NORBERT ELIAS
TCP A JJA T\\ rAL.1 UVr'TTAr'AA A RT BUoLA lALAU %J
MEMfifiiA e SOCIEDAOE DIFEL
Difusao Editorial. Lda...
55 downloads
1735 Views
14MB Size
Report
This content was uploaded by our users and we assume good faith they have the permission to share this book. If you own the copyright to this book and it is wrongfully on our website, we offer a simple DMCA procedure to remove your content from our site. Start by pressing the button below!
Report copyright / DMCA form
NORBERT ELIAS
TCP A JJA T\\ rAL.1 UVr'TTAr'AA A RT BUoLA lALAU %J
MEMfifiiA e SOCIEDAOE DIFEL
Difusao Editorial. Lda. Lisboa
A colecgao M E M O R I A E SOCIEDADE dirige-se a um publico diversificado, composto por professores dos diversos graus de ensino, estudantes dos anos terminals do ensino secundario e do ensino universitaric, quadros e empregados de servigos, novas profissoes urbanas, profissoes liberais, agentes culturais de diferen'tes sectores, etc. Cobrira um campo muito vasto, procurando apresentar estudos de reconhecida qualidade sobre problemas pertinentes do presente e do passado. Os autores previstos para a primeira fase da colecgao constituem uma garantia da divers'idade de temas e de pontos de vista. As suas obras tern vindo a instalar rupturas e a por em causa as divisoes tradicionais do saber. Ao mesmo tempo, esta em preparagao um conjunto de obras sobre a realidade portuguesa que, elaboradas no silencio do gabinete ou no colorido trabalho de campo, interessam vastos circulos de opiniao. Contra uma falsa ideia que faz da obra de difusao sinonimo de simplificagao fbrgada, serao dados a conhecer os resultados de cuidadas investigates, porque so estas estimulam reflexoes aprofundadas. Finalmente, havera que revalorizar textos classicos, tanto no seu estatuto, como na forga da sua * actualidade. Criterio que implica recupera^ao do olvidado ou recoloca^ao do demasiado conhecido, na linha da conciliagao das obras pertencentes ao patrimonio internacional com as obras portuguesas.
A BUSCA DA EXCITAgAO
I
Centre JU - lei; S33-23S* $33 2237-FAX. $331277
NORBERT ELIAS E ERIC DUNNING
A BUSCA DA EXCITAgAO
Tradugao de Maria Manuela Almeida e Silva
Memoria e Sociedade
DIFEL
Difusao Editorial, Ida Lisboa
Titulo original: The Quest for Excitement ©1985 by Norbert Elias and Eric Dunning Todos os direitos para publicacao desta obra reservados so para Portugal por:
DIFEL
Drfusao Editorial. Lda. Ltsboa
Denominac.ao Social — DIFEL 82 — Difusao Editorial, Lda. Sede Social — Rua D. Estefania, 46-B 1000 LISBOA Telefs.: 53 76 77 - 54 58 39 - 352 23 10 Capital Social — 60 000 000$00 (sessenta milhoes de escudos) Contribuinte n.° — 501378537 Matrfcula n.° 3007 — Conservatoria do Registo Comercial de Lisboa Memoria e Sociedade Colecc,ao coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto Capa: Emtlio Tavora Vilar Revisao: Maria Manuela Vieira e Ayala Monteiro Composigao: Maria Esther — Gab. Fotocomposi$ao Impressao e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu 1992 Deposito Legal n.° ISBN 972-29-0203-2 Proibida a reproduc,ao total ou parcial sem previa autoriza^ao do Editor
Para Stephen, Barbara, Richard, Bebe, Judy, Michael e Rachel
J
NOTA DE APRESENTAgAO
Com a tradugao para lingua portuguesa de A busca da excitagao — desporto e lazer no processo civilizacional\ (precedida de A Condi$ao Humana, nesta mesma colecgao) passam a estar disponiveis em lingua portuguesa cinco obras de Norbert Elias. Este numero, sem duvida significativo, corresponde a uma redescoberta dos trabalhos do autor, falecido vai para dois anos, e impoe uma reflexao cruzada sobre a sua pratica intelectual e as condigoes de recepgao ou de leitura da sua obra1. A Sociedade de Corte foi editada pela Estampa, em 1986, tendo a tradugao sido feita com base na primeira tradugao francesa. Ora, desta nao constava o longo e importante prefacio escrito por Elias para a primeira edigao alema de 1969, em que o autor tratou os problemas da relagao entre a sociologia e a historia. Do ponto de 1
Sobre o autor e a sua obra os melhores estudos, incluindo as discussoes criticas, sao os de Peter Gleichmann, John Goudsblom e Hermann Korte, eds., Materialen zu Norbert Elias' Zivilisationstheorie, Francoforte, Suhrkamp Verlag, 1979; idem, eds., Macht und Zivilisation. Mater ialen zu Norbert Elias' Zivilisationstheorie 2, Francoforte, Suhrkamp Verlag, 1984; Theorie, Culture and Society, vol. 4, numero 2-3: Norbert Elias and Figurational Sociology (1987); Hermann Korte, Uber Norbert Elias, Suhrkamp Verlag, 1988; C. Lasch, «Historical Sociology and the Myth of Maturity: Norbert Elias' Very Simple Formula», Theory and Society, vol. 14 (1985), pp. 705-720; S. Mennell, Norbert Elias, Civilization and the Human Sciences, Oxford, Basil Blackwell, 1989; R. van Krieken, «Violence, Self-Discipline and Modernity: Beyond the Civilizing Process», The Sociological Review, vol. 37 (1989), pp. 193-218; Roger Chartier, A Historia Cultural — entre prdticas e representafies, Lisboa, Difel, 1988, pp. 91-119; idem, «Conscience de soi et lien social», in Norbert Elias, La Societe des individus, trad. Jeanne Etore, Paris, Fayard, 1991. Os textos autobiograficos de Elias foram publicados sob o titulo de Norbert Elias Uber sich selbst, Francoforte, Suhrkamp, 1990 (trad, francesa de Jean-Claude Capele, Norbert Elias par lui-meme, Paris, Fayard, 1991).
A BUSCA DA EXCITA^AO
vista do autor, interessa notar que esta obra se encontrava escrita desde ha muito. Die hofische Gesellschaft constituira a tese apresentada em 1933 na Universidade de Francoforte, mas que nunca chegou a ser discutida, dada a emigra^ao de Elias para Inglaterra (com uma breve passagem por Paris), logo apos a subida ao poder dos nacional-socialistas. Assim, a distancia entre o momento da elaboragao e o tempo da difusao desta obra assinala a figura de um autor exilado, tardiamente reconhecido. De O Processo Civilizacional as Edigoes D. Quixote publicaram em 1989 e 1990 os dois volumes, numa tradugao feita directamente do alemao, por Lidia Campos Rodrigues. Uber den Process der Zivilisation conheceu uma primeira edigao em Basileia, em 1939, precisamente numa colecgao que se propunha editar textos de autores alemaes exilados. Mas so em 1969 surge uma segunda edigao. A partir de entao, tem-se assistido por toda a Europa e nos Estados Unidos a uma redescoberta desta obra, concretizada em sucessivas tradugoes. A Introdugao a Sociologia foi publicada em 1980, pelas Edigoes 70, em tradugao de Maria Luisa Ribeiro Ferreira, a partir da versao inglesa (l a edigao alema: Munique, 1970). Relativamente as duas obras anteriores, elaboradas antes da Segunda Guerra, Was ist Soziologie? marca o momento da redescoberta da obra de Norbert Elias, que durante quase trinta anos ficara limitada a artigos de revista ou publicagoes especializadas (a excep^ao do livro escrito com John L. Scotson, The Established a d the Outsiders, Londres, Frank Cass & Co., 1965). Perante estas tres publica0es, o problema esta em saber qual o melhor contexto para ler Norbert Elias. A questao — inerente a todo o acto de leitura — pode ser extensiva a outras obras, num mercado editorial como o nosso em que as tradugoes, na area das
NOTA DE APRESENTA^AO
ciencias humanas e socials, embora ocupem lugar de destaque, raramente obedecem a criterios rigorosos de estabelecimento e apresentagao do texto. Neste sentido, nao se trata apenas de inquirir da «qualidade das tradugoes», o importante e tambem por em causa o proprio acto da publicagao em lingua portuguesa dos trabalhos de Norbert Elias. Ora, a tradugao dispersa e incompleta de uma serie de trabalhos do mesmo autor favorece apropriagoes fragmentadas da sua obra. Tais apropriagoes — investidas de um sentido utilitario em relagao aos objectos ou aos metodos, apresentados pelo autor — raramente atendem as operates de construgao da propria obra, a partir dos varios contextos em que esta e produzida. Assim, a apropriagao fragmentada de uma obra implica o risco da sua descontextualizagao. Reconstituir esses contextos obriga a pensar em con junto um percurso intelectual nas suas constantes e nas suas mutagoes. Sem a intengao de proceder a um levantamento exaustivo, sera possivel detectar tres grandes con juntos de temas — tematizagoes — que percorrem os diversos trabalhos do autor e que adquirem diversas modalidades, consoante os objectos em analise e os tipos de investigagao. Em primeiro lugar, a atengao e dada ao con junto das pulsoes e dos comportarnentos violentos, a par dos dispositivos de controlo que sobre eles incidem: discursos ou praticas normativas, poderes mais ou menos institucionalizados e mecanismos de autocensura ou de autocontrolo. Se esta preocupagao pelas atitudes pulsionais pode ser relacionada com a propria obra de Freud, nao se podera omitir o facto de Elias ter comegado por seguir estudos em medicina, psicologia e filosofia na Universidade de Breslau (cidade onde nasceu em 1897) e, uma vez em Inglaterra, ter exercido a psicoterapia de grupo. E esta preocupagao pelas pulsoes que Ihe permite
A BUSCA DA EXCITA^AO
