixes e em alguns mamíferos, especialmente aqueles herbívoros cujos filhotes têm a capacidade de movimentarem-se logo após o nascimento (búfalos, cabras, carneiros, cervos etc.) (Hess, 1970)15. Há referências ao fenômeno que remontam à Idade Média e à Renascença. Como ilustração, Vieira faz alusão a um trecho da Utopia de Thomas Morus, publicada em 1518, onde se descreve a criação artificial de pintos sob tal efeito (Vieira, 1983). Mas, foi Konrad Lorenz quem criou a denominação e enfatizou que o fenômeno devia ocorrer numa fase crítica do início da vida do animal (Lorenz, 1952). O termo original proposto pelo etologista alemão é Pragung, traduzido pelo Dicionário Langenscheidt para "cunho", do verbo pragen - "cunhar" (Irmen, 1988). A utilização da denominação em Português não se encontra bem estabelecida, sendo comum o uso da expressão inglesa. Mesmo assim, Bracinha Vieira usa "impregnação" na edição lusitana de "Etologia e Ciências Humanas" (Vieira, 1983). A partir de outro campo de saber, mas, referindo-se ao fenômeno em foco, o psicanalista francês Jacques Lacan menciona o processo das "impregnações16 imaginárias" (Pragung) como base para a constituição do simbólico humano (Lacan, 1978). Em La Logique du Vivant, de François Jacob, a tradução lusa utiliza "impressão" (Jacob, 1985), da mesma forma que na edição brasileira de O Cérebro Consciente de Steven Rose (Rose, 1984). Todavia, pode-se considerar que a idéia de "impressão" aqui referida diz respeito tanto ao verbo "impressionar" como ao "imprimir", uma vez que seriam produzidas "marcas"/"inscrições" ao nível neuronal. Temos, ainda, apesar de sua conotação por demais, digamos, "têxtil", o termo "estampagem" (Chertok, 1982), que aparece na tradução de A Hipnose entre a Psicanálise e a Biologia de Leon Chertok. Diante da indefinição quanto à escolha do termo na língua portuguesa, optou-se neste texto por adotar-se a consagrada expressão inglesa.
15
.Um aspecto digno de nota diz respeito à aparente refratariedade registrada em animais domésticos em relação ao fenômeno. 16 .Este é o termo empregado pela tradutora Inês Oseki-Depré na edição brasileira dos Écrits.
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Por outro lado, é interessante perceber a preocupação do campo psicanalítico com o fenômeno. Por exemplo, em relação ao bebê humano, a elaboração freudiana contida no Projeto Para uma Psicologia Científica sugere que no decorrer das primeiras experiências infantis sucederiam facilitações17 que "marcariam" o aparato psíquico de modo indelével, sendo responsáveis pela constituição da memória (os traços mnêmicos)18. Ao nível da Neurofisiologia, uma hipótese correspondente foi desenvolvida pelo francês Jean-Pierre Changeux em sua teoria da epigênese por estabilização seletiva das sinapses durante os primeiros tempos de vida (Changeux, 1985). Ou seja, o processo ocorreria para além das determinações de caráter genético. Neste sentido, há trabalhos em Neurobiologia que mostram a importância dos fatores neurotróficos nos processos de regressão e morte neuronal nos primeiros tempos de vida (Linden, 1993). Entretanto, a concepção de imprinting genômico parece alterar, como mencionou-se, tanto esta noção19 como os cânones mendelianos no interior da Genética. Existem diversas evidências acerca da existência do referido fenômeno nos mamíferos20. Para nossos propósitos, vamos nos deter nas deficiências cromossômicas observadas em ratos (Swain et al, 1987) e homens. Há uma forma de doença genética que se manifesta após o nascimento através dos seguintes sinais: pés e mãos com tamanhos bem menores que os habituais e apetite reduzido. Em geral, entre os 18-36
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.A palavra facilitação que aparece na Edição Standard das Obras Completas de Freud não é a mais indicada para dar a idéia contida no termo original Bahnung. A expressão trilhamento, mais próxima, tanto da significação viária, como da metáfora a que dá ensejo, parece bem mais conveniente, como assinala Lacan (LACAN, J.1988. O Seminário. Livro 7. A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., pp. 44) 18 .Mais recentemente, em referência aos mecanismos da memória, postulou-se a ocorrência de uma potenciação de longa duração ao nível neural, com algumas similaridades à idéia de facilitação/trilhamento proposta por Freud. Neste caso, ocorreria a participação de receptores estimulantes chamados N-metil D-aspartato (N.M.D.A.), que teriam como antagonistas os receptores de ácido gama-amino-butírico (G.A.B.A.). O estabelecimento de tais vias dependeriam da duração e da frequência dos estímulos repetitivos, como se houvesse um processo de "aprendizagem" (ver a este respeito. TOMAZ, C. 1993. "Memória: Mecanismos Celulares". in Ciência Hoje. Vol. 16 n° 94, pp. 6-7.) 19 .O imprinting comportamental das aves e o genômico são distintos. 20 .Ver a este respeito HALL, J.G. 1990. "Genomic Imprinting: Review and Relevance to Human Diseases" in American Journal of Human Genetics. nº 46, pp. 857-873.
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meses, a criança começa a desenvolver hiperfagia e a manifestar retardo mental, que pode ser leve ou moderado. Além disto, há hipotonia, hipogonadismo, baixa estatura, dismorfismo facial leve e distúrbios de comportamento. Esta é uma das formas mais comuns de obesidade genética: a Síndrome de Prader Willi. Outra doença genética, chamada Síndrome de Angelman, apresenta-se mediante retardo mental severo, incapacidade de falar, riso deslocado, movimentos atáxicos ("marionete alegre"), microbraquicefalia, crises convulsivas, hipertonia leve e prognatismo, com protrusão lingual (Day, 1993: Driscoll et al, 1992). A maioria dos casos de Prader-Willi apresentam a eliminação de um pequeno segmento de uma das duas cópias do cromossoma 15. Mas, nem todos. Há casos em que os cromossomas estão aparentemente íntegros21. Por sua vez, a doença de Angelman pode ocorrer em situações onde há uma cópia defeituosa do cromossoma 15, herdada da mãe. Mas, em muitos afetados, isto não acontece. Enfim, misturas desequilibradas entre gens paternos e maternos podem surgir de formas distintas causando as mesmas doenças (Day, 1993). Chama a atenção o fato de ambas se constituirem em exemplos de imprinting genômico. Ou seja, no caso de Prader-Willi, os dois segmentos do cromossoma 15 que estão íntegros provém da mãe, enquanto que em Angelman, os segmentos íntegros do mesmo cromossoma originam-se do pai (Driscoll et al, 1992). A síndrome de Beckwith-Wiedemann também apresenta estas características. O imprinting conduz a alterações do desenvolvimento e câncer na infância. Bebês acometidos sofrem crescimento rápido intra-uterino e nascem com anormalidades físicas. Em algumas situações, atribuem-se a duas cópias paternas do cromossoma 11. Noutras, as cópias são de cada progenitor, mas, há uma duplicação
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.Cerca de 1/5 dos casos apresentam os cromossomas íntegros (cf. DAY, S. 1993. op. cit.).
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errada de um pequeno segmento do segmento 11 do pai. De todo modo, o desenlace é o mesmo (Day, 1993). A relevância destes achados se vincula ao fato de mostrarem que as idéias mendelianas referentes à transmissão hereditária como resultante da herança de fatores imutáveis (gens) não são suficientes para explicar uma série de situações. Deste modo, o modelo mendeliano básico (dominante/recessivo) que propõe não haver influência na expressão gênica a partir da fonte (pai/mãe) da informação genética perde seu poder explicativo. Segundo Hall (1990), "Um dos desafios importantes da genética contemporânea é explicar aquelas características e condições que não mendelizam. É neste respeito que o conceito de 'imprinting' genômico assumiu progressiva importância, pois pode proporcionar explicação para uma considerável variedade de observações sobre condições cuja transmissão genética e expressão não se conformam a predições de herança gênica única" (Hall, 1990: 857).
A idéia de imprinting genômico está sendo utilizada em referência à expressão distinta do material genético (tanto em nível cromossômico como alélico) conforme tenha origem materna ou paterna. Além disto, o fenômeno parece ser uma forma de mecanismo regulatório que permita outra dimensão de plasticidade no controle e manifestação do genoma dos mamíferos (Hall, 1990). Vale salientar a existência de hipóteses relativas ao desenvolvimento apropriado do embrião ser dependente de gens de origem materna. Enquanto que tecidos extra-embrionários (em especial, a placenta) demandariam gens de provenientes do pai (Varmuza, 1993). Assim, temos uma plausível hipótese "genômica" para a etiopatogenia de dois dramáticos eventos gravídicos. Caso, por algum acidente biológico durante a primeira divisão do ovo fertilizado, se produza uma célula com 46 cromossomas de origem paterna e nenhum materno, não surgirão embriões, mas, sim um tecido proliferante de características placentárias - a mola hidatiforme. Se, alternativamente, os 46 cromossomas forem todos provenientes da mãe (e nenhum do pai), teremos um tumor benigno (teratoma ovariano), composto por muitos tipos de tecido: conjuntivo, nervoso, ósseo, dentário, etc., mas, desprovido de placenta (Day, 1993). Se este for o caso, há trabalhos que sugerem o fato da evolução humana ser atribuível predominantemente aos gens "imprintados" das mães. Pois, as mutações
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favoráveis precisam ser expressas e transmitidas à próxima geração. Um gen "imprintado" oriundo do pai não obteria expressão embrionária, mas, sim, placentária, diferentemente do gen correspondente da mãe (Watzman, 1993). Alguns autores desenvolvem modelos que descrevem os efeitos de controlar o processo de ativação/desativação do padrão de imprint em gens-alvo do macho e da fêmea A consequência disto seria o isolamento reprodutivo, de modo a levar à formação de uma nova espécie (Varmuza, 1993). Há estudos que atribuem a geração do fenômeno de imprinting a mecanismos enzimáticos que, sob certas condições, alteram a cadeia de D.N.A. ao incluir ou excluir radicais metila de sua estrutura (Swain et al, 1987). Este suposto mecanismo daria margem a um efeito de comutador (liga/desliga) que ativaria ou não certas disposições biológicas embutidas molecularmente. Além disto, há indícios que os gens metilados possam estar sujeitos a maior risco de mutação. No entanto, parece que, a rigor, os mecanismos envolvidos são desconhecidos. Pois, o fenômeno também tem sido observado em espécies que não sofrem o processo de metilação (Varmuza, 1993). De todo modo, o fenômeno se constitui numa modificação epigenética reversível específica da linhagem germinal. Estudos que permitam o entendimento dos controles cromossômicos da expressão dos gens irão proporcionar idéias importantes sobre a regulação gênica e demonstrar o papel de tal herança epigenética nos processos de desenvolvimento e produção de doenças (Surani et al, 1993). A importância do referido fenômeno em termos de Saúde Pública se evidencia diante das indicações de sua participação na etiologia de diversos tipos de cânceres da infância 22. Assim, este enfoque proporciona novos caminhos para investigações epidemiológicas referentes à oncogênese23.
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.Por exemplo: o tumor de Wilms (origem renal), também ligado aos casos de Síndrome de Beckwith-Wiedemann. Além disso: cromossoma 9: leucemia mielóide crônica; cromossoma 11: rabdomiossarcoma, carcinoma adrenocortical, leucemias (células T e B), carcinoma de células hepáticas, múltiplas neoplasias endócrinas; cromossoma 13: retinoblastoma, osteossarcoma, etc. (ver a este respeito HALL, J.G. 1990. op. cit.). 23 .O mecanismo molecular envolvido parece prender-se ao fato da maioria das pessoas possuirem duas cópias ativas de cada gen supressor, uma de cada progenitor. O tumor surge quando as duas cópias são incapacitadas na mesma célula. No entanto, costuma ocorrer um fenômeno peculiar: caso um dos gens supressores sejam afetados (por
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Além disto, permite estabelecer hipóteses "moleculares" (tanto genéticas como epigenéticas) para estudar outros aspectos. Por exemplo: as razões que levam determinados indivíduos a serem resistentes a determinadas moléstias infecto-contagiosas (ou tão-somente portadores assintomáticos), enquanto outros são suscetíveis. Da mesma forma, em relação a enfermidades crônicas não-transmissíveis. No entanto, é preciso levar em conta que, mesmo estabelecendo-se o mecanismo molecular responsável em nível genético ou epigenético, outros processos ontogenéticos também devem tomar parte. Portanto, constitui-se num desafio tentar-se delimitar quais outras condições envolvem mecanismos moleculares genéticos ou imprinting genômico e a quais isto não se aplicaria. Além disto, tal discussão nos conduz para o problema da hegemonia das proposições de empreendimento científico ensejado por este modelo de investigação e seu respectivo alcance. Especialmente no que diz respeito aos domínios da Saúde Pública, onde se destaca o crucial conceito de risco, objeto do próximo capítulo.
mutação na sua sequência de D.N.A.), o outro acaba por desaparecer da célula, tornando-a vulnerável à proliferação tumoral (ver DAY, S. 1993. op. cit.).
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DOIS Saúde Pública Molecular: Consonâncias e Dissonâncias II. Limitações da ciência moderna Antes de nos determos na discussão do risco genético, é preciso situá-lo no interior da ideologia da chamada ciência moderna. Para isto, vamos, sumariamente, a partir de Souza Santos (1989), assinalar algumas de suas características, com seus modelos objetivistas, empiricistas e positivistas, cuja correspondência com a epidemiologia moderna é perceptível. Por exemplo: 1-Considera que a única forma consistente de conhecimento é o científico (enquanto orientado pela racionalidade positivista), pois baseia-se na idéia da objetividade; 2-Reduz o universo dos observáveis ao quantificável e estabelece que a validade do conhecimento depende de uma noção de "rigor" fundada na lógica matemática, desqualificando qualidades (não "quantificabilizáveis") que dão sentido à prática; 3-Desconfia da "aparência" e da "fachada" das coisas (toda e qualquer noção vinculada ao senso comum se "equivale" - ou seja, não tem valor), perdendo de vista a expressividade contida no mundo da vida; 4-Decide o que é relevante e se permite negligenciar o que não consegue ou não se dispõe a abordar, considerando-o irrelevante; 5-Dá ensejo à criação de experts e especialistas, hipertrofiando a aliança saber/poder, excluindo e desqualificando a participação de leigos; 6-Orienta-se por preceitos de racionalidade formal/instrumental, desvinculando-se das possíveis consequências irracionais originárias de seus produtos técnicos; 7-Gera um discurso que sob o manto do rigor e objetividade, se torna rígido, triste, pobre de imagens, metáforas ou outras figuras de linguagem, desprovido de viço/vigor, com reduzido poder de despertar interesse fora da academia (Santos, 1989). Em outras palavras, é importante enfatizar não apenas a diversidade de pontos de vista possíveis sobre determinados objetos a conhecer, mas, circunstâncias (não infrequentes) onde há ausência de critérios para escolher entre posições distintas. Em suma, é importante destacar os seguintes problemas: 1)quem conhece?; 2)o quê?; 3)como? Isto é, um observador estabelece um determinado recorte do dito "real" e propõe/constrói objetos, usando conceitos/instrumentos de análise pertencentes a determinados
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domínios semânticos. É preciso ter isto em mente ao pensarmos no construto explicativo "risco" e os problemas envolvidos em sua assunção como fato científico enquanto "verdade probabilística" (?!). Logo voltaremos a este ponto. Vale enfatizar, ainda, uma tentativa de refinar o dispositivo estatístico-epidemiológico, onde desenvolveu-se a chamada probabilidade "subjetiva" ou "pessoal" (a partir do enfoque bayesiano). Ou seja, mais "compatível", conforme a situação, para lidar com objetos de acordo com a delimitação de "objetividade" ou "subjetividade" respectivamente envolvidas. No entanto, a idéia da "probabilidade subjetiva" em questão trata de algo que pretende se opor a "objetivo", dentro de uma dimensão consciente, relativa à denominada probabilidade pessoal que é "(...) aplicável a qualquer situação sobre a qual o homem possa ter uma opinião" (Oakes, 1990: 107) refletida por seu comportamento real ou potencial. Ou seja, não está em jogo a positivação do estatuto desta subjetividade (no que diz respeito, por exemplo, a desejos inconscientes, ambições, emoções, valores humanos e suas relações com o contexto). Trata-se de um procedimento para, de algum modo, "ponderar" (ou neutralizar) aspectos imponderáveis, que, inadvertidamente, provoquem instabilidades intoleráveis à operação satisfatória do referido dispositivo estatístico/ epidemiológico. Dois comentários. Para Rorty, a "verdade" não pode existir independentemente da mente humana. Ela, como tal, está na contingência da linguagem humana. Isto consistir-se-ia na base de sustentação de determinadas crenças, mas, como miragem de "verdades". A partir de "recortes" do real, o mundo pode ser decomposto em fragmentos. Em relação a estes, os vocabulários geram proposições, chamadas "fatos" (e não "achados"). A verdade seria, em suma, uma propriedade de instâncias mediadas pelas linguagens. "(...) [O] mundo está aí fora, mas as descrições do mundo não. Só estas podem ser verdadeiras ou falsas. O mundo em si - sem o auxílio das atividades descritivas dos seres humanos - não pode sê-lo" (Rorty, 1991: 25).
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É relevante notar a dualidade etimológica de "fato". Provém do latim factum, de onde se produzem dois sensos: "aquilo que existe" (o fato real, por oposição ao "ilusório") e aquilo que é fabricado1" (o artifício, por oposição ao "natural") (Rosset, 1989). Pode-se até dizer que uma das grandes querelas epistemológicas na ciência pode estar situada ao nível da interpretação dada à idéia de "fato". Para alguns, ele seria fabricado, para outros, ele existiria como algo real, e, portanto, precisa ser desvendado da natureza. Este parece ser um dos dilemas que sofre o risco epidemiológico. Os epidemiologistas modernos parecem outorgar-lhe (perdoem-nos o jogo de palavras) estatuto "de fato" de fato ("real"), evitando considerá-lo como "fato" enquanto "construto" construído, com suas limitações e efeitos (de linguagem) na socialidade humana, como veremos nos capítulos seguintes. Risco genético e propensão hereditária. Como foi mencionado, temos doenças cujas determinações, sejam genéticas, sejam epigenéticas2 são bem demarcadas. Nestes casos, o modelo de risco desenvolvido pela epidemiologia moderna alcançaria alto grau de eficácia: o fato de determinados indivíduos portarem determinados gens ou receberem-nos do pai ou da mãe delimita com precisão satisfatória a probabilidade de desenvolverem tal ou qual enfermidade. A rigor, temos aqui condições de fechamento das variáveis em jogo que permitem a aplicação bem sucedida do referido modelo (Hayes, 1992). Mesmo neste nível, há outras doenças cujas configurações moleculares não são (tão) claramente identificáveis - o caso das desordens poligênicas (resultantes de mutações em quaisquer gens diferentes), ou naquelas em que as interações sócio-ambientais tenham peso. Nestas circunstâncias, as relações de risco podem não ser percebidas com os mesmos graus satisfatórios de precisão3,4. 1
.Curiosamente próximo a esta acepção, "fato" pode referir-se, também, a vestuário - aquilo que é fabricado, originalmente manu-fatu-rado. 2 .O conceito de epigênese empregado se refere à distinção entre o que é definido a partir de informação exclusivamente contida no genoma e o que é determinado a partir de uma possível interação gens-ambiente (este seria o significado de "além de genética"). 3 .Neste caso, os pressupostos assumidos para que o modelo de risco funcione a contento se tornam instáveis diante da complexidade dos elementos e/ou de suas interações - em termos de: 1)regularidade dos efeitos empíricos; 2)das relações causais entre fatores de risco e agravos; 3)dos períodos cronológicos válidos para a validade preditiva e 4)da abordagem de níveis de organização distintos, correspondentes a fatores de risco sociais e biológicos (ver a este respeito HAYES, M. 1991. "The Risk Approach: Unassailable Logic?" Social Science and Medicine. Vol. 33 nº 1, pp. 55-70).
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Assim, o programa de pesquisa baseado no paradigma epidemiológico dos fatores de risco dá indícios de fragilidade. Perde o poder explicativo pretendido. Apesar da grande produção de trabalhos que procuram estabelecer relações de risco entre variados tipos de exposições e diversos agravos, independente das contingências de fechamento (e previsibilidade) dos fenômenos. Entretanto, é indiscutível a importância dos avanços das técnicas da Biologia molecular na apreensão dos elementos genéticos e epigenéticos na etiopatogenia de muitas enfermidades e distúrbios. Porém, o modelo de risco está aparentemente circunscrito a condições bem delimitadas, dirigido para a dimensão "organísmica" humana. Não leva em consideração seu caráter dependente do contexto e da dimensão subjetiva e cultural. Sob esta ótica, as doenças, salvo exceções, via de regra, eclodem como resultante de uma profusão de eventos interativos. Então: "O desafio para os epidemiologistas diante do século XXI é desenvolver teorias causais similarmente sofisticadas que considerem os sistemas complexos nos quais o processo saúde/doença está imerso. Isto envolve tanto novos avanços laboratoriais como antigas preocupações quanto ao papel do ambiente sem isolar cada qual dos sistemas globais dos quais são partes essenciais" (Loomis e Wing, 1990: 3).
Por outro lado, externo à produção científica das afirmações de risco baseadas na Genética Humana, é importante levar em conta as representações sociais relativas à idéia de hereditariedade e como esta pode ser responsabilizada pela gênese e desencadeamento de um grande número de condições e agravos à saúde. A importância deste aspecto se deve ao fato de estar relacionada a padrões de conduta que conduzam a situações tanto de exposição como de proteção. Como ilustração, é relativamente comum escutar-se (ou, até, falar-se...) das características físicas, conforme "puxam" traços de progenitores ou outros parentes consanguíneos, em uma conotação hereditária procedente (dadas as evidências fenotípicas...). Isto já não é tão evidenciável no caso das idiossincrasias psíquicas/comportamentais das pessoas. Apesar de serem, conforme as contingências, 4
.As contaminações ambientais poderiam se constituir em exceções, mas, mesmo assim, excluindo graus considerados letais de toxicidade, as tolerâncias e suscetibilidades variam individualmente.
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atribuídas, "hereditariamente" a determinado "ramo" da família ao qual se alega menor, digamos, "qualidade genética"... Nesta perspectiva, encontramos bastante difundida a idéia de propensão (proneness), com, inclusive, aparentemente, maior aceitação pública que a noção de risco, produzida pela retórica tecno-científica. Trata-se de um discurso acerca dos padrões de adoecimento e de longevidade considerados hereditários no interior das famílias. Assim, não é incomum encontrarem-se enunciações de supostas tendências dos indivíduos adoecerem (e, até, morrerem) de enfermidades que acometeram seus pais/avós, etc.. Como se houvesse, nestes casos, uma potencial determinação de caráter fatalista, definida a partir de ramos anteriores das respectivas árvores genealógicas. Isto foi observado em um estudo sobre crenças acerca da hereditariedade numa investigação acerca das percepções leigas de saúde (especialmente doenças cardíacas) numa amostra aleatória de adultos no Pais de Gales. Apesar de todos os esforços da Educação em Saúde no sentido de enfatizar a importância dos fatores dietéticos, comportamentais, etc. na etiopatogenia das doenças cardíacas, um número considerável de entrevistados acreditava que os fatores hereditários se constituiam em determinantes destacados (Davison et al, 1989). Pode-se, então, perceber que as representações vinculadas à percepção pública de risco (tal como produzido pelas "disciplinas riscológicas") consistem em retraduções. Apesar de possíveis superposições, certamente transitam por níveis perceptuais e discursivos distintos, comparados àqueles relativos à propensão. Parece que, a partir da possibilidade do acesso ao genoma humano, propiciada pela Genética Molecular, o modelo do risco, aparentemente, poderia confluir e se sobrepor ao discurso da propensão hereditária. E, com isto, adquirir um estatuto mais vigoroso, e, portanto, mais efetivo para sua aceitação pelas populações. Apesar de suas limitações, quando aplicado fora das condições de fechamento dos fenômenos mencionadas anteriormente.
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As repercussões desta possível potenciação da retórica do risco não são negligenciáveis. Especialmente se nos determos na dimensão ideológica (e seus desdobramentos no terreno político e moral) que subjaz a tal discurso (Lupton, 1993). Isto pode ser observado, por exemplo, nas consequências sociais de caráter punitivo decorrente da possibilidade maior (alto risco) de seropositividade ao vírus H.I.V.. No caso dos exames do genoma, este aspecto pode se ampliar, diante da ratificação proveniente da "explicitude" das evidências (voltaremos a este ponto adiante)... Além disso, é importante levar em conta os efeitos "colaterais" das campanhas de Educação em Saúde, baseadas no enfoque de risco, pois: "(...) há perigo em conceder aos governos o poder de difundir publicidade sobre riscos à saúde. Conhecimento e fatores de risco podem ser mal-interpretados: intervenções podem ser inefetivas ou contraprodutivas. A Educação para a Saúde pode ser coercitiva caso propicie somente um lado da questão (...). As campanhas de Educação em Saúde, em seus esforços de persuadir, têm o potencial de manipular informação enganosamente e manipular psicologicamente por meio de apelos às emoções, medos, ansiedades e sentimentos de culpa das pessoas" (Lupton, 1993: 431).
É preciso encarar o fato de que a "objetividade" pretendida pelo discurso científico de risco é discutível. E, portanto, deve ser vista de modo crítico, sem negligenciar os significados individuais e coletivos que o modelo adquire na sociedade contemporânea (Lupton, 1993). É perceptível a existência de fissuras e brechas entre as racionalidades científica e social ao lidarmos, por exemplo, com o potencial de riscos dos tempos atuais. Mas, mesmo assim, elas não deixam de permanecerem emaranhadas e interdependentes. De qualquer forma, o efeito social das definições de risco não tem dependido de sua validade científica (Beck, 1992). Como menciona Beck: "A não-aceitação da definição científica de riscos não é algo a ser reprovado como "irracionalidade" na população; mas ao contrário, indica que as premissas culturais de aceitabilidade contidas nas afirmações técnicas e científicas sobre risco estão erradas (grifos do autor)" (Beck, 1992: 58).
A este respeito, alguns estudos mostram resultados reveladores. Por exemplo, realizou-se uma pesquisa, também no País de Gales, acerca da percepção leiga do risco genético para mulheres, na eventualidade de se tornarem mães de crianças femininas - veiculadoras do gen defeituoso; ou
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masculinas - afetadas, por uma doença degenerativa ligada ao cromossoma X, denominada Distrofia Muscular Duchenne. É possível, mediante história familiar, teste de creatinoquinase e estudos de D.N.A, chegarem-se a estimativas (percentuais) de risco genético bastante acuradas (Parsons e Atkinson, 1992). Os resultados mostraram, que apesar do nível cultural da população inglesa, há tendências a simplificar os valores que lhes são transmitidos por geneticistas. Por exemplo: tornam-se "50%/50%" ou risco "alto"/"baixo". No entanto, houve evidências que grande quantidade de informação se perdeu no processo de tradução. Na realidade, os riscos genéticos e suas potenciais ameaças à saúde destas mulheres foram expressos em termos de riscos reprodutivos. Para elas, o que realmente importava era a capacidade de gerar bebês sadios (Parson e Atkinson, 1992). Isto indica, antes de tudo, que, para decisões a respeito de tópicos de tanta importância, as informações devem ser transformadas em medidas pessoalmente significativas (Kessler, 1989). Ou seja, com todo o presumível rigor e potência do modelo de risco (mesmo genético), é preciso que ele tenha significação e importância para a vida das pessoas. De outra forma, tende a ser ineficaz para as finalidades sociais a que se destina. Neste ponto, cabe enfatizar a evidente ocorrência de descompassos entre as prescrições "técnicas" partir do discurso "riscológico" e suas correspondentes traduções no universo das representações (e valores) das pessoas. Como se tal discurso se constituísse, na verdade, numa retórica pertencente a uma cultura separada da vida5, e, portanto de pouca utilidade para o que de fato importa: viver - com seus prazeres, seus limites, suas singularidades. Como diz Kirmayer: "(...) Comida e sexo, medo e desejo, doença e saúde, não obstante tudo que tenha sido elaborado a este respeito através de modelos semânticos abstratos, eles adquirem sua urgência e poder a partir dos modos de vida das pessoas. A tentativa de modelar estas exigências da vida humana como equivalentes a qualquer proposição sustentada racionalmente ignora sua importância e sua qualidade subjetivamente irreprimível. A falha em reconhecer a primazia do irracional faz parte de uma limitação básica dos modelos semânticos racionalistas - sua falta de atenção para a incorporação de significados." (Kirmayer, 1992: 330-331) 5
.Tal conceito foi rastreado por Teixeira na obra de Antonin Artaud para estudar aspectos culturais da Epidemia de S.I.D.A. (ver TEIXEIRA, R. R. 1993. Epidemia e Cultura. A.I.D.S. e Mundo Securitário. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, área de Medicina Preventiva).
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A partir deste ponto de vista, é possível visualizarem-se razões pelas quais as prescrições (e proscrições) produzidas pelos discursos médico-epidemiológicos apresentem tantas dificuldades para serem acatadas. Enfim, são inevitáveis "efeitos colaterais" que eclodem ao se evitar o movediço e impreciso território dos desejos humanos e seus significados... As tribos genotípicas Nos início dos anos oitenta, foi descrito um fenômeno no genoma humano que consiste na observação da existência da repetição de pequenas sequências variáveis de bases ligadas de forma peculiar: como um cortejo de sequências dispostas de modo que o início de uma se situa após a terminação da anterior. Tal formato, por analogia, lembra um tipo de charrete carregada por animais alinhados em fila, cujo nome é tandem. Assim, o fenômeno recebeu a denominação Variable Number of Tandem Repeats (V.N.T.R.), ou seja o número variável de repetições de tandem. O número de tais sequências pode variar entre indivíduos e entre grupos. Isto permite, inclusive, sua utilização como procedimento identificatório em práticas forenses e criminais (Watson et al, 1992; Rabinow, 1993). Por outro lado, o sistema chamado de H.L.A. (vinculado ao complexo de histocompatibilidade), relativo aos gens do sistema imune, também permite estabelecer procedimentos de identificação para grupos étnicos, conforme a frequência do número de alelos. Por exemplo, os franceses caucasianos apresentam 19% para um alelo H.L.A., enquanto os japoneses, 0,2%. Ou seja, os franceses são mais provavelmente homozigotos que os nipônicos (Rabinow, 1993). Em termos de validade, pode-se dizer que o H.L.A. tem maior especificidade, enquanto o V.N.T.R. é mais sensível para a identificação genotípica de populações. A técnica de P.C.R. (descrita anteriormente) viabiliza o acesso a cópias de D.N.A. para verificar a constituição tanto de V.N.T.R. como H.L.A. Com isto, passa-se a dispor de um potente instrumento
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de tipagem populacional, dando margem a desdobramentos importantes em diversos domínios6. Sob o ponto de vista epidemiológico, permitiria a discriminação (nos dois sentidos que a palavra sugere) de populações para estudos de suscetibilidade/resistência a determinados fatores de risco para uma série de agravos. Isto é, além das determinações ligadas aos modos de vida, a carga genética de cada um poderia ser responsável por seus riscos de adoecimento, tanto pelas "fragilidades constitucionais" do indivíduo, como por pertencer a grupos étnicos "desfavoráveis"... Talvez não seja absurdo especular a eclosão de uma extemporânea "lombrosianização" genotípica capaz de "apontar" as "deformações" genéticas e epigenéticas inscritas no D.N.A. de determinados grupos populacionais 7. Pois, estariam, por exemplo, inapelavelmente, sob o risco ("molecularmente definido") de contrair moléstias infecto-contagiosas (que ameacem seus vizinhos) ou outras condições crônico-degenerativas (que abreviem sua sobrevivência), dispensando-os (perversamente) da condição de recipientes de medidas de saúde, deficitárias nos cálculos das relações de custo/benefício. Este tema tem sido abordado por antropólogos como Paul Rabinow. Ele chamou de bio-sociabilidade às repercussões sócio-culturais nas vidas das pessoas ao sofrerem os efeitos da revelação de suas estruturas gênicas (tanto pessoal como para outros agentes). O citado autor alerta para o recrudescimento de projetos eugênicos, mediante um processo de "genetização de discriminaçoões" (Rabinow, 1991). Nesta perspectiva, a "molecularização" sanitária pode desempenhar um papel destacado na identificação de "desprioridades", isto é, "inações" de Saúde justificadas tecnicamente. Pois, a partir de uma racionalidade epistemológica aparentemente coesa na teorização do risco, vinculada aos avanços da Biologia Molecular, tem-se à disposição um vigoroso arsenal conceitual/metodológico.
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.Já é relativamente conhecida a possibilidade de obterem-se "impressões digitais" fidedignas de cada indivíduo partir de seu respectivo D.N.A. (com validade jurídica e criminal)(ver a este respeito PENA, S.D.J. & JEFFREYS, A.J. 1993. "Breve Introdução às Impressões Digitais de D. N. A." in Revista Brasileira de Genética. Vol. 16 nº 3, pp. 857879). 7 .Esta problemática foi denominada especismo, numa tentativa de criar-se um termo com as conotações preconceituosas equivalentes às veiculadas por expressões como racismo e sexismo.
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É preciso perceber que as determinações de risco (mesmo moleculares) não carreiam padrões morais abertamente, mas, disfarçados sob a capa de uma moralidade causal (quantitativa e conceitual) implícita. E, portanto, muito mais perigosa. Como diz Beck: "afirmações sobre risco são afirmações morais de uma sociedade cientificizada" (Beck, 1992: 176). Torna-se, então, essencial dedicar atenção para tal possibilidade. Diante da lógica subjacente às respectivas argumentações, propiciada pela ciência "molecular", não é despropositado cogitar-se em concepções operatórias "científicas" e modos de intervenção decorrentes como justificativa para projetos de disfarçada índole eugênica. Isto adquire especial relevância diante dos indícios de um clima social onde não parece tão absurda a eliminação de contingentes populacionais ameaçadores, facilmente perceptíveis no cotidiano assustadiço dos nossos centros urbanos. 'Expert' em Saúde Pública? (Molecular!?) Agora, cabe a pergunta: como conceber um profissional de Saúde Pública apto a lidar com a constatação que nos colocam os tempos atuais? Isto é: como enfrentar simultaneamente problemas complexos, diversificados e dramáticos? Antes de tudo, tenha-se clareza que estamos confrontados por uma série de dilemas. Qual deverá, por exemplo, ser o perfil do sanitarista, de modo a dispor de instrumentos para, pelo menos, como diria Bateson, cartografar um terreno cada vez menos familiar? Não basta pensar que os atuais problemas de demarcação (e atuação) da Saúde Pública permanecem relacionados somente às suas reconhecidas características de multidisciplinaridade. Que, por sinal, estariam bem mais acentuadas em função dos acelerados processos de ultra-especialização e fragmentação que atinge o campo dos saberes (sanitários ou não). Infelizmente, trata-se de algo bem mais grave e complexo, a ponto de desafiar nossa capacidade de delimitação. Já vai longe o tempo em que parecia suficiente para a formação do dito sanitarista, o acesso às conhecidas disciplinas aplicadas e constitutivas do edifício da Saúde Pública (Ciências
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Sociais, Epidemiologia e Métodos Quantitativos, Planejamento/Administração, Ciências Biológicas, Saneamento Ambiental, Saúde Ocupacional, etc.). A rigor, como sugeriu-se ao início, o sanitarista (ou qualquer denominação que se lhe dê) é atualmente um perplexo administrador de estranhezas. Pois (apesar do jogo de palavras parecer abusivo), seus domínios (da Saúde Pública) fogem a seu domínio. A própria definição de sua expertise é especialmente problemática. Mas, é possível encarar a idéia do profissional deste domínio como um expert 8? Em geral, o termo expert refere-se ao indivíduo que possuiria reconhecidas habilidades e/ou conhecimentos específicos sobre determinado campo de atividade/saber. Estas prerrogativas atribuiriam-lhe autoridade para tomar decisões, agir, enfim, abordar aspectos pertencentes a sua correspondente área de indiscutível competência. Idéias como "autoridade", "competência", "expertise" nem sempre são claras. Não cabe desenvolvêlas neste espaço. Aqui, considera-se que a noção de expert deveria implicar no fato de tal autoridade ser supostamente sólida em virtude de treinamento apropriado, aptidão e/ou experiência adquirida ao longo do tempo. Portanto, a noção de expertise subjaz às supostas condições técnicas para atuar no correspondente ramo de atividade. É preciso caracterizar o que se pretende designar ao tratar-se de expertise. Dois critérios básicos devem levar-se em conta : 1.capacidade de propor justificativas consistentes para uma faixa de proposições em um domínio específico; 2.aptidão de desempenhar uma determinada habilidade. 8
.A utilização do termo na língua inglesa, comum na língua portuguesa, foi mantida. Evitou-se a expressão "experto" por sua reduzida utilização (quiçá pela incômoda homofonia, que, eventualmente, pode dar margem a associações jocosas...).
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Assim, expertise assinalaria a possibilidade de propor opiniões abalizadas (ou competentes) (sentido 1) ou demonstrar habilidades evidentes para o desempenho de tarefas específicas (sentido 2) (Weinstein, 1993). Parece ficar claro que trata-se da capacidade de atingir os melhores resultados possíveis (em suma, uma idéia de eficácia). É importante, ainda, mencionar o fato de um expert não necessitar obrigatoriamente ser um especialista. Por exemplo, um clínico geral pode ter expertise no seu campo sem ser especialista. Tal ressalva é importante, pois se aplica ao revés, mutatis mutandis, na problemática definição de sanitarista. Pois, ainda que ele/ela tenham certificados de especialistas em Saúde Pública e/ou tempo de experiência na carreira e/ou estejam definidos como tais em sua atividade profissional, tais critérios não os tornam necessariamente experts. Ou, ainda, caso sejam experts em determinada área, o profissional corre o risco de não estar aplicando tal expertise no seu presente campo de atuação. Não parece obrigatório, portanto, para se ser(estar) sanitarista, que os profissionais sejam indiscutíveis experts9,10. Ao nosso ver, diante da amplitude do campo sanitário, com diversos sub-domínios (Planejamento em Saúde, Epidemiologia, Saneamento Ambiental, etc.) a noção de expert em Saúde Pública se torna inadequada. A rigor, pode-se pensar nesta ídéia quando aplicada aos referidos sub-domínios. Ainda assim, com ressalvas. Diante do atual processo de problematização epistemológica e fragmentação dos saberes (do qual a Saúde Pública não escapa), surgem novas disciplinas (por exemplo, a Bioética) e o desenvolvimento de áreas de interface que podem se constituir em sub-especialidades (por exemplo, as relações das áreas
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.Há um substantivo usado comumente de forma pejorativa - tecnocrata, que ao designar algum profissional do Setor Saúde (biotecnocrata?) passa a carregar três estigmas conjugados: 1)o fato de ser "contaminado" por uma dimensão técnica restritiva, destituída de uma visão "humanizada"; 2)a visão administrativa rígida e limitada, prêsa aos procedimentos ditos "burocráticos", ou seja, que perderam sua dimensão gerencial; 3)pouco prestígio e pequena participação nas decisões no interior do aparelho de Estado... 10 .Além do mais, como é sabido, os respectivos processos de seleção/escolha podem não acompanhar esta racionalidade. A este respeito, é notória a forma irônica de atribuir-se determinadas escolhas para ocupar certos cargos/funções no serviço público, ao respectivo Q. I. do candidato - isto é, Quem Indica. Quer dizer, baseadas em critérios de privilegiamento pessoal, em função do chamado "tráfico de influência".
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constituintes da Saúde Pública com a Genética Molecular). Nesta perspectiva, será preciso considerar tal emergência de sub-áreas no campo sanitário e a decorrente possibilidade (necessidade, em alguns casos) de produzir seus respectivos especialistas (e experts). Portanto, a Saúde Publica reconhecida por sua tradicional característica multidisciplinar, além dos processos de interdisciplinaridade em curso, passa a exigir uma abordagem transdisciplinar11. O Estado e as Prioridades em Saúde... Outro elemento complicador para a atuação do sanitarista se origina nas enredadas relações da Saúde Pública com o Estado. É inegável que a configuração assumida pelo campo sanitário reflete a respectiva índole político/ideológica da formação sócio-econômica de onde emerge. Daí seu caráter históricoestrutural. Não há como esquivar-se das atuais conflagrações que atingem o setor. Este tem sido foco de perspicazes estudiosos do tema (Gonçalves, 1986; Possas, 1989; Franco et al, 1991; Merhy, 1991; Paim 1992). Não se pode, sob hipótese alguma, negligenciar tal ordem de problemas, especialmente em um contexto onde se presenciam (e se sofrem) cotidianamente os terríveis efeitos da atual hipercrise sanitária. Mesmo assim, tais relações não admitem leituras apressadas. Não se deve propor uma vinculação associativa imediata nas franjas de interferência entre o contexto mais geral das crises em nível do Estado e as tendências assumidas pelas políticas públicas internamente ao campo da Saúde Pública. Há confluência (e conflitos) entre diversos (f)atores em diferentes patamares que intermediam e especificam as resultantes deste processo (Oliveira, 1988). A compreensão destes agenciamentos é de suma relevância para a a percepção do quadro político-administrativo do setor e de seus intrincados movimentos.
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.A noção de transdisciplinaridade é bem desenvolvida em STENGERS. I. 1990. Quem tem medo da ciência? Ciências e Poderes. São Paulo. Ed. Siciliano.
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Além disso, os citados fenômenos de complexificação e fragmentação dos processos sociais e biológicos demandam novos rumos teórico-metodológicos e éticos para sua abordagem. Por exemplo, as teorizações a respeito da ótica da complexidade podem servir como pauta preliminar para novas formulações em busca de superação das referidas limitações12. No entanto, mesmo levando em conta a possível inadequação da expressão "Saúde Pública molecular", ela serve para chamar a atenção para aspectos que não podem ser negligenciados por serem vistos, equivocadamente, como "não-prioritários". Infelizmente, não são. Vivemos, nos tempos atuais, sob a égide da simultaneidade, da co-existência e interpenetração de múltiplos "territórios", que teimam em escapar aos nossos esforços delimitadores. A propósito, nas circunstâncias atuais, a noção de prioridade - tão cara à lógica racionalizadora para instrumentalizar decisões políticas relativas a procedimentos sanitários - sofre grande desgaste em sua significação. Consequentemente, sua função operativa se enfraquece. Para onde quer que se dirija nosso olhar, aí encontraremos potenciais prioridades. Por um lado, é essencial enfrentar os dramáticos desafios de nossa realidade, decorrentes das profundas desigualdades sociais - responsáveis pela miséria (e doença) de grandes parcelas de nossa população. Por outro, não se sustenta (nem é aceitável) omitir-se diante das repercussões e desdobramentos carreados pela Biotecnologia, Engenharia Genética e disciplinas correlatas. Independente de nossa capacidade de lidar com tantas e avassaladoras transformações, seus aspectos industriais, econômicos, científicos e éticos (entre outros), estão invadindo progressivamente nosso objeto de estudos e campo de práticas. Torna-se imperioso, apesar das perplexidades, estimular e ampliar discussões a este respeito pelos setores responsáveis pela Saúde Pública. Esta ordem de preocupações já está sendo merecedora de
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.Ver a este respeito SCHRAMM, F.R. 1993. A Terceira Margem da Saúde: A É tica Natural. Tese de Doutorado em Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro (cópia reprográfica).
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atenção e pode ser observada, por exemplo, no Relatório final do II Congresso Interno da Fundação Oswaldo Cruz ao abordar prioridades sociais e políticas de saúde: "(...)as mudanças que se estão processando no campo científico, nas áreas de fronteira do diagnóstico ou tratamento, chegarão ao Brasil de qualquer forma, sendo responsabilidade do Estado torná-las acessíveis à maioria do povo brasileiro" (Fiocruz, 1993: 6)13.
Mesmo com o mencionado desgaste da idéia de prioridade, para ainda mantê-la operativa, o citado relatório sugere, com pertinência, que não há mais lugar para opções "de caráter exclusivo". Mas, sim, alternativamente, "pensar em uma estratégia de investimentos concentrados (...) de natureza diversificada, em base à identificação de nichos(...)" (Fiocruz, 1993: 6). É cada vez mais difícil manter distanciamento das questões trazidas pelo "nicho" da Genética molecular. Elas demandam uma inevitável reflexão em relação tanto a nossas práticas em pesquisa, em ensino e/ou na assistência, como na formação de respectivas competências em Saúde Pública. Por exemplo: decisões acerca das modalidades de testes genéticos a serem oferecidos, permitidos, estimulados ou obrigatórios; comunicação de achados científicos e correspondente entendimento público; implicações em termos de comportamentos relativos à saúde, quanto a práticas empregatícias e em sistemas securitários; geração de estados emocionais que envolvam medo, ansiedade, depressão etc. e possível impacto nas relações interpessoais (Davison et al, 1994). Estes elementos, vale salientar, estão presentes (mas, não apenas) nos problemas bio-éticos trazidos pelo Projeto Genoma 14. Apesar da aparente obviedade, em função das flagrantes distorções que atingem nossas instituições (em múltiplos níveis), é importante enfatizar: caso, é claro, a preocupação de fato com a saúde pública seja primordial para o Estado brasileiro. 13
.A esta altura (1995), muitas de tais "mudanças" já chegaram até nós, especialmente técnicas de D.N.A. recombinante... 14 .Como é conhecido, o Projeto Genoma foi lançado em 1990, nos Estados Unidos, para mapear a sequência total de nucleotídeos (unidades moleculares constituintes do ADN) nos 23 pares de cromossomos humanos. Uma discussão sobre os aspectos éticos envolvidos cf. BARBOSA-NETO, J.G. 1994. "Debate - Saúde pública Molecular?!" Cadernos de Saúde Pública Vol. 10 nº 3, pp. 307-309 e BEIGUELMAN, B.; GARCIA, E.S.; SALZANO, F.M.; ZANCAN, G.; MAIA, J.C.C.; CHAIMOVICH, H.; PALATNIK, M.; FROTA-PESSOA, O.; PENA, S.D.J. 1994. "Como Enfrentar os Problemas Éticos do Projeto Genoma Humano?". Ciência Hoje. Vol. 17 nº 99., pp. 31-35.
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TRÊS Freud e Mill: A Histeria e a Empiria1
Um dos objetivos essenciais de qualquer forma de conhecimento/saber, seja científico, místico ou religioso, é o estabelecimento de relações de causa e efeito. Pode-se dizer que os seres humanos se movimentam baseados em esquemas de conexões causais, independentes de sua aparente, digamos, veracidade ou correspondência com a "realidade". Assim, é possível produzirem-se desde explicações "mágicas" dos fenômenos, incompatíveis com os domínios dos saberes considerados científicos, até concepções refinadas, construídas mediante determinadas regras e métodos com vistas à construção de leis na tentativa lógica/racional de explicar os eventos circundantes. No entanto, é importante frisar que, segundo Rosch (1977), a capacidade humana de criar categorias, essenciais para tentar estabelecer nexos entre si, não se baseia em modelos racionais baseados na lógica dos conjuntos, mas, sim, no que chama de protótipos, cuja origem seriam critérios de afinidade por familiaridade e "parentesco" (Rosch, 1977). Daí, como vimos, a relevância de metáforas e analogias no pensamento humano. Durante o desenvolvimento de uma criança, percebe-se com clareza o processo de descobrimento das conexões causais. Basta lembrar a forma como interruptores de luz são meticulosamente abordados, numa constante e repetitiva confirmação da descoberta da ligação entre os fatos: a manipulação do comutador e o domínio sobre a luz (Rothmann, 1985). Pode-se cogitar que a motivação subjacente a tal característica do ser humano esteja vinculada à suposta "necessidade" de controlar o meio ambiente em seu benefício. Com isto, teria maior probabilidade de predizer acontecimentos e, assim, atuar com menores riscos de malogro. É evidente que isto não se dá nesta medida. Por um lado, o afã controlador parece ser mais uma "propriedade" do mundo ocidental e, por outro, não se consegue prever o comportamento das inúmeras variáveis
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.Este texto consiste em uma versão revista e ampliada do artigo "Freud, um epidemiologista?", publicado nos Cadernos de Saúde Pública, RJ, 4 (3): 316-325, jul/set, 1988.
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intervenientes aos fenômenos. Mas, como se sabe, em algumas circunstâncias, é possível fazer previsões de resultados, e, especialmente, produzir tecnologias. Isto é mais flagrante nas ciências ditas "naturais", onde há maior possibilidade de experimentação e controle de variáveis. Com isto, hipóteses causais podem ser confirmadas ou refutadas, colaborando para a sustentação ou o fracasso de teorias explicativas. Nas ciências ditas "sociais" ou "humanas", o processo se torna mais problemático. Pois, em linhas gerais: a experimentação é difícil, o "controle" de variáveis é deficiente e recebem importante influência de ideologias. A psicanálise freudo/lacaniana 2 se apresenta de forma peculiar neste contexto. É encarada como um modo de investigação do chamado "aparelho psíquico" - um construto freudiano, e como um corpo de conhecimentos cujo intuito básico é explicar o funcionamento da mente daquele que estuda o próprio fenômeno. Além disso, consiste numa prática de intervenção que visa lidar com aspectos instituintes da subjetividade e das contingências geradoras de sofrimento psíquico nesses peculiares seres. Não cabe, por certo, enveredar aqui pela complexa discussão a respeito do grau de "cientificidade" da Psicanálise. O objetivo deste trabalho é mostrar um encontro pouco explorado na literatura: como o raciocínio causal milliano estava fortemente presente nas concepções iniciais de Freud sobre as origens da histeria. Mesmo que não fosse possível a experimentação direta para a confirmação de suas teorias - emblema da empiria científica do zeitgeist científico vigente no final de século XIX, Freud adaptou um recurso ancorado no saber médico para sustentar a pertinência de suas teorias: as "provas terapêuticas". Ou seja, se os pacientes melhoravam de seus sintomas neuróticos mediante o processo psicanalítico, ou seja, a talking cure, as concepções freudianas sobre o aparelho psíquico eram, então, procedentes.
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.É difícil classificar o universo das psicanálises, com suas múltiplas correntes, contracorrentes, cismas e dissidências. A categoria acima utilizada é arbitrária e busca, na medida do possível, delimitar um domínio de conhecimentos cuja proximidade teórica e conceitual parece menos polêmica [apesar das frequentes disputas "endofágicas" [conforme expressão de Castoriadis (1987) entre instituições psicanalíticas em busca de legitimidade e hegemonia no campo].
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Aliás, a filiação de Freud à filosofia positivista, que aparece implícita em seus estudos sobre a causalidade das neuroses histéricas, merece um comentário. Segundo Castoriadis (1987), Freud teria assinado, em 1911, um manifesto favorável à criação de uma sociedade cuja meta era promover e difundir a filosofia positivista (Castoriadis, 1987). Tal fato é, em geral, pouco citado. Talvez, por parecer incômodo para os que desejam a inclusão da psicanálise nos domínios do cientificismo moderno. Mas, é inegável que a "imagem-objetivo" de Freud sempre foi ancorar sua disciplina nos territórios dos saberes ditos científicos. Possivelmente, para garantir sua sobrevivência como corpo de conhecimentos. E, bem ou mal, isto, como podemos observar, ocorreu. Apesar das incontáveis controvérsias acerca da pertinência das teorias freudianas, é, pelo menos, indiscutível um dos efeitos das afirmações de Freud sobre a histeria. Estas constituíram-se não só num considerável avanço em relação às concepções vigentes no princípio do século, mas, também, numa tentativa de superação da visão obscurantista desta manifestação, responsável por práticas, mesmo quando "terapêuticas", cruéis. Na atualidade, há indícios de modificações "clínico-epidemiológicas" na ocorrência desta moléstia 3. Seja, diretamente, no sentido da redução de prevalência e incidência, seja, indiretamente, em relação aos modos psíquicos de manifestar-se o "mal-estar na civilização" dita "pós-moderna". Este, por sua vez, parece estar sendo representado por quadros de caráter psicossomático, depressões, bulimias, anorexias, adição a psicofármacos, manifestações obsessivo-compulsivas e, também, pela (mais ainda) imprecisa categoria das chamadas "perversões".
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.É curioso notar como os quadros histéricos deixaram de frequentar os romances folhetinescos veiculados pelos meios de comunicação de massa, especialmente via radio/teledifusão. Há pouco mais de cerca de uma década e meia, eram relativamente comuns "casos" de paralisia e cegueira pós-traumáticos nesta modalidade de dramaturgia. Atualmente, neste contexto, por um lado, as "manifestações psicopatológicas" parecem, privilegiar bem mais a quadros depressivos e perversos (os "traumas" vilanescos costumam ser vingados nos ajustes de contas, mas, cada vez menos, tanto em termos de frequência como, se for o caso, intensidade...). Por outro, os personagens passam a ser menos maniqueístas e mais ambíguos, sendo mais frequentes "dramas" éticos-morais, onde costumam colocar-se dilemas entre as dicotomias individual X coletivo, público X privado; razão X paixão; fato x valor (veja-se, por exemplo a popularidade de programas ditos interativos que abordam tais questões)...
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Apesar de tudo, foi escolhida a histeria por tratar-se de área cuja literatura psiquiátrico-psicanalítica é ampla e por ter sido o tema das primeiras teorizações de Freud, quando este ainda estava bastante envolvido com o modelo médico. Assim, é possível traçar um paralelo entre as hipóteses causais de Freud e os cânones desenvolvidos pela ciência indutivista da época, mais especificamente, as concepções de John Stuart Mill sobre causalidade. Antes, porém, são apresentadas algumas noções sobre a entidade identificada como histeria. A seguir, mencionados os cânones do sistema de lógica indutivista de Mill para depois serem cotejados com afirmações freudianas específicas sobre as origens da histeria. Por fim, são discutidos, aspectos sobre a proximidade dos conceitos de sobredeterminação em psicanálise e causalidade. Histeria A histeria tem, ao longo dos tempos, colocado em questão saberes e instituições. É conhecida a forma como eram tratadas as "feiticeiras" e "possuídas" nos tempos medievos. Desafiavam a religião constituída por ousarem desobedecer os preceitos divinos, dando vazão ao que devia ser contido, escamoteado: o desejo sexual. Tais situações têm sido mostradas pela literatura e pelas artes dramáticas: as punições eram terríveis, culminando, em geral, na morte, após muito sofrimento. A expansão do saber médico, em especial, a partir do século dezenove, retirou o teor "demoníaco" da histeria, mas não conseguiu integrá-la em seu discurso. A histeria também desafiou a normatividade médica: seus "sinais" e "sintomas" não respeitavam nem a semiologia nem a taxonomia nosográfica da Medicina. Mais do que isto: as subvertiam. Por exemplo: a paralisia histérica não acompanhava a anatomia/fisiologia do sistema nervoso periférico. Além disto, não havia proposta terapêutica com resolutividade suficiente para abordá-la e os sinais/sintomas não resultavam de causas orgânicas. Em suma, a histeria era encarada como um transtorno... para o médico4.
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.Esta situação tende a permanecer, ainda que de forma atenuada, até hoje. Nos setores de emergência hospitalar, aqueles casos sugestivos de algo interpretado como simulação, cujo "diagnóstico" assume o estigma enfeixado pelas expressões "piti" ou "agá", está indicada na própria nomenclatura empregada o escárnio reativo com que alguns médicos costumam lidar com estes quadros. Isto é, mediante a desqualificação do doente como tal.
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A partir de um ponto de vista descritivo/fenomenológico, a histeria tende a ser vista, em geral, como uma neurose que surge em função de eventos significativos ou em fases críticas (p. ex. adolescência) da existência de um sujeito. Manifesta-se mediante distúrbios variados e, muitas vezes, transitórios. Era classificada, tradicionalmente, sob duas rubricas: de angústia (sintomas de ansiedade fixados em objetos externos ao corpo) e conversiva (simbolizada em sintomas corporais). As manifestações comuns são representados por perturbações sensóriomotoras - cegueira, surdez, afonia, dores ou anestesias localizadas, enxaquecas, contraturas musculares, dificuldades de deambulação, paralisias faciais ou dos membros etc. Há situações mais específicas que envolvem lipotímias, insônias, estados ansiosos, mas, também, inclui outros comprometimentos da consciência, memória ou inteligência que podem chegar a magnitudes mais severas (pseudocoma). Outra importante característica clínica da histeria diz respeito a dimensão sexuada do corpo, que sofre por sua cisão entre a porção genital, anestesiada/inibida e o restante não genital que parece extremamente erotizado e sexualmente excitável (Nasio, 1991). Esta é a fonte essencial da conhecida etimologia hipocrática da afecção: doença uterina que, segundo Charcot, em virtude da insatisfação sexual, o órgão migrava, afetando outras partes do corpo - efeitos do furor uterino (Roudinesco, 1989; Melman, 1985)5. Para Freud, em linhas gerais, na sua primeira formulação teórica a este respeito, a etiologia da histeria estaria vinculada à ação patogênica de uma representação sexual inconsciente que não encontra escoamento. Isto ocorreria em virtude de um trauma gerador de um excesso de afeto inconsciente que, atuando como uma marca psíquica, produziria os respectivos sintomas mórbidos. Posteriormente, acrescentou-se, ao lado deste excesso afetivo, a falha do mecanismo de "recalque" que, ao 5
.Alguns anos após a morte de Charcot (1901), seu discípulo Joseph Babinski sugere uma alteração do termo. Diante da observação dos aspectos sugestionáveis envolvidos na "cura" e na reprodução por persuasão dos sintomas da entidade, cunha o termo "pitiatismo". Em grego, peithos significa "persuasão" e iatos, "curável". Pitiático indicaria, então, o estado psíquico que se manifesta mediante transtornos curáveis por persuasão. Este termo traria a histeria muito mais para os lados da "simulação" e serviria para retirar a forte conotação sexual do termo histeria. Cf. ROUDINESCO, E. 1989. História da Psicanálise na França. A Batalha dos Cem Anos. Volume 1: 1885-1939. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed.
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circunscrever a representação, falha ao "isolar" tal acúmulos de afeto. Temos, então, na base da histeria, o conflito sobrecarga X recalque, cujos excedentes energéticos tomam o corpo como local de ocupação (besetzung) (Nasio, 1991). A lógica indutivista na investigação de moléstias A disciplina epidemiológica faz uso predominante de métodos indutivos em sua construção de hipóteses de pesquisa6 e nos procedimentos lógicos de inferência causal. Neste sentido, os epidemiologistas estão familiarizados com as regras sumarizadas por Sir Austin Bradford Hill (1965) para avaliar se associações estatísticas têm caráter causal7. Desde então, tem havido diversas adaptações e críticas a estes critérios8. Interessa aqui indicar a afinidade entre filósofos da ciência empírica emergente e a epidemiologia. Por exemplo, foi assinalada o parentesco entre os critérios de Hill e as regras de causalidade de David Hume (Morabia, 1991). Por sua vez, a filiação com as idéias empiricistas de Stuart Mill é mais explícita. Aqui, um comentário sobre "empiria". O termo tem origens gregas e designa "experiência", entre outras acepções, como informação carreada pelos órgãos sensoriais. O "empirismo" seria uma doutrina de teor epistemológico com dois aspectos básicos: 1)todo conhecimento deriva da experiência (especialmente sensorial) -sentido genético ou psicológico; 2)todo conhecimento deve ser justificado por intermédio dos sentidos - conotação epistemológica propriamente dita (Ferrater M., 1986). Mill concebeu uma psicologia de características associacionistas, onde postula que os fatos mentais consistiriam em produtos das impressões veiculadas pela experiência. Para o filósofo inglês, a previsão 6
.A partir de meados dos anos setenta, surgiram propostas de utilização do método dedutivo popperiano na epidemiologia. Uma discussão e bibliografia a este respeito pode ser encontrada em CZERESNIA, D. 1993. "Construção Científica e Inovação Teórica: Um desafio para a Epidemiologia". Physis. Revista de Saúde Coletiva. Epidemiologia e Conhecimento Médico. Vol. 3 nº 1, pp. 77-90. 7 .São elas: Temporalidade, Dose-resposta, Consistência, Força de Associação, Analogia, Especificidade, Plausibilidade Biológica, Experimentação. Cf. HILL, A.B. 1965. The Environment and Disease: Association or Causation?". Proceedings Royal Society of Medicine. 58: 295-300. 8 .Cf. SUSSER, M. "What is Cause and How do We know One? A Grammar for Pragmatic Epidemiology". American Journal of Epidenmiology. 133: 635-638. Críticas aos critérios indutivos: cf. WEED, D.L. 1988. "Causal Criteria and Popperian Refutation". In ROTHMANN, K.J. (ed.). 1988. Causal Inferences. Chestnut Hill. Epidemiologic Resources, Inc., pp. 15-32. Uma crítica ao método de modo geral: cf. LANES, S.F. 1988. "The Logic of Causal Inferences". In ROTHMANN, K.J. (ed.). 1988. Causal Inferences. Chestnut Hill. Epidemiologic Resources, Inc., pp. 59-76.