pensar, em referenda a um mesmo campo, fenomenos tao diferentes quanto a guerra, o desporto e as emogoes. Fazendo variar as escalas de analise e afinando os pontos de vista comparativos, Elias apresenta na obra que agora publicamos a nogao de ciclo de violencia, enquanto momento de um determinado processo. Em segundo lugar, Elias procura definir configurates sociais especificas. Inicialmente determinadas a partir da analise da corte, nomeadamente da corte de Luis XIV, e do Estado em construgao nos alvores da epoca moderna, tais configurates definem-se -— em trabalhos mais recentes — com base no estudo concrete das comunidades de uma cidade operaria inglesa, das equipas desportivas, do grupo de apoiantes de um clube («hooligans»), bem como das grandes potencias actuais, isoladas ou em confronto (como vemos em A Condigao Humana). Do ponto de vista da analise sociologica, a nogao de configuragao (figuragao) permite simultaneamente identificar os diversos modos de inter-relagao e ultrapassar as separagoes teoricas entre o individuo e a sociedade. Neste sentido, a configuragao enquanto unidade de analise do social funda-se numa logica relacional, o que permite a Elias resolver o dualismo entre integragao e conflito. O ultimo tema que atravessa a obra de Norbert Elias diz respeito a nogao de processo, que em boa medida se filia no valor do progresso, no duplo sentido de evolugao da humanidade e de avango no conhecimento da natureza e da sociedade. Para o autor, nao se trata de postular um valor e de o projectar em analises, particularmente interessadas no estabelecimento de comparagoes entre diferentes configuragoes sociais. O que Elias intenta releva de uma dupla preocupagao. Em primeiro lugar, trata-se de recuperar para a sociologia a sua orientagao inicial, particularmente visfvel na obra de Augusto Comte, e fazer conciliar a analise das estruturas
NOTA DE APRESENTA^AO
sociais com as marcas da evolugao temporal, isto e, o seu processo. Neste sentido, a divisao entre a sociologia e a historia desaparece. Em segundo lugar, Elias pretende reiterar a confianga no progresso, num seculo que tern procurado demmciar a fragilidade dos seus resultados. Na defesa desse ponto de vista, essencialmente etico, o autor aponta as formas crescentes de controlo sobre a natureza e sobre a sociedade, ao dispor do homem ocidental, ao mesmo tempo que reivindica para a ciencia a vontade de descobrir as relagoes inscritas na propria realidade e, assim, orientar de forma proficua a acumulagao de conhecimentos. Em A busca da extita$ao, Norbert Elias e um dos seus principals colaboradores, Eric Dunning (num dos capitulos acompanhado de Patrick Murphy e John Williams), analisam a partir do caso concreto do desporto — em particular do fiitebol e do rugby, incluindo os grupos de hooligans — uma sociologia historica atenta as configuragoes e ao processo da civilizagao1. Centrados sobretudo na sociedade inglesa, os autores recorrem sistematicamente ao ponto de vista comparativo, tendo em vista identificar a especificidade dos processos e as diferengas na caracterizagao de cada configuragao social. O controlo da violencia, no modelo da sociedade inglesa do seculo XVIII, conduz Norbert Elias a estabelecer uma analogia entre a emergencia e difusao do futebol, e um sistema politico em que se enraizam os habitos parlamentares. As regras estabelecidas, na inter-relagao dos grupos em conflito, o face-a-face de tais grupos, que os agentes incorporam e a que se habituam, passam a 1 De Eric Dunning, Patrick Murphy e John Williams, cf. ainda Hooligans Abroad. The Behaviour and Control of English Fans at Continental Football Matches, Londres, Rout ledge, 1984; The Roots of Football Hooliganism — An Historical and Sociological Study, Londes, Routledge, 1988.
A BUSCA DA EXCITA^AO
constituir um padrao de civilizagao horizontal. Este modelo contrapoe-se ao da sociedade francesa do seculo XVII, onde a corte impoe, do alto, regras e comportamentos, deflnindo um processo de civilizagao vertical. Neste sentido, a analise das praticas desportivas integra-se no vasto campo de analise da sociedade global, fugindo as compartimentagoes dos especialistas do desporto e convidando-os a reflectir com maior profundidade sobre um dos fenomenos essenciais da nossa civilizagao. Memoria e sociedade — os coordenadores
AGRADECIMENTOS Gostaria de aproveitar esta ocasiao para assinalar a minha grande divida para com Norbert Elias. Sem o estimulo e o encorajamento que dele recebi — primeiro, como estudante universitario, mais tarde, como pos-graduado e jovem assistente — duvido de que tivesse concretizado a carreira sociologica, em face do modesto prestigio que esta profissao gozava. Com efeito, se nao tivesse tido a sorte de me encontrar com Norbert Elias quando comecei a estudar economia na entao University College, de Leicester, em 1956 — nao tinha ouvido falar de sociologia antes de iniciar os meus estudos universitarios, e nao conhecia Elias nem sabia que ensinava em Leicester —, duvido de que, na verdade, tivesse seguido uma carreira sociologica. Na epoca, o tema encontrava-se enredado num impasse de grande esterilidade — em termos teoricos caracterizava-se, sobretudo, por modelos estaticos de funcionalismo e, sob o ponto de vista empirico, por formas de empirismo igualmente estaticas e aridas. Por certo, isso nao me teria interessado mais do que a economia, assunto que depressa descobri nao ser do meu agrado. No entanto, as li^oes de Elias e as suas orientagoes como professor, com o seu enfase na perspectiva do desenvolvimento, o fulcro dos estudos orientado a partir da realidade e o acento tonico colocado na interdependencia entre a teoria e a observagao, a sociologia e a psicologia, atrairam-me desde o inicio. Tive sorte pelo facto de o acaso me ter levado a ser formado por um dos maiores sociologos do nosso tempo e sinto-me privilegiado por ter sido possivel trabaIhar com ele nos artigos reunidos e publicados neste volume. Desejo que os meus esforgos independentes, aqui incluidos, representem alguma coisa, ainda que diminuta, contribuindo para o desencadear da reorientagao da sociologia na direcgao pela qual Elias tern lutado ha tanto tempo, uma reorientagao que, entre outras coisas, coloque o estudo do desporto e do lazer mais no centro das preocupagoes sociologicas do que ate agora tern acontecido.
10
A BUSCA DA
EXCITA^AO
Tambem gostaria de agradecer a alguns dos meus actuals colegas, em particular, a Pat Murphy, John Williams, Ivan Waddington e Tim Newburn. E um privilegio trabalhar com sociologos de tanto talento e tao empenhados, e gosto de pensar que desempenhamos um pequeno papel na continuidade e no desenvolvimento da «tradigao de Leicester» no ensino e na investigagao sociologica, cujas bases foram bem langadas por Elias nos anos de 1950 e I960. Finalmente, devo agradecer ainda a Eve Burns e a Val Pheby pela simpatia e inabalavel bom humor com que levaram a cabo a ardua tarefa de dactilografar este manuscrito.
PREFACIO Eric Dunning
1
A maior parte dos artigos incluidos nesta obra ja foi publicada. Contudo, esta e a primeira vez que aparecem reunidos e que se publicam as versoes completas de alguns. O seu aparecimento numa obra constitui um facto de algum significado e, em particular, mostrara ao leitor que sao o resultado sistematico de um unico corpo de teoria e de investigate — o trabalho pioneiro de Norbert Elias sobre o processo de civilizagao e a formagao do Estado1. Com efeito, constituem exemplos e ampliagoes deste corpo teorico e de investigate e, por esse motivo, sao representatives da abordagem especifica «configuracional» e do «desenvolvimento» que Elias aprofundou na sociologia2. Dado parecer que o trabalho de Elias encontrou, por vezes, no mundo dos sociologos de lingua inglesa3, ouvidos de surdos, aproveitarei esta oportunidade para relacionar este con junto de artigos Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978; Sate Formation and Civilization, Oxford 1982. 2 Para uma caracterizagao geral desta abordagem, ver a obra de Norbert Elias, What is Sociology, Londres, 1978; e, tambem, de Johan Goudsblom, Sociology in the Balance, Oxford, 1977; e, de Peter Gleichmann, Johan Goudsblom e Hermann Korte (eds.), Human Figurations, Amsterdao, 1977. 3 Ha uma ou duas excepgoes. Por exemplo, Philip Abrams refere-se a The Civilizing Process como sendo «a tentativa recente mais extraordinaria para abranger o social e o individual no quadro de um projecto unitario de analise sociologica». Ver a sua Historical Sociology, Shepton Mallet, 1982, p. 231. Ver tambem, Zygmunt Bauman, «The Phenomenon of Norbert Elias», Sociology, 13 (1), Janeiro, 1979, pp. 117-25. Para um estudo critico do artigo de Bauman, ver Eric Dunning e Stephen Mennel, «Figurational Sociology. Some Critical Comments on Zygmunt Bauman's vvThe Phenomenon of Norbert Elias"», Sociology, 14 (2), Julho, 1979, pp. 497-501.
12
A BUSCA DA EXCITA^AO
com a estrutura do seu trabalho na sua globalidade. Antes disso, no entanto, utilizarei uma abordagem «eliasiana» para tratar da questao ligada ao facto de o desporto e de o lazer, em particular o primeiro, terem sido desprezados como areas de investigate da sociologia. A seguir, depois de fornecer alguns pormenores biograficos e de situar a perspectiva de Elias no «mapa sociologico», apresentarei o que considero serem os principais aspectos da sua abordagem. No final, direi uma ou duas palavras sobre os artigos que integram este volume.
Na verdade, a sociologia do desporto enquanto area de especializagao e recente, embora tenha sido efectuada uma tentativa para Ihe atribuir uma ancestralidade respeitavel, atraves da referencia as observances feitas por sociologos «classicos» como Weber4. O seu crescimento foi consideravel, em especial, nos Estados Unidos, Canada e Alemanha Ocidental, desde os primeiros anos da decada de 60. Todavia, tal como se encontra no presente, ela e em grande medida o resultado de especialistas de educagao fisica, um grupo cujo trabalho, devido ao seu envolvimento real nesta area, nao possui, por vezes, o distanciamento necessario para uma analise sociologica fecunda e aquilo que pode designar-se como uma implantagao «organica» nas preocupagoes centrais da sociologia. Ou seja, muito do que tern escrito situa o fulcro das suas preocupagoes, em grande parte, nos problemas especificos da educagao fisica, cultura fisica e desporto, falhando na apresentagao das relagoes sociais mais alargadas. Alem disso, esta analise parece possuir um caracter meramente empirista5. Existem algumas excepgoes 4 Ver, por exemplo, John W. Loy e Gerald S. Kenyon, Sport, Culture and Society, Macmillan, Londres, 1969, p. 95 Para exemplificagao desta tendencia empirista deve ser suficiente, no contexto presente, registar os titulos dos artigos publicados em The International Review of Sport Sociology, 1 (17), 1982. Sao os seguintes: «Factors Affecting Active Participation in Sport by the Working Class»; «The Social Role of Sports Events in Poland and Hungary»; «Sport and Youth Culture»; «The Development of Play and Motoric Behavior of Children Depending on the Existing Socio-Spatial Conditions in Their Environment»; «Sports Activity During the Life of Citi-
PREFACIO
13
notaveis6. Contudo, tenho a certeza de que a maioria dos sociologos concorda que muito do trabalho realizado ate ao momento, na area da sociologia do desporto, se encontra longe de despertar interesse fora do quadro da educagao fisica ou de chamar a atengao das «principais correntes» sociologicas. Outro aspecto desta questao consiste no facto de poucas correntes sociologicas terem teorizado sobre o desporto ou realizado investigates sobre qualquer aspecto deste — com a evidente excepgao dos hooligans* do futebol, que atrairam a atengao de alguns teoricos dos fenomenos de desvio e de marxistas7. E esta a situagao, mesmo quando o desporto parece constituir uma parte integrante das instituigoes com as quais um grupo particular de especialistas da sociologia se encontra envolvido, por exemplo, na educagao8. Talvez seja sintomatico deste quadro geral o facto de a tese de mestrado apresentada por Anthony Giddens, em 1961, na London School of Economics, tratar da sociologia do desporto e, desde ai — periodo em que este adquiriu a fama de ser um dos teoricos mais avangados da sociologia na Gra-Bretanha —, o mesmo ter sido incapaz, o que nao deixa de ser significative, de regressar ao campo do desporto ou de o considerar, em qualquer zens»; «Sports Clubs and Parents as Socializing Agents in Sport»; «The Flemish Community and its Sports Journalisms, « Demystifying Sport Superstition». 6 Intelectuais como Alan Ingham e, embora discorde de muitos aspectos da sua abordagem, John Loy e Gerald Kenyon sao proeminentes entre estas notaveis excepgoes. 7 Ver, por exemplo, John Clark, «Football and Working Class Fans: Tradition and Change», em Roger Ingham (ed.) Football Hooliganism, Londres, 1978; Ian Taylor, «Football Mad: a Speculative Sociology of Football Hooliganism», em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971; e «Soccer Consciousness and Soccer Hooliganism», em Stanley Cohen (ed.), Images of Deviance, Harmondsworth, 1971. 8 A negligencia quanto ao desporto e talvez mais comum entre sociologos da educagao na Gra-Bretanha do que nos Estados Unidos, porque ai existem analises bastante profundas do desporto em Willard Waller, The Sociology of Teaching, Nova lorque, 1932; e James S. Coleman, The Adolescent Society, Nova lorque, 1961. *Termo ingles que significa «vadios». No entanto, a expressao inglesa generalizou-se e passou a designar, na Europa, os elementos jovens do sexo masculino que fazem parte do publico do futebol e estao directamente associados aos distiirbios, entre adeptos, que ocorrem por ocasiao destes acontecimentos desportivos. (N. da T.)
14
A BUSCA DA EXCITA^AO
das dissertagoes teoricas que elaborou, como um tema que merecesse uma discussao sistematica. Para ele, como para outros, os valores e o quadro das oportunidades no seio da sociologia determinaram que os trabalhos se efectuassem em areas mais convencionais, tendo resultado disso o facto de o estudo sociologico do desporto ter sido abandonado, na maior parte, as maos dos que nao sao sociologos. Tambem aqui existiram excepgoes notaveis. For exemplo, Pierre Bourdieu9 e Gregory P. Stone10 deram importantes contributes neste campo. No entanto, continua a ser verdade afirmar-se que poucos dos principais sociologos se comprometeram com um trabalho sistematico de investigate do desporto, se ocuparam com a sua teorizagao ou debate nos seus livros de textos e outros trabalhos, ou integraram o estudo do desporto nos cursos onde ensinam. As possiveis razoes que explicam este desprezo da sociologia nao sao muito dificeis de encontrar. As reflexoes de David Lockwood sobre os motivos por que «o conceito de raga nao tinha representado um papel central no desenvolvimento da moderna teoria social» podem fornecer algumas indicates sobre o assunto. Lockwood afirma que «e inevitavel o facto de a raga nao ter emergido como um conceito-chave na explicate sociologica» porque o desenvolvimento da tradigao sociologica «impediu, do exterior, o estudo de aspectos biologicos e, em vez disso, conduziu a atengao para estes aspectos basicos e universais do sistema social como a religiao e a divisao do trabalho...». Lockwood defende que esta tendencia se formou porque nao existia «nenhum problema racial, susceptivel de comparagao com aquele que o presente conhece, na situagao historica em que a base da estrutura da teoria sociologica se consolidou»u. Independentemente de saber como ou ate onde e que isto se pode aplicar ao estudo sociologico da raga ou das relates raciais, esta analise parece, a primeira vista, poder ajustar-se, em termos potenciais, a negligencia da sociologia em relagao ao desporto. De 9
Pierre Bourdieu, «Sport and Social Class», Social Science Information, Vol. 17, n.° 6, 1978. 10 Ver, por exemplo, Gregory P. Stone, «American Sports: Play and Display», em Dunning, The Sociology of Sport. n David Lockwood, «Race, Conflict and Plural Society», em Sami Zubaida (ed.), Race and Racialism, Londres, 1970, pp. 57-72.
PREFACIO
15
facto, no tempo em que os contornos basicos da moderna sociologia se estabeleceram12, tal como a raga, o desporto nao era — ou, mais propriamente, nao era considerado pelos «fundadores» — o espago de problemas sociais serios. Alem disso, muitos teriam argumentado que o desporto, tambem, nao constitufa nem uma propriedade basica nem universal do «sistema social». Contudo, embora as estruturas destas actividades e o seu significado variem para aqueles que nelas participam, ate hoje nenhuma sociedade humana existiu que nao tivesse algo de equivalente ao desporto moderno. Mais significative ainda e o facto de muitos desportos possuirem, de certo modo, raizes religiosas, e a analise de Durkheim sobre a «efervescencia colectiVa» suscitada nos rituais religiosos dos aborigenes australianos pode ser transferida, mutatis mutandis, para a emogao e o excitamento criados atraves dos desportos modernos13. Ate agora, apesar da evidencia dos factos, poucas tentativas foram realizadas para integrar o estudo do desporto quer no quadro da religiao14, quer no da divisao do trabalho15. O que sugere que a emergencia daquilo que se tornou o foco basico das preocupagoes da sociologia moderna, mais do que parece sugerir a analise de Lockwood16, foi um processo que nao se encontrava isento de influencias, o que, em termos de Elias, sao as «avaliagoes heteronimas». De modo resumido, parecia que os sociologos actuais revelavam os seus valores de compromisso, entre outras maneiras, pelo facto de os paradigmas dominantes a que aderem limitarem o seu campo de visao a um conjunto comparativamente estreito de 12 Na Gra-Bretanha do seculo XIX, pelo rnenos, os conflitos quanto a tentativas no sentido de persuadirem as classes trabalhadoras a desistirem do que era considerado como desportos e actividades de lazer «Barbaras» e a adoptarem formas de recreagao mais «racionais» constituiram um problema social de consideravel dimensao. 13 Ver Emile Durkheim, The Elementary Forms of the Religious Life, Londres, 1976. 14 Foi levada a efeito uma tentativa semelhante por Robert Coles no seu «Foot ball as a Surrogate Religion», em M. Hill (ed.), A Sociological Yearbook of Religion in Britain, n.° 3, 1975. 13 Para um debate sobre o desporto e a divisao do trabalho, ver Bero Rigauer, Sport and Work, Nova lorque, 1981. 16 Para uma discussao sobre esta questao, ver Norbert Elias, «Problems of Involvement and Detachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, n.° 3, 1956, pp. 226-52. Ver tambem a sua obra What is Sociology!