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dos fenômenos tem um aspecto probabilístico, sem nunca dar margem a certezas indubitáveis (Ferrater M. 1986). Em 1843, John Stuart Mill publicou "Um Sistema de Lógica". Aí são desenvolvidas as estratégias através das quais podiam ser elaboradas hipóteses causais (Mill, 1989). Entre um certo número de regras, quatro se destacam de modo especial - os métodos da "concordância", da "diferença", da "variação concomitante" e dos "resíduos". A epidemiologia - ciência que estuda os fatores que interferem na distribuição e determinação dos agravos à saúde nas populações, utiliza estas regras na elaboração das hipóteses etiológicas das doenças (Susser, 1973). O "método da concordância" parte do primeiro cânone de Mill: "Se dois ou mais casos do fenômeno objeto da investigação têm apenas uma circuntância em comum, essa circunstância única em que todos os casos concordam é a causa (ou o efeito) do fenômeno" (Mill, 1979: 200).
Neste caso, as situações comparadas têm apenas uma circustância em comum. O "método da diferença" se baseia no segundo cânone de Mill, que diz: "Se um caso em que o fenômeno sob investigação ocorre e um caso em que não ocorre tem todas as circustâncias em comum menos uma, ocorrendo esta somente no primeiro, a circustância única em que os dois casos diferem é o efeito, ou causa, ou uma parte indispensável da causa, do fenômeno" (Mill, 1979: 201).
Ou seja, as situações sob comparação são idênticas em todas as variáveis, com exceção de uma. O "método da variação concomitante" se localiza no quinto cânone de Mill: "Um fenômeno que varia de uma certa maneira todas as vezes que um outro fenômeno varia da mesma maneira, é ou uma causa, ou um efeito desse fenômeno, ou a ele está ligado por algum fato de causação" (Mill, 1979: 209).
Assim, os fatores em estudo variam sistematicamente um com o outro (esta, aliás, é a base da regra "dose-resposta" de inferência causal). O "método dos resíduos" tem origem no quarto cânone de Mill: "Subtraíndo de um fenômeno a parte que sabemos, por induções anteriores, ser o efeito de alguns antecedentes, o efeito dos antecedentes restantes é o resíduo do fenômeno" (Mill, 1979: 206).
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Deste modo, fatores causais são removidos do sistema, com o objetivo de isolar e medir a contribuição dos fatores restantes. A remoção da variação devida a causas conhecidas deixa um resíduo supostamente devido a outras causas. Apesar de críticas acerca da validade dos cânones de Mill para a elaboração de hipóteses causais (Popper, 1980), manuais relativamente recentes sobre investigação da etiologia das doenças costumam mencionar tais regras. De todo o modo, fazem-se necessários alguns reparos. Mill estabelece que as situações tenham "todas circustâncias em comum exceto uma" ou tenham "apenas uma circustância em comum". Não há forma de saber se todos os fatores relevantes que poderiam influenciar a manifestação em estudo, foram devidamente incluídos. Assim, a epidemiologia lança mão de recursos como o desenho da investigação e a utilização do instrumental estatístico para controle de confounding com o propósito de tentar contornar estas (e outras) limitações. Por outro lado, é praticamente impossível empregar métodos de investigação da ciência empírica nos domínios da Psicanálise. Suas afirmações causais não são passíveis de serem abordadas desta forma (ver capítulo cinco). Existem problemas de "definição diagnóstica precisa" (aliás, nem é este o propósito da psicanálise), de mensuração dos possíveis fatores causais (que teriam ocorrido num tempo pretérito, com difícil dimensionamento) e, sobretudo, a inacessibilidade do inconsciente, perceptível, parcialmente, através de suas manifestações (atos-falhos, lapsos, sonhos, chistes). A psicanálise se baseia em um encontro singular de subjetividades, ancorado pela chamada transferência. Para alguns, grande parte dos construtos psicanalíticos disporiam, na verdade, de estatuto e vigor de metáforas (Spence, 1992), matriz para o processo interpretativo, motor do dispositivo psicanalítico. De qualquer forma, as considerações etiológicas do Freud neurologista sobre a histeria pertencem ao terreno das hipóteses causais, vistas sob o ângulo da ciência empiricista da época. Sabe-se que diversos trabalhos de Mill foram traduzidos para o alemão por Freud (Gay, 1989)9. Assim, não é 9
.Entre 1879 e 1880, Freud fez o serviço militar compulsório como médico. Para aliviar o tédio que sentia na época, em meio aos atendimemtos, traduziu ensaios da obra reunida de Mill. Cf. GAY, P. 1989. Freud. Uma Vida para Nosso Tempo. São Paulo. Cia. das Letras.
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absurdo considerar a forte influência que o filósofo inglês possa ter exercido nas elaborações freudianas sobre a etiologia da histeria.
Freud e as hipóteses causais na histeria Vamos partir do "Estudo comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas" [1888-93 (1893)]. Neste texto, Freud procura sistematizar as diferenças anatômicas e funcionais entre as duas formas de paralisia citadas. Percebe que o "comportamento" anatômico de cada paralisia é distinto: na cerebral, os sintomas estão constituídos, conforme a "estrutura do sistema nervoso, a distribuição de seus vasos e a relação entre estes fatos e circustâncias da lesão" (Freud, 1893: 17). Na paralisia histérica, a lesão se mostra "independente da anatomia nervosa, posto que a histeria se comporta em suas paralisias e demais manifestações como se a anatomia não existisse"...(Freud, 1893a: 18). Neste texto, Freud estabelece que a paralisia histérica resulta de uma alteração funcional, sem lesão orgânica reconhecível. Isto é, a representação da idéia de determinado órgão se baseia num conhecimento tátil e visual e não neuranatômico. Assim, o órgão paralisado em função de algum evento traumático, ficaria impossibilitado de entrar em associação com as demais idéias que constituem o ego (Freud, 1893a). O raciocínio empregado por Freud ao comparar as duas situações e formular uma teoria explicativa está próximo ao "método da diferença". As duas paralisias se distinguiam especialmente no fato de seguir ou não as leis anátomo-fisiológicas do sistema nervoso. O que deu margem a Freud conceber a "impossibilidade associativa" da representação do órgão com as demais representações do Ego em função do recalque. Vamos prosseguir com a "Comunicação Preliminar", onde Breuer e Freud (1893b) procuram pesquisar a causa desencadeante que provoca a primeira ocorrência dos fenômenos histéricos. Neste texto, Freud aponta para o fato de "o que está em questão" ser algo que o paciente não gosta de discutir ou algo que o paciente não gosta de discutir ou algo que o paciente é incapaz de recordar e, assim, não
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desconfia da "conexão causal" entre o fato e o fenômeno patológico (Freud, 1893b: 41). Através da hipnose, é possível contornar esta dificuldade com a finalidade de "despertar as lembranças [do paciente] da época que o sintoma surgiu pela primeira vez" (Freud, 1893b: 41). Mediante o hipnotismo, Freud se propõe a demonstrar: 1) fatos externos determinam a histeria muito mais do que se reconhece; 2) na histeria traumática o acidente provoca o sintoma; 3) nos ataques histéricos, percebe-se a ligação causal entre a alucinação e o fato que provocou o primeiro ataque (Freud, 1893b). Além disso, Freud diz ter a experiência demonstrado que os sintomas e produtos idiopáticos da histeria também estão relacionados com o trauma desencadeante e têm com ele conexão clara. Neste ponto, diz que "há algum fato na infância que estabelece um sintoma mais ou menos grave que persiste durante anos" (Freud, 1893b: 42). É possível perceber neste trecho o raciocínio que Freud desenvolve. O método de elaboração causal empregado é o da "concordância": a "experiência" (leia-se "observação de casos") mostrou que os pacientes histéricos têm em comum um evento "traumático" na infância. Isto fica mais claro quando diz que: "na neurose (histérica) traumática, a causa atuante da doença (...) é a emoção do susto, o trauma psíquico - a maior parte dos sintomas histéricos tem causas desencadeantes relatadas como traumáticas" (Freud, 1893b: 44).
Junto à carta 39, dirigida a Fliess, acompanhava o rascunho K - "As Neuroses de Defesa" (1896). Em relação à histeria, Freud comenta que "esta neurose pressupõe necessariamente uma experiência primária de desprazer - isto é, de natureza passiva. A passividade sexual natural nas mulheres explica o fato de elas serem mais propensas à histeria. Nos casos em que encontrei histeria em homens, pude comprovar, em suas anamneses, a presença de acentuada passividade sexual" (Freud, 1896a: 417). (sublinhado nosso).
Eis aí outro exemplo de utilização do "método de concordância": ao observar a circustância comum de "passividade sexual" tanto nos casos de histeria em homens como em mulheres, Freud pôde inferir que tal característica participaria do nexo causal da neurose em estudo.
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"A Herança e a Etiologia das Neuroses" (1896b) oferece uma ampla oportunidade de perceber como Freud se movimentava com habilidade na conceptualização das causas. Neste texto, ele faz a classificação de três categorias de "influências etiológicas" em função com o efeito que produzem: "condições, causas concorrentes e causas específicas. As condições são indispensáveis para a produção do efeito, mas sua natureza é universal e se encontram na etiologia de outras doenças. As causas concorrentes participam da causação de outras afecções, mas não são indispensáveis. As causas específicas são indispensáveis, mas exclusivas daquela afecção" (Freud 1896b: 279).
A "herança" genética participaria como condição na patogenia das grandes neuroses (histeria e neurose obsessiva). Freud diz que "não poderia prescindir da colaboração das causas específicas, mas sua importância fica demonstrada pelo fato de que as mesmas causas, atuando sobre um indivíduo não produziriam nenhum efeito patológico manifesto, enquanto que sua ação sobre uma pessoa predisposta fará surgir a neurose, cuja intensidade e extensão dependerão do grau de tal condição hereditária" (Freud, 1896b: 280).
Temos aí a utilização de dois métodos: o da "diferença", no caso da inefetividade das causas específicas num indivíduo são, em comparação com o efeito num indivíduo predisposto geneticamente; e conforme o "grau da condição hereditária" haverá uma correspondência na "intensidade e extensão" da neurose - "método da variação concomitante". Nas "Novas observações sobre as neuropsicoses de Defesa" (1896c), Freud chega a fazer um "exercício estatístico" para corroborar sua hipótese da etiologia sexual da histeria, diminuindo a ênfase na dimensão genética. Sustenta sua teoria com treze casos de histeria. Em todos eles esteve cumprida "a condição específica da histeria - a passividade sexual nos tempos pré-sexuais" (Freud, 1893c: 286). "Meus treze casos de histeria eram todos graves (...). Os traumas infantis que a análise descobriu neles eram todos de ordem sexual (...)" (Freud, 1893c: 287). Apesar de não discutir a possibilidade de erros na seleção de sua amostra nem de incluir um grupocontrole para comparação. Freud estava empregando, ainda que rudimentarmente, concepções
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epidemiológicas para a comprovação de suas hipóteses causais: a observação da repetição do possível fator etiológico em relação à doença estudada. Da "Etiologia da Histeria" (1896d) foi selecionado um trecho em que Freud estuda dezoito casos tratados por ele: Constituem-se em seis homens e doze mulheres e incluem casos de "histeria pura" e "histeria combinada com representações obsessivas". Em todos, chegou ao descobrimento de eventos sexuais infantis (Freud, 1896d). Desta vez, no entanto, Freud leva adiante seu raciocínio e considera uma possível comparação com um "grupo-controle", ao formular uma objeção, "baseada no reconhecimento da freqüência dos eventos sexuais infantis e na existência de muitas pessoas que recordam tais cenas e não adoecem de histeria" (Freud, 1896: 309). Neste ponto, Freud explica que a "extraordinária freqüência de um fator etiológico não pode ser empregada como argumento contra sua importância etiológica" (Freud 1896d: 309). E mais surpreendente ainda, afirma que: "o bacilo da tuberculose flutua em todas as partes e é aspirado por muito mais homens dos que os que logo adoecem, sem que sua importância etiológica fique diminuída pelo fato de precisar da cooperação de outros fatores para provocar seu efeito específico. Para lhe conceder a categoria de etiologia específica basta que a tuberculose não seja possível sem sua colaboração" (Freud, 1896d: 309).
A analogia com a tuberculose serve para sustentar sua posição: "nada importa a existência de muitos homens que viveram cenas sexuais em sua infância e não adoeceram imediatamente de histeria; sim, por outro lado, todos aqueles que padecem esta doença, viveram tais cenas. O círculo de difusão de um fator etiológico pode muito bem ser mais extenso que o de seu efeito; o que não pode é ser restrito. Nem todos os que entram em contato com um doente de varíola ou se aproximam dele contraem sua doença, e, sem dúvida, a única etiologia conhecida para a varíola é o contato" (Freud, 1896d: 309).
É interessante notar como Freud dispõe de conhecimentos acerca do comportamento epidemiológico da tuberculose e da varíola. Demonstra um perfeito entendimento das características de contágio dessas enfermidades, o que não seria de se surpreender, já que era médico. Mas, além disso, mostra a compreensão da idéia de multifatorialidade na causação de doenças, da existência de fatores individuais que conferiam resistência e da noção de causa necessária/suficiente para a ocorrência da enfermidade um domínio espantoso de conteúdos epidemiológicos, que, de certa forma, ainda permanecem vigorando.
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Neste ponto, é interessante enfatizar a relação de afinidade conceitual entre a idéia freudiana de sobredeterminação e multicausalidade em epidemiologia. Laplanche e Pontalis abordam a sobredeterminação referindo-se ao fato de "uma formação do inconsciente (...) remeter para uma pluralidade de fatores determinantes" (Laplanche & Pontalis, 1986: 641). Esta afirmação pode ser encarada de duas formas: "a) A formação considerada é resultante de diversas causas, pois que uma só não basta para a explicar; b) A formação remete para elementos inconscientes múltiplos, que podem organizar-se em seqüências significativas diferentes, cada uma das quais, a um certo nível de interpretação, possui a sua coerência própria (...)" (Laplanche & Pontalis, 1986: 641).
Curiosamente, os autores acima citados utilizam os "Estudos sobre a Histeria" para ilustrar as definições. Consideram o sintoma histérico sobredeterminado por resultar tanto de uma predisposição hereditária, como de eventos traumáticos (Laplanche & Pontalis, 1986). Este exemplo foi discutido anteriormente neste trabalho, mostrando a aplicação do raciocínio freudiano ao classificar três categorias "causais": as condições, as causas concorrentes e as causas específicas. Em suma: um modelo de multicausalidade. Tanto assim é que Freud (1895) diz na "Psicoterapia da Histeria" (uma complementação à "Comunicação Preliminar): "(...) o caráter principal da etiologia das neuroses é a SOBREDETERMINAÇÃO de sua gênese; ou seja, que para dar nascimento a uma destas afecções é necessário que concorram vários fatores (...)" (Freud, 1895: 142).
* É evidente que Freud precisava estabelecer relações de causa e efeito para construir a teoria psicanalítica. Aliás, qualquer teoria dita científica procura responder da maneira mais satisfatória possível a tais questões. Porém, uma das objeções feitas às psicanálises é a aparente dificuldade em considerar casos em que sua teoria não consiga dar conta. Se toda teoria possui um determinado alcance explicativo, o progresso na Ciência dar-se-ia mediante aperfeiçoamentos teóricos (ou adoção de teorias com maior poder explicativo). Neste caso, as psicanálises estariam mais próximas de estruturas discursivas de características doutrinárias.
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De todo o modo, no seminário 11, Lacan faz menção ao fato do problema da causa ter sido sempre "o embaraço dos filósofos" (Lacan, 1985). No caso da observação científica, é admissível aceitar que as fases da lua são a causa das marés. Mas no caso do inconsciente, "cada vez que falamos de causa, há sempre algo de anticonceitual, de indefinido" (...). "[O inconsciente freudiano] se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação. O importante não é que o inconsciente determina a neurose (...) mas, sim que nos mostra a hiância por onde a neurose se conforma a um real - real que bem pode, ele sim, não ser determinado" (Lacan, 1985: 74).
Realmente, a psicanálise se constitui como um saber peculiar. Não se trata, exatamente, de uma teoria sobre seu objeto. Mas, uma atividade cuja função é fazê-lo manifestar-se. Ou seja, tratar as "pessoas" como sujeitos especialmente onde não aparecem como tais e, mais ainda, não dispõem da consciência disto. Esta atividade ("prático-poiética") se define por uma meta de auto-transformação, não por objetivos de saber (Castoriadis, 1987) (na verdade, suposto saber...). Esta seria uma de suas principais qualidades, nem sempre bem definida no interior das psicanálises, de um modo geral, mas, eventualmente em presente em algumas de suas modalidades. Aquelas que assinalam a falta de fundamentos últimos para dar um senso unitário ao eu de modo a superar a necessidade de relações objetais autorreferenciais - insuficientes para este fim (Varela et al, 1992). Enfim, se o objeto da psicanálise são os conteúdos cujos sentidos se concretizam na existência singular dos sujeitos (e suas transformações metafóricas), há problemas para observá-los digamos, cientificamente. Pois, isto só pode ocorrer dentro do contexto analítico. Mas, digamos assim, sob uma ótica sociológica diante das instituições científicas, Freud adotou (ou viuse obrigado a isto), à época, uma estratégia de legitimação de sua disciplina vinculada à idéia de estabelecê-la como "ciência" positiva. E, se foi bem sucedido no intuito de mantê-la até hoje, isto não se deu sem "efeitos colaterais": a cientificidade ("positiva") da psicanálise permanece sendo discutida. Lacan, inevitavelmente, também se envolveu no projeto de legitimação científica e de expansão da psicanálise. Para isto, ancorando-se na filosofia, rediscutiu o estatuto de cientificidade, procurando afastar-se das ciências positivas e de suas abordagens deterministas. Sua estratégia de generalização
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("psicanálise em extensão") pensava a transmissão da psicanálise através da reprodução de seus praticantes. Daí seu caráter recorrente que concebia todo ser humano como um psicanalista em potencial. Assim, todos deveriam ser, de alguma forma, analisados e toda análise seria didática. Esta postura proselitista acabou por amplificar o caráter sectário das instituições psicanalíticas de cepa lacaniana, onde os participantes são "adeptos" ou, caso se retirem, podem ser vistos como "apóstatas"... (Laplanche, 1989; Chertok & Stengers, 1990). Para encerrar, nada com uma interessante analogia epidemiológica feita por Chertok e Stengers (199O). Freud esperava que a expansão da psicanálise tivesse uma dimensão preventiva que a legitimasse, tal como a vacina contra a varíola levou à erradicação da moléstia. E, isto, como sabemos, não ocorreu... Mas, ocorrerá algum dia?
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QUATRO Crime e castigo: Risco e Prevenção do HIV/AIDS.
Como o subtítulo indica, este texto se propõe a discutir criticamente, sob o ponto de vista do risco epidemiológico, tópicos relacionados às políticas de prevenção em saúde, seus pressupostos e seus dilemas. Para isto, vamos partir de um aspecto considerado essencial em qualquer política de saúde bem sucedida dirigida à AIDS, segundo respeitáveis autoridades sanitárias no assunto. Se os requisitos fundamentais para o sucesso na prevenção são: *informação e educação; *serviços sociais e de saúde; *um ambiente social adequado (Mann et al, 1993), desde logo, fica claro que os dois últimos itens oferecem mais dificuldades. O segundo tópico, especialmente, envolve além da vontade política, os inevitáveis problemas referentes a recursos financeiros, materiais, humanos e organizacionais. No terceiro, temos que lidar com aspectos decorrentes do julgamento quanto a idéia de "adequação" de um "ambiente social" (e como circunscrevê-lo diante da enorme diversidade de fatores e determinantes que envolvem algo desta ordem). Portanto, não parece haver maiores discordâncias em relação ao fato das medidas dirigidas à informação e educação em saúde serem vistas como mais factíveis, acessíveis e econômicas e, por conseguinte, as mais empregadas para lidar com a prevenção do HIV. A epidemiologia tem contribuído, entre outros aspectos, através de suas elaborações acerca da idéia de "risco", construída a partir das características de transmissibilidade e respectivas vias de entrada do agente etiológico considerado como responsável pela síndrome. Nesta ótica, conforme os padrões de exposição, as probabilidades de ser infectado pelo HIV acompanhariam determinados comportamentos ou exposições a situações encaradas como de "risco", que poderiam ser devidamente mensuradas. Assim, dentro de uma visão racionalizadora, seria possível: 1) prover um mecanismo dirigido à vigilância populacional e a proporcionar serviços para averiguar se as medidas de prevenção estão sendo efetivas ou não; 2) dimensionar os níveis de assistência e planejar demandas futuras em termos de assistência e alocação de recursos requeridos por indivíduos e comunidades sob diferentes graus de "riscos". Além disto, o risco epidemiológico permitiria ampliar o entendimento público a respeito da prevenção da epidemia (Frankenberg, 1994).
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Em outros termos (mais dostoievskyanos), deve-se educar o público, alertando-o que, diante do "crime" de expor-se a configurações onde o contágio possa acontecer [por ex.: relações sexuais penetrativas desprotegidas ("descamisadas")], corre-se o risco de dar margem à superveniência do irremediável "castigo"... Um dos formatos assumidos pelas campanhas de educação em Saúde em diferentes contextos foi o de enfatizar a letalidade da doença. Isto deveria servir como apelo suficiente para estimular as pessoas a evitarem comportamentos de risco: a)reduzir a quantidade de parceiros e b) evitar relações sexuais anais, tanto insertivas como receptivas. Além disto, destacavam a intensidade dos abalos emocionais e sofrimento pessoal que atingiam aos infectados (Danziger, 1994). Porém, após uma década de experiência, percebe-se que os resultados esperados a partir da educação em saúde por si situaram-se aquém da efetividade almejada. Muitas investigações indicaram reduções significativas no número de parceiros entre homens que fazem sexo entre si. Isto teria diminuído a probabilidade de infecção ao nível agregado. Mas, o uso consistente de preservativos, mais efetivo na prevenção, não parece ter tido a mesma adesão. Mesmo que a maioria dos estudos mostre mudanças importantes no sentido de práticas de sexo seguro em nível agregado, há indicações, em termos individuais, de que muitos homens permanecem adotando comportamentos sexuais de risco (Hospers & Kok, 1995). Em relação ao importante grupo etário constituído pelos jovens e adolescentes, observou-se que a capacidade das campanhas de prevenção contra a AIDS em proporcionarem atitudes preventivas de longo prazo parece ser mais exceção de que regra (Weisse et al, 1995). Em suma, atualmente, experts no assunto se manifestam dizendo: "O fato da informação não ser capaz de provocar mudanças comportamentais de forma confiável, regular e previsível foi documentado inúmeras vezes em várias culturas e contextos, ressaltando a necessidade de uma abordagem abrangente à prevenção, combinando os três elementos essenciais ao seu sucesso" (Mann et al, 1993: 165)."
Deste modo, tem-se a impressão que informação e educação só podem ser efetivas caso acopladas às duas outras mencionadas rubricas. Em contextos com serviços sociais e de saúde precários e ambiente social
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"inadequado", como costuma ocorrer nas formações ditas periféricas, as perspectivas, a partir desta ótica, se tornam pouco promissoras. Mesmo assim, nos países ditos centrais, há fortes indícios de, a esta altura, a população já ter sido exposta à informação sobre os riscos a respeito da transmissão de HIV/AIDS a ponto de dispor de conhecimentos suficientes para orientar sua conduta sexual. Contudo, mais da metade dos norte-americanos pesquisados em surveys relataram não tomar nenhuma precaução quanto às possibilidades de se infectar (Guttmacher, 1994). No Brasil, apesar da relativa insuficiência de investigações a este respeito, dados de estudos (ainda preliminares) apontam nesta mesma direção (Parker, 1994b). Ou seja, as mensagens preventivas alvissareiras quanto ao efetivo controle da epidemia. Isto ocorre de tal forma que vão se tornando cada vez mais frequentes indagações que conduzem à expectativa de se "obter um melhor entendimento sobre o comportamento humano e como mudá-lo, antes que populaões inteiras de homens e mulheres relativamente jovens sucumbam diante da AIDS" (Editorial, Nature, 1994:400). Nesta mesma perspectiva, guardadas as diferenças, tem sido noticiada na imprensa leiga uma elevação generalizada da incidência de tabagismo nas populações americanas mais jovens. Desta forma, grupos e instituições antitabagistas cogitam em adotar estratégias mais agressivas no combate ao hábito de fumar. Isto já é perceptível na mudança de retórica: fala-se agora em uma epidemia de tabagismo e se sugere que os maços de cigarro apresentem a frase "o hábito de fumar é letal" (Veja, 1994). Será que esta é uma estratégia efetiva?
"Recaída diante das "tentações"... A literatura especializada vem assinalando que os eventuais sucessos em termos de mudanças comportamentais podem não se manter ao longo do tempo. A este respeito, é importante se deter na idéia de "recaída" (relapse) a práticas sexuais não seguras (Hart et al, 1992). Consiste em um termo originalmente
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usado em estudos de seguimento para descrever a conduta de homens que haviam inicialmente adotado comportamentos sexuais seguros, mas que tiveram, posteriormente, pelo menos, um episódio desprotegido. É importante mencionar não tratar-se de uma expressão veiculada pelos participantes dos estudos. Em primeiro lugar, há críticas metodológicas aos estudos de "recaída". Por exemplo: como dimensionar o comportamento das perdas nos estudos de follow-up, os possíveis vieses de seleção (ingresso maior de indivíduos dispostos a manter práticas seguras nos estudos). Além disto, as pesquisas não conseguiram discriminar (no bom sentido), mediante variáveis epidemiológicas psicossociais ou comportamentais, as diferenças entre os "recaídos" e aqueles que nunca adotaram práticas seguras ("caídos"?). Uma possível razão para isto: o emprego do período de 30 dias anteriores como intervalo de referência aos episódios sexuais. Em segundo lugar, é preciso discutir a noção de "segurança" na prática sexual. Há uma definição tácita, do ponto de vista preventivo, que qualquer ato penetrativo deva ser protegido, a despeito das circunstâncias. No entanto, é preciso levar em conta relações monogâmicas estáveis entre parceiros HIV negativos. Neste caso, o uso de camisinha não prejudicaria a segurança da prática de sexual caso não fosse utilizada. Porém, é difícil determinar a frequência desta situação (Hart et al, 1992). Também podem ser feitas críticas conceituais à idéia de "recaída". Esta é, primordialmente, uma designação biomédica para enfermidades que apresentam em seu curso, períodos de remissão e de recrudescimento, aonde os sinais e sintomas retornam, após aparente resolução ou controle. É usada, também em casos de adição a psicofármacos. Assim, é preciso considerar a possibilidade do comportamento sexual de risco ser visto como um mau comportamento, uma prática viciada que deva ser enfrentada com preceitos de autodisciplina, força de vontade (Hart et al, 1992). Modelos Comportamentais e Prevenção em Saúde Alguns modelos comportamentais vêm sendo utilizados para explicar a não-aderência a recomendações de saúde. Um deles é o "Modelo das Crenças em Saúde" (MCS) (Health Belief Model). Em síntese, seus elementos são: a)suscetibilidade percebida (percepções de ameaças à saúde); b)severidade percebida
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(avaliações pessoais da gravidade de tais ameaças); c)benefícios percebidos (avaliações pessoais quanto à factibiliade e efetividade das recomendações para lidar com a ameaça);d)barreiras percebidas (avaliações pessoais dos obstáculos relativos às ações de saúde). O MCS postula que os indivíduos adotarão medidas preventivas conforme as percepções de severidade e suscetibilidade se os benefícios do novo comportamento superar as barreiras (Janz & Becker, 1984). Outra proposta é constituída pelo "Modelo da Auto-eficácia", originário da Teoria da Aprendizagem Social. Isto é, as expectativas de eficácia são os maiores determinantes quanto: a)ao início da mudança de comportamentos; b)ao dimensionamento dos esforços a serem dispendidos; c)à duração de tais esforços diante dos obstáculos (Bandura, 1977). Há tentativas de agregar ambos modelos para dar suporte explicativo aos padrões de uso/não uso de preservativos (inclusive sob o efeito de psicofármacos) (Mahoney et al, 1995). Estudos mostram que, apesar de altos níveis de suscetibilidade percebida ao HIV/AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, comportamentos de risco (múltiplos parceiros e embriaguez durante relações sexuais) são mais relevantes para distinguir usuários esporádicos de não-usuários e de usuários consistentes de preservativos. Mas, mais importante que isto, é a constatação das medidas empregadas (e, implicitamente, os conceitos) não serem capazes de distinguir satisfatoriamente usuários consistentes de não-usuários e a assunção que "outras variáveis devem ser examinadas para melhor compreensão destas diferenças" (Mahoney et al, 1995: 44). Fica a impressão que estas abordagens provavelmente atingem dimensões parciais, epifenomênicas, de um fenômeno principal de outra natureza, mais complexo - relativo aos determinantes do comportamento humano. Incontrolavelmente, algo "escapa". Mas, não se trata de estudar outras variáveis e/ou combiná-las de outras formas. Está em questão a idéia de sexualidade humana assumida por estas propostas de conhecimento. E, sabemos, este terreno é controverso e eivado de preconceitos.