16
A BUSCA DA EXCITA^AO
actividades socials, apesar do empenho da maioria quanto ao ideal de «neutralidade etica» ou da «liberdade corno um valor» e da ideia de sociologia enquanto ciencia que trata das sociedades em todas as suas dimensoes. O abandono da sociologia do desporto tern sido uma das consequencias dessa situagao. Alem do mais, a sociologia orientou-se para o campo restrito dos aspectos «serio» e «racional» da vida, o que teve como efeito que o divertimento, o prazer, o jogo, as emogoes e as tendencias «irracionais» e «inconscientes» do homem e da mulher tivessem merecido escassa atengao no ambito da teoria e da investigagao sociologicas17. Desporto, guerra e emogoes podem parecer um saco de farrapos de topicos esquecidos, mas, se reflectirmos um pouco sobre isso, verificamos que existem, possivelmente, sobreposigoes significativas entre eles. Deste modo, o desporto e a guerra envolvem formas de conflito que se encontram entrelagadas, de maneira subtil, com formas de interdependencia, de cooperagao e com a formagao do «nosso grupo»* e do «grupo deles»18. Alias, tanto um como o outro podem desencadear quer emogoes de prazer quer de sofrimento e compreendem uma mistura complexa e variavel de comportamento racional e irracional. A existencia de ideologias diametralmente opostas — que sublinham, por um lado, que o desporto pode constituir um substitute da guerra19 e, por outro, que este fenomeno e o veiculo ideal de treino militar, devido a dureza e a agressividade demonstradas pelos que nele participam — e tambem muito sugestiva quanto ao caracter homologo e, talvez, da inter-relagao das duas esferas. Num piano mais elevado de generalizagao, uma das implicagoes desta discussao consiste nas orientagoes dominadas por valores que informam os paradigmas dominantes da sociologia contemporanea, que se inclinaram no sentido de equacionar «o sistema 17 Tentativas para destruir o modelo habitual quanto a alguns destes aspectos podem encontrar-se em Christopher Rojek, «Emancipation and Demoralization: Contrasting Approaches in the Sociology of Leisure», Leisure Studies, Vol. 2, n.° 2, 1983, pp. 83-96; e John D. Ferguson, «Emotions in Sport Sociology», International Review of Sport Sociology, 4 (16), 1981, pp. 15-25. 18 Estes termos sao introduzidos por Norbert Elias em What is Sociology?, p. 122 e seguintes. 19 Tambem foi igualmente sugerido com bastante frequencia que o desporto poderia constituir um substitute da delinquencia. *We-group e they-group, sem tradugao precisa. (N.da T.)
PREFACIO
17
social» com o Estado-nagao contemporaneo e, correspondentemente, conduziram a negligencia das relagoes internacionais enquanto foco de teorizagao e de investigate. Permitam-me agora que elabore uma reflexao sobre algumas das vias pelas quais os valores heteronimos, que restringiram o campo de visao dos sociologos, podem ter contribuido para o desprezo da sociologia do desporto.
Nas minhas primeiras afirma^oes esta implfcita a ideia de que os sociologos tern esquecido o desporto, principalmente porque so alguns conseguiram distanciar-se o suficiente dos valores dominantes e das formas de pensamento caracteristicas das sociedades ocidentais, enfim, para terem a capacidade de compreender o significado social do desporto, os problemas que este coloca ou o campo de acgao que oferece para a exploragao de areas da estrutura social e do comportamento que, na maior parte, sao ignoradas nas teorias convencionais. O desporto parece ter sido ignorado como um objecto de reflexao sociologica e de investigate, em especial, porque e considerado como algo que se encontra situado no lado que se avalia de modo negativo no complexo dicotomico de sobreposigao convencionalmente aceite, como, por exemplo, entre os fenomenos de «trabalho» e «lazer», «espirito» e «corpo», «seriedade» e «prazer», «economico» e «nao economico». Isto e, no quadro da tendencia que orienta o pensamento reducionista e dualista ocidental, o desporto e entendido como uma coisa vulgar, uma actividade de lazer orientada para o prazer, que envolve o corpo mais do que a mente, e sem valor economico. Em consequencia disso, o desporto nao e considerado como um fenomeno que levante problemas sociologicos de significado equivalente aos que habitualmente estao associados com os negocios «serios» da vida economica e politica. No entanto, apesar do desprezo verificado quando se comparam estas areas, o desporto demonstra com toda a clareza que constitui um campo de consideravel significado social, o que — de acordo com o grau de pretensao, que os sociologos levam tao a serio, segundo o qual a sua disciplina e uma ciencia de compreensao da
18
A BUSCA DA EXCITA^AO
sociedade, que estuda as sociedades em todos os seus aspectos — reclama teorizagao e investigagao sociologica. Existem muitos indicadores do significado social do desporto. Pelo menos, nos circulos masculines das sociedades industrials do Ocidente, por exemplo, enquanto tema de interesse e de discussao, o desporto e um assunto que rivaliza com o sexo. Alias, hoje em dia, em paises de todo o mundo, o desporto e quase ubiquo como actividade de lazer. Laurence Kitchin chegou a sugerir de um desporto, o futebol, que, «para alem da ciencia, ele e o unico idioma comum»20, e poucos duvidariam da importancia internacional de acontecimentos com os Jogos Olimpicos e o Campeonato do Mundo. Estes factos estao repletos de oportunidades para a investigagao sociologica. O mesmo se verifica, tambem, quanto a utilizagao dos boicotes desportivos como uma arma no seio das relagoes internacionais. Existem outras areas, igualmente, a merecer investigagao, quer sincronica quer diacronica, como sejam: o desporto enquanto «lazer» e o desporto como «trabalho»; padroes de emprego e modelos de mobilidade social no desporto e em seu redor; amadorismo, profissionalismo e «shamadorismo» no desporto; as relagoes entre o desporto e a industria; a economia do desporto; a comercializagao do desporto; o papel do Estado no desporto; a politica e o desporto; a politica do desporto; padroes de administragao, organizagao e controlo nas organizagoes desportivas internacionais, nacionais e regionais; as relagoes entre sectores no ambito destes diferentes niveis de organizagao; os padroes de controlo das organizagoes desportivas nas sociedades «capitalistas» e «socialistas» e os padroes de autoridade nas primeiras; o desporto nos paises do Terceiro Mundo; os meios de comunicagao social e o desporto; o desporto e a educagao; o desporto e as classes; o desporto e a raga; o sexo e o desporto; o desporto e a violencia; as multidoes do desporto e o comportamento desordeiro que por vezes desencadeiam; e muitos mais. Finalmente, o desporto pode ser utilizado como uma especie de «laboratorio natural» para a exploragao de propriedades das relagoes sociais, como, por exemplo, a competigao e a cooperagao, o conflito e a harmonia, que parecem ser, segundo a logica e os valores correntes, alternativas que se excluem mutuamente mas que, neste contexto, no que se refere a estrutura intrmseca 20
Laurence Kitchin, «The Contenders», Listener, 27 de Outubro de 1966.
PREFACIO
19
do desporto, possuem uma interdependencia evidente e muito complexa. Julgo ter atingido o momento em que posso resumir as principais caracterfsticas da distinta teoria sociologica de Elias. Como se podera ver, no fundamental trata-se de uma teoria em que a tentativa de superar o jugo das avaliagoes heteronimas e das tendencias dominantes de pensamento dicotomico e dualista foi bem sucedida, tendo em vista desenvolver, no sentido do que Elias designa «o desvio no sentido da distanciagao», a compreensao dos seres humanos e das sociedades que constituem21. Alias, como o demonstram nitidamente os trabalhos incluidos neste volume, e uma teoria que permite avaliar o significado social do desporto e que, nessa linha, se esforga, entre outras coisas, por estabelecer os fundament os da teoria sociologica das emogoes. Esta teoria procura tambem sublinhar o controlo individual e social da violencia e os processos de longa duragao que podem ser observados a este respeito. Em sintese, e uma teoria, acima de tudo, de desenvolvimento. Contudo, antes de me alargar sobre esta e outras questoes, vou apresentar alguns dados biograficos de Elias e situar a sua teoria no quadro do «mapa sociologico».
Norbert Elias nasceu em 1897, sendo de ascendencia germano-judaica. Iniciou a sua carreira de sociologo em 1925, em Heidelberg, como amigo e colaborador de Karl Manheim, tendo-se convertido, na sequencia disso, em seu assistente, no Departamento de Sociologia da Universidade de Frankfurt22. Nessa altura, como agora — embora partilhasse o mesmo .edificio e abordasse, ate certo ponto, problemas similares23 —, o Departamento de Sociologia de 21
A ideia de «desvio no sentido do distanciamento» e proposta por Elias em «Problems of Involvement and Detachment». 22 Ver Johan Goudsblom, «Responses to Norbert Elias's Work in England, Germany, the Netherlands and France», em Gleichmann, Goudsblom e Korte, Human Figurations, pp. 37-97. 23 Ver Use Seglow, «Work at a Research Programme», em Gleichmann, Goudsblom e Korte, Human Figurations, pp. 16-21.
20
A BUSCA DA EXCITA^AO
Frankfurt afastava-se do mais conhecido Instituto de Investigagao Social de Adorno e Horkheimer, que foi a base institucional da chamada «Escola de Frankfurt». Menciono este facto so para situar, num local especifico, a emergencia das smteses de Elias sobre o desenvolvimento, numa conjuntura historico-politica particular e num estadio especial do desenvolvimento da propria sociologia. Com maior rigor, Elias iniciava a elaboragao da sua teoria em Frankfurt, quando os nazis chegaram ao poder. Alias, neste estadio critico e frutuoso da sua carreira sociologica, aventurava-se numa questao especifica a que os alemaes dao o nome de methodenstreit — a «luta pelo metodo» — que foi a pratica pela qual varias escolas se debateram, ao longo dos anos, no sentido de determinar que metodos «cientificos» eram apropriados ao estudo dos seres humanos e das sociedades que estes formam, e que conceitos e metodos eram os mais adequados para o efeito. Em seguida, irei focar as caracteristicas sociologicas da smtese que Elias esta a desenvolver. No entanto, antes de aprofundar estes aspectos, talvez merega a pena assinalar que Elias e um humanista que detesta a violencia e que o seu interesse constante pelas relates entre violencia e civilizagao nao e so «academico» ou «intelectual». Para ser mais exacto, surge, pelo menos em parte, da sua experiencia na Alemanha, na decada de 1920 e infcios de 1930, do facto de a sua mae ter morrido em Auschwitz e do seu exilio, primeiro em Franga e mais tarde em Inglaterra. O que significa que o seu interesse sociologico pela violencia — em todas as suas forma^oes e manifestagoes — radica num profundo desejo de alargar o nosso conhecimento sobre as suas raizes sociais e psicologicas, na esperanga de que essa compreensao ajude as pessoas a conciliar as suas vidas — os seus padroes de vida em comum — segundo formas que Ihes permitam evitar toda a especie de tragedias violentas com que a humanidade tern sido particularmente afectada. Mas deixem-me voltar a considerar a smtese de Elias e o que ela implica. Johan Goudsblom, num convincente relato circunstanciado, observou com razao que a preocupagao de Elias consiste no estudo «global»* dos seres humanos e nao apenas de aspectos particulares das suas vidas, como ideias, valores e normas, modos de produgao
*ln the round. (N. daT.)
PREFACIO
21
ou instintos e sentimentos e a sua sublimagao24. Ou seja, Elias atribui nitida prioridade a sintese em relagao a analise, e esforga-se por evitar a compartimentalizagao das pessoas e das sociedades humanas segundo categorias como «economico», «politico» e «social» — como se «o economico» e «o politico» nao fizessem parte, de algum modo, da «sociedade» — ou «biologico», «psicologico» e «sociologico» — como se as pessoas pudessem existir sem corpos, como se os seus «espiritos» fossem de alguma maneira fenomenos nao ffsicos ou biologicos, ou como se «as sociedades» pudessem existir, de certa forma, independentemente e separadas do homem e da mulher individuals que as constituem. Contudo, para atingir estes objectivos, uma parte importante do trabalho de Elias consiste na tentativa de resolver o dualismo que, de modo geral, separa a sociologia das outras disciplinas que com ela se relacionam, aspecto que tern constituido um dos principals centros de tensao no methodenstreit. Refiro-me a tendencia conceptual para reduzir o estudo das pessoas e das sociedades a um ou a outro piano, num con junto de sobreposigoes dicotomicas, orientagao que levou, no passado como no presente, a formagao de escolas que se contestam com maior ou menor clareza a proposito de questoes como «materialismo» e «idealismo», «racionalismo» e «anti-racionalismo», «operagao» e «estrutura», «voluntarismo» e «determinismo» e muitas outras25. Estas escolas encaminham-se no sentido de se comprometerem firmemente com uma, ou duas, perspectivas das multiplas dimensoes do mundo social, e este e um dos pontos de desacordo de Elias, tendo em vista a necessidade de resolver os dualismos que se encontram na base dessas escolas — uma tarefa que so pode ser bem sucedida por meio da constante fertilizagao cruzada entre o raciocinio teorico e a investigagao empirica — algo que e indispensavel realizar no estadio actual de desenvolvimento da sociologia, a fim de facilitar-se o mais vasto crescimento. Este crescimen24
Goudsblom, «Responses to Norbert Ella's Work», p. 79Uma lista mais completa de tais dualismos incluiria: envolvimento -versus distanciamento (valor-predisposigao versus valor-liberdade ou neutralidade etica); subjectividade versus objectividade; nominalismo versus realismo; indugao versus dedugao; analise versus sintese (atomismo versus holismo); absolutismo versus relativismo; natureza versus sociedade; individuo versus sociedade; mudanga versus estrutura (dinamica versus estatica); harmoriia versus conflito; consenso versus for^a; ordem versus desordem (estrutura versus caos). 25
22
A BUSCA DA EXCITA^AO
to compreendera o aperfeigoamento de teorias e de modelos que possuam uma «forma» mais adequada aquilo que possa ser de facto observado, e ajudara a combater a tendencia no sentido da decomposigao e fragmentagao entre escolas que se atacam mutuamente, o que tern sido corrente no desenvolvimento da sociologia e, talvez, no quadro de outras ciencias ligadas ao estudo dos seres humanos. A smtese de Elias e uma tentativa para orientar as ciencias humanas atraves do labirinto constituido por este conflito entre uma ou duas dimensoes — mesmo parciais — de problemas e solugoes. Em particular, o objective e contribuir para o desenvolvimento de uma sintese mais adequada ao objecto — uma smtese baseada, igualmente, na teoria e na observagao — e para um quadro das pessoas e das sociedades, atraves do qual estas possam ser descritas como sao realmente e nao como se supoe que sejam, segundo o discurso de politicos, ideologos, filosofos, teologos ou homens de leis. Um dos objectives e contribuir para o aperfeigoamento de um metodo que seja adequado ao estudo da integragao natural do nivel humano-social, um metodo nao «cienticista» no sentido em que se entende erradamente o metodo, apenas porque se demonstrou que ele estaria apropriado ao estudo de outros niveis de integragao natural. De acordo com Elias, para alcangar estes objectives, e necessario desenvolver, acima de tudo, um instrumento conceptual e uma terminologia que se ajustem, de forma mais profunda do que aquela que ate aqui se conseguiu, a dinamica e as caracteristicas das relagoes dos seres humanos e das suas sociedades. Mas permitam que eu seja um pouco mais concrete e discuta um ou dois aspectos da teoria emergente de Elias. No espago de que aqui disponho, poderei apenas debater uma ou duas pequenas questoes deste todo complexo e em desenvolvimento. Consideremos, por exemplo, a posigao de Elias quanto a dicotomia26 «naturalismo/antinaturalismo». De acordo com o que Elias defende, os seres humanos e as suas sociedades constituem parte da «natureza». No entanto, a «natureza» nao e um tecido homogeneo mas um todo diferenciado e estruturado, compreendendo uma serie de niveis emergentes. Estes niveis estao inter-relacionados, porem 26
Ver, por exemplo, Norbert Elias, «The Science Towards a Theory», em Richard Whitley (ed.), Social Process of Scientific Development, Londres, 1974, pp. 21-42.
PREFACIO
23
sao relativamente autonomos. Em primeiro lugar, variam em termos de graus de estruturagao dos elementos e, em segundo lugar, a medida que o padrao que estes formam se transforma e evolui. Basicamente, existem tres niveis: o nivel inorganico, o nivel organico e o nivel humano-social. Todos se podem submeter ao estudo cientifico, mas os metodos adequados a cada um destes niveis nao sao necessariamente apropriados aos outros. Deste modo, o nivel humano-social emerge dos niveis inorganico e organico e, por isso, e sempre influenciado por processos que se realizam a estes niveis (por exemplo, gravidez, nascimento, crescimento e morte). Todavia, ao mesmo tempo, ele e relativamente autonomo e possui um numero de propriedades que e unico, por exemplo, linguagens, codigos morais, Estados, greves, parentescos, casamentos, economias, crises economicas, guerras, formas «pre-desportivas» de concursos agonisticos e desportos27. De acordo com Elias, este conjunto unico de propriedades emergentes da integragao natural do nivel humano-social caracteriza-se por regularidades proprias que nao podem ser explicadas de forma reducionista, isto e, em termos de metodos, conceitos e modelos derivados do estudo de fenomenos dos niveis inorganico e organico. No entanto, verifica-se a tendencia para que isto nao seja reco| nhecido pelos filosofos. Popper, por exemplo, que continua a ser I altamente considerado em alguns circulos sociologicos, defende que / so as explicates em termos de leis_^ere- I 28 ; cem estatuto cientifico . Elias submete esta perspectiva a multi-| \ plas criticas, demonstrando que o conceito de leis universais emergiu de um estadio inicial do desenvolvimento da ciencia, ou seja, quando a fisica classica se encontrava em pleno processo de libertagao das concepgoes teologicas e metafisicas29. Da mesma maneira, ! tal como Elias demonstra, o conceito de leis universais constitui uma tentatiya_para descobrir algo imutavel e eterno para alem de I mudangas observaveis, mas falta-lhe a forma adequada ao objecto i dado que, para explicar qualquer mudanga, tern de Fazer-se referen27
Sobre a discussao do «desporto» como um termo global, e referindo-se a actividades que sao especificas das sociedades modernas, ver o ensaio de Norbert Elias «The Genesis of Sports as a Sociological Problem», Cap. Ill deste volume. 28 K. R. Popper, The Poverty of Historicism, Londres, 1957. 29 Elias na edigao de Whitley, Social Process of Scientific Development, p. 23.
24
A BUSCA DA EXCITA^AO
cia a alguma mudan$a prioritaria e nao a alguma «primeira causa» estatica, inalteravel e eterna. No entanto, segundo Elias, o reconhecimento do facto nao constitui uma observagao de que o conceito de leis nao possui, num sentido global, adequagao ao objecto quando este diz respeito a fenpmenos estruturados de forma vaga e desenvolvendo-se lentamente, como os gases, mas nao possuem a capacidade de se adequarem ao objecto no caso de fenomenos cada vez mais estruturados, desenvolvendo-se rapidamente, como acontece com os que dizem respeito aos organismos e as sociedades. Os modelos de estrutura e/ou processo devem ter precedencia relativamente as generalizagoes da lei. Sao exemplos disso: o modelo de dupla espiral de DNA; a teoria da evolugao de Darwin; a teoria do modo de produgao capitalista de Marx; e a propria teoria de Elias quanto a relagao entre o processo de civilizagao e a formagao do Estado30. Segundo Elias, uma das razoes que estao na base da falta de adequagao ao objecto do conceito de leis universais, a nivel humano e social, e a relativa velocidade a que o desenvolvimento das sociedades — um tipo de fenomeno que e altamente estruturado — acontece. Como tal, a este nivel do conhecimento, o conceito representa um bloqueio. Outro obstaculo relacionado com este e o que deriva de algumas caracteristicas de linguagem. Na verdade, procuramos exprimir movimento constante ou mudangas continuas de acordo com formas que implicam que ai existe um objecto isolado em estado de repouso e, entao, acrescenta-se um verbo para expressar o facto de que este objecto isolado se movimenta ou se transforma. Dizemos, por exemplo, «o vento sopra», como se o vento fosse uma coisa em repouso, e que, num dado momento, comega a soprar. Isto e, falamos como se o vento estivesse separado do soprar, como se o vento pudesse existir se nao soprasse31. Em sociologia, a separagao conceptual de «estrutura» e «mudanga», «estrutura» e «processo», e «estrutura» e «actividade» ou «acgao», e um exemplo desta tendencia. Deste modo dizemos, por exemplo, que «a estrutura do desporto na Gra-Bretanha se transforrriouentre 1850 e 19> que de alguma maneira esta separada das pessoas envolvidas no desporto e das alteragoes nas suas formas de pratica desportiva.