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Modelos explicativos desta ordem tem pouco a acrescentar ao entendimento da sexualidade humana se a construção da homossexualidade masculina for marcada por categorias de análise baseadas em "perversão", enfermidade, debilidade de caráter, concupiscência etc. E, portanto, terão poucas possibilidades de sucesso em intervenções com vistas à prevenção do HIV/AIDS. E isto vale, também, mutatis mutandis, para os usuários de drogas injetáveis. Aí, também, a idéia de prevenção primária se ancora no individualismo e culpabilização da vítima, colocando uma fronteira moral entre usuários e abstêmios, e destacando a necessidade dos indivíduos resistirem a "influências negativas" de seus grupos de referência (Cohen, 1993). Tal culpabilização tende a incluir "grupos culturais" (de "risco") considerados "desviantes" das normas vigentes em nossas formações sociais (Schiller et al, 1994). Tal crítica, no entanto, não se constitui em novidade. Neste sentido, houve substituições aparentemente, digamos assim, "politicamente corretas" - representadas através de categorias como as de situação/comportamento de risco (Camargo-Jr., 1994). Mas, é discutível se isto implica em alterações significativas nas representações acerca destes grupos sociais. O Entendimento Público de Conteúdos Científicos Do ponto de vista analítico, é preciso levar em conta os papéis da retórica e seus modelos de "entendimento público" empregados nos processos de educação em saúde. Isto é, como costuma ser visto o "receptor"da informação científica. Em geral, o padrão predominante no contexto médico-epidemiológico se baseia no modelo "deficitário". Ou seja, o público é encarado como passivo, e, portanto, os conteúdos a serem veiculados requerem uma retórica que atue para acomodar fatos e métodos científicos às deficientes experiências e capacidades cognitivas do público. Assim, conforme a ideologia dominante das ciências em geral e das bio-ciências, em particular, a comunicação é basicamente de caráter cognitivo/racional (Gross, 1994). No caso específico da epidemiologia, é clara sua adesão à uma teoria da escolha racional. Ou seja, no caso das pessoas se depararem com distintas possibilidades de ação, supostamente deverão selecionar aquela que, conforme suas crenças, as conduzam ao melhor resultado global. Portanto, a escolha racional é instrumental, orientada pelo resultado da ação (Elster, 1994). O que importa reter aqui é o fato desta teoria ter o intuito de explicar a conduta humana.
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Seria presumível que, em geral, indivíduos e grupos devessem basear-se nesta lógica para ampliarem sua sobrevivência, ao minimizarem os riscos impostos por uma mortalidade precoce. Isto é reforçado pelo fato do adoecimento ou da mera suspeita que o indivíduo pertença a algum "grupo de risco" se tornar motivo para sua discriminação. Portanto, a afirmação de sua "condição saudável" implica numa expressão positivada de sua identidade. Deste ângulo, como indica, de modo crítico, Crawford (1994): "O corpo saudável deve pertencer a um proprietário que o mereça" (!) (Crawford, 1994: 1348). O doente consiste, assim, em alguém que não administrou adequadamente (e aquele sob "maior risco" seria quem não o está administrando) os riscos existentes. O conhecimento, ou melhor, a consciência do risco é vista como elemento crucial em qualquer política dirigida à AIDS. Pois, vale repetir, em tese: uma vez conhecendo as formas de transmissão do HIV, trata-se de uma questão de controle racional evitar ser atingido pelo vírus. A adesão ou não a este ideário serve, além do mais, para distinguir indivíduos considerados responsáveis dos não-responsáveis (Crawford, 1994).
Informação em Saúde e Mudanças de Comportamento: "Educação dos Prazeres"? Pois bem, apesar de tudo, torna-se inevitável indagar por que pessoas possuidoras de conhecimentos elaborados acerca dos riscos fatais ao adotarem determinados comportamentos/práticas, mesmo assim o fazem? Em outras palavras, porque tais conhecimentos não são suficientes para proporcionar a força necessária para as pessoas controlarem racionalmente suas arriscadas vontades? Será que estamos lidando com indivíduos portadores de "fraqueza de vontade"? Ao nosso ver, parece faltar alguma reflexão acerca dos pressupostos envolvidos na idéia de "racionalidade" do receptor destas informações com vistas a um processo dito educacional que busque alterações comportamentais. Ou seja, a discussão acerca da pertinência da concepção de indivíduo "racional", isto é,
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aquele que se pauta nas leis da lógica formal e, portanto, não contraria (abusivamente, pelo menos...) a teoria das probabilidades nem os cânones fundamentais da Estatística (Lévy, 1993). Uma tentativa de configurar o modo como a antropologia médica assume a "posição do homem racional" implica em pressupostos similares sobre a "natureza humana" (Young, 1981). Três deles são perfeitamente válidos também para a epidemiologia moderna, onde: 1)O conhecimento é internamente consistente de acordo com modalidades de lógica conjuntista; 2)O humano é, em essência, um ser movido pelo raciocínio - processo consciente que organiza o conhecimento para prover informações e orientar a ação; 3)O humano se comporta de maneira pragmática, baseado em modelos causais através dos quais procura predizer e controlar as ocorrências que lhe podem suceder (Young, 1981). Na verdade, apesar dos seus esforços, as pessoas, em geral, não costumam levar em conta predominantemente a "racionalidade" para orientar suas ações. É mais plausível conceber uma irracionalidade estrutural no humano, de tal modo que seu modus operandi parece ser orientado mais por idéias e afetos vinculados a determinados padrões pré-definidos e, por vezes, estereotipados. Aliás, é compreensível perceber que é mais "lógico" lançar mão de modelos esquemáticos familiares no processo de raciocinar (mediante imagens, analogias conhecidas), do que dispor-se a frequentes avaliações elaboradas e trabalhosas envolvendo novos elementos. Mais, ainda: é preciso cogitar na intuição de tanto o adoecer como a exposição a determinados riscos se constituirem em modos possíveis de permanecer vivo e, por extensão, de levar a vida (Vaz, 1994). No caso específico das formas de prazer sexual, é preciso indagar-se a respeito das "razões" responsáveis pelas escolhas feitas. Não se trata de uma questão de escolha racional. As pessoas estabelecem tais formas por fatores intangíveis, mescla complexa de elementos ditos bio-psico-sociais (ou relativos a corpo/mente/sociedade). Mas, que, não obstante, faz com que algumas pessoas tenham grandes dificuldades
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em substituir determinadas práticas por outras1. Isto se torna mais candente se levarmos em conta as características contraditórias das sociedades ocidentais nas quais, simultaneamente, há estímulos para as pessoas consumirem múltiplas ofertas prazerosas e alerta para os riscos e malefícios destas opções. Exemplos não faltam (fora da esfera sexual, são evidentes as duplas mensagens relativas aos usos de tabaco, álcool e na gastronomia). Neste ponto, cabe citar Elster (1994) sobre os intentos de orientar racionalmente o comportamento humano e os efeitos dos desejos/emoções em relação a estas propostas: "As boas intenções perdem o poder de motivar à medida que a tentação se aproxima. A esperança reside em aprender com a experiência. Ser irracional e sabê-lo é um grande progresso em relação a ser ingênuo e impensadamente irracional. Ao lidar racionalmente com minha conhecida propensão a comportar-me irracionalmente posso fazer melhor por mim mesmo do que como vítima passiva dessa propensão. As técnicas para lidar com isso, entretanto, não são gratuitas, e às vezes o remédio é pior que a doença" (Elster, 1994: 66).
Se o elemento reforçador da conduta no sentido de levar em conta ameaças de danos à integridade ou à vida não fosse probabilístico, mas, sim, determinístico, isto é: certo, imediato e muito frequente, sua eficácia talvez fosse outra. Mas, a epidemiologia, por enquanto, não dispõe de outra proposta metodológica que supere consistentemente ao modelo de risco. Talvez com o avanço das técnicas e reconhecimentos da Genética é possível surgir alterações neste quadro. Mas, serão suficientes para alterar o que O'Neill (1995) chama de "ignorância carnal socialmente estruturada"? Ou seja, os fatores responsáveis pelo fato de determinados indivíduos adotarem condutas necessárias2, intencionais e dificilmente controláveis. É importante pensar a sexualidade como uma dimensão particular da noção de si-mesmo3, de auto-identidade, local virtual de convergência de aspectos biológicos, simbólicos (narrativo-metafóricos) e sócio-culturais (relativos a normas e valores de determinado contexto e período).
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.Como lidar, por exemplo, em termos de mudanças de comportamento, com indivíduos cuja fantasia sexual fundamental se localiza na sensação de emissão ejaculatória retal? Cf. CALLIGARIS, C. 1994. Comunicação Pessoal. 2 .A etimologia de necessidade aponta para algo que "não cede", "insubmisso". 3 .A idéia de "si-mesmo" é tematizada por diversificadas abordagens filosóficas, psicológicas e antropológicas. Uma relevante proposta de categorização sobre o tópico foi proposta por Paul Ricoeur. Ele sugere a existência de duas modalidades de identidade": uma de tipo "idem" - fixa, estável, relativa à produção do mesmo; e outra de tipo "ipse" - cambiante no decorrer do tempo, dependente do contexto, vinculada à idéia de alteridade. Cf. Ricoeur, P. 1990. O Si-mesmo como um Outro. Campinas. Ed. Papirus.
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Do ponto de vista neurobiológico, a hipótese do marcador-somático tenta lidar com as relações entre razão e emoção no cérebro humano. Seu criador, António Damásio (1995), neurocientista português radicado nos Estados Unidos, propõe, em linhas gerais, que um dos mecanismos participantes dos processos humanos de raciocínio/decisão está instalado sob a forma de sensações cenestésicas, responsáveis pelos elementos intuitivos do raciocínio. Isto é, baseados em sentimentos originários de emoções sutis, conforme a tipologia sugerida . Tais sentimentos teriam se associado pela aprendizagem (imprintings culturais) decorrentes de experiências (reais ou imaginárias) que passam a influir na configuração mental dos possíveis cenários futuros envolvidos na situação então presentificada. No entanto, ao categorizar os marcadores em "positivos" (quando cumprem funções adaptativas) e referir-se que, para constituírem-se, requerem tanto cérebro como culturas normais, a proposição damasiana se fragiliza. Pois, alternativamente, "[q]uando o cérebro ou a cultura são deficientes, é improvável que os marcadores sejam adaptativos" (Damásio, 1995, pp. 189). De certa forma, o neurobiólogo luso reedita (em separado) a categoria "psicossocial". E, mais do que isto, lhe atribui juízos valorativos. Assim, inclui elementos "comportamentalistas" em sua elaborada proposição cognitivista ao enfatizar a importância dos procedimentos de recompensa e punição na constituição de tais marcadores. E, também, ao enfatizar as relações entre prováveis efeitos da "normalidade" ou não de cérebros e culturas e respectivas modalizações de funcionamento psíquico "normais" ou não ... Isto se torna mais flagrante ao ilustrar sua hipótese dos marcadores somáticos desadaptativos com um exemploe extremo: a psico/sociopatia, entidade considerada "desviante" por excelência, que poderia ser "entendida" como disfunção decorrente de distúrbios de cérebros ou culturas (porque não cogitar em "e/ou" - isto é, também, em termos de ambos?). Como pensar, então, manifestações ditas neuróticas (transtornos obsessivo-compulsivos, por exemplo)? Como configurar possíveis marcadores que se "estabilizam" em cérebros (normais?), apesar de efeitos desadaptativos, mas, que, de certo modo, cumprem alguma função adaptativa, ainda que precariamente? Curiosamente, um século depois, Damásio se aproxima de Freud, no "Projeto para uma Psicologia Científica" (1895) e na "Interpretação dos Sonhos" (1900), ao reelaborar, à luz da neurofisiologia moderna, teorias com afinidades com as idéias freudianas das "facilitações" e dos"traços mnêmicos".
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De qualquer modo, evidencia-se a necessidade de rever as disciplinas científicas em sua proposta racional de produzir dados racionais dirigidos a platéias supostamente racionais, mas, que, em seus cotidianos e nas suas intimidades, se movem por outras vias... Há uma limitação crucial de reflexão quanto ao sentido do humano na cultura científica, que se dirige preferencialmente a um conhecimento quantitativo parcial e fragmentador em busca de previsibilidade e contrôle. Como diz Morin (1991), ao criticar a figura do "perito", que deve firmar o diagnóstico pertinente a partir de seu saber, predominantemente calculador e especializado: "(...) Tudo o que escapa à razão calculadora ao entendimento do perito, cuja insensatez principal é a de não poder conhecer a insensatez humana. O que é próprio do saber do perito é, não só desconhecer o que escapa ao cálculo, mas, também ignorar as interações entre os campos parcelares do conhecimento imprevisto, visto que sua experiência está voltada para resolver os problemas que se levantam em termos já conhecidos. Infelizmente para ele, e sobretudo para nós, devemos, em cada momento importante de enfrentar a paixão e a hybris , ser confrontados com a irrupção do novo e devemos cada vez mais situar todo o problema parcial no conjunto de que depende (...) " (Morin, 1991: 62-63).
Do ponto de vista da AIDS, os "peritos" encarregados de propor estratégias de prevenção não costumam levar em conta que a percepção do risco e os aspectos decorrentes disto estão fortemente ligados a representações tanto pessoais como sociais, no interior de significados construídos culturalmente (Parker, 1994a). ). Portanto, é importante estudar etnografiamente como as formas como nossa desinformação e preconceitos são socialmente estruturadas (O'Neill, 1995). Mais do que isto: na verdade, a AIDS está revelando as insuficiências tanto dos sistemas de experts como das políticas públicas diante do processo de individualização do risco tal como aplicado às configurações biológicas/psicológicas/culturais ensejadas por esta "entidade" (Scott & Freeman, 1995) Aqui, analisa-se a epidemiologia como uma especialização caudatária da lógica da identidade, em busca de explicações acerca dos processos de adoecer nos coletivos humanos. Mas que, cada vez mais, vê-se na contingência de justificar a eficácia social de seu empreendimento. Risco, Indivíduo e Configuração Sócio-Cultural O papel da configuração sócio-cultural pode ser de difícil dimensionamento no processo de extrapolação dos achados de um estudo epidemiológico sobre fatores de risco. Por exemplo, a abordagem dos graves problemas como aqueles que envolvem a possível conexão entre uso de psicofármacos, maior disponibilidade
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a relações sexuais e, uma vez estas ocorrendo, a não-utilização de práticas sexuais seguras. Por exemplo, estudos têm mostrado que usuários de "maconha" ou, então de mais de três substâncias diferentes têm maior probabilidade de adotar comportamentos sexuais de risco. Mas, há, também, investigações que não identificam tal conexão (Hospers & Kok, 1995). Segundo alguns pesquisadores, o comportamento de usuários de drogas não pode ser explicado apenas pelo conhecimento da farmacologia das substâncias empregadas ou da suposta "desinibição" provocada por tais drogas. Temos aí uma complexa resultante da interação de: farmacocinética, características psicológicas pessoais, expectativas comportamentais compartilhadas no dia a dia, situação sócio-econômica e contexto cultural (Rhodes e Stimson, 1994). Neste caso, a pesquisa epidemiológica produziu indicadores de comportamento sexual de risco em usuários de drogas, mas parece limitada para explicar a dinâmica desta relação. "A inadequação da pesquisa epidemiológica convencional para gerar dados sobre a interação entre expectativas individuais, comportamento individual de risco e relações sociais, demanda uma reorientação da prática epidemiológica atual rumo a uma epidemiologia social do uso de drogas e do comportamento sexual de risco como parte de um paradigma de pesquisa social designado para investigar as relações sociais e o contexto social do uso, conhecimento, percepções e comportamentos relativos a droga" (Rhodes e Stimson, 1994: 222).
Cabe indagar acerca da capacidade da epidemiologia em fazer suas afirmações de risco diante do problema das interações entre representações coletivas e individuais em relação a questões cruciais que envolvem o adoecer e o morrer. É preciso salientar não tratar-se tão somente de apurar métodos para lidar com o fenômeno de interação na pesquisa epidemiológica4. Mas, sim, transformar pressupostos da própria pesquisa populacional em saúde. Nestas circunstâncias, a abordagem epidemiológica deve mudar sua ênfase em indivíduos (ou outras unidades atomizadas) rumo a "unidades globais", fruto de interações das partes, analiticamente conceptualizadas, no caso de uso de drogas e HIV/AIDS, através do entendimento das redes sociais e das "subculturas" (Rhodes e Stimson, 1994), onde estas se localizam com suas respectivas percepções e representações, tanto sociais como individuais. Em outras palavras, é importante levar em consideração a estrutura contextual na qual as malhas de interação corpo/mente/sociedade se instituem e são 4
.Por sinal, há o reconhecimento, mesmo neste nível de preocupação, da limitação dos métodos para chegar a conclusões definitivas sobre efeitos sinergísticos ou antagonistas em relação aos efeitos conjuntos de dois fatores de risco. Cf. THOMPSON, W.D. 1991 "Effect Modification and the Limits of Biological Inference from Epidemiologic Data". Journal of Clinical Epidemiology. Vol. 44 nº 3, pp. 221-232.
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instituídas. No caso do hábito de fumar, por exemplo, a ênfase preventivista é colocada no comportamento tabagista do indivíduo - no pólo do consumo - ao invés de dirigir-se, também, às formas organizadas de produção e promoção do tabagismo (Wing, 1994). É preciso levar em conta que o risco é um construto da contemporaneidade, que participa do clima de tensão e ansiedade vinculado aos nossos tempos, onde a idéia de "estilo de vida" passou por um processo de reificação, tornando-se "parte" dos elementos constituintes da identidade (inclusive sexual) dos indivíduos. Assim, esta noção passou a carrear, além das determinações genéticas, biológicas, ambientais, sua carga de patogenicidade potencial. Ou seja, o adoecer não é mais uma questão do destino, das contingências que podem escapar ao controle, mas, que pode ser prevenido a partir de escolhas intencionais baseadas em ações racionais bem informadas. A pesquisa epidemiológica dos hábitos comportamentais costuma estudar determinadas condutas que aparecem estatísticamente associadas a configurações de morbi-mortalidade. Mas, muitas vezes, os resultados obtidos não são conclusivos (exemplo: a relação entre hipercolesterolemia em mulheres e doença cardiovascular não ocorre da mesma forma como nos homens). Para alguns autores, a conceptualização dos "estilos de vida" encontrada em grande parte das pesquisas é insatisfatória, pois esta não refletiria os sistemas interatuantes psicológicos, biológicos e culturais. Portanto, deixariam de perceber relações importantes e os resultados obtidos seriam inevitavelmente limitados. Nesta ótica, para abordar aspectos comportamentais, haveria necessidade de conceitos e técnicas estatísticas que levem em conta que a "pesquisa do estilo de vida precisa enfocar a complexidade inerente aos modos de viver" (Dean et al. 1995, pp. 846). Assim, "novos enfoques (...) podem integrar conhecimentos e habilidades epidemiológicas e das ciências sociais com o fim de estudar padrões de comportamento nos contextos nos quais ocorrem (...) para o propósito de estudar interações entre influências sociais e comportamentais" (Dean et al, pp. 846). Tais métodos analíticos seriam os "modelos de interação gráfica", subtipo dos modelos loglineares. A despeito da pertinência da crítica e das preocupações conceituais destes autores, suas proposições metodológicas ainda denotam a "concretude" mensurável da categoria "comportamento" (e, por extensão, dos
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"estilos de vida"), que poderiam ser "melhor" apreendidos através do refinamento e adequação das técnicas de pesquisa. Isto se evidencia na afirmação de que "(...)[comportamentos] interagem (grifo nosso) com influências biológicas, psicológicas e sociais para modelar tanto saúde como longevidade (...)." (Dean et al, 1995 pp. 846). Não seria o caso de se pensar que "comportamentos" são, na verdade, resultantes dinâmicas e complexas de tais influências? Por sua vez, em relação ao HIV/AIDS, pesquisas antropológicas vêm discutindo a efetividade dos programas de educação em saúde dirigidos ao nível da responsabilidade pessoal quanto a condutas que levassem à redução do risco. Mais especificamente, procuram avaliar motivos porque muitas pessoas tendem a não se perceberem como sujeitas à ameaça de infecção pelo HIV (Lupton et al, 1995). Tais programas, em geral, deixam de lado aspectos ligados à dimensão interativa do risco, ou seja, o fato das relações com os "outros" e seus aspectos sociais e simbólicos deverem, também, ser levados em consideração. Neste sentido, a sugestão ao uso de preservativos pode insinuar significados de promiscuidade, degeneração moral, contaminação (seu uso era, além de anticoncepcional, com vistas à proteção contra doenças venéreas) - incompatíveis com relações sexuais baseadas na confiança no parceiro. Isto tenderá a ser visto como sério empecilho à possível proposta de intimidade veiculada por relações sexuais (Sibthorpe, 1992). Uma pesquisa qualitativa realizada na Austrália sobre o emprego de preservativos por parceiros heterossexuais mostrou que a natureza interpessoal das relações sexuais influencia seu respectivo uso/não-uso. Tal investigação sugere a existência de dois níveis de diálogos sobre a "camisinha": 1)interpessoal - diz respeito às "negociações" nos encontros sexuais; 2)discursivos - relacionados a um esquema de referência mediante o qual as pessoas avaliam e procuram compreender suas experiências sexuais. Tais diálogos modelam as mediações que determinam o uso/não-uso de preservativos. Mas, em síntese, a sexualidade está intimamente ligada às construções de gênero - no interior de um processo de constituição de uma noção de si-mesmo, onde a idéia do que seja "comportamento sexual 'apropriado'" define a escolha de usar ou não preservativos (Browne e Minichiello, 1994).
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Em relação ao contexto dos homens que fazem sexo entre si, tanto Costa (1994) como Parker (1994a) assinalam o papel capital dos significados quanto à "identidade homoerótica" para a participação efetiva em propostas preventivas compartilhadas para reduzir o risco de infecção e transmissão do HIV. Outro interessante estudo antropológico foi realizado com 16 mulheres atendidas pelo Centro de Referência da prefeitura na cidade portuária de Santos (São Paulo), reconhecida por constituir-se em local de grave incidência de HIV/AIDS. Seus parceiros tinham história de uso de drogas. Mesmo sabendo dos riscos que corriam, estas mulheres mantinham relações sexuais desprotegidas. Atribuíram à fatalidade o fato de terem se tornado soropositivas e não responsabilizaram seus parceiros. Seus "comportamentos de risco" eram justificados pela manutenção da relação amorosa (Martin, 1995). "(...) É a interação que conta, e uma epidemiologia na qual etiologias são vistas como causas mecânicas e indivíduos como conglomerados de fatores de risco estatisticamente correlacionados leva, ela própria, à frustração dos profissionais envolvidos na promoção de saúde e à tentação de culpar as vítimas por recusarem a escolher estilos de vida "corretos". É somente encarando o comportamento tanto de pacientes em potencial e possíveis curadores em seus contextos culturais compartilhados, mas, sempre fluidos, que as relações entre desejos, identidades e as implicações das mudanças para cada um podem ser vistas de forma a tornarem possíveis as escolhas reais" (Frankenberg, 1994: 1334).
Redes Sócio-históricas Levando em conta a importância das dimensões interpessoais, um recente desenvolvimento em técnicas de investigação no campo epidemiológico propõe-se a abordar níveis de análise para além de unidades individualizadas. As denominadas abordagens sócio-históricas de redes vêm estudando, justamente, a epidemia de HIV/AIDS. Assim, as probabilidades: a) de estar infectado pelo HIV; b) de assumir comportamentos de risco; c) de tais comportamentos de risco levarem à infecção (e, também as abordagens de prevenção ao HIV) podem ser encaradas como dependentes de estruturas e processos históricos e sociais referidos a escalas mais amplas de observação (como já mencionado). Tais fatores exercem efeitos sobre a epidemia mediante suas influências sobre as formas de interação pessoal, tanto em termos sexuais como nas práticas de compartilhamento de seringas (Friedman et al, 1994). Portanto, elementos pertencentes a outras escalas de organização afetam as redes sociais, e, por sua vez, também, interferem nas redes de risco onde circulam os agentes patogênicos de diversas doenças sexualmente transmissíveis. Redes sociais seriam relações que influenciam idéias, normas e condutas. Redes de risco
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consistiriam em comportamentos e materiais de transferência (seringas compartilhadas descuidadamente, por exemplo) passíveis de transmitir o HIV. Como seria presumível, ambas podem apresentar áreas de superposição. As informações para configurar as redes podem ser obtidas através de questionários pessoais que indagam sobre dados sociodemográficos e biográficos, comportamentos sexuais e uso de drogas, história clínica, crenças em relação à saúde, papéis sociais na cultura da droga, normas de convívio entre pares. As redes são montadas pela indicação de parceiros e companheiros (até 10 pessoas, com as quais mantiveram contatos não casuais e/ou comportamentos de risco, nos últimos 30 dias), além de outras informações sobre seus comportamentos de risco, tanto isolada como conjuntamente. Os indivíduos são considerados "vinculados" caso um ou ambos tenham referido injeção conjunta de drogas, relações sexuais entre si, ou outra interação não casual. Tais vinculações são validadas por contatos pessoais com entrevistadores, por observação etnográfica, pelo pareamento de características identificadas. Mesmo assim, há limitações nos dados, em função de subregistro, da impossibilidade de obterem-se amostras aleatórias destas populações, das restrições oriundas das técnicas analíticas, das modificações das redes diante da "antiguidade" da epidemia (15 anos em Nova York), além de inviabilizar a delimitação do sentido da infecção. De qualquer forma, temos indivíduos, com determinados padrões de exposição à infecção, de acordo com seus comportamentos de risco (um nível de análise) que são agrupados conforme as redes interativas que estabelecem (outro nível). Estes procedimentos vêm revelando novas dimensões no estudo e na prevenção da epidemia (Friedman et al, 1994). É importante ressaltar como a pesquisa populacional em Saúde vêm se desenvolvendo no sentido de incorporar técnicas sofisticadas de modelagem com abordagens qualitativas. Estão se tornando mais frequentes estratégias investigativas híbridas constituídas por desenhos qualitativos aninhados no interior do aparato metodológico quantitativo 5. Por exemplo, em uma proposta de estudo experimental de eficácia de 5
.Há uma série de questões metodológicas importantes que não pertencem ao escopo deste trabalho. Envolvem amostragem, tratamento das perdas, densidade e interconetividade no interior das redes etc.. Para os interessados, consultar BASTOS, F.I.P.M. 1995. Ruína e Reconstrução. AIDS e Drogas Injetáveis na Cena Contemporânea. Tese de Doutoramento em Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, datilog. (cópia reprográfica).
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uma vacina contra HIV/AIDS, inclui-se uma abordagem sócio-comportamental qualitativa, mediante história de vida e grupos focais (Carvalheiro et al, 1994). Epidemiologia, Adoecimento e Ética Enfim, apesar da pretensão de alguns epidemiologistas no sentido de sua disciplina ter a "dureza" das chamadas ciências naturais, é difícil negar as marcadas características teórico-metodológicas de ciências dita "social" apresentada pela epidemiologia. Segundo Elster (1994), o propósito de qualquer explicação causal no campo das ciências sociais deve, pelo menos, sugerir mecanismos (sem relação com a ótica mecanicista geral relativa à idéia de funcionamento social) que constituem possíveis padrões causais. Assim sendo, transitar de tais mecanismos para uma teoria unificada implica na necessidade de delimitar previamente as condições de entrada em ação de mecanismos específicos. No presente "estado da arte", há dúvidas quanto ao alcance das propostas destes domínios científicos em produzirem leis gerais sobre o comportamento humano (Elster, 1994) e suas relações com os modos de adoecer. Mesmo que tenhamos mapeado e genoma humano, as interações gens/ambiente/psiquismo/cultura não parecem passíveis de serem decifradas tão cedo. O surgimento da AIDS ampliou as preocupações e ansiedades quanto à idéia de racionalidade, às fronteiras entre os corpos, à contaminação dos humores e à noção de (in)competência imunológica (Lupton et al, 1995). De acordo com o poeta e pensador mexicano, (não apenas no caso específico da AIDS, pois se aplica a outras moléstias), não bastam avanços terapêuticos ou profiláticos para vencê-la(s). Mas, sim, "um ideal de vida fundado na liberdade e na entrega" (Paz, 1994: 147). No caso da AIDS, é perceptível o fato de precisarmos de uma ética erótica. Mais do que isto, em relação a ao viver (e adoecer), é preciso, caso seja possível alcançá-la, uma proposta ética realista. Neste sentido, uma aproximação rumo a uma "ética das verdades", sugerida por Badiou (1995) é bastante pertinente. Por falta de um "eu" totalizado, integral, ou seja, de uma idéia de sujeito delimitado que portasse (ou adquirisse) uma ética, o pensador francês critica a ideologia ética vigente. Especificamente: o ponto de vista dos direitos humanos, a postura vitimizadora do homem, as intervenções ditas humanitárias, a bioética, o "democratismo" amorfo, a ética das diferenças, o relativismo cultural etc. (Badiou, 1995).