31
p. 40. Elias, What is Sociology!, p. 112.
PREFACIO
25
| Estas formas dicotomicas e reificadas de conceptualizagao sugerem que podem existir estruturas sociais sem^acgao, sem^ransfbrmagqes^ | sem processes, uma nogao que nao tern consistencia perante aquik) que pode observar-se. Elias refere-se a esta tendencia como zustan-^ dsreduktion, um termo alemao que significa, liferalmente, « estado {de redujao», nomeadamente, a reduglo^onaspFual de processes , observaveis em estado de repouso, embora Mennell e Morrissey o tenham traduzido, nao sem razao, por «processo de redu£ao»32. De acordo com Elias, a tendencia conceptual para separar os «objectos» do pensamento, incluindo pessoas e as relagoes em que estas se encontram envolvidas, esta intimamente relacionada com isso. Neste caso, as duas orientagoes conceptuais — «estado de redugao» ou «processo de redugao» e a separagao dos objectos das relagoes — tiveram consequencias infelizes para a sociologia. Na verdade, contribufram para uma forma de conceptualizagao duplamente inadequada, por exemplo, para a tendencia em conceptualizar «objectos» do pensamento sociologico como sendo, por um lado, estaticos e, por outro, desligados e separados das relagoes em que se encontram envolvidos33. De modo a contribuir para a resolugao do que Elias considera como a propensao constante para reificar e separar em termos conceptuais individuos e sociedades, enquanto se reduzem ambos, ao mesmo tempo, a objectos isolados em estado de repouso, Elias criou os conceitos relacionados de «conflguragoes»34 e homines aperti ou «seres humanos abertos»35. O primeiro refere-se a teia de relagoes de individuos interdependentes que se encontram ligados entre si a varios niveis e de diversas maneiras. O ultimo refere-se ao caracter aberto, pessoal e, por inerencia, «orientado para os outros» dos atomos individuals que estao compreendidos nestas configuragoes36. Estes dois termos nao se referem a objectos que existem de modo independente mas denotam niveis diferentes, ainda que inseparaveis, do mundo huma-
p. 133 e seguintes. p. 15. pp. 125, 135. 36
O termo other-directed [«Orientado para os outros». (N. da T.)} e usado aqui num sentido geral e nao com o sentido especifico introduzido por David Riesman, em The Lonely Crowd.
26
A BUSCA DA EXCITA^AO
no. Contudo, as configurates nao sao apenas amontoados de atomos individuals «orientados para os outros»: as acgoes de uma jDluralidade de pessoas interdependentes interferem de maneira a formar uma estrutura entrela--~^^^^=_«J_«_»-=--———-.——-——_—-^_^_-^i,^^.^^^
11
Do mesmo modo, ninguem pode dizer que possuimos ja um razoavel conhecimento adequado sobre as necessidades a que respondem as actividades de lazer. Tentamos assinalar, a este respeito, o que nos parece ser o problema central e fizemos uma proposta inicial mostrando a direcgao a partir da qual se pode encontrar uma resposta. Mesmo que esta seja insuficiente, parece util como um meio de colocar o problema numa perspectiva mais clara. Reunimos varios exemplos de diferentes tipos mimeticos, indicando como caracteristica comum nao a libertagao de tensao mas, antes, a produgao de tensoes de um tipo particular, o desenvolvimento de uma agradavel tensao-excitagao, como a pega fundamental de satisfagao no lazer. Na nossa sociedade, como em muitas outras, faz-se sentir uma necessidade corrente de motivagao de fortes emogoes que aparecem e, se encontram satisfagao, desaparecem, para so voltarem a manifestar-se algum tempo depois. Seja qual for a relagao que esta necessidade possa ter com outras necessidades mais elementares como a fome, a sede e o sexo — todos os dados acentuam o facto de -que esta representa um fenomeno muito mais complexo, um fenomeno muito menos puramente biologico —, pode bem consi-
»
CAPITULO I
137
derar-se que o desprezo quanto a atengao dedicada a esta necessidade constitui uma das maiores lacunas na abordagem dos problemas da saude mental. Em certa medida, o problema e obscurecido pelo sentido negativo com que o conceito de tensao e utilizado, tanto no discurso sociologico como no psicologico. Sublinhamos ja o facto de um jogo de futebol constituir, em si mesmo, uma forma de dinamica de grupo com uma determinada produgao de tensao21. Se esta tensao, se o tonus do jogo se torna demasiado fraco, o seu valor enquanto facto de lazer diminui. O jogo nao tera interesse e sera magador. Se a tensao se torna demasiado elevada, pode proporcionar bastante excitagao aos espectadores, mas tambem ocasiona, de forma identica, graves riscos para jogadores e espectadores. Passa da esfera mimetica para a esfera nao mimetica da crise grave. Ja neste contexto ha que abandonar-se o sentido negative do conceito convencional de tensao e substitui-lo por outro que permita uma tensao optima normal que pode, no decurso da configuragao dinamica, tornar-se demasiado alta ou demasiado baixa. Este conceito mais dinamico de tensao aplica-se nao so ao jogo de futebol enquanto tal, mas tambem aos participantes. Os individuos tambem podem viver com uma tensao produzida que e mais elevada ou mais baixa do que o normal, mas so nao possuem tensao quando morrem. Em sociedades como as nossas, que exigem uma disciplina emocional global e circunspecgao, a serie de sentimentos agradaveis fortes manifestamente expresses e severamente vedada. Para muitas pessoas nao e apenas na sua vida profissional, mas tambem nas suas vidas privadas, que um dia e igual ao outro. Para muitas delas nunca acontece nada de interessante, nada de novo. A sua tensao, o seu tonus, a sua vitalidade, ou o que quer que seja que se Ihe possa chamar, e, antes do mais, baixo. De uma maneira simples ou complexa, a um nivel baixo ou a nivel elevado, as actividades de lazer proporcionam, por um breve tempo, a erupgao de sentimentos agradaveis fortes que, com frequencia, estao ausentes nas suas rotinas habituais da vida. A sua fungao nao e simplesmente, como muitas vezes se pensa, uma libertagao das tensoes, mas a renovagao dessa medida de tensao, que e um ingre-
21
Ver Cap. VI deste volume.
138
A BUSCA DA EXCITA^AO NO LAZER
diente essencial da saiide mental. O caracter essencial do seu efeito catartico e a restauragao do tonus mental normal atraves de uma perturbagao temporaria e passageira da excitagao agradavel. O efeito pode nao ser totalmente compreendido a menos que se considere o risco muito elevado que as pessoas correm se se permitirem ficar excitadas. E a antitese do autodominio, da conduta racional ou razoavel. Aqueles que sao responsaveis pela lei e pela ordem, tal como se pode descobrir se estudarmos o desenvolvimento do futebol, lutaram muitas vezes amargamente contra o aumento subito da excitagao nas pessoas e, em particular, da excitagao colectiva, como uma grave perturbagao social. A agradavel excitagao que as pessoas experimentam em relagao a factos mimeticos representa, deste modo, um enclave social onde a excitagao pode ser desfrutada sem as suas perigosas implicates sociais e individuals, a qual muitas vezes e fruida a par de outras formas de aumentar o prazer. Isto significa que nesta perspectiva, e dentro de certos limites, uma outra forma perigosa de elevagao siibita de sentimentos fortes pode fruir-se se houver a aprovagao dos companheiros. ^ambiguidade peculiar que circunda a excitagao do lazer pode observar^s^jrutidamente, no nosso tempo, quando as pessoas oferecem a si proprias, em termos de experiencias, novos horizontes de excitagap. Sem uma nitida compreensao da fungao da excitagao mimejtica^as^activida^ des de lazer, sera dificil estabelecer as suas implicagoes individuals e sociais a partir dos factos,
CAPITULO II 0 lazer no espectro do tempo livre Norbert Elias e Eric Dunning
1
O facto de as decisoes humanas se entrelagarem nao e nitido, provavelmente, senao para um filosofo1. Mas a maneira segundo a qual o fazem e diferente no trabalho profissional e nas actividades de tempo livre das pessoas. Alias, em relagao a estas ultimas, e diferente nas actividades que sao ou nao dedicadas ao lazer. Em certos aspectos, todas as actividades de um individuo tern outros individuos como quadro de referenda; noutras, o quadro de referenda e o proprio agente. No caso das actividades de trabalho, o equilibrio entre estes dois aspectos inclina-se a favor do primeiro, no caso das actividades de lazer, a favor do ultimo. O que significa que, no trabalho profissional, tal como ele esta estruturado nas nossas sociedades, as decisoes das pessoas no sentido de fazerem isto ou aquilo sao sempre tomadas, em grande medida, tendo em consideragao outros de quern se possa dizer «eles», ou jnesmo, a respeito de unidades mais impessoais, das quais se possa dizer «esse», embora, na verdade, o aspecto «eu» nunca se encontre ausente por completo2. Nas decisoes sobre actividades de lazer, como veremos, as referencias aos outros sao mais relevantes do que pode parecer a primeira vista, a consideragao por si proprio pode ter mais peso do que a que tera no caso do trabalho profissional ou no
^oi publicado um extracto desta comunicac.ao na obra de Rolf Abonico e Katarina Pfister-Binz, Sociology of Sport: Theoretical Foundations and Research Methods, Basle, 1972. 2 Para um debate sobre os pronomes pessoais como um modelo configuracional, ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, p. 122 e seguintes.
140
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
das actividades de tempo livre que nao possuem o caracter de lazer. Quando se trata da escolha das suas proprias actividades de lazer, a consideragao pelo seu proprio prazer, pela sua propria satisfagao, pode ser soberana dentro de certos limites socialmente estabelecidos. Que tipos de satisfagao propprcionam e como as desencadeiam sao as questoes que continuam por esclarecer. Na actual literatura sociologica, pode notar-se uma tendencia para considerar o lazer como um rnero acessorio do trabalho3. A satisfagao agradavel, proporcionada pelas actividades de lazer, tende a ser considerada como um meio para atingir um determinado fim — o de perrnitir o alfvio das tensoes e de melhorar as capacidades das pessoas para ele. Contudo, se perguntarmos, desde logo, qual e a fungao "do lazer relativamente ao trabalho, a possibilidade de resposta torna-se dificil. SujaliabiLJSJEK^ de trabalho o lazer e a unica esfera publica em que as decisoes individuals podem ser tomadas considerando, antes de tudo, a satisfagao agradavel de cada um constitui ja um passo em frente no sentido do afastamento desse bloqueio. E um avango no sentido da crftica da abordagem sociologica, tanto teorica como empirica, que e dominante quanto aos problemas do lazer/ Nao pretendemos sobrecarregar este ensaio com a elaboragao de semelhante crftica. Parece mais adequado utilizar o espago disponivel para indicar, de uma forma positiva, ate onde se pode chegar se estas limitagoes forem abandonadas. J^rem,_j£lvezj^ resump de alguns, (f l)jO predominio de uma abordagem dos problemas do lazer centrado no trabalho garante uma certa consistencia no tratamento dos mesmos, mas esta solidez e, em larga medida, devida a um sistema de valores e de crengas aceite vulgarmente e que, no entanto, nao e indiscutivel. Nao seria totalmente injustificado afirmar que e nisso que reside a consistencia de uma ideologia do lazer: a essencia actual, as coisas boas e validas na vida de uma pessoa, que parecem ser a sua propria essencia, e o trabalho 3
Para examples representatives desta bibliografia, ver Stanley Parker, The Future of Work and Leisure, Londres, 1971; Joffre Dumazedier, Toward a Society of Leisure, Nova lorque, 1967; The Sociology of Leisure, Amesterdao, 1974; e Alasdair Clayre, Work and Play, Londres, 1974.
CAPITULO II
141
que um individuo realiza. Durante as horas em que nao precisam de trabalhar, as pessoas fazem coisas que sao de menor valor ou, por inerencia, sem valor, e a sociedade e tolerante face as suas inclinagoes para os prazeres da ociosidade. No fundamental, diz-se que isto e uma mera forma de atenuar a fadiga e a tensao do trabalho. De acordo com esta ideologia do lazer, a principal fungao das actividades de lazer e a relaxagao dessas tensoes. Para colocar a questao de uma forma mais extrema, enquanto proposigao cientifica, este tipo de raciocinio, a ideia de que! as actividades de lazer devem ser consideradas como auxiliaresjj do trabalho, e uma hipotese que exige verificagao. Actualmente,jj ninguem parece ter uma ideia muito clara sobre o tipo de; esforgos do trabalho em relagao ao qual as pessoas procuraml alivio nos seus lazeres, a nao ser que o que se pretende dizer seja apenas fadiga e que, nesse caso, seria melhor ir para a cama do que ir ao teatro ou a um jogo de futebol. E visto que ninguem [ sabe que especie de «fadiga» ou de «tensao» o trabalho produz nas pessoas, ninguem sabe, tambem, como e que as nossas actividades de lazer actuam de forma a proporcionar relaxagao. |, Em vez da aceitagao cega das hipoteses convencionais integras das na linguagem de todos os dias e, decerto, muito melhor ; criar um novo ponto de partida e cada um dizer a si proprio: » i estajum problema^ein^er^^> Ninguem deve aceitar a tradicional de que a fungao das actividades de lazer se destina a permitir que as pessoas trabalhem melhor, nem sequer a ideia de que a fungao do lazer e uma fun^ao que so existe na perspectiva do trabalho. De modo equivoco, isto parece um julgamento de valor representado como uma declaragao de facto.^Existe uma boa dose de evidencia sugerindo que as estruidad^^]^ ^ ppr direito proprio, in^terdep^ndejnit^ de_a^i^ nao lazer, mas,_dp ponto ^jdite^£injcional^dej^alor_^ nao subordinadas a elas.Tantoas actividades de lazer como ^_ Ajjuestao reside no facto de descobrirjuais^sao. 2) iProvavelmente, isto e um sintoma 3o mesmo quadro de valores tradicionais que, apesar da importancia crescente que as activi-
142
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
dades de lazer representam na vida actual das pessoas, tern como efeito que o lazer continue a ser relativamente desprezado como area de investigagao sociologica. Uma outra manifestagao do sentido negativo desta avaliagao pode ser encontrada em declaragoes que sublinham que o lazer e «irreal», «fantasia» ou, simplesmente, uma «perda de tempo», o que implica que so o trabalho e «real»4. Numerosas teorias actuals da sociedade revelam o impacte destas hipoteses. Os modelos das relates humanas integrados nos seus conceitos — em conceitos tais como «papel», «estrutura», «fungao», «sistema» e muitos outros, como vulgarmente se usam — desenvolveram-se, antes de tudo, a partir do tipo de relagoes humanas encontrado naquilo que pode chamar «as coisas serias da vida», na vida de nao lazer. Raramente assinalam tipos de relates de certo modo diferentes que, como veremos, estao por descobrir em muitas actividades de lazer. Sem a consideragao de diferentes tipos de relagoes, como os que estao por descobrir no lazer e no trabalho, as teorias sociologicas dificilmente podem afirmar que domixs^nam os factos observaveis da vida. n 3) A tendencia para explicar as actividades de lazer em termos da v^ sua fungao, como um meio de proporcionar «relaxagao das tensoes» ou «recuperagao das fadigas do trabalho», e um indicador dessa hipotese largamente divulgada nos textos contemporaneos da sociologia, traduzindo a ideia de que as tensoes devem ser avaliadas como algo negativo. Elas nao sao entendidas a partida como factos para serem investigados, mas, antes, como alguma coisa de que as pessoas se devem «ver livres». Deste modo, as investigates que abordam o lazer, acima de tudo, como um modo de libertar as tensoes podem induzir em erro; as avaliagoes dos seus proprios autores tomam o lugar de uma investigagao sobre as fungoes. S^^jensoes^evem ser , como perturbagoes das quais as 4 No que diz respeito a afirmagao de que o desporto e «irreal» ver, por exemplo, Gregory P. Stone, «American Sports: Play and Dis-play», Chicago Review, Vol. 9, n.° 3 (Fall, 1955), pp. 83-100, reeditado em E. Larrabee e R. Meyersohn (eds.), Mass Leisure, Glencoe, Illinois, 1958; e Eric Dunning (ed.) The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Lon.dres, 1971. Ver tambem Peter Mclntosh, Sport in Society, Londres, 1963, pp. 119-20; e Roger Caillois, Man, Play and Games, Londres, 1962, pp. 5-6.
CAPITULO II
143
proprias pesspas se j^o£urani^^ tempo de lazer elas yoltafn^s^empre a progKarjimaJjQt£ns^fica^ao das tenspes? Em vez de condenar as tensoes como algo que prejudica, nao se deveria antes explorar as necessidades que as pessoas revelam por uma dose de tensao, enfim, como um ingrediente normal nas suas vidas? Nao se deveria antes tentar distinguir com maior clareza entre tensoes que sao sentidas como agradaveis e tensoes que sao sentidas como desagradaveis? E bastante facil ver que um denominador comum de todos os factos de lazer e o de estimular o aparecimento de tensao agradavel. Entao, o que significa dizer que a fungao do lazer e proporcionar relaxagao das tensoes? Esta e uma das questoes que exigem demonstra^ao. As pesquisas sociologicas de problemas do lazer tendem a ser prejudicadas pela consideravel confusao que existe na utilizagao dos termos. As vezes, por exemplo, nao ha uma clara distingao entre «lazer» e «tempo livre» como conceitos sociologicos5. Os dois termos sao utilizados, com frequencia, alternadamente. Os tipos de actividades a que se aplicam variam muito. Nao existe uma classificagao adequada destes tipos. Sem uma classificagao, como tern sucedido ate agora, continua obscuro o lugar do lazer no tempo livre das pessoas e a relagao entre os numerosos tipos de actividades de tempo livre. O «espectro do tempo livre» e uma tentativa de proporcionar uma tal classificagao. As deficiencias que mencionamos tiveram consequencias no piano e na direcgao do estudo sobre os problemas do lazer. Talvez seja suficiente apresentar dois exemplos: a) Os esforgos das investigates sociologicas tendem a concentrar-se em certas areas-limite das actividades de lazer. Por exemplo, os meios de comunicagao social sao um tema favorito de investigagao. Teatro, desporto, dangas com caracter social, a ida ao bar, concertos, touradas e um vasto campo de outras actividades de lazer raramente tern sido tratadas como temas 5
Dumazedier e alguns outros comegaram a delinear semelhante distingao, mas continua a ser comum, em escritos de sociologia do trabalho onde o Ia2er e referido, a dicotomia incorrecta entre «trabalho-lazer» e a tendencia para usar os termos «tempo livre» e «lazer» alternadamente.