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O homem depende de circunstâncias irredutíveis ("fora-da-lei" predominante) para se tornar sujeito. Tais contingências são poiéticas ("acontecimentos", no sentido de kairos), provocam novos modos de ser (como uma paixão amorosa ou a criação da rede Internet...). Para o citado autor, é necessário ser fiel ao acontecimento, isto é, agir incluindo-o na ação. Isto é, se o acontecimento estava fora da racionalidade regular dada, é preciso inventar novas maneiras (e metáforas!) para atuar dentro da situação, mediante rupturas com as "verdades" até então vigentes. Portanto, a "verdade" seria o "processo real de uma fidelidade a um acontecimento" (Badiou, 1995: 55). "Os sujeitos são ocorrências locais do processo de verdade, são induções particulares e incomparáveis." (Badiou, 1995: 57). O filósofo se baseia em Lacan (1988) ao enunciar a ética da psicanálise como "não ceder ao seu desejo" (Lacan, 1988). Aparentemente para lidar com a fugacidade do conceito de "desejo", Badiou traduz por "não ceder naquilo que não se sabe de si mesmo" (Badiou, 1995: 59) e, para isto é preciso ser fiel à disponibilidade (ética) em ser capturado por novas "verdades". Não parece haver dúvidas quanto à necessidade de enfrentar o vigoroso projeto tecnocientífico com seu respectivo "pacote" - gerador da proliferação de produtos híbridos e respectivos efeitos "colaterais". Tal projeto, ao unir razão e tecnologia, não tem mais condições de sustentar a crença de um "futuro redentor". Há sinais (e sintomas) insistentes que apontam para a necessidade de encarar este fato, pois os ditos efeitos "colaterais" estão deixando de se constituírem em eventuais "intercorrências" para se tornarem "decorrências" cada vez mais presentes e intensas. Aí, se evidencia a acentuação das desigualdades sociais e da degradação ambiental. Não parecem suficientes propostas éticas normativas e generalizadoras para alterar este quadro. Mas, enfim, algo é irredutível: por mais que conheçamos nossas moléculas e inventemos continuamente novas metáforas, as moléstias que nos atingem indicam a necessidade de buscar não só projetos científicos outros, onde nosso lugar seja diferente que o de "aprendizes de feiticeiro", mas outra visão do que seja a vida e a experiência humana.
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CINCO Verdades, Tramas, Enredos: Práticas Metafóricas em Saúde. Corpo e metáfora O corpo humano, suas atividades, seus produtos e, também, seu adoecer prestam-se especialmente à atribuição de metáforas e outras figuras de linguagem. Em termos de representação corporal, a metáfora se constitui em elemento essencial em função de sua característica intermediadora. Busca, primordiamente, preencher, mediante a linguagem, as lacunas existentes entre corpo, mente e sociedade1. No caso das relações entre experiências corporais de adoecimento e suas metáforas, destacam-se os conhecidos trabalhos de divulgação de Susan Sontag (1984, 1989). Como mencionado, o organismo humano, suas funções e os produtos de seus emunctórios - sangue, leite, fezes, urina, esperma - servem às possibilidades de representar outras relações naturais, simbólicas e sociais 2. "Construções culturais de e sobre o corpo são úteis para sustentar pontos de vista particulares da sociedade e das relações sociais" (Scheper-Hughes e Lock, 1987: 7).
Como ilustração, o sentido atribuído ao sangue pelo médico pode não corresponder àquele dado pelo paciente e/ou grupo religioso/cultural ao qual se vincula 3. Outro exemplo curioso se relaciona às diferenças culturais no imaginário popular quanto aos órgãos responsabilizados por estados percebidos como indisposições difusas. Povos latinos, como franceses, espanhóis, portugueses e brasileiros 1
.As diferentes culturas desenvolvem modos próprios de produzir metáforas. Por exemplo, os chineses amplificam a noção de corpo como um sistema simbólico complexo. Assim, aceitam a somatização como uma vigorosa metáfora para lidar com a dimensão social do adoecimento, de forma a evitar a sua descontextualização com o meio. Neste caso, o entendimento de uma afecção como a anorexia nervosa deve se dar no interior de uma configuração míticosimbólica culturalmente definida. Cf. Lee, S. 1995. "Self-Starvation in Context: Towards a Culturally Sensitive Understanding of Anorexia Nervosa". Social Science and Medicine. Vol. 41, pp. 25-36. 2 .As emoções se prestam especialmente a elaborações metafóricas (o amor pode ser uma "viagem", uma "guerra", uma "força física", uma "forma de loucura" etc.). Isto ocorre possivelmente em virtude das dificuldades emergentes na "compreensão emocional" - por não estarem diretamente ligadas à nossa inteligibilidade verbal (Cf. Lakoff e Johnson, 1991 op. cit.). Além disto, é curioso notar o uso corrente e variado de animais, talvez por influências rurais de nosso linguajar, para designar "atributos", "papéis", atividades e partes corporais. Por exemplo: (soltar a) franga, frango (homossexual), veado (possível corruptela de "viado", por "desviado"), (afogar o) ganso, pinto, peru, pomba, galinha, garanhão, gato(a), bode, burro, besta, cavalo, touro, anta, vaca, porco, pavão, perua, cobra, raposa, macaco, gambá, arara, papagaio etc. 3 .Basta observar os problemas relativos às transfusões sanguíneas entre praticantes do grupo religioso "Testemunhas de Jeová"...
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costumam atribuir ao fígado as causas de tais desconfortos4. Já ingleses e alemães responsabilizam seus intestinos...(Scheper-Hughes & Lock, 1987). Para alguns autores, à medida em que são percebidas alterações corporais pelo pensamento metafórico, a natureza interativa da metáfora se encarregaria de imediatamente representar tais idéias ao nível corporal (Kirmayer, 1992). Pode-se, por hipótese, pensar as manifestações ditas psicossomáticas como resultantes de perturbações deste processo. Especificamente em relação ao corpo, Scheper-Hughes e Lock (1987), tentam articular questões do discurso antropológico sobre tal temática nas elaborações recentes no campo da chamada antropologia médica. Estabelecem três possíveis níveis de análise para a noção de corpo: - individual, compreendido no sentido fenomenológico, relativo à própria experiência somática vivida como tal; social, vinculado à sua dimensão representacional como um símbolo para lidar com aspectos sociais e culturais da vida; - político, ligado às questões que envolvem a normatização, regulação e controle dos corpos (individuais e coletivos) na reprodução e sexualidade, no trabalho e lazer, no adoecer e em outras formas de "desvio". Todos os níveis apresentam aspectos superponíveis e dão margem a distintas abordagens teóricas e conceituais (Scheper-Hughes e Lock, 1987). As citadas autoras não se detêm nas possibilidades operativas da metáfora. Para elas, o elemento articulador entre estes níveis e, também referido às interações corpo-mente seria proporcionado por uma teoria da emoção. Seriam as emoções humanas as responsáveis pelos efeitos placebo e nocebo provocados nos corpos humanos, inerentes a todas as suas afecções. Ao nosso ver, as atuais conceptualizações dos afetos e emoções mais produzem perplexidade e outras questões do que propriamente encaminhamentos solucionadores para esta ordem de problemas5.
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.Note-se o consumo de "medicamentos hepáticos" disponíveis até bem pouco tempo, antes dos esforços da Vigilância Sanitária em baní-los no Brasil. 5 .Uma minuciosa crítica a Scheper-Hughes & Lock foi desenvolvida por DIGIACOMO, S.M. 1992. "Metaphor as Illness: Postmodern Dilemmas in the Representation of Body, Mind and Disorder". Medical Anthropology. Vol. 14, pp. 109-137.
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Do ponto de vista sociológico, Freund (1988, 1990) também considera a importância das emoções para estudar corpos, saúde e adoecimento. Considera a insuficiência das abordagens bioquímicas para explicá-las (o caso do "substrato" bioquímico para o orgulho, por exemplo), uma vez que emoções variam culturalmente e socialmente (excetuando as chamadas emoções primordiais, como medo ou raiva). Para ele, uma perspectiva que mescle configurações relativas a atividades biológicas, mentais e sociais e suas interações seria uma possibilidade promissora, apesar de suas dificuldades (Freund, 1988, 1990). Em oportuna discussão acerca da eficácia do processos simbólicos de cura, Kirmayer (1993) sugere que as metáforas ocupariam um domínio intermediário entre os denominados níveis mítico e arquetípico da experiência. Em linhas gerais, o mito pode ser encarado sob duas formas essenciais: a)como narrativa ou ideologia - vinculada à estrutura sócio-cultural, onde é desnecessária uma consciência mítica especial; b)como experiência/conhecimento transcendental em nível pessoal, onde tal consciência se torna imprescindível. Os mitos adquirem forma e poder a partir dos processos sociais. Já arquétipo não se prende, como se pode crer, à significação introduzida por C.G. Jung. Configuramse a partir de sua correspondência com as potencialidades humanas que se originam da relação entre corpo e sociedade. Seu sentido se aproxima da etimologia: marcas primordiais - que, pode-se dizer, teriam relações com a idéia de imprinting aplicada ao humano 6. É possível, então, aceitar que a capacidade representacional humana lance mão de elementos metafóricos para lidar com as emoções que afetam este organismo psicossômico. Assim, é importante considerar outras vias para estudar-se a interação corpo-indivíduo/sociedade-coletivo e suas vicissitudes. Um interessante exemplo pode-se encontrar na investigação dos antropólogos Alves e Rabelo (1995) na Bahia ao descrever o caso das aflições sofridas pela "baiana do acarajé". Em sua análise, os autores mostram o emprêgo que esta fazia de dois conjuntos distintos de metáforas para
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.Para maiores detalhes a este respeito, ver CASTIEL, L. D. 1994. O Buraco e o Avestruz: A singularidade do Adoecer Humano. Campinas. Ed. Papirus.
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lidar respectivamente com a gênese/evolução da moléstia e, posteriormente, tomadas as devidas providências espirituais, com sua recuperação. De todo o modo, é difícil negar a existência de uma grande tensão entre ciência e a experiência humana no sentido, em síntese, do fato de sermos dotados de uma mente autointerpretativa que é ocupada por idéias, pensamentos, sentimentos, fantasias, desejos, opiniões, metáforas, juízos sobre idéias (e sobre pensamentos, sentimentos, fantasias, desejos, opiniões, metáforas...) - enfim, este torvelinho psíquico que normalmente nos habita. As repercussões da chamada mente humana em termos de saúde ultrapassam explicações predominantes, elaboradas pelas ciências biomédicas e epidemiológicas. Assim, é necessário ou incluir na reflexão científica aspectos que levem em conta a compreensão desta experiência humana, no sentido que Varela et al (1992) indicam como preocupação para as ciência cognitivas ou, então, procurar levar em conta os efeitos de uma conceptualização restrita, quando não, de sua exclusão... "No mundo atual a ciência é tão dominante que lhe outorgamos autoridade para explicar ainda que negue o mais imediato e direto: nossa experiência cotidiana e imediata" (Varela et al, 1992: 37).
E, nesta perspectiva, tanto analogias como metáforas participam, sobretudo, desta compreensão do presente, do momento que se está vivendo (Maffesoli, 1988). É preciso esclarecer que sob a categoria genérica "prática metafórica", estão incluídos procedimentos de atenção à saúde que lancem mão não somente das referidas figuras de linguagem em suas propostas persuasivas de intervenção, mas, também, das possibilidades imaginativas, criativas e inovadoras, propiciadoras de mudanças de atitudes diante da experiência de adoecimento ou, mesmo, de prevenção. Tanto no que diz respeito às interações entre clientelas e respectivos provedores de assistência (incluindo a psicanálise), como, também, na difusão de conteúdos produzidos pelas disciplinas bio-médicas.
Metáfora e Psicanálise
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Para a psicanálise (especialmente pós Lacan), a metáfora se constitui em um conceito primordial, passível de ser encarada sob diversos ângulos e pontos de vista. Não pertence ao escopo deste trabalho deter-se nestes aspectos. Mas, vale a pena fazer alguns comentários. Em primeiro lugar, enfatizar que a psicanálise consiste numa das poucas concepções ocidentais sobre a mente humana que procura introduzir a falta de homogeneidade e unificação na noção de sujeito cognitivo (Varela et al, 1992). Em segundo, destacar a natureza simbólica da prática psicanalítica [biohermenêutica, segundo o olhar crítico de Gellner (1988)], cujos atos interpretativos, tratam de símbolos e sintomas singulares àquele sujeito. Deste modo, a capacidade de elaboração metafórica permitir-lhe-ia transitar por outras possibilidades existenciais. No caso das manifestações ditas neuróticas, a cura7 (ou melhoria) poderia ocorrer, em tese, porque tal capacidade proporcionaria à pessoa maior campo de manobra a partir da ampliação de sua potencialidade criativa que, por sua vez, teria repercussões nos modos de lidar com suas aflições (Kirmayer, 1993). Em segundo lugar, é preciso levar em conta o fato do arcabouço conceitual psicanalítico estar ancorado, essencialmente em elementos e construtos metafóricos8, onde se destacam as noções de aparelho psíquico, inconsciente dinâmico, pulsão, entre outras. Neste sentido, a interminável discussão a respeito do estatuto de cientificidade da psicanálise adquire outra dimensão ao divisarmos seus limites de verificação e validação. Como diz Spence (1992):
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.O sentido de cura em psicanálise (especialmente de orientação lacaniana) é distinto daquele empregado na biomedicina. Ver a este respeito LACAN, J. 1958. "La Dirección de la Cura y los Principios de su Poder". Primeiro Informe do Colóquio de Royaumont, publicado originalmente em La Psychanalyse. Vol. 6. Por outro lado, é interessante notar que, na língua inglesa, to cure na biomedicina traz uma conotação sutilmente distinta de to heal. Ambos implicam a idéia de recuperação de um estado/condição de saúde. Mas, o primeiro sugere especificamente a eliminação de doença, aflição (distress), mal. O segundo refere-se à superação de dor, ferimento, lesão através da restauração da sensação de integridade, inteireza, totalidade (whole). Pode-se cogitar, inclusive, que guardaria equivalências com o verbo "sarar" em Português. To heal se relaciona etimologicamente a healer - curandeiro, a health, a whole e a holism. Daí, talvez a vinculação linguística entre atividades de saúde ditas holísticas com, por um lado, conotações curandeirísticas (healer), e, por outro, com uma concepção unitária, totalizante do ser humano (whole) (cf. GURALNIK, D.B. (ed.). 1974 "verbete 'cure'" in Webster's New World Dictionary of the American Language. New York. William Collins + World Publ. Co., pp. 347). 8 .Não apenas na psicanálise - as terapêuticas ditas holísticas, mutatis mutandis, os empregam em larga escala.
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"Tanto a metáfora quanto as leis empíricas têm força explicativa, mas o tipo de explicação propiciada pela primeira é significativamente diferente da propiciada pelas segundas. A força explicativa da metáfora freudiana do inconsciente não é diminuída pelo fato de ser vista como um modo de falar; de fato sua credibilidade pode até mesmo ser fortalecida. Todavia, tornar-se ciente de seu fundamento metafórico sensibiliza-nos para o fato de que o sistema freudiano não é um conjunto legal de axiomas que pede um teste explícito - dentro ou fora da arena clínica. Sua derrubada (ou confirmação) não virá de evidência experimental precisamente por causa de seu forte apoio na explicação metafórica (...)" (Spence, 1992: 27). 9
Mesmo aceitando esta argumentação, ainda assim, uma das questões contemporâneas do saber psicanalítico é assegurar a vitalidade da abordagem freudiana de modo a permitir que suas metáforas mantenham o potencial de produzir outras metáforas (até para si mesma!) com o vigor demandado pelos tempos atuais. Um dos perigos que ronda as hostes psicanalíticas é justamente isso: a proliferação de grupos antagonistas em busca da primazia do direito ou da autoridade de manter ou reformar as proposições do corpo conceitual da psicanálise - enfim, seus construtos metafóricos. A rigor, "As diferentes teorias psicanalíticas (...) deveriam ser aceitas em sua diversidade como construções metafóricas. Qualquer teoria explicativa não teria outro estatuto senão o de gerar uma linguagem comum entre o analista e seu paciente, uma linguagem que o paciente aprendesse a aceitar e a compreender, e que desse sentido e coerência à relação terapêutica. A metáfora não é verdadeira nem falsa, mas deve ser eficaz, ou seja, sentida como adequada pelo paciente, do ponto de vista cognitivo e afetivo" (Chertok e Stengers, 1990: 156).
Na verdade, estas disputas "teóricas" podem estar, muito mais, mascarando tanto estruturas de legitimação e poder entre (e intra) instituições psicanalíticas como a manutenção de fatias do mercado consumidor de psicoterapias.
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.A preocupação com a busca de novas metáforas na Psicanálise é assinalada por André Green ao mencionar um uma comunicação de Georges Pragier e Sylvie Faure-Pragier no 50o Congrès de psychanalistes de langue française des pays romans de 1990. Tanto os citados psicanalistas como o próprio Green enfatizam a pertinência de conceitos como o de auto-organização, complexidade, produzidos por autores como Edgar Morin e Henri Atlan (entre outros) para o pensamento psicanalítico (ver GREEN, A. 1995. La Causalité Psychique. Entre Nature et Culture. Paris. Ed. Odile Jacob, pp.86).
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Metáfora como Intermediação psico-social10: O Homem dos Lobos (do Homem) Vamos partir de um conhecido caso da literatura psicanalítica: o famoso relato freudiano do Homem dos Lobos. Diante de sua indiscutível importância, pedimos licença ao leitor para detalhá-lo um pouco mais. No início de 1910, quando Freud aceita ao aristocrata russo de 23 anos Serguei Constantinovitch Pankejeff, para análise, viu-se estimulado pelo fato de saber que dois grandes nomes da medicina da época haviam desistido do caso em função de sua dificuldade, pois o quadro incluía traços psicóticos de caráter maníaco-depressivo. Tais médicos eram Theodor Ziehen de Berlim e Emil Kraepelin de Munique. Ambos criticavam ferozmente à psicanálise e se situavam entre os mais representativos membros da Psiquiatria acadêmica alemã do início do século (Gay, 1989). Como se sabe, Freud estava disposto a sustentar firmemente sua teoria contra a ciência "oficial" da época. Mas. as controvérsias com Jung e Adler foram mais significativas, pois se tratava de enfrentar os estremecimentos no interior do movimento psicanalítico que ameaçavam sua obra (Gay, 1989). Daí sua preocupação, já no título, em denominá-lo "História de uma neurose infantil" para se contrapor às idéias de seus ex-seguidores que não valorizavam, por distintas vias, aos aspectos infantis da sexualidade. Segundo Freud (1969), em termos bastante sucintos, Serguei Pankejeff, com a idade de três anos foi estimulado sexualmente por sua irmã, ao manusear seu pênis. Por inveja de sua desinibição (dela), não participou do jogo erótico infantil. Procurou, então, impressionar sua ama, exibindo-se e se masturbando diante dela. Ela teria dito que a criança, por fazer isso, ficava com uma ferida nesse local. Após reparar sua irmã e uma amiguinha ao urinar, percebeu que existem pessoas sem pênis. Com isto, preocupou-se com a possibilidade de castração. Apavorado, começou a fazer crueldades com 10
.Apesar de partilharmos da crítica de Duarte (1994) quanto ao uso que a Antropologia Médica (mormente de cepa norte-americana) faz da expressão psicossocial no estudo das relações corpo-mente para superar a brecha entre o registro psicológico-individual e o das relações sócio-culturais, optamos por manter tal expressão, pois, no caso, trata-se de sustentar a hipótese da metáfora poder operar esta articulação. Cf. DUARTE, L.F.D. 1994 "A outra saúde: mental, psicossocial, físico-moral?" em ALVES, P.C. & MINAYO, M.C.S. (orgs.). 1994. Saúde e Doença. Um Olhar Antropológico. Rio de Janeiro. Ed. Fiocruz, pp. 83-90.
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borboletas e a torturar-se com terríveis fantasias masturbatórias de espancamento, mas, ao mesmo tempo, excitantes. Escolheu seu pai para lhe infligir castigos corporais, mediante gritarias e "malcriações". Ao redor dos quatro anos, teve o notório sonho no qual estava em sua cama, à noite. Inesperadamente, a janela se abriu sozinha e apareceram seis ou sete lobos brancos sentados nos galhos de uma nogueira. Angustiado pela possibilidade de ser devorado pelos lobos, gritou e acordou, sendo confortado por sua ama. Desde então, até chegar aos doze anos, manifestou medo de ver em seus sonho algo terrível. Seis meses depois, irrompeu uma neurose de angústia acompanhada de fobia animal. Ele tentava lançar mão de expedientes obsessivo-compulsivos de conotação religiosa para lidar com seus sintomas. Tinha acessos de raiva e sofria os efeitos de desejos homossexuais. Segundo Freud, as causas desta situação aflitiva foram esclarecidas paulatinamente com a análise do sonho. O homem dos lobos associou-o: 1)ao terror provocado pela figura de um lobo num conto de fadas que sua irmã se comprazia em exibí-la; 2)aos carneiros da fazenda de seu pai, mortos numa epizootia; 3)à história contada pelo avô sobre um lobo cuja cauda foi cortada; 4)à história do Chapeuzinho Vermelho. Mediante diversas interpretações, Freud procura estabelecer nexos entre conteúdos do sonho e elementos de sua teoria, onde se destaca, entre outros, o conceito de "cena primária"11. Em aguda crítica à interpretação freudiana do sonho, Deleuze e Guattari (1995) mostram como Freud reduziu os vários lobos (seis ou sete) a um só lobo edipianizado - para referir-se ao pai de Serguei. A função deste processo era indicar algo fundamental para a legitimação da teoria freudiana do conflito psíquico: representar a importância da figura paterna e do coito parental na gênese e no desencadear da neurose do jovem russo. A atenção de Freud não estava dirigida para a multiplicidade dos fenômenos
11
.Em termos freudianos, "cena primária" (Urszene) originalmente dizia respeito à possibilidade de sedução dos filhos pelos pais. Posteriormente, assumiu o sentido da representação infantil da relação sexual dos pais (tenha sido presenciada ou fantasiada). Nesta perspectiva, virá a participar da constituição da metáfora primordial, responsável pelo advento da subjetividade.
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"coletivos", seja sob a forma de massa (grande quantidade de elementos, operáveis mediante sua divisibilidade, definidos em termos hierárquicos e territoriais, emissores de signos estáveis - índices), seja sob a idéia de matilha (restrição do número de componentes, passíveis de metamorfoses qualitativas conforme as operações que sofram - produção de novas propriedades, desvinculados de definições geográficas e hierárquicas fixas, produtores de signos desterritorializados - símbolos) (Deleuze e Guattari, 1995). Em 1914, Freud reiterava a função dos processos inconscientes nos conflitos neuróticos. Neste sentido, a análise freudiana do sonho dos lobos (ainda que "reducionista") mostrava como tais conflitos ligavam-se às fantasias inconscientes [metáforas lupinas?]. Mas, além disto, mesclavam aspectos ancorados sócio-culturalmente [mitos?] com possíveis configurações disposicionais mentais neurofisiologicamente definidas [arquétipos?]. Para melhor desenvolver estas proposições, é preciso introduzir idéias contidas no importante ensaio de Carlo Ginzburg (1989) intitulado "Freud, o Homem dos Lobos e os Lobisomens". Nele, o historiador italiano estuda mitos do folclore de distintas partes da Europa (incluindo regiões bálticas, eslavas, húngaras e dálmatas) originários entre os séculos XVI E XVIII. A partir de certas crenças, estabeleciam-se nexos, digamos, "epidemiológicos" entre determinados atributos encontrados nas crianças - nascidas com dentes e/ou nos doze dias entre o Natal e o dia de Reis (Epifania) e/ou com coifa12 e "agravos" como a licantropia, ou seja, a possibilidade de tornarem-se lobisomens. Serguei Constantinovitch Pankejeff era de origem russa, havia nascido no dia de Natal com a coifa13...(Ginzburg, 1989) Ginzburg sugere que, a partir de supostas influências culturais transmitidas por diversas vias - a ama (descrita como "supersticiosa"), a governanta inglesa, parentes, pais e mestres, o menino não teve como escapar totalmente a seu "fado". Ao invés de transformar-se em lobisomem, tornou-se um neurótico grave, fronteiriço com a psicose (Ginzburg, 1989).
12
.Tecido membranoso que pode revestir a cabeça do bebê ao nascer. Popularmente costuma-se utilizar a expressão "pelica". Neste caso, diz-se que o bebê nasceu "empelicado". 13 .A propósito, Freud também nasceu envolto com a coifa. (cf. Ginzburg, 1989. op. cit.).
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Além disto, conforme o relato freudiano, o Homem dos Lobos sofria de atormentantes distúrbios intestinais desde criança. Nesta fase, sob a forma de incontinência (encoprese), na vida adulta, como obstipação severa, considerada funcional ou mesmo determinada psiquicamente por um clínico ao qual Freud o encaminhou (Freud, 1969). Esta longa, porém necessária, incursão "histórico-psicanalítica" serve para ilustrar a relevância das possíveis
redes
interativas
entre
representações
coletivas,
individuais
e
manifestações
mentais/psicossomáticas. A prática metafórica nos discursos da clínica médica. A Biomedicina faz uso de expedientes retóricos em suas práticas, por exemplo, a partir do próprio uso de medicamentos, que podem estar impregnados de aspectos simbólicos, em geral, e metafóricos/metonímicos, em particular (van der Geest & Whyte, 1989). Reconhece-se, também a relevância das construções metafóricas nas negociações referentes ao uso de drogas antipsicóticas (Rhodes, 1984). Outro exemplo diz respeito ao emprego de práticas persuasivas nos contextos clínicos. Daí se origina o conceito de "enredamento" (emplotment) terapêutico. Trata-se do uso de narrativas desenvolvidas por profissionais de saúde que, em situações de tratamento de pacientes, procuram ativamente modelar eventos terapêuticos de modo organizado sob a forma de enredos, tramas. Em outras palavras, consiste em propor uma ordenação de uma situação qualquer em partes que pertencem a um todo temporal maior. Tal configuração visa dar sentido (e aceitação) a ações médicas e proporcionar suportes simbólicos aos doentes no decorrer de um processo terapêutico (Mattingly, 1994). É preciso ter em mente, neste caso, as formas de "atribuição causal" desenvolvidas por pacientes para explicarem as "razões" responsáveis pelo seu adoecimento e pelo curso de suas enfermidades. Isto relaciona tanto aspectos biomédicos como idiossincráticos e, frequentemente, envolve mecanismos culpabilizadores (de si próprio ou de outrém). Os achados destas pesquisas indicam haver um padrão
103
de diferenças significativas entre os processos de atribuição causal entre pacientes de câncer e de doença coronariana (ten Kroode et al, 1989). Portanto, as tramas terapêuticas visam a interferência nestes níveis narrativos de modo a propiciarem condições para a participação ativa dos pacientes nos seus processos de tratamento. As narrativas individuais se constituem em modos de lidar com a experência vivida em busca de identidade pessoal. Apesar das dificuldades e problemas de definição do conceito identidade. Podemos considerá-la (precariamente) como a resultante complexa de processos biológicos, psicológicos e culturais visando à construção/manutenção/transformação da noção (o mais estável possível naquele momento) de um "eu/si mesmo", mediante estratégias narrativas de caráter, em grande parte, simbólico/metafórico. Estas construções são essenciais para prover sentido para a vida das pessoas. Emergem das interações entre indivíduo e seu entorno e consistem em um processo aberto e contínuo em que cada um se define o que se é (Mathieson & Stam, 1995). Uma tentativa de sumarizar estes aspectos foi proposta por Kirmayer (1994) ao introduzir distintas idéias de "verdade" no contexto terapêutico: é possível conceber "verdades" retrospectivas - histórica e narrativa; e prospectivas - científica e prescritiva. De modo resumido, a "verdade histórica" trata da reconstrução e atribuição de significado de acontecimentos passados para explicar a situação atual em termos de causas, contextos, evolução. A "verdade narrativa" refere-se à construção de explicações a partir da experiência presente e das dimensões subjetivas dos indivíduos. A "verdade científica" se baseia em pressupostos e procedimentos bem demarcados em termos de validação em busca, principalmente, de preditibilidade e controle. Por fim, a "verdade prescritiva" dirige-se à possibilidade de indução das pessoas a atuarem de modo a confirmar predições (Kirmayer, 1994). Como é perceptível, na situação clínica, nem sempre é possível estabelecer exatamente os limites de cada uma. Mas, importa notar a produção e o papel das diferentes "verdades" neste contexto. É preciso enfatizar que, apesar de se orientar explicitamente por verdades ditas científicas, a prática clínica é obrigada, em sua operação, a evitar tanto aspectos contextuais dos pacientes (históricos)
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como "verdades" carreadas pelo "imaginário" dos indivíduos. No entanto, é perceptível o emprego (inadvertidamente ou não) de expedientes retóricos implícitos em sua "faceta" prescritiva. Como ilustração, um interessante estudo sobre enredos terapêuticos em tratamentos oncológicos realizado por del Vecchio Good et al (1994). Conforme tais autores, oncologistas procuram intencionalmente propor horizontes temporais para seus pacientes com vistas a criar nestes, esperança e vontade de superar as dificuldades. Isto é feito através de tramas que envolvem narrativas e ações terapêuticas. Tais tramas e a estruturação de narrativas diferem conforme os contextos biomédicos em que são desenvolvidas, (por exemplo, variam entre países como os EUA e o Japão). Além disto, os enredos médicos possuem diversas tramas terapêuticas paralelas, construídas de acordo com a platéia às quais se dirigem: colegas médicos, pacientes, família de pacientes, amigos etc. Conforme tais circunstâncias, os enredos da enfermidade adquirem noções distintas de tempo narrativo. As tramas podem, por exemplo fazer uso de metáforas relativas à manutenção doméstica diária mescladas com idéias relacionadas a fases, luta e progresso ("para subir uma montanha, é preciso dar o primeiro passo..."). Assim, tenta-se persuadir o paciente a iniciar um longo e desagradável tratamento (Good et al, 1994). Enfim, as falas do dito "saber médico" tem o poder de participar das narrativas pessoais nos casos de câncer (ou outras moléstias). Tais narrativas são consideradas fundamentais nos processos de "renegociação da identidade" nestes pacientes, que são obrigados a lidar, além das manifestações patológicas impostas pela moléstia, com o estigma da doença e os traumáticos contatos com a medicina institucionalizada (Mathieson & Stam, 1995). Em outras palavras, é preciso levar em conta os aspectos transferenciais/psicológicos envolvidos na relação terapeuta - paciente de modo a torná-la componente do tratamento através de elementos narrativos. Pode-se afirmar que, mesmo implícita, há uma dimensão "psicoterápica" nas interações clínicas, que pode ser explorada de modo favorável ou não. Neste sentido, é importante estar atento
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não só aos componentes retóricos do discurso do paciente, como do próprio discurso terapêutico. Expedientes linguísticos, como metáforas e outras formas de linguagem figurada podem desempenhar um papel relevante nestes enredos-chave (por exemplo, "vitória e "renascimento" diante de desafios) ao combinarem-se para formarem (re)ordenações da noção de "si-mesmo" em busca de outra configuração de integridade nos relatos de adoecimento, de tratamento e de recuperação (Hydén, 1995). Metáfora e Imunologia Sob o ponto de vista da participação das metáforas na produção de teorias na Biomedicina, uma das áreas onde reconhecidamente estas assumem papel de relevo é a Imunobiologia. Neste caso, destacam-se aquelas de conotação bélica. Temos, então, idéias de defesa, resistência diante de elementos reconhecidos como inimigos (corpos estranhos) que procuram destruir nossos componentes, senão a nós próprios. Mais, ainda, o sistema imune (SI) é encarado como se consistisse em Estado policialesco (Martin, 1990) que dispusesse de uma inteligência intencional com a finalidade de nos proteger. Além disto, deve possuir (imuno)competência para levar a efeito tal estratégia. Estas noções constituem as premissas básicas predominantes na Imunologia atual: 1.O SI atua como um sistema de defesa do organismo; 2.O SI é capaz de produzir respostas específicas; 3.O SI possui uma "memória" imunológica; 4.Tal "memória" pode ser gerada por vias artificiais (vacinas). Estas premissas sustentam os objetivos essenciais de: 1.Explicar os processos de reconhecimento imunológico específico (self-nonself); 2.Elaborar novas vacinas e modalidades de tratamento imunológico específico (Vaz e Faria, 1993). Os conceitos fundamentadores desta concepção pertencem à teoria da Seleção Clonal. Em linhas gerais: clones linfocitários produzidos aleatoriamente (desconexos entre si) reagiriam, inicialmente, com autocomponentes e seriam desintegrados. Alguns clones sobreviveriam e iriam fazer parte do sistema
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imune. Na contingência de encontrar com antígenos correspondentes, se ampliariam e gerariam anticorpos14. Desta forma, "Na teoria clonal, o sistema imune reconhece o desconhecido, enquanto desconhece o próprio corpo. Não existe exatamente a discriminação entre o que é próprio e o que é estranho, porque o próprio, isto é o corpo, jamais chega a ser conhecido em condições fisiológicas, exceto durante a indução da tolerância aos autocomponentes. Existe apenas o reforço de uma reatividade fragmentada contra detalhes igualmente fragmentados do ambiente (...)" (Vaz e Faria, 1993:40).
A teoria da Rede Idiotípica se constitui em outra concepção para o Sistema Imune que parece explicar melhor problemas que a teoria da Seleção Clonal não resolve satisfatoriamente. Por exemplo: a tolerância adquirida por animais adultos a elementos de sua alimentação e a circunstância da grávida não rejeitar seu concepto (Vaz e Faria, 1993). Esta teoria propõe que os anticorpos são capazes de reagirem uns com os outros (antianticorpos), de modo a gerarem uma conectividade interna (uma rede complexa). Então, os linfócitos adquirem uma dimensão sistêmica, ao se tornarem um conjunto global interativo. Apesar das críticas que enfatizam seu caráter estruturalista chomskiano (Haraway, 1991), tal concepção supera a idéia de separação selfnonself e, desta forma, o sistema imune disporia de uma organização que seria sustentada através da conexão de seus componentes. Então, é possível conceber que a função do SI não consiste em defender o self de agressões de "fora", mas a de estabelecer a identidade do organismo, resultante de especificações interativas. Deste modo, a atividade do SI seria melhor traduzida por uma metáfora de cognição (acompanhada pela idéia de rede) do que a partir da concepção defensiva (Varela, 1989). Isto ocorreria devido ao fato do antígeno não definir nem instruir a resposta imunitária, mas, sim, modulá-la. Assim, o processamento de proteínas que chegassem de "fora" ou das proteínas de "dentro" consistiriam nos mesmos expedientes: seriam degradadas em peptídeos a partir de processos idênticos: "(...) A grande maioria dos peptídeos apresentados a linfócitos deriva do processamento de autocomponentes. Peptídeos derivados de moléculas antigênicas são detalhes diluídos em uma vasta coleção de outras substâncias envolvidas nas interações moleculares importantes na adesão celular. Antígenos são manipulados pelos trajetos usuais de degradação de substâncias captadas pelas células. Eles não são especificamente reconhecidos como 14
.Maiores detalhes, cf. Vaz e Faria, 1993, op. cit.
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estranhos, são assimilados aos processos gerais do metabolismo celular a despeito de sua estranheza. O processamento consiste, exatamente, em destituir os materiais estranhos de sua estranheza" (Vaz e Faria, 1993: 176).
Estas proposições se coadunam ao fato de animais isolados desde o nascimento do contato com quaisquer materiais antigênicos, criados em ambientes estéreis, com dietas isentas de antígenos mostrarem que o sistema imune estava em operação - mesmo na ausência total de estimulação antigênica. No entanto, a exposição a antígenos muda a quantidade e a qualidade do tecido linfóide (Vaz e Magro, 1992). Varela (1989) sintetiza as proposições predominantes no campo da imunologia: os conceitos são territoriais, com ênfase na idéia de defesa contra invasões externas e mutações internas, baseados na noção de antígeno e em fenômenos específicos, utilizando situações artificiais para ativar o sistema. Por sua vez, propõe: conceitos de adaptação, de integração, com ênfase na estabilidade dos sinais internos, centrados no organismo, na metáfora de rede e em fenômenos de coordenação, procurando mimetizar acontecimentos naturais para ativar o sistema (Varela, 1989). Também merece atenção as interações múltiplas entre distintos agentes no interior (e fora) do organismo humano. Hoje se sabe acerca dos efeitos hipercomplexos das relações entre os sistemas nervoso, endócrino e imunológico, mediante neurotransmissores, neuropeptídeos, prohormônios, parahormônios, hormônios, fatores de crescimento, citocinas e vitaminas produzidas pelo próprio organismo (A, D, K)15 (Vaz e Faria, 1993; Brown, 1994). As resultantes destas interações podem adquirir uma tal singularidade, que é possível postular, por exemplo, a existência de períodos ontogenéticos na biografia de cada um nos quais há momentos de suscetibilidade à inscrição de determinadas configurações dos elementos acima citados. Isto seria passível de ocorrer de tal modo que, por exemplo, poderíamos ter instantes críticos nos quais a 15
.Há discussões acerca das limitações desta taxonomia de mensageiros químicos. Uma alternativa é considerar uma classificação que estabelece uma categoria de neuromoduladores que podem ser: neurotransmissores (monoaminas, indolaminas, catecolaminas) liberados diretamente na fenda sináptica ; neuromoduladores (esteróides, hormônios neuropeptídeos ou peptídeos não-hormonais) atuam fora da fenda sináptica, participando da síntese, armazenamento, liberação e recaptação dos neurotransmissores. Cf. BROWN, R.E. 1994. An Introdution to Neuroendocrinology. Cambridge. Cambridge University Press.
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reatividade à serotonina estaria mais disponível em ser socialmente induzida ou inibida. Uma vez estabelecida tal reatividade, pode atuar de modo autônomo, definindo "disposições de espírito" ou ampliando outros estados mentais já existentes (Freund, 1990). Do ponto de vista neuro-imunológico, segundo Moulin (1991), uma reconhecida imunologista francesa, é possível conceber suas respectivas atividades (em expressiva linguagem metafórica): "O sistema imunitário tem suas fases oníricas e o sistema nervoso tem seus supressores. Todos os dois estimulam e suprimem seus circuitos de modo permanente. Uma regulação imprópria de seus regimes de funcionamento provoca desordens. A imunossupressão pode ser comparada à hipnose; a estimulação antigênica original, ao 'pecado original', pode ser comparada à cena primária (grifos nossos) revivida pelo sujeito em diferentes contextos (...). A resposta imunitária não depende somente, portanto, da natureza do antígeno, mas da história do sujeito (...)" (Moulin, 1991: 376).
Em síntese (mesmo incorrendo no risco de uma simplificação grosseira ou, o que talvez seja pior, de uma obviedade): pode-se dizer que nosso organismo consiste em um sistema altamente dinâmico, constituído por uma rede de interações e modulações recíprocas intra/entre instâncias psico-neuroimuno-endócrinas e circunstâncias psico-sócio-culturais. Uma tentativa preliminar de representá-lo é sugerida por Krieger (1994) ao utilizar uma estrutura fractal que consiste em uma sequência de bifurcações infinitas que assinalam a auto-similaridade nas múltiplas escalas. Desta forma, em cada nível, seria possível incluir determinações pertencentes tanto aos domínios biológicos como culturais (Krieger, 1994). Enfim É preciso pensar que a experiência humana envolve um sentido de abertura, a partir de sua consciência reflexiva, de tal modo que o universo/pluriverso das emoções, sentimentos, pensamentos etc. se torna lugar de produção de significações com efeitos recursivos sobre o próprio corpo, mediado por atos de linguagem (Sivadon & Fernandez-Zoïla, 1988). Para isto, é preciso pensar que a perspectiva definidora e estruturante do humano se dá justamente na linguagem, no fato do ser humano se autogerar ao co-existir em redes recorrentes de ação recíproca entre organismos semelhantes através de conversações - onde se entrecruzam "linguajar" e "emocionar"
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(Maturana, 1993). Alguns autores do campo psiquiátrico já admitem a importância da linguística em seu objeto de estudo. Inclusive, assumem que a linguagem se localiza "na confluência dos aspectos biológicos, psicológicos e sociais do comportamento humano". (Thomas & Fraser, 1994: 585). Sob a ótica do neurobiólogo Francisco Varela et al (1992), a perspectiva mais adequada para pensar o humano seria aquela denominada "enaction", que pode ser (mal) traduzido por enatuação. Trata-se de um neologismo, a partir do verbo inglês "enact", com o significado de "representar" no sentido de "desempenhar um papel", "atuar". A rigor, Varela faz uma crítica aos modelos cognitivistas baseados na idéia de representações mentais a partir de computações simbólicas que se formam a partir de um mundo pré-dado a um observador. Para ele, observador e mundo se co-definem e emergem de modo co-respondente conforme especificações biologicamente definidas (Varela et al 1992). Além disto, como vimos, tal dimensão simbolizadora humana, onde se destaca a capacidade metafórica, participa de tais redes e também dos processos interativos responsáveis pelas condições de saúde, tanto em termos de adoecimento como de cura. Estas proposições são reforçadas pela hipótese de Mark Johnson (1987) segundo a qual os humanos dispõem de estruturas cognitivas muito gerais, denominadas esquemas de imagens cinestésicas. Estes esquemas têm sua origem nas experiências somáticas, podem ser concebidos mediante componentes estruturais, possuem uma lógica básica e têm o poder de se projetar metaforicamente para configurar variadas áreas cognitivas. Um exemplo: o "esquema continente/contido", cujos elementos constituintes seriam as idéias de "interior, limite, exterior", a lógica básica é "dentro ou fora" e as projeções metafóricas podem estruturar configurações da esfera visual (os objetos estão dentro ou fora de nossa visão), das relações interpessoais (se está "dentro" ou "fora" de uma relação), da teoria dos conjuntos (elementos pertencem (dentro) ou não (fora) a determinados conjuntos), entre outras possibilidades (Johnson, 1987). Agora,
sob
o
ponto
de
vista
persuasivas/sugestivas/metafóricas
biomédico,
parecem
não
os
efeitos
merecer
psicoterapêuticos (explicitamente)
das
técnicas
correspondente
110
reconhecimento na prática clínica16. Em geral, a ênfase organicista tende a prevalecer. Caso não ocorra a resolutividade esperada, pode-se encaminhar o "caso" para outras áreas (como a medicina psicossomática ou a psicanálise) encarregadas, em última instância, de lidar com situações que não obtiveram respostas satisfatórias com o modelo biomédico oficial. Corre-se o risco, ainda, do "caso" "cair", inadvertidamente, na seara de outros campos profissionais (mal) ditos "alternativos"17... Os aspectos sinalizadores das crises do modelo médico ocidental evidentemente não passam despercebidos, especialmente nas discussões acerca da formação médica e respectivas formas de treinamento nos E.U.A. e no Canadá. Neste sentido, há sugestões de incluir nos currículos destas escolas de medicina, opções disciplinares que tragam conteúdos de, por exemplo, sociologia, antropologia, geografia médica, psicologia, economia da saúde, ciência política. Mais do que isto, deve-se criar um "ambiente no qual futuros médicos possam ser expostos a pensamento crítico numa grande amplitude de temas que caracterizam o contexto social e cultural para a prática médica" (MacLeod & MCCullough, 1994: 1367).
Não parece despropositado afirmar que tal proposta traz embutida considerável dose de, na melhor das hipóteses, ingenuidade. Será viável mediante tais procedimentos (em termos de custos, tempo e efetividade) formar médicos tecnicamente capacitados e, além disto, preocupados com as dimensões contextuais e culturais e, tendo-as em conta, intervir de maneira mais "humanizada"? Tudo leva a crer que a formação deste super-profissional vai demandar esforços irrealistas. Isto foi assinalado por Braz (1994) a respeito das questões curriculares que envolvem (somente) o currículo da Psicologia Médica nas Escolas de Medicina como instrumento para "humanizar" a assistência à saúde (Braz, 1994). E, vale salientar, a eficácia em atingir tais intentos não se mostra garantida.
16
.O estatuto das técnicas hipnóticas na Medicina reflete tal problemática, que se origina desde os tempos de Franz Anton Mesmer, no final do século XVII e ainda não parece ter sido bem encaminhada (cf. Chertok & Stengers, 1990. op.cit.). 17 .Não parece negligenciável a difusão e a aceitação popular de movimentos como, por exemplo, aquele denominado Neurolinguística, onde estão presentes procedimentos persuasivos/sugestivos em suas propostas de intervenção.
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Os impasses a respeito da medicina ocidental se tornam mais aguçados ainda em nossa patética realidade da assistência médica cotidiana, onde se evidencia a gritante precariedade da atenção à Saúde. Mesmo assim, é pertinente a discussão sobre os efeitos da denominada medicalização e as formas de lidar com tal quadro. Uma proposta se origina no chamado movimento da saúde holística18 (Lowenberg & Davis, 1994) que abrange variadas e díspares práticas. Não é nosso propósito aprofundar tal questão. Apenas, cabe salientar a ênfase (implícita ou não) que assumem as práticas metafóricas, de um modo geral, nestes contextos. De qualquer maneira, tais práticas deveriam receber outro olhar, de modo a ultrapassarem os domínios específicos das psicoterapias ou das chamadas terapias holísticas ou "alternativas". Deste modo, talvez fosse possível superar o receio de carrearem o estigma de atividades charlatãs, curandeiras, ou "menos rigorosas" sob determinados pontos de vista do que seja "científico". Há evidências da espécie humana ser suscetível a fenômenos chamados sugestivos, mediados por dispositivos "hipnóticos" (veja-se a eficácia da propaganda). Aliás, isto não seria privilégio dos humanos. Há estudos etológicos que apontam essa disponibilidade em outras espécies animais. Em outros termos, acompanhando as psicanálises, os humanos seriam capazes de desenvolver formas mais elaboradas de estabelecer ligações objetais - algo que se denomina "transferência", mas cuja base seria essencialmente etogramática (isto é, pertence ao repertório de condutas e predisposições comportamentais de uma determinada espécie animal) (Dias, 1993). Mesmo assim, lamentavelmente, são perceptíveis as dificuldades do discurso médico em assumir explicitamente o uso de um poderoso método de abordagem do adoecer humano. E, talvez mais grave, dá margem a que contingentes de pessoas se submetam a abordagens persuasivas consideradas inescrupulosas (dentro ou fora da medicina dita oficial...). Mas que, eventualmente, podem proporcionar explicações mais satisfatórias para as demandas simbólicas das pessoas. E, quem sabe,
18
.Uma discussão a respeito dos problemas de definições de categorias um tanto amorfas como "medicalização" e "saúde holística" pode ser vista em Lowenberg & Davis, 1994. op. cit.
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trazer algum conforto, ou mesmo, quem sabe, cura. Pois, equivocadamente ou não, teriam, pelo menos, o mérito de estarem mais atentas para as manifestações metafóricas pertinentes à experiência humana.
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SEIS Buscando metáforas para uma epidemiologia mestiça I: À beira-mar Prelúdio O Sr. Palomar1 é um "homem nervoso que vive num mundo frenético e congestionado (...)" (Calvino, 1994: 8). Ele está de pé em frente ao mar e quer fazer a "leitura de uma onda". Para isto, procura, em sua observação, isolar, separar uma onda das que lhe seguem. Mas, seu intento se mostra bem mais complicado, pois, percebe que: "(...) não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles também complexos a que essa dá ensejo. Tais aspectos variam continuamente, decorrendo daí que cada onda é diferente de outra onda; mas, da mesma maneira é verdade que cada onda é igual a outra onda mesmo quando não imediatamente contígua ou sucessiva; enfim são formas e sequências que se repetem, ainda que distribuídas de modo irregular no espaço e no tempo (...)" (Calvino, 1994: 8).
Então, pensa em uma estratégia: limitar seu campo de observação e estabelecer uma área de 10 metros de água e 10 metros de areia para inventariar os fluxos das ondas que ali ocorrem em um dado período de tempo. Mas, as cristas das ondas que se aproximam bloqueiam sua visão do que sucede mais atrás, obrigando-o a rever sua área de observação. Ainda assim, acredita ser possível alcançar seu objetivo: "(...) observar tudo o que poderia ver de seu ponto de observação", entretanto, "sempre ocorre alguma coisa que não tinha levado em conta (...)" (Calvino, 1994: 9). Por fim, diante de outras dificuldades que não cessam de aparecer, desiste. Mas, imaginemos que se o Sr. Palomar dispusesse de condições para raciocinar epidemiologicamente, suas dificuldades talvez fossem contornadas. Seu objeto de observação seria uma "população" de ondas. Assim, poderia traçar suas correspondentes características, atributos, propriedades e respectivas consequências da exposição a elementos climáticos, meteorológicos ou devidos à ação humana. Mas, para tanto, seria necessário mudar seu ponto de observação. Deveria alçar-se, de preferência munido de instrumentos óticos/fotográficos (ou, então, teleguiá-los) acima das ondas (num balão, por exemplo) e observar determinado "recorte" do litoral. Desta forma, se a distância do solo 1
.Personagem de Italo Calvino. Cf. CALVINO, I. 1994. Palomar. São Paulo. Cia. das Letras.
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fosse suficientemente alta (e não houvesse perturbações - excesso de nuvens, instrumentos descalibrados, instabilidade do balão), as ondas até pareceriam "paradas", permitindo, assim, melhor apreensão do objeto de estudo... O problema talvez fosse "generalizar" os achados para outras praias ou, então, fazer afirmações específicas para determinada onda. Ou, ainda, levar em conta efeitos de inesperadas alterações das correntes marítimas (não é incomum o fato do fenômeno El niño manifestar-se de modos variados em diferentes anos). Mas, aí talvez fosse exigir demais de uma abordagem epidemiológica litorânea...
Mestiçaria2 O título deste capítulo está intencionalmente calcado no soberbo ensaio poético do filósofo francês Michel Serres: Le Tiers-Instruit (1991). Tal expressão, rica em possibilidades de significação, não foi traduzida ao denominá-lo em língua portuguesa. Na edição brasileira, a obra se chama Filosofia Mestiça. Tiers é traduzível por "mestiço", "misturado"; "outro", "estranho"; "terceiro", "terço". TiersInstruit pode significar "mestiço instruído", como indica a tradução para o Português, ou então, "terceiro instruído", como aparece na edição brasileira de outra obra de Serres (1990): "O Contrato Natural". Serres faz, também, um jogo de palavras no qual introduz a crítica ao postulado lógico referente ao "terceiro excluído", em relação ao qual, mediante especial processo de aprendizagem (instrução), seria possível "incluí-lo". Assim, tornar-se-ia viável a ultrapassagem da binariedade limitada da lógica da identidade3, ao permitir o acesso a "outro lugar", "terceiro", "mestiço". Isto não significa que se deva 2
.Utilizo aqui a expressão comunicada pela psicanalista Mariza Hutz. .É importante recordar que a chamada "lógica formal" é constituída por três princípios inseparáveis: 1)Identidade: todo o objeto é idêntico a si mesmo - é impossível o mesmo existir e não existir ao mesmo tempo e com a mesma relação; 2)Contradição: dentre duas proposições contraditórias, onde uma é a negação da outra, uma delas é falsa - é impossível um mesmo atributo pertencer e não pertencer ao mesmo sujeito ao mesmo tempo e com a mesma relação; 3)Terceiro excluído: toda proposição possuidora de significado é falsa ou verdadeira - de duas proposições contraditórias, uma delas deve ser verdadeira (cf. COSTA, N.C.A. 1985 "As Lógicas Não-clássicas". Revirão 3 Revista da Prática Freudiana. Nº 3. pp. 104-110 e MORIN, E. 1991. "O Método IV. As Idéias: A sua Natureza, Vida, Habitat e Organização". Lisboa. Publ. Europa-América). A lógica matemática contemporânea é um desdobramento da lógica formal e se baseia sobretudo nos Principia Mathematica de Russell e Whitehead (1913) - que viam a matemática como um ramo da lógica. Mas, há desenvolvimentos de outras lógicas, por exemplo: as infralógicas, as para-consistentes. Em ambas, as formações, conceitos e noções mentais se encadeiam de tal modo que a "exatidão" 3
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abandonar tal lógica, mas, deve-se dimensionar as características de fechamento/abertura do problema em estudo4 e verificar se procede seu emprêgo. Na obra de Serres é abordada a insistência dos saberes ocidentais em atingir, a partir da lógica conjuntista/identitária, a uma razão purificada, na procura do conhecimento perfeito - inalcançável, diga-se de passagem. Porém, tal priorização resultou no fato dos afastamentos desta coerência serem encarados como deslocamentos para fora da razão, do mundo, da realidade. A rigor, o motor desta busca não se prende a priori ao propósito de conhecer, mas, sim, ao impulso de controlar e, por extensão, de dominar. A lógica identitária não se dispõe à compreensão do complexo e da vida, mas à inteligibilidade pragmática. "(...) Corresponde às nossas necessidades práticas de ultrapassar o incerto e o ambíguo, para produzir um diagnóstico claro, preciso, sem equívoco, Ela corresponde, mesmo à custa de alterar a natureza dos problemas, às nossas necessidades fundamentais de separar o verdadeiro do falso, de opor a afirmação à negação. A sua inteligibilidade repele a confusão e o caos. Por isso, esta lógica é praticamente e intelectualmente necessária. Mas ela fraqueja justamente quando a complexidade só pode ser apagada à custa de uma mutilação do conhecimento ou do pensamento. De fato, a lógica dedutiva-identitária corresponde, não às nossas necessidades de compreensão, mas, às nossas necessidades instrumentais e manipuladoras, quer se trate da manipulação dos conceitos, quer da manipulação dos objetos (..)" (Morin, 1991: 168-69).
de um elemento carreia a pressuposição de exatidão para os seguintes. Tais processos de conexões na consciência podem ser considerados "falsos", à luz do raciocínio lógico formal. Mas, servem para ligar determinados conceitos uns aos outros, propiciando uma suposição de verdade, limitada, com certeza, porém, operativa (Moles, 1995, op.cit.). Tais lógicas operam com uma semântica diferente, de modo que, nestas circunstâncias, a idéia de negação se distingue da negação clássica. Por exemplo, a denegação em um contexto psicanalítico pode se configurar como sendo uma negação paraconsistente (cf. COSTA, N.C.A. 1985. "Psicanálise e Lógica". Revirão 3 - Revista da Prática Freudiana. Nº 3. pp. 74-93 e COSTA, N.C.A. 1993. Lógica Indutiva e Probabilidade. São Paulo. Hucitec/Edusp). Em termos matemáticos, a negação do postulado do terço excluso aparece nos trabalhos de Brouwer e seu discípulo Heyting sobre a lógica intuicionista. Nela, os critérios de verdade, de negação e de existência (em relação a proposições matemáticas) são distintos dos critérios das demais lógicas bivalentes (verdadeiro/falso). Neste sentido, teríamos lógicas trivalentes (verdadeiro/nem verdadeiro, nem falso/falso) (cf. FERRATER M., J. 1986, op. cit. e PAGELS, H. 1988. Os Sonhos da Razão. Lisboa. Gradiva ). Nesta ótica, o princípio do terço excluso valeria para os casos bem delimitáveis - tal ser vivo é animal ou vegetal. Mas há situações onde esta clareza não é possível: há espécies que não permitem a classificação zoológica ou botânica (cf. Morin, 1991, op. cit.). Segundo o psicanalista Célio Garcia, recentemente, o matemático francês Rene Guitart propôs uma lógica - que chamou "especular" - para incluir a noção de "ambiguidade" no objeto matemático e levar em conta, além dos enumciados, o enunciador. Cf. GARCIA, C. 1995. Comunicação Pessoal. 4 .As condições de fechamento de um sistema dependem de duas premissas. Para que os mecanismos operem de modo consistente, não deve haver variação intrínseca na qualidade do objeto com papel causal. Para que os resultados sejam regulares, deve ser constante a relação entre os mecanismos causais e os mecanismos extrínseco dos fatores intervenientes à operação ou aos efeitos (cf. SANTOS, B.S. 1989. Introdução a uma Ciência PósModerna. Rio de Janeiro. Ed. Graal, pp. 92).
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Pode-se cogitar que a primazia da lógica identitária e da razão nos assuntos humanos possa estar relacionada à nossa pulsão de estabelecer nexos e explicações racionais ao caos circundante. Como um modo de sustentar identidades e estabilizar relações no propósito de conhecer um universo que, a rigor, só permite interpretações que surgem de nossa finita capacidade de compreensão e de produzir representações5. Por mais que as ciências, em geral, se esforcem em sustentar seu projeto de manipulação/controle, e, que, para tanto, requeiram um rigoroso "controle de qualidade" em sua proposta de precisão, ou seja, evitar distorções, eliminar impurezas, impedir "contaminações" (Serres, 1993), as insuficiências se insinuam aqui e ali, de formas mais ou menos explícitas. Ou seja, é evidente na ideologia científica o primado da precisão. Como se bastasse "medir para dominar, conhecer para fazer e explicar para comprender, sofrendo dentro desta conquista de um conhecimento - que é incontestável - a miragem da precisão" (Moles, 1995: 23). Talvez a força da ciência se baseie justamente na renúncia a viver entre as coisas do mundo da vida e optar por manipulá-las. Mas, isto resulta em sua fraqueza, pois distancia o cientista de seus produtos e das correspondentes repercussões no mundo. Se tal problemática não apresentava maiores problemas até pouco tempo atrás, nos dias de hoje, diante dos dilemas gerados pelas biotecnociências, esta situação vai se tornando insustentável. É flagrante o fato de não haver soluções únicas nem plenamente satisfatórias, onde somos obrigados a lidar com ganhos e perdas simultâneas de difícil avaliação. É preciso avaliar os efeitos da exclusão do mundo da vida (como se referem os fenomenologistas) subjacente aos empreendimentos científicos. E, sob esta ótica, em termos mais específicos, como considerar a noção de experiência humana, tal como Varela et al (1992) enunciam em relação às
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.Uma sugestiva explicação a este respeito foi formulada por Samaja (1994). Para este autor, a supremacia da lógica conjuntista está ligada aos efeitos de práticas sociais universais que se fundamentaram em processos de "desacoplamento do mundo da vida comunitária" como requisito para o aparecimento da relações societais que especificam a sociedade civil. Em outros termos, o representante pragmático de tal lógica é o Mercado, constituído por um conjunto de indivíduos que mantém relações externas (quantificáveis) entre si, a partir de uma "práxis contratualista interindividual" (Samaja, 1995. op. cit.).
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ciências cognitivas. Isto é, em síntese, o fato de nossa mente apresentar-se constantemente ocupada por "turbilhões" imprecisos que mesclam idéias, pensamentos, afetos, sentimentos, emoções, teorias, opiniões, preconceitos, etc.. E, além disto, por juízos sobre os elementos anteriores e por juízos acerca destes juízos... (Varela et al, 1992). Neste sentido, vale salientar que tanto analogias quanto metáforas funcionam como (utilizando uma metáfora) ferramentas para lidar com a experiência (Kirmayer, 1992) seja na dimensão auto-referida, seja com tudo que nos cerca. Assim, permitem, sobretudo, a compreensão do presente, do momento que se está vivendo (Maffesoli, 1988), em termos não somente relativos à linguagem, mas, também ao pensamento e à ação. No entanto, no campo científico contemporâneo, em geral, e no terreno das biociências, em particular (além das disciplinas cognitivistas), são perceptíveis incompatibilidades entre ciência e experiência humana. "No mundo atual, a ciência é tão dominante que lhe outorgamos autoridade para explicar ainda que negue o mais imediato e direto: nossa experiência cotidiana e imediata" (Varela et al, 1992).
Do ponto de vista da Saúde, não se podem negligenciar as repercussões da chamada experiência humana nos processos de adoecimento (e cura). Neste sentido, este trabalho analisa a epidemiologia como uma disciplina que procura explicar os padrões nosográficos populacionais, em termos de associações entre exposições-doenças (Wing, 1994), a partir da lógica da identidade, operando, em grande medida, com instrumental estatístico. Para isto, é preciso partir de premissas como: - resultados obtidos a partir de amostras (medidas de tendência central e de dispersão) seriam elementos pertinentes ao indivíduo [quando, a rigor, são inerentes às amostras (Samaja, 1995)]; comportamentos individuais variam ao redor de tipos considerados "médios" ou "normais", de modo que os tratamentos estatísticos possam isolá-los e definí-los; - relações de dose-resposta, essenciais
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para o estabelecimento de nexos causais entre associações estatísticas, costumam ser fenômenos delimitados, homogêneos e independentes (Wing, 1994)6. Eventualmente, acatar tais premissas não chega a invalidar diversificados programas de pesquisa. Porém, se torna insatisfatório em situações nas quais o contexto é hipercomplexo, onde as variáveis interatuam entre si de modo não linear e os fatos, por exemplo, são entendidos como históricos (Granger, 1994). Importa, ainda, destacar a contingência da epidemiologia, em nome do rigor quantitativo, abrir mão de abordar a variedade dos modos das pessoas levarem a vida. Este aspecto foi assinalado por uma antropóloga americana com larga experiência em estudar os significados leigos de doenças infecciosas no Nordeste brasileiro (Nations, 1986). Em outras palavras, a epidemiologia necessita justificar-se em termos de sua eficácia no mundo da vida, isto é, relativa a problemas práticos, referidos às necessidades humanas em seus comportamentos cotidianos (comer, beber, relacionar-se sexualmente etc.) (Barata, 1995). Seja na vertente predominante, dita "moderna", que tende a enfocar o mundo sob o ponto de vista da naturalização7. Seja na proposta denominada "crítica", que se dirige a estudar o adoecimento sob a ótica da socialização, isto é, dos processos sócio-político-econômicos relacionados à hegemonia de grupos e dos respectivos conflitos de poder no interior dos modelos capitalistas neoliberais.
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.A epidemiologia considera como situações particulares aquelas onde ocorrem sinergias e modificações de efeito. Na verdade, trata estes fenômenos como uma sub-classe das associações universais. Cf. WING, S. 1994. "Limits of Epidemiology". Medicine and Global Survival. Vol 1 nº 2, pp. 74-86. 7 . As limitações da epidemiologia em deslindar (com graus satisfatórios de certeza) aos nexos entre possíveis fatores de risco e doenças já começam a serem expressas pelos próprios epidemiologistas anglo-saxônicos. Isto ocorre a tal ponto, que revistas médico-científicas começam a estabelecer regras para admitir a relevância do trabalho e publicação de seus achados. Por exemplo: patamares de risco relativo com valores superiores a três ou quatro para relações entre exposição-doença. Além disto, criticam a divulgação indiscriminado que os meios de comunicação de massa fazem dos resultados ainda não-conclusivos de pesquisas, criando alarme para o público. Os jornalistas, por sua vez, admitem que isto é, em parte, verdadeiro. Mas, há situações em que há responsabilidade direta dos pesquisadores no afã de divulgar seus trabalhos (via press releases de instituições de pesquisa, por exemplo). Cf. TAUBES, G. 1995. "Epidemiology Faces its Limits". Science. Vol. 269 14 July 1995, pp. 164-169.
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Apesar de não pertencerem ao consagrado terreno epidemiológico, cabe, ainda, incluir as abordagens do campo da antropologia da saúde que se voltam, entre outros aspectos, às análises discursivas e das representações sociais relativas ao adoecer humano. Na verdade, diante da proliferação de objetos híbridos, como enuncia Latour (1994) (voltaremos a este ponto), cada um destes níveis de análise se mostra insuficiente per se para abarcar as questões de saúde contemporâneas. Em geral, os textos epidemiológicos básicos, não costumam enfatizar o papel da metáfora e da analogia no raciocínio da disciplina. Pelo contrário, chegam, às vezes até a omití-lo. Um epidemiologista italiano, porém, em um um texto sobre modelos de risco, Paolo Vineis (1990), ressalta a importância destas estruturas linguísticas no interior da epidemiologia. Para ele, seria um dos meios de trabalhar os limites da linguagem disponível de modo a abordar situações nas quais os conceitos e operadores (produzidos a partir dela) não se mostram suficientes para lidar com facetas obscuras das relações causais relativas a fenômenos complexos. Em suma, onde a lógica identitária fraqueja, analogias/metáforas podem suprir esta limitaçào (Vineis, 1990). Aqui, discute-se o papel e a função das elaborações metafóricas (consideradas por alguns autores como "impurezas" nos discursos da ciência) em determinados níveis do campo científico, em geral, e do epidemiológico, em particular. Trata-se de delimitar o papel epistemológico destes tropos, situar elaborações metafóricas no interior da própria epidemiologia e, sob esta ótica, cogitar outras vias conceituais capazes de proporcionar agenciamentos investigativos mais efetivos para estudar o adoecer humano. Metáfora e Produção de Conhecimento Em primeiro lugar, é preciso mencionar que tais figuras de linguagem costumam ser vinculadas ao discurso do senso comum. Mesmo no âmbito filosófico, há controvérsias que remontam à Antiguidade em relação ao seu emprego. Veja-se, por exemplo, a frequência com que Platão fazia uso da linguagem figurada, diferentemente de Aristóteles, que chegou, inclusive a desenvolver uma das primeiras teorias
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sobre a natureza da metáfora (Ferrater M., 1986). Não é à-toa que são também chamadas figuras de retórica8 no sentido mesmo de "arte da eloquência" com vistas à argumentação persuasiva, "própria" ao confuso mundo dos desejos e paixões humanas, inadequada à "objetividade" científica. Uma das premissas ideológicas do paradigma da ciência moderna (e da epidemiologia moderna), chamada cientismo, sustenta que, além da primazia da sua proposta de conhecimento, "os fatos falam por si e (...) os métodos só são científicos se puderem ser utilizados impessoalmente" (Santos, 1989: 102). O paradigma da ciência moderna, em sua busca de objetividade e rigor técnico (onde a subjetividade surge como algo perturbador da ordem e bons costumes metodológicos e, portanto, precisa ser controlada) gera um discurso destituído de figuras de retórica, literariamente pobre, sem encanto. E, pior, deslocado dos discursos que percorrem a sociedade (Santos, 1989) (mal) ditos como pertencentes ao senso comum e vulgar. Mesmo assim, filósofos como Bachelard encaram o emprego de imagens, analogias e metáforas como desvios impeditivos ao acesso do conhecimento objetivo (Bachelard, 1972), apesar dele mesmo fazer uso delas em seus escritos9. Enfim, "Se as ciências desconfiaram oficialmente da analogia, também a praticaram clandestinamente. Muitos cientistas utilizaram o raciocínio por analogias para construir tipologias, elaborar homologias, e até induzir leis gerais (...). Há até grandes deslocações teóricas que se efetuaram por analogia (..)" (Morin, 1987: 136).
Nesta linha de raciocínio, de acordo com Rorty (1991), para a maioria dos intelectuais contemporâneos, as questões relativas aos modos de dar sentido à vida e mesmo à comunidade, pertencem ao âmbito da política e/ou da arte. Mais do que aos domínios da religião, da filosofia ou da ciência. Isto teria levado a uma cisão dentro da filosofia: teríamos filósofos que permanecem vinculados à ótica da ciência como paradigma da atividade humana, e postulam a idéia de descobrimento da "verdade" como resultante da ciência natural, e não como seu produto (neste caso, "produto" seria uma expressão metafórica errônea). Outros filósofos, por outro lado, encarariam a ciência como
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.Uma relevante discussão sobre a retórica na ciência pode ser encontrada em SANTOS, B.S. 1989. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Rio de Janeiro. Ed. Graal, pp. 98 e segs. 9 .Vide diversas passagens em BACHELARD, G. 1968. O Novo Espírito Científico. Rio de Janeiro. Ed. Tempo Brasileiro.
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subordinada à tecnologia, não sendo portadora de nenhuma mensagem moral ou espiritual. Desta forma, "Enquanto, os filósofos da primeira espécie contrapõem 'o rigoroso fato científico' ao 'subjetivo' ou à 'metáfora', os de segunda espécie, vêem a ciência como uma atividade humana a mais, e não como o lugar no qual os seres humanos se deparam com uma realidade 'rigorosa', não humana" (Rorty, 1991: 24).
O uso das metáforas na ciência, em função de suas possibilidades inventivas e inovadoras, tem sido recuperado por respeitáveis autores, originários de domínios tanto das ciências físicas como das ciências sociais 10. A este respeito, Samaja destaca a importância da abdução (desenvolvida por C.S. Peirce), que, mediante analogias e metáforas, funciona como método alternativo à indução e dedução como proposição lógica de investigação11 (Samaja, 1993). Numa perspectiva similar, é importante destacar as idéias da corrente epistemológica conhecida por realismo, onde: "as teorias (...) desenvolvem-se por analogia a partir de compreensões já estabelecidas. Os discursos científicos e seus campos conceituais (...) crescem por meio de uma extensão metafórica (ou metonímica) na construção dos conceitos (...)" (Almeida-Filho, 1993: 18).
Experimentos baseados na psicologia cognitiva geraram a hipótese do raciocínio humano cotidiano fazer uso reduzido da lógica formal. É possível que as pessoas construam modelos mentais das circunstâncias vividas ou dos objetos que se apresentam como alvos de suas elaborações psíquicas e a partir destas produções imaginárias explorem as vicissitudes envolvidas (Lévy, 1993). É preciso destacar a existência de uma conexão entre métodos qualitativos e aceitação da relevância da linguagem metafórica, diferentemente do que costuma ocorrer nas disciplinas eminentemente 1
1.Respectivamente, por exemplo: BOHM, D. & PEAT, F.D. 1989. Ciência, Ordem e Criatividade. Lisboa. Gradiva. e BATESON, G. 1987. Natureza e Espírito. Lisboa. Ed. D. Quixote. Arthur Koestler, na conferência de abertura da "PEN Worldwide Association of Writers" (1976) onde discutia as relações de afinidade entre a poesia, a pintura e a ciência, falou do termo "bissociação" criado por ele para identificar "um repentino salto da imaginação criativa que conecta duas idéias, observações, quadros de percepção ou 'universos de discurso', até então, desvinculados, em uma nova síntese". Neste sentido, destacou o papel da metáfora na descoberta científica e comentou que a essência de tal processo é perceber uma analogia onde ninguém viu anteriormente...(cf. KOESTLER, A. 1976. "The Vision that links the Poet, the Painter and the Scientist". In The Times August 25, 1976, pp. 27). Um desenvolvimento mais detalhado acerca do uso de metáforas e analogias em métodos de modelização sistêmica pode ser visto em MOLES, A.A. 1995. As Ciências do Impreciso. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, pp. 176 e segs.. 11 .Na mesma linha de raciocínio, o conceito de "retrodução" foi criado para referir-se à "exploração exaustiva de analogias, estabelecendo a posteriori modelos metafóricos e metonímicos" (Almeida-Filho, 1993) que sirvam a abordagem "realista-transcendental" das estruturas científicas (cf. ALMEIDA-FILHO, N. 1993. "Nós, Pós-Kuhnianos Esclarecidos... (Epistemologia, Pragmatismo e Realismo Científico)". (cópia reprográfica).
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quantitativas, como é o caso da epidemiologia (voltaremos a este aspecto). A este respeito é oportuno o comentário de Santos (1989): "(...) Enquanto a quantidade distancia sujeito e objeto e a qualidade os aproxima, a linguagem técnica separa teoria dos fatos e a linguagem metafórica aproxima-os. Os métodos qualitativos tendem a suscitar uma linguagem metafórica e, conjuntamente, produzem um conhecimento científico de perfil diferente daquele que se obtém com métodos quantitativos e linguagem técnica (...)" (Santos, 1989: 116).
A linguagem técnica tem uma função essencial na separação da ciência em relação ao senso comum. Todavia, a linguagem metafórica é fundamental na ultrapassagem tanto da ciência como do senso comum na produção de um saber prático efetivo. É importante averiguar o efeito das pesquisas epidemiológicas e seus resultados em termos de proposições de risco. Ou seja, como são apreendidos os produtos da ciência epidemiológica pela sociedade, caracterizada pelo senso comum (e suas metáforas). Seja no nível particular das interações clínicas, seja através da difusão global de informações através de mensagens e informações leigas e oficiais veiculadas pelos meios de comunicação de massa. A Epidemiologia e suas metáforas Em primeiro lugar, é importante lembrar que a analogia tem um lugar privilegiado nas regras de inferência causal em epidemiologia. Não é à-toa que se constitui em um dos oito critérios apresentados por Bradford Hill (1965) para esta finalidade12. Se partirmos da noção de "peste" e seus derivativos - central à fundação e demarcação da disciplina epidemiológica, percebe-se que ela carreia junto aos significados originários de propagação e contágio, alusões metafóricas de "infelicidade", "destruição", "ruína", "morte" (Teixeira, 1993). Por outro lado, em termos epistêmicos, é considerável a influência das metáforas oriundas, principalmente, da Biologia no campo epidemiológico. Isto se verifica, por exemplo, ao "transformar" o coletivo em um "corpo" social (Ayres, 1994).
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.Mas, há controvérsias quanto a isto. O método da analogia como critério de inferência causal é sumariamente omitido por autores de conhecidos compêndios epidemiológicos. Cf. LILLIENFELD, A.M. ; LILLIENFELD, D.E. 1980. Foundations of Epidemiology. 2nd ed. New York. Oxford University Press e KLEINBAUM, D.G.; KUPPER, L.L.; MORGENSTERN, H. 1982. Epidemiologic Research. Principles and Quantitative Methods. London. Lifetime Learning Publ.
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Em relação à vinculação entre epidemiologia e lógica da identidade, Almeida-Filho (1994) descreve três grandes metáforas referentes à causalidade em Epidemiologia, relativas, a saber: à idéia de evento - enquanto algo demarcado, circunscrito como tal, que se destaca da indistinção; à noção de nexo - no sentido de associação, conexão entre eventos e, também, de atribuição de sentido; à concepção de fluxo - com o significado de deslocamento em relação a determinada unidade cronológica, no interior de uma representação temporal linear (Almeida-Filho, 1994). Apesar de não explicitadas na maioria dos compêndios epidemiológicos, as metáforas causais mais destacadas na epidemiologia anglo-saxônica referem-se, em primeiro lugar, `a idéia unidimensional, linear, das "cadeias" de causação, vigente até os anos sessenta (Macmahon et al, 1960). Até esta época, o objeto primordial de estudo da epidemiologia ainda eram as doenças infecto-contagiosas. Neste caso, a teoria microbiana permitia tal configuração, ao constituir o agente etiológico como o último elo (suficiente) de uma sucessão de situações cuja culminância era o adoecer. A partir da obra seminal de Macmahon, Pugh e Ipsen (1960), foi elaborada a imagem bidimensional (plana) da "teia" causal. Aí, é criticado o modelo anterior por não levar em conta as origens complexas de cada um dos "elos" e pelo modo como as determinações dos diferentes fatores podem se superpor, gerando múltiplas associações, diretas e indiretas - enfim, a multicausalidade. Assim, a "teia" consistiria numa malha de fios, com suas intersecções representando desfechos ou fatores de risco específicos e os próprios fios como os trajetos causais (Krieger, 1994). Esta ainda parece ser a metáfora dominante no campo conceitual da epidemiologia dos fatores de risco. Diante da impossibilidade de estabelecer as configurações relativas aos mecanismos de determinação etiológica, utiliza-se a conhecida metáfora da "caixa negra" (curiosa forma de atingir-se a tridimensionalidade...). Isto é, o desconhecimento dos mecanismos de causação não seria necessário para estabelecer nexos causais entre os "fatores" com seus correspondentes riscos. A propósito, a "epidemiologia da caixa negra" (ou epidemiologia dos fatores de risco) foi foco de um recente debate acerca da validez de seus achados serem dependentes ou não da concordância com estudos de outros campos das biociências (Pearce, 1990; Savitz, 1994; Skrabanek, 1994). A "futilidade" da
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"epidemiologia da caixa negra" foi assinalada por Skrabanek (1994) dando como exemplo a ausência de evidências conclusivas dos estudos sobre os efeitos do consumo de café em relação a diversos riscos de adoecer (doença coronariana, câncer de bexiga, pâncreas, seio, cólon, reto e ovário) ao longo de trinta anos de pesquisa. Em termos mais específicos, aparecem outros usos metafóricos no discurso epidemiológico referente à própria categoria "risco". Considere-se, por exemplo, o fato de não ser costumeiro o emprego das designações "grande/pequeno", "forte/fraco" ou, mesmo, "muito/pouco" para indicar as características do risco, conforme sua quantificação. Na verdade, os adjetivos utilizados nestas circunstâncias estão vinculados à idéia de verticalidade: "alto/baixo risco". Estes se baseiam no conceito metafórico (comum a outros conceitos científicos): "mais é em cima; menos é embaixo", baseado na representação visual dos aspectos quantitativos em questão, sob o ponto de vista de um "empilhamento" (como se apresenta em determinados gráficos)13. Mais relevante ainda é a constituição do conceito de risco como uma metáfora ontológica, ou seja, enquanto entidade detentora de substância 14. Isto é perceptível nos discursos prescritivos/preventivos da Educação em Saúde ao estabelecer as possíveis consequências da exposição aos diversos "fatores", "situações", "comportamentos" ditos de "risco". Ao substanciar-se, o risco pode ser objetivizado, identificado em termos de causas que, por sua vez, podem ser decompostas em partições. Esta operação dá margem a respectivas quantificações e ao eventual estabelecimento de nexos. Assim, o indivíduo, ao se expor a "fatores de risco" (muitas vezes sob um suposto controle racional daquele que se expõe), faz com que o risco, entidade incorpórea, passe a ter a propriedade de se 13
.Este conceito metafórico orientacional foi delineado por Lakoff e Johnson (1980). Os autores esclarecem que sua formulação, tal como apresentada, é limitada, pois não assinala a inseparabilidade das metáforas de suas respectivas bases experienciais. Estas, por sua vez, podem variar, mesmo em outras metáforas relativas à verticalidade. No caso de, por exemplo, "saúde e vida é acima, doença e morte é embaixo", a base experiencial parece ser a posição corporal que acompanha estes estados/condições. Cf. Lakoff e Johnson, 1980. op. cit.. 14 .Pode-se dizer que, de um modo geral, aspectos relativos aos agravos à saúde referidos às populações (epidêmicos ou não) se prestam especialmente a se instituírem como categorias entificadas, detentoras de existência própria, que, por sua vez, são legitimados como conceitos válidos sob o ponto de vista teórico (cf. AYRES, J.R.C.M. 1995. Epidemiologia e Emancipação. São Paulo. Hucitec-Abrasco, pp. 44).
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materializar sob sua forma nociva - que pode ser denominada "agravo" (na verdade, numa operação semântica equivalente a que designa "doença" em sua acepção metafórica ontológica). Só que, neste caso, os riscos "existiriam", por um lado, como potenciais invasores de corpos (corpos estranhos?). Mas, por outro, a ambiência metafórica deste "mundo" virtual e fantasmático dos riscos poderia adquirir visibilidade (e, portanto, concretude) nos resultados de exames laboratoriais indicativos dos graus de exposição a fatores de risco, por exemplo, taxas elevadas
do colesterol (ruim...) ou, mais
modernamente, nas sofisticadas testagens genéticas. Mas, não é necessária a corroboração médico-laboratorial para instituir a "visibilidade" do risco. Basta ser obeso, ou apresentar trejeitos supostamente relacionados ao comportamento homossexual para ser incluído em determinadas categorias de risco (ou, então, neste último caso, mais "propensos" a se envolverem em "situações de risco"). O termo viés (bias), caro à epidemiologia, originalmente um galicismo - biais, com o sentido de obliqüidade, inclinação, significa "desvio dos resultados ou das deduções da verdade ou processos que levem a tal desvio.(...) Não implica necessariamente atribuição de preconceito ou outro fator subjetivo" (Last, 1989: 136) como tendência (intencional), parcialidade, Mas, também pode se, referir, como sabem os conhecedores de confecção de vestuário, a uma tira estreita de pano, costurada ou cortada transversalmente na peça. Ainda, curiosamente, em língua inglesa, se aplica 1) a irregularidades (de forma e/ou distribuição do peso) na bola de boliche, fazendo-a com que se desvie dos pinos; 2) a esse desvio; 3) a força que o causa (Guralnik, 1974: 137). Enfim, o transporte de conceitos de um campo disciplinar para outro costuma ocorrer com alguma frequência. Na epidemiologia, a noção biológica de estresse, originária da física (e mantendo a mesma ambiguidade - pode ser entendida como "estímulo" ou "resposta"15), se constitui em um dos exemplos
1
4.Cf. Castiel, 1994. op. cit.
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mais evidentes desta passagem. No entanto, pode-se dizer que, diante da aceitação e difusão da conotação biológica, seu emprego deixou de ter o caráter metafórico, para tornar-se uma catacrese16. Há recentes tentativas similares - de transportar outros construtos da física com vistas a consagrá-los ("catacrestizá-los"?) no campo da modelística epidemiológica - para estudar a evolução da ocorrência de doenças infecciosas no decorrer do tempo. É o caso do conceito de "percolação", que pode se referir a diversos fenômenos físicos. No caso, se trata de dimensionar a velocidade de passagem de uma substância (líquida ou gasosa) por um sistema de filtragem. Segundo seus autores, este conceito (limiar de percolação) poderia ser usado para avaliar a difusão epidêmica em uma população, conforme suas características de suscetibilidade agregada (dos Santos et al, 1995). Peculiar e original "fusão" de linguagem metafórica e epidemiologia encontrada em uma publicação científica (numa seção sintomaticamente intitulada Second Thoughts) é o poema de Douglas L. Weed (1986) "Epidemiology's Triple Crown". Nele o autor discute, ou melhor, verseja acerca dos três pilares da epidemiologia: ontologia, metodologia e ética, a partir de uma metáfora "turfística" (Weed, 1986)17. Sob um ponto de vista inverso, a própria epidemiologia pode proporcionar metáforas para outros campos. Em um exemplo duplamente pertinente, encontra-se a denominação "epidemia de riscos" à progressiva ampliação dos estudos sobre a categoria "risco" em revistas da área médica e epidemiológica de países anglo-saxônicos e escandinavos no período 1967-1991, a partir de revisão no Medline (Skolbekken, 1995).
16
.A catacrese é uma figura de linguagem onde, por falta de termos próprios, a elaboração metafórica se instala de modo definitivo, perdendo, assim, suas características criativas. Por exemplo: as pernas da cadeira, os dentes da serra. Pode-se especular se palavras de origem jurídica como prova, contraprova, evidência, lei, protocolos, juízos, argumentos etc. não seriam catacreses após terem sido apropriadas pela terminologia científica. Curiosamente, o termo categoria, caro à Ciência, além de siginificar "atributo", também tem o sentido de "acusação". A relação entre o Direito estatalizado e a gênese da Ciência é abordada por Samaja, 1993, op. cit. 17 .Este é um dos momentos da elaboração que Weed vem desenvolvendo sobre as relações entre epidemiologia e ética. Desde aí, este autor já produziu muitos trabalhos sobre o tema. Cf. WEED, D.L. 1994. "Science, Ethics Guidelines, and Advocacy in Epidemiology". Annals of Epidemiology. 4: 166-171.
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A própria denominação "coqueluche" para "modismos" que se difundem de forma "epidêmica" em determinados contextos sócio-culturais serve de emblema para representar muitas expressões correlatas com significações correspondentes. Neste sentido, vamos, a seguir, abordar modos como determinados conceitos epidemiológicos dirigidos às populações, com vistas à educação em saúde, são apreendidos e retraduzidos por estas.
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SETE Buscando metáforas para uma epidemiologia mestiça II: Em meio a nuvens O "senso comum" epidemiológico A este respeito, enfocaremos especialmente representações sociais acerca da percepção do risco. Podemos caracterizar, a princípio, representações sociais como formas de conhecimento de implicações práticas, incluídas no interior das vertentes que estudam o senso comum, em busca da superação da "retórica da verdade" embutida no discurso da ciência moderna (Spink, 1993). É importante notar que metáforas podem desempenhar aqui seu papel "charneira", pois, além de servirem como suporte simbólico elaborado a partir do sujeito, podem, também, assumir dimensões coletivamente compartilhadas para a comunicação e interpretação do mundo. Neste sentido, é importante considerar o emprego abusivo de metáforas na comunicação entre cientistas e o público, mediada pelos meios de comunicação de massa. Isto é particularmente flagrante nas discussões sobre os efeitos das manipulações genéticas sobre a humanidade. Assim, cabem 3 perguntas a respeito desta relação: 1)o que se pode aprender dos esforços dos geneticistas para moldar a imagem pública de tais manipulações (especialmente no que se refere ao projeto Genoma)?; 2)as imagens produzidas pelos geneticistas informam ao público com exatidão e sem impropriedades?; 3)como são estas imagens apreendidas? (Nelkin, 1994). Em geral, há uma proliferação de significações atribuídas aos gens, em especial, aqueles que envolvem determinismos biológicos: definição de identidades (e respectivos julgamentos de qualidade), estabelecimento de traços comportamentais. Há gens egoístas, hedonistas, criminais, homossexuais, depressivos, condutores ao pecado, à genialidade. Em suma, os "gens" serviriam para explicar as diferenças humanas e tanto justificá-las como predizê-las (Nelkin, 1994). No campo do risco, postula-se a existência de uma "epidemiologia leiga" (Davison et al, 1991). Como ilustração, uma pesquisa realizada no País de Gales onde se considerou a idéia de "candidatura" à doença coronariana (DC), isto é, qual era a percepção popular dos atributos, condições e comportamentos das pessoas de modo a torná-las "candidatas" ao infortúnio de desenvolver DC. O
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estudo tinha preocupações de verificar os efeitos de programas de Educação em Saúde para controle de DC. Estavam em questão os papéis da dimensão individual e da social na etiologia e distribuição da enfermidade, levando em conta a complexidade do fato de muitos comportamentos particulares estarem imbricados no terreno cultural (Davison et al, 1991). A idéia de "candidatura" à DC admitia quatro usos diferentes: 1)explicação retrospectiva do adoecer/morte de outrém por DC. 2)predição do adoecer/morte de outrém por DC. 3)explicação retrospectiva do próprio adoecer por DC. 4)avaliação de seu próprio risco de adoecer/morrer por DC. Em termos gerais, os "candidatos" à DC eram considerados aqueles: gordos, sedentários, de rosto avermelhado, com tom de pele pálido-acinzentado, fumantes, com casos de DC na família, bebedores "pesados", com dieta rica em gordura, ansiosos (por natureza), mal-humorados (ou pessimistas ou negativistas), estressados (ou com vida desregrada). Uma das conclusões da investigação foi mostrar o reconhecimento da falibilidade do sistema de "candidatura coronariana". Percebe-se a existência de indivíduos que preenchem diversos "requisitos" para DC e não adoecem, enquanto outros aparentemente saudáveis e cuidadosos chegam a morrer pela enfermidade (Davison et al, 1991, 1992) (gerando o comentário do tipo "quem diria..."). Estas "distorções" eram incluídas em um sistema explicativo co-existente, de caráter fatalista, oposto à idéia de controle protetor contra DC através da escolha de estilos de vida mais salutares. Os campos onde a percepção de ausência de controle era mais pronunciada consistiam naqueles que envolviam: a)diferenças pessoais entre indivíduos (hereditariedade, educação, características próprias); b)ambiente social (posses e disponibilidade de recursos, exposição a risco e danos viculados à ocupação, solidão); c)ambiente físico (clima, perigos naturais, poluição ambiental etc). Todos subsumidos a um aspecto maior que dizia respeito a sorte, acaso, destino, fatalidade, vontade divina. Nestas circunstâncias, nada poderia mais ser feito se por acaso Deus decidisse a fazer "o chamado" ou que "a hora da pessoa tivesse chegado..." (Davison et al, 1992). Como, em geral, os efeitos da exposição a supostos riscos
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não costumam ser frequentes, imediatos e certos, são compreensíveis as resistências de algumas pessoas em aderirem ao discurso preventivo/profilático. Outros estudos ingleses apontaram o distanciamento dos aspectos envolvendo saúde em relação às preocupações pessoais de cada um em seus cotidianos. Isto sugere discrepâncias entre o discurso racional sobre saúde e o comportamento (ou estilo de vida) - a princípio, passível de ser influenciado através de práticas de Educação em Saúde - e os domínios da vida privada, que devem ser entendidos em relação ao contexto pessoal e cultural mais amplo (Calnan e Williams, 1991). Todavia, não é absurdo supor, em um quadro simultaneo de precariedade da qualidade dos Serviços de Saúde (em termos de acessibilidade, equidade, cobertura, disponibilidade, efetividade, eficiência, resolutividade etc.) e de exposição a agravos múltiplos como sucede em uma formação sócioeconômica como a nossa, que as preocupações dos grupos sociais em relação a sua saúde devam ser distintas daquelas encontradas em outros contextos. Epidemiologia das metáforas? É possível conceber os produtos do espírito humano como pertencentes a um determinado universo. Este seria constituído por signos, símbolos, imagens, crenças, mitos, sistemas de idéias que se referem a determinados estados, situações, acontecimentos, fenômenos, problemas. Assim, funcionam como mediadores imprescindíveis nas transações dos homens entre si e com o mundo circunjacente. Conforme Morin (1991), a partir de Teilhard de Chardin, este domínio teria a denominação noosfera. Seria, na verdade, um possível campo de articulação entre o indivíduo (psicosfera) e a sociedade (sociosfera). Deste modo, tanto o cérebro/mente como a cultura produzem, organizam, condicionam, restringem a noosfera, que por sua vez, em efeito recursivo, atua da mesma forma sobre ambos. Neste sentido, seria possível delinear dois grandes grupos relativamente estáveis de entes noosféricos1: 1)imagéticos - apresentando seres de aparência cosmo-bio-antropomórfica, fantásticos ou não (que povoam mitos e religiões); 1
.É possível cogitar, ainda, em outras "entidades" espirituais como as referidas aos afetos, sentimentos, emoções, mas que não pertenceriam à noosfera - reino das elaborações mentais intelectivas.
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2)logomorfos - sistemas de idéias (que habitam doutrinas, teorias, filosofias) (Morin, 1991). Como ilustração, cabe mencionar a reconhecida suscetibilidade da mente humana a desvarios, loucuras, psicoses. Nestas circunstâncias, observam-se respectivamente alucinações e delírios como sintomas psicológicos da proliferação desenfreada de entidades da noosfera, com prejuízos (ou seja, além do considerado "habitual") da capacidade de delimitação da dita realidade. Tem havido tentativas de estabelecer nexos entre o ponto de vista epidemiológico e a dimensão psicológica relacionada à esfera societária 2. O exemplo mais evidente é a relação entre a epidemia de AIDS e correspondentes "epidemias psicossociais" de sentimentos como medo, ansiedade, aflição, suspeita (Strong, 1990). Ao mesmo tempo, isto reflete, também, uma epidemia de significações (Treichler, 1987) para lidar, para além da dimensão de contagiosidade fisiopatogênica, também com a ameaça constituída pelos efeitos carreados pela AIDS sobre as representações sociais que envolvem temas candentes como morte e sexualidade. A este respeito, um texto de Dan Sperber (1985), considerado "clássico" na literatura antropológica francesa sugere a analogia entre o poder maior de difusão de algumas representações culturais comparativamente a outras, a exemplo de certas doenças infecto-contagiosas. O citado autor, no entanto, faz distinção quanto ao fato dos modelos epidemiológicos delinearem a transmissão de doenças estáveis ou com variações limitadas e previsíveis, enquanto as representações tendem a variar cada vez que são transmitidas. Uma epidemiologia das representações consistiria, antes de tudo, em um estudo destas transformações. Mas, não se trata de aplicar modelos epidemiológicos de análise às representações. Na verdade, está em relevo na analogia, a correspondência entre as ni terações a)clínica médica/epidemiologia com b)psicologia/epidemiologia das representações (Sperber, 1985). Ou seja, múltiplas problemáticas
2
.Estas "entidades" simbólicas foram batizados por Dawkins (1976) como memes. Assim, as teorias de causação das doenças humanas deveria levar em conta as interações entre germes, genes e memes (os significados representacionais atribuídos aos primeiros) como meio de considerar a suscetibilidade/resistência às doenças, tanto do ponto de vista da patogênese como da "salutogênese" (cf. DAWKINS, R. 1976. The Selfish Gene. New York. Oxford University Press e FOSS, L. 1994. "Putting the Mind back into the Body. A Successor Scientific Medical Model". Theoretical Medicine. 15: 219-313).
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simultâneas: individual X coletivo na relação entre "numeradores" com "denominadores" e orgânico X psicossocial (ou natural X cultural) na relação entre a) e b). Temos, então, dois níveis de observação em uma Epidemiologia das representações: o nível "individual" das representações mentais, singulares aos indivíduos e o "coletivo" das representações sociais. "Uma epidemiologia das representações é um estudo das cadeias causais nas quais estas representações mentais (RM) e públicas (RP) estão envolvidas: a construção ou recuperação de RM pode levar indivíduos a modificarem seus ambientes físicos, por exemplo para produzirem uma RP. Estas modificações ambientais pode levar outros indivíduos a construírem suas próprias RMs; tais novas RMs podem se armazenadas e depois recuperadas, e, por sua vez, levar indivíduos que as apreenderam a modificar o ambiente e, assim por diante" (Sperber, 1985).
Importa, também, salientar os processos geradores das distribuições de representações, assim, "uma cultura (...) seria definida menos por uma certa distribuição de idéias, de enunciados e de imagens em uma população humana do que pela forma de gestão social do conhecimento que gerou esta distribuição". (Lévy, 1993) Na verdade, estão em questão as transições e interrelações complexas entre fronteiras geradas pela denominada era moderna. Na base destas dicotomias (cada vez menos nítidas) - sujeito e objeto3, singular e universal, mental e material, valor e fato, privado e público, natural e social, está a grande ruptura ontológica: homem e natureza (Santos, 1989). No entanto, as biotecnociências chegaram ao ponto de subverter as próprias disjunções que criaram as condições de possibilidade de sua origem, desenvolvimento e evolução. Então, pensar uma epidemiologia que transcenda as fronteiras das habituais propostas investigativas significa, preliminarmente, cogitar formas de abordagem de interfaces onde ocorrem relações recíprocas entre instâncias diferentes e complexas que não podem mais ser concebidas separadamente, localmente. Ou seja, implica na necessidade de mediação simultânea entre local/global e natural/social. Um desenvolvimento importante a este respeito está na idéia de objeto híbrido, elaborada por Latour. Para ele, não é mais possível manter a cisão natureza X cultura diante da proliferação de tais objetos (ou quase objetos), mistos de ambos, amálgamas naturezas-culturas. A própria etimologia de "híbrido"
3
.Nestas circunstâncias, a linguagem (e, por extensão, a capacidade metaforizante) participaria tanto do sujeito, uma vez que nos é constitutiva, como do objeto, em função de seu teor socialmente compartilhado (Lévy, 1993, op. cit.).
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encerra algumas curiosidades. Provém do grego hybris, com os significados de: tudo que excede a medida, excesso; orgulho, insolência, ardor excessivo, impetuosidade, exaltação; ultraje, insulto, injúria, sevícia; violências sobre a mulher ou criança. Pelo latim hybrida, serve para designar o produto do cruzamento de porca com javali; o filho de pais de diferentes regiões ou de condições diversas (Machado, 1956). Seriam objetos híbridos: o buraco de ozônio e as repercussões quanto à legislação que proíbe o uso de CFC na industrialização de propelentes, as manipulações genéticas e seus desdobramentos éticos e políticos, as discussões sobre o reivindicações de grupos ativistas gays pelo acesso ao AZT. Na área epidemiológica, uma série de infecções emergentes4, resultantes de processos desencadeados pelo próprio homem. Por exemplo: os surtos de doença dos Legionários, provocada por uma bactéria que se alberga em dutos de grandes sistemas de condicionamento de ar. Mas, o exemplo mais impressionante é constituído pelos xenotransplantes. Isto é, a partir de manipulações genéticas, estuda-se a viabilidade de gerarem-se suínos transgênicos com a capacidade de evitar as reações de rejeição imunológica, caso seus órgãos fossem transplantados para humanos (Concar, 1994). A escolha deste mamífero prendeu-se ao fato de serem animais domésticos cuja dimensão de seus órgãos são compatíveis com a humana. Nada mais adequado que a designação híbrido para o objeto resultante deste transplante... Podemos afirmar, então, que os objetos híbridos (quase-objetos quase-sujeitos) refletem e produzem múltiplas redes. Neste sentido, a rede de práticas e de instrumentos, de documentos e traduções pode ser vista como agenciamento intermediário entre tais níveis. E, ao nosso ver, a instância metafórica poderia se incluir nesta condição. E, mesmo que não seja, serve para proporcionar outras metáforas para pensarmos este mundo mestiço, resultante destes emaranhados reticulares. Em síntese (mesmo incorrendo no risco de uma simplificação grosseira ou, o que talvez seja pior, de uma obviedade): pode-se dizer que tanto nossos organismos como nossas sociedades configuram-se
4
.Cf. INSTITUTE OF MEDICINE. Emerging Infections. Microbial Threats to Health in the United States. 1992. Washington. National Academy Press.
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em sistemas altamente dinâmicos, constituídos por redes de interações e modulações recíprocas intra/entre instâncias psico-neuro-imuno-endócrinas e circunstâncias psico-sócio-culturais (é difícil definir o local exato para o "psico", daí optarmos por localizá-lo em ambos níveis). Uma tentativa preliminar de representar tais sistemas é sugerida por Krieger (1994) ao utilizar uma estrutura fractal que consiste em uma sequência de bifurcações infinitas que assinalam a autosimilaridade nas múltiplas escalas. Desta forma, em cada nível, seria possível incluir determinações pertencentes tanto aos domínios biológicos como culturais (Krieger, 1994). Outra metáfora possível seria imaginar um denso e emaranhado mangue, sem a harmonia da figura fractal sugerida por esta autora. Aí, os elementos de um conjunto de seres vivos constituem com sua conduta múltiplos níveis de organização e interação que, ao atuar (para eles) como "meio ambiente", demarca as formas de vida viáveis neste contexto, bem como seus modos de adoecer e perecer. Existem numa deriva compartilhada, em "acoplamento estrutural", vinculado a sua participação em tal rede de interações (Maturana, 1993). No entanto, esta metáfora ainda é insatisfatória. Pois, os "manguezais humanos" são bem mais complexos e cambiantes, em termos de indivíduos, tempos e lugares... Os humanos têm, por exemplo, a capacidade de pertencerem simultaneamente a distintos nichos "ecológico-culturais", com diferentes padrões de conduta. Mas, mais importante ainda, o mecanismo básico de interação nos sistemas sociais humanos é a linguagem. E, aí, como vimos, a metaforização ocupa lugar de destaque (inclusive, nas próprias tentativas de descrevê-la...). Epidemiologia contextual? É perceptível a progressiva difusão das técnicas qualitativas na investigação em saúde, mesmo nos países ditos periféricos (Yach, 1992), para além dos estudos característicamente definidos como pertencentes aos domínios da chamada antropologia médica. Exemplo: o trabalho de Atkinson (1993) sobre avaliação leiga da assistência pré-natal em um estado do nordeste brasileiro. É preciso enfatizar que o uso das denominadas técnicas qualitativas de avaliação rápida em saúde tem dado margem a controvérsias em função da aparente dissociação entre método e teoria antropológica e, também pela
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proposição de pessoal sem formação em Antropologia efetuarem investigações de caráter qualitativo, ainda que "rápidas"... (Coimbra-Jr., 1993) Outros desenvolvimentos metodológicos estão relacionados à aparente reabilitação dos denominados "estudos ecológicos" na pesquisa populacional em Saúde. Nesta circunstância, as unidades de análise seriam referidas a grupos (variáveis agregadas) ao invés de estarem relacionadas a características, atributos, propriedades identificadas de modo especificado (variáveis individuais). Há distintos tipos de estudos ecológicos5 e recentes trabalhos vêm mostrando seu potencial, alcance e fontes de vieses6. Nesta perspectiva, pode-se pensar que um encaminhamento possível para a epidemiologia seja dedicar-se com maior ênfase a tais estudos como forma de contextualizar seu "objeto populacional", evitando transitar por distintos níveis de organização com suas margens de vieses e erros. Assim, inferências preditivas feitas a partir de populações permaneceriam válidas para populações, em relação, por exemplo, a novos casos esperados no decorrer do tempo (considerando as características de linearidade ou não do sistema estudado). Já inferências generalizadoras correspondentes à extrapolação sobre indivíduos ou populações não equivalentes dariam margem a previsões logicamente discutíveis, passíveis de equívocos.
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.Exploratórios, Comparativos entre diversos grupos, de tendência temporal e Mistos (cf. MORGENSTERN, H. 1982. "Uses of Ecologic Analysis in Epidemiologic Research". American Journal of Public Health. 72:1336-1344. 6 .Cf. SCHWARTZ, S. 1994. "The Fallacy of the Ecological Fallacy: The Potential Misuse of a Concept and the Consequences". American Journal of Public Health. Vol. 84, nº 5:819-824. Aqui há uma interessante abordagem sobre os conceitos de validade interna e validade de construto e as respectivas utilizações na abordagem da falácia ecológica ou cross-level bias - viés relativo às circunstâncias de lidar simultaneamente com variáveis agregadas e individuais. Este pode conter dois aspectos: viés de agregação - resultante do agrupamento de indivíduos e de especificação - oriundo da existência de variáveis de confundimento através dos grupos (ver MORGENSTERN, H. 1982. "Uses of Ecologic Analysis in Epidemiologic Research". American Journal of Public Health. 72:1336-1344). A conceptualização analítica de variáveis próprias a grupos (integrais e contextuais) pode ser vista em SUSSER, M. 1994. "The Logic in Ecological: I. The Logic of Analysis". American Journal of Public Health. Vol. 84, nº 5:825-829. Cf., também, SUSSER, M. 1994. "The Logic in Ecological: II. The Logic of Design". American Journal of Public Health. Vol. 84, nº 5:830-835; KOOPMAN, J.S.; LONGINI-Jr., I.M. 1994. "The Ecological effects of Individual Exposures and Nonlinear disease Dynamics in Populations". American Journal of Public Health. Vol. 84, nº 5:836842; PIANTADOSI, S.; BYAR, D.P.; GREEN, S.B. 1988. "The Ecological Fallacy". American Journal of Epidemiology. 127 (5):893--903; GREENLAND, S.; ROBINS, J. 1994. "Invited Commentary: Ecologic Biases - Misconceptions and Counterexamples". American Journal of Epidemiology. 139 (8):747-759; PIANTADOSI, S. 1994. "Invited Commentary: Ecologic Biases". American Journal of Epidemiology. 139 (8):761-763; COHEN, B.L. 1994. "Invited Commentary: In Defense of Ecologic Studies for testing a Linear - No Threshold Theory". American Journal of Epidemiology. 139 (8):765-767; GREENLAND, S.; ROBINS, J. 1994. "Accepting the Limits of Ecologic Studies: Drs. Greenland and Robins Reply to Drs. Piantadosi and Cohen". American Journal of Epidemiology. 139 (8):769-771.
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Neste ponto, cabe enfatizar as problemáticas tipificações da categoria "população" em suas elaborações conceituais e operacionais, baseadas na idéia de "amostras representativas", essenciais para a epidemiologia moderna. Como mostrou Samaja (1993, 1994), há limitações nos procedimentos inferenciais aí envolvidos. Para este autor, é preciso avançar no sentido de estabelecer unidades de análise "geográfico-populacionais genuínas" - correspondentes a determinados agrupamentos populacionais reunidos por critérios tais como base a vizinhança geográfica, as características de seus vínculos comunitários/econômicos, a dinâmica sócio-cultural local. Ou seja, elementos que representem com mais legitimidade os complexos constituintes de uma dada formação social. Sob esta ótica, é desenvolvido o conceito de "população sentinela" como uma unidade populacional mínima, demarcada por meio da junção de componentes populacionais que têm em comum: 1)identidade tipológica (definida a partir de variáveis estruturais referentes, por exemplo a situações de caráter geográfico, demográfico, econômico, biológico, educacional e relativa aos serviços de saúde); 2)identidade territorial; 3)identidade cultural; 4)capacidade de interagir em processos decisórios. Tais populações poderão ser acompanhadas através de variáveis importantes para a monitoração de seus processos biológicos, psicológicos, econômicos, ecológicos (Samaja, 1994). Em que pese a indiscutível originalidade e a elaborada construção teórica e conceitual subjacente a esta proposta, é preciso avaliar se, uma vez demarcada a população sentinela, as variáveis de monitoração dos referidos processos ainda poderiam ser insuficientes para o fim que se propõem. Em outros termos, quais serão os referenciais de análise destas variáveis? Especialmente quanto aos processos psicológicos, qual será a pertinência teórica e metodológica de tais variáveis e respectivos indicadores? De qualquer modo, o modelo sugerido avança ao problematizar o aparentemente bem estabelecido "objeto populacional" da epidemiologia e sugerir encaminhamentos que podem ser promissores. Póslúdio Vivemos em uma época onde a biotecnociência está gerando profundas alterações nas delimitações disciplinares e um esgarçamento das categorias em diferentes domínios, especialmente aqueles que demarcam o natural, o social e o discursivo.
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"As fronteiras entre natureza e cultura, entre organismo e máquina são incessantemente redefinidas conforme fatores históricos complexos, nos quais discursos de ciência e tecnologia desempenham um papel decisivo (...). "Corpos", "organismos" e "comunidades", têm, portanto, de ser reteorizados como compostos de elementos que se originam em três diferentes domínios com fronteiras permeáveis: o orgânico, o técnico (ou tecnoeconômico), e o textual (ou, em termos mais gerais, culturais)" (Escobar, 1994: 217).
Vai se tornando cada vez mais insustentável não assumir a fragilidade das grandes teorias unitárias que propõem interpretações uniformes e previsões estáveis para a causação das doenças. Assim, é difícil evitar a percepção que "ruídos" que "atrapalham" nossas pesquisas quantitativas são inerentes à enorme complexidade da realidade. Se o preço para controlá-los implica em procedimentos que signifiquem limitação das possibilidades de conhecer, deve-se, quem sabe, modificar o sentido de nossa postura do que seja "rigor científico" e buscar a positivação do estatuto das anomalias7, hibridismos e imperfeições. De modo a incluí-las em outras construções de conhecimento capazes de proporcionar práticas menos insatisfatórias como as vigentes - resultantes, em parte, das crenças na existência de fundamentos racionais sólidos que sustentem o empreendimento bio-tecno-científico. É importante considerar seriamente a possibilidade da tradição quantitativa das ciências ditas naturais, em geral, e da epidemiologia, em particular, apresentar sinais de desgaste em suas propostas de produzir conhecimento. Se admitirmos que o objeto epidemiológico tende a ser vago, impreciso (a ponto de ser chamado de obscuro8), então, suas escalas de mensuração, inspiradas nas ciências ditas "exatas", tornam-se inadequadas como instrumentos para lidar com a complexidade do adoecer humano. É sintomática a preocupação de um reconhecido matemático, René Thom (1995), em elaborar um saber que aborde dimensões qualitativas e suas especificidades, configurado em sua teoria das 7
.O conceito de anomalia aparece no trabalho de KUHN, T. 1970. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo. Ed. Perspectiva. Seu significado é considerado ambíguo pois se, por um lado, sua percepção pode configurar-se em elemento propulsor de mudanças paradigmáticas, por outro, por estar relacionada à atividade do pesquisador, a anomalia pode, antes de tudo, representar uma questão específica envolvendo sua habilidade e capacidade técnica do que um desafio aos paradigmas vigentes. Há autores que sugerem quatro padrões de resposta às anomalias: indiferença, rejeição, acomodação, oportunismo (cf. PALÁCIOS, M. 1994. "O Programa Forte da Sociologia do Conhecimento e o Princípio da Causalidade" in PORTOCARRERO, V. (org.) 1994. Filosofia, História e Sociologia das Ciências. Abordagens Contemporâneas. Rio de Janeiro. Ed. Fiocruz, pp. 175-198. 8 .Inspirada em Luis Bunuel, esta denominação foi dada por Goldberg (em um artigo escrito originalmente em 1979) ao discutir os problemas de um objeto que aborda a interface biológica/social (cf. GOLDBERG, M. 1990. "Esse Obscuro Objeto da Epidemiologia". In COSTA, D.C. (org.). 1990. Epidemiologia. Teoria e Objeto. São Paulo. HucitecAbrasco, pp. 87-136.
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catástrofes, que segundo ele, teria a capacidade de fazer previsões qualitativas (Thom, 1995)9. Ou, então, de Moles (1995) ao propor métodos específicos para as ciências do impreciso (onde se destaca a análise fatorial, entre outros). Enfim, a especulação acerca do estatuto de imprecisão atribuído ao objeto da epidemiologia não consiste em um inócuo exercício diletante, pois procura configurações onde haja maior adequação entre teorias/modelos e métodos/técnicas correspondentes10. Se as bases constitutivas das explicações em epidemiologia (que conferem sua identidade como disciplina científica) demandam uma determinada formalização e especificação da relação sujeito/objeto (Ayres, 1995), é preciso cogitar, também, em outra(s) racionalidade(s) epidemiológica(s) e outra(s) relação(ões) (inclusive metafóricas) entre sujeito e objeto. De tal forma, que os supostos agentes provocadores de perturbações aos nossos esquemas científicos (as "impurezas") não adquiram inevitavelmente o incômodo significado de "confundimento" em epidemiologia, mas sejam considerados como elementos pertencentes à complexidade do real. Neste caso, uma possível metáfora para abordar o caráter "nebuloso" do objeto da epidemiologia seria justamente percebê-lo como formas no interior de "nuvens". Assim, para apreendê-lo, torna-se necessário penetrar mentalmente nesta paisagem e partindo de perspectivas também imprecisas, buscar, progressivamente delinear/imaginar seus "contornos" (Moles, 1995). Ou, então, de volta a Serres (1990b), pensá-lo, ele próprio (o objeto), como nuvem: "(...) todo objeto, todo pacote de objetos, mas, também todo domínio, toda coleção de domínios são no máximo, nuvens. Nuvens, cujos limites apresentam problemas. Fechadas, abertas, estáveis, instáveis, definidas ou indefinidas. Tudo acontece como se o essencial fosse uma epistemologia da ultra-estrutura ou das interestruturas. Limites, aderências, membranas, conexões, vizinhanças, regulação. (...)" (Serres, 1990b: 117).
Ao final, voltemos ao Sr. Palomar. Como era de se imaginar, conforme a vicissitude originária de seu nome, resolve contemplar o céu ao anoitecer. Olha as imperceptíveis mudanças da Lua em sua 9
.Uma Matemática "qualitativa" não utilizaria medidas de grandeza. As relações entre as variáveis são múltiplas e seu conjunto gera estruturas estudadas pelos matemáticos que descrevem suas propriedades formais. Cf. GRANGER, G.G. 1994. op.cit.. 10 .Uma síntese recente sobre as questões que envolvem a delimitação do objeto da epidemiologia pode ser encontrada em BARATA, R.C.B. 1995, op. cit..
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paulatina trajetória celeste. Percebe que as nuvens são bem mais rápidas em suas transformações (Calvino, 1994). Se, neste exato momento, resolvesse fazer "a leitura de uma nuvem", talvez começasse a se indagar se sua proposta de conhecer este "objeto nebuloso" em sua complexidade e mutabilidade não demandaria (especialmente em algumas situações meteorológicas menos estáveis) outra postura quanto ao entendimento das possibilidades de conhecê-lo. E que, a partir daí, precisa desenvolver tanto outras formas de conceptualização (onde a imaginação analógica não seja tão recalcada) como distintos métodos e técnicas de investigação. No caso específico do objeto epidemiológico, admitir seu caráter fluido, ambíguo, contingente (mas, também, do sujeito que o aborda), talvez permitisse alcançar outro patamar de compreensão e de intervenção sobre o adoecer humano.
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CHARDIN, T. CHERTOK, L. CHIODINI, P.L. COHEN, B.L. COHEN, J. COIMBRA-Jr., C.E.A. COLOMER, C. CONCAR, D. CORREA, M.C.Q. COSTA, J.F. COSTA, N.C.A. COSTALES, P. CRAWFORD, R. CRYSTAL, S. CURTIS, R. CYRULNIK, B CZERESNIA, D. DAIKOS, G.L. DAMÁSIO, A.R. DANZIGER, R. DAVIDSON, D. DAVIS, B. DAVIS, F. DAVISON, C. DAWKINS, R. DAWSON, J. DAY, S. DEAN, K. DELEUZE, G. DERRIDA, J. DIAS, M.M. DIGIACOMO, S.M. DOLL, R. DRISCOLL, D.J. DUARTE, L.F.D. ECKARDT, I. EIGEN, M. ELSTER, J. ENTRALGO, P.L. EPSTEIN, P. ESCOBAR, A. FARIA, A.M.C. FAURE, G.O. FEATHERSTONE, M. FERGUSON-SMITH, A.C. FERNANDEZ-ZOÏLA, A. FERRATER M., J. FERREIRA, A.B.H. FITZPATRICK, R. -
154
FLIESS, W. FORD, O.J. FOSS, L. FRANCO A., S. FRANKEL, S. FRANKENBERG, R.J. FRASER, W. FREEMAN, R. FRENK, J. FREUD, S. FREUND, P.E.S. FRIEDMAN, S.R. FROTA-PESSOA, O. FULFORD, K.W.M. GALENO GALVÃO, J. GARCIA, C. GARCIA, E.S. GAY, P. van der GEEST, S. GELLNER, E. GIFFORD, S.M. GILMAN, M. GINZBURG, C. GLENN, C.C. GOLDBERG, M. GOLDSTEIN, M. GONÇALVES, R.B.M. GOOD, B.J. GOOD, M-J.D.V. GRANDA, E. GRANGER, G.-G. GREEN, S.B. GREENLAND, S. GROSS, A.O. GUATTARI, F. GUERRA, H. GUITART, R. GURALNIK, D.B. GUTTMACHER, S. HALL, J.G. HARAWAY, D. HART, G. HARTZ, Z.M.A. HAYES, M.V. HEATHER, N. HESS, E.H. HILL, A.B. HIPÓCRATES de CÓS HLADY, W.G. HOPKINS, R.S. -
HOSPERS, H.J. HUBEL, D.H. HUNDERT, E.M. HUME, D. HUTZ, M. HYDËN, L.-C. IPSEN, J. IRMEN, F. JACOB, F. JACQUARD, A. JANES, C.R. JANZ, N.K. des JARLAIS, D.C. JEFFREYS, A.J. JOHNSON, M. JONES, P.A. JOSE, B. JUNG, C.G. KAPLAN, H.B. KESSLER, S. KIRMAYER, L.J. KLEINBAUM, D.G. KOBAYASHI, Y. KOESTLER, A. KOK, G. KOOPMAN, J.S. KRAEPELIN, E. KRIEGER, N. ten KROODE, H. KUHN, T. KUPPER, L.L. LACAN, J. LAKOFF, G. LANES, S.F. LAPLANCHE, J. LAST, J.M. LATKIN, C.A. LATOUR, B. LAURELL, A.C. LEDER, P. LEE, S. LEPOUTRE, R. LEVINS, R. LEVY, P. LEWELLEN, D. LIEBAN, R.W. LILLIENFELD, A.M. LILLIENFELD, D.E. LIMA, M.F.F. -
155
LIMA, T.A. LINDEN, R. LLOYD, B.B. LOCK, M.M. LONGINI-Jr., I.M. LOOMIS, D. LORENZ, K. LOWENBERG, J.S. LUPTON, D. LYON, M.L. MACCLUER, J.W. MACHADO, J.P. MACINTYRE, S. MACLEOD, S.M. MACMAHON, B. MAFFESOLI, M. MAGRO, C. MAHONEY, C.A. MAIA, J.C.C. MAKHOUL, N. MANN, J. MARCENES, W. MARTIN, D. MARTIN, E. MATHIESON, C.M. MATTINGLY, C. MATURANA, H. MCLEAN, J. MCCARTHY, S.MCCULLOUGH, H.N. MELMAN, C. MERHY, E.E. MESMER, F.A. MILL, J.S. MINICHIELLO, V. MINAYO, M.C.S. MINTZ, C.S. MOLES, A.A. MORABIA, A. MORGENSTERN, H. MORIN, E. MORUS, T. MOULIN, A.M. MULLEN, R.C. MULLIS, K. MULVIHILL, J.J. MUNAKATA, T. NADELMANN, E. NASIO, J.D. NATIONS, M.K. -
NEAIGUS, A. NELKIN, D. NETTER, T.W. NICHOLLS, R.D. NUNES, E. O'HARE, P. OAKES, M. OLIVEIRA, J.A. O'NEILL, J. OOSTERWIJK, M. OSEKI-DEPRÉ, I. OU, C.-Y. OYAMA, S. PAGELS, H. PAIM, J.S. PALÁCIOS, M. PALATNIK, M. PANKEJEFF, S.C. PARKER, R.G. PARSONS, E. PASSOS, A.D.C. PAZ, O. PEARCE, N. PEAT, F.D. PEDROSA, J.S. PEDROSO, M. PEIRCE, C.S. PENA, S.D.J. PERERA, F.P. PÉREZ-HOYOS, S. PETO, R. PIANTADOSI, S. PINEL, D. PIRES-FILHO, F.M. PONTALIS, J.B. POPPER, K. PORTO, L.A. PORTOCARRERO, V. POSSAS, C.A. PUCCIA, C. PUGH, T.F. RABELO, M.C. RABINOW, P. REBHUN, L.A. REIK, W. RHODES, L.A. RHODES, T. RICHARDS, I.A. RICHARDS, M.P.M. RICOEUR, P. -
156
RIVANO, J. ROBINS, J. RORTY, R. ROSCH, E. ROSE, S. ROSSET, C. ROTHMANN, K.J. ROUDINESCO, E. RUSSELL, B. -
TARANTOLA, D.J.M. TAUBES, G. TEIXEIRA, R.R. THOM, R. THOMAS, P. THOMBS, D.L. THOMPSON, E. THOMPSON, W.D. THOMPSON, W.I. -
SABROZA, P.C. SALZANO, F.M. SAMAJA, J. SANTOS, B.S. dos SANTOS, C.B. SASAKI, H. SAVITZ, D.A. SCHEPER-HUGHES, N. SCHILLER, N.G. SCHRAMM, F.R. SCHULTE, P.A. SCHWARTZ, S. SCOTT, S. SEEDHOUSE, D. SERRES, M. SHELTON, B.G. SIBTHORPE, B. SILVA, M.A.A. SIVADON, P. SKOLBEKKEN, J.-A. SKRABANEK, P. SMITH, G.D. SOARES, L.E. SONTAG, S. SOTHERAN, J.L. SOUSA, R.P. SPENCE, D.P. SPERBER, D. SPIELMAN, A. SPINK, M.J.P. STALL, R. STAM, H.J. STENGERS, I. STEVERINK, N. STEWART, T.A. STIMSON, G.V. STRONG, P. SURANI, M.A. SUSSER, M. SWAIN, J. -
TOMAZ, C. TRAVASSOS, C. TREICHLER, P. TSOUYOPOULOS, N TULINIUS. H. TURBIASZ, A.A. -
TAKEBE, Y. TANNSJÖ, T. -
VANDENBROUCKE, J.P. VARELA, F.J. VARMUZA, S. VAZ, N.M. VAZ, P.R.G. VIEIRA, A.B. VINCENT, J.-D. VINEIS, P. WATERS, M.F. WATSON, J.D. WATZMAN, H. WEED, D.L. WEINSTEIN, B.D. WEISSE, C.S. WENIGER, B.G. WENSTON, J. WHITE, S. WHITEHEAD, A.N. WHITNEY, D.J. WHYTE, S.R. WIESEL, T.N. WILLIAMS, C.A. WILLIAMS, S. WILSON, M.E. WING, S. WINKLER, R. WITKOSKI, J. WODAK, A. YACH, D. YAMAZAKI, S. YEPEZ, J. YOUNG, A. ZANCAN, G. -
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ZIEHEN, T. ZOLLER, M. ZORI, R.T. -