144
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
centrais de investigagao. A concentragao da investigagao na televisao, radio, jornais e outros meios de comunicagao social pode dever-se, em parte, a sua importancia como meios de socializagao politica e de controlo social e, tambem, a hipotese de que, enquanto actividades de lazer, preenchem uma fracgao de tempo maior do que outras actividades. Contudo, mesmo que fosse este o caso, sem uma investigagao mais alargada nao se pode afirmar que o tempo despendido pelas pessoas num tipo especifico de actividades de tempo livre e, necessariamente, uma medida do significado que ele tern para estas. Nao e impossivel que os meios de comunicagao social sirvam, como formas de preencher o tempo, como outra maneira de «se ocupar de futilidades», sendo isso uma das razoes para o aumento do tempo que Ihe e dedicado, num periodo em que o tempo livre talvez tenha aumentado mais depressa do que a capacidade das pessoas para o utilizar; b) Falta uma teoria central do lazer, capaz de servir como um quadro comum de investigagao relativamente a todas as especies de problemas especificos do lazer. Podera duvidar-se de que esta se desenvolva, enquanto a investigagao empirica estiver largamente confinada a areas muito limitadas das actividades de lazer. Sobre bases tao delicadas, nao se pode nem determinar nem explicar as caracteristicas e as fungoes que todas as actividades de lazer possuem em comum. Nao se pode dizer o que e que distingue as actividades de lazer de todas as outras actividades humanas. Este estudo tenciona ser um passo nessa direcgao. E um movimento no sentido de uma teoria do lazer unificada. Como veremos, por meio da clarificagao das caracteristicas comuns das actividades de lazer, tambem e possfvel apresentar de forma mais completa as caracteristicas que distinguem os diferentes tipos de actividades de lazer entre si.
2 0 espectro do lazer do tempo livre Observances criticas como estas indicam desde ja que e necessaria uma nova orienta^ao do pensamento antes que seja possi-
CAPITULO II
145
vel compreender as relagoes e as diferengas entre as variadas actividades de tempo livre, entre as quais se inscrevem as actividades de lazer. O «espectro do tempo livre», que se encontra nas paginas a seguir, e uma tentativa de tragar um breve esbogo destas relagoes e diferengas. Propoe-se delinear aquilo que ate agora tern faltado, nomeadamente, uma ampla tipologia compreensiva e detalhada das actividades de tempo livre. Mostra, em smtese, que as actividades de lazer sao apenas um tipo entre outras. Ao mesmo tempo, indica a relagao entre o lazer e outras actividades de tempo livre. Como pode ver-se, a distingao e bastante obvia: todas as actividades de lazer sao actividades de tempo livre, mas nem todas as de tempo livre sao de lazer. Esta afirmagao, considerada de forma isolada, nao e particularmente reveladora. A sua pertinencia so e visivel no contexto do quadro teorico alargado integrado neste pequeno trabalho. Seria bastante estranho que fosse possivel, sem um tal esquema teorico, compreender com clareza o facto de que um grande numero de actividades de tempo livre nao sao dedicadas ao lazer. Isso nao permitiria, por assim dizer, que se atingisse o alvo em cheio. Qualquer classificagao de dados observaveis que seja arbitraria e inutil. Se o quadro de classificagao do espectro do tempo livre nao corresponder aos resultados de outras investigates neste campo, pode ser eliminado mas so no caso de estarmos em condigoes de Ihe oferecer, em bases novas, um substitute mais adequado. Tal como esta, o espectro do tempo livre revela, pelo menos, algumas caracteristicas estruturais que ligam entre si as varias categorias de actividades de tempo livre e que as distinguem de actividades de tempo nao livre do trabalho professional. O quadro teorico de base nele integrado emergira, progressivamente, no decurso deste artigo. Comegamos a organiza-lo em «A Busca da Excitagao no Lazer» (Capitulo I). No presente capftulo, vamos desenvolve-lo tendo em atengao uma classificagao mais compreensiva do lazer e de outras actividades. Nao se deve pensar que, para desenvolver este quadro de classificagao, a teoria unificadora que suporta o espectro do tempo livre tenha constituido a priori um ponto de partida. Este so emerge, de forma gradual, em constante fertilizagao cruzada com uma classificagao alargada de observances sobre as actividades de tempo livre. Tal como Brisaeus afirmou em relagao a Terra, na investiga^ao sociologica o pensamento teorico so conserva a sua
146
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
forga enquanto nao perder o contacto com o terreno firme dos factos empiricos. > Chamamos a tipologia que se segue um «espectro» devido a os varios tipos de actividades de tempo livre, como cores no espectro das cores, se confundirem entre si; sobrepoem-se e fundem-se com frequencia. Muitas vezes, combinam caracteristicas de varias categorias. Mas as propriedades de tais amalgamas, de todas as fronteiras e tipos em transigao, so podem ser compreendidas a partir das suas proprias caracteristicas. Uma vez que se comece de novo e o problema se encontre definido, a descoberta de caracteristicas estruturais comuns em actividades de lazer aparentemente diversas, de tragos que as distinguem como actividades de lazer das actividades de nao lazer, nao e particularmente dificil. For exemplo, como um indicador da orientagao do fio teorico que percorre o espectro, pode dizer-se que todas as actividades de lazer integram um controlado descontrolo das restrigoes das emogoes. Como se pode ver, as categorias do espectro do tempo livre consideradas como um todo podem distinguir-se pelo grau de rotina e de destruigao da rotina ou, por outras palavras, pelo diferente equilibrio entre os dois aspectos que nele se encontram integrados. A destruigao da rotina da-se mais rapidamente nas actividades de lazer mas, mesmo ai, e uma questao de equilibrio. A destruigao da rotina e o descontrolo das restrigoes sobre as emogoes estao bastante relacionados entre si. Uma caracteristica decisiva das actividades de lazer nao so nas sociedades industriais altamente ordenadas mas, tambem, tanto quanto se pode ver, em todos os tipos de sociedades, e a de que o descontrolo das restrigoes sobre as emogoes e controlado, ele mesmo, social e individualmente.
0 espectro do tempo livre
6
1) Rotinas do tempo livre a) Provisao rotineira das proprias necessidades biologicas e cuidados 6
Seria possivel esbogar uma tipologia correspondente de formas de ocupagao fora do tempo livre baseadas no mesmo quadro teorico de referenda e apresentar nao so a diferenga mas, tambem, a continuidade do espectro do trabalho e do espectro do tempo livre. Num dos limites da escala, situam-se tipos de trabalho quase total-
CAPITULO II
147
com o proprio corpo, por exemplo, comer, beber, descansar, dormir, fazer amor, fazer exercicios, lavar-se, tomar banho, resolver questoes relativas a alimentos e a doengas; b) Governo da casa e rotinas familiares, conservar a casa em ordem, organizar as rotinas, cuidar das lavagens de roupa, comprar alimentos e roupas, fazer preparativos para uma festa, resolver assuntos de impostos, administragao da casa e outras formas de trabalho (isto e, nao professional) privado para si proprio e para a sua familia; lidar com tensoes e fadigas familiares; alimentar, educar e cuidar das criangas; tratar dos animais. 2) Actividades intermediarias de tempo que servem, principal mente, necessidades de formagao e, ou tambem, auto-satisfagao e autodesenvolvimento. a) Trabalho particular (isto e, nao professional) voluntario para outros, por exemplo, participagao em questoes locais, eleigoes, igreja e actividades de caridade; b) Trabalho particular (isto e, nao professional), antes de tudo, para si proprio, de uma natureza relativamente seria e com frequencia impessoal, por exemplo, estudo privado com vista a progresses proflssionais, passatempos tecnicos sem valor proflssional obvio mas que exigem perseveranga, estudo especializado e competencia, tais como construir radios ou ser amador de astronomia; c) Trabalho particular (isto e, nao professional), antes de tudo, para si proprio, de um tipo mais ligeiro e menos exigente, por exemplo, passatempos como fotografia amadora, trabalho em madeira e colecgao de selos;
mente desprovidos de oportunidades intrmsecas e autonomas de ressonancia emocional agradavel, embora as pessoas consigam, com frequencia, processos de se desviarem de rotinas de trabalho, aridas, por inerencia, do ponto de vista emocional, atraves de formas especiflcas heteronimas de agradavel desempenho, por exemplo, as conversas futeis de camaradagem, o importunar recem-chegados, o brio quanto a competencia com que se realizam as rotinas, as vitorias em competigoes e lutas. No outro limite da escala, situam-se tipos de trabalho proflssional com oportunidades intrmsecas de comunicativa ressonancia emocional, como no caso do ensino ou da investiga^ao numa universidade, da participagao em confrontos parlamentares, de dirigir ou de tocar numa orquestra proflssional, de praticar um desporto ou actuar sobre o pako como um proflssional, de escrever romances e outras formas de satisfazer, do ponto de vista proflssional, as necessidades de lazer dos
148
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
d) Actividades religiosas\ e) Actividades de formagao de cardcter man voluntdrio, socialmente menos controlado e com frequencia de cardcter acidental^ ordenadas a partir de formas de conhecimento mais serias, menos divertidas, para formas menos serias e mais interessantes^ de adquirir conhecimento, com muitas tonalidades interrnedias, tais como a leitura de jornais e de periodicos, audigao de debates politicos, assistencia a conferencias de educagao de adultos, visao de programas de televisao inforrnativos. 3) Actividades de lazer a) Actividades pura ou simplesmente, sociaveis: (i) Participar como convidado em reunioes mais formais, como casamentos, funerais ou banquetes; ser convidado para jantar em casa de um superior; (ii) Participar em lazer-gemeinschaften* relativamente informal, com um nfvel emocional manifesto e amigavel consideravelmente acima de outras actividades de tempo livre e de trabaIho, por exemplo, reunioes no bar ou em festas, encontros familiares, comunidades de conversa banal; b) Actividades de jogo ou « mimeticas »: i) Participar em actividades mimeticas (relativamente) de elevado nfvel organizativo, como um membro da organizagao, por exemplo, um teatro amador, clube de criquete, clube de futebol. Em tais casos, chega-se ao fulcro das actividades mimeticas de destrui^ao da rotina e de descontrolo e de experiencias, atraves de uma concha de rotinas e de formas de controlo aceites e partilhadas voluntariamente. Nesta categoria, a maior parte das actividades mimeticas envolve um grau de destruigao da rotina e de alivio das restrigoes, por meio de movimento do corpo, isto e, por meio da mobilidade corporal; (ii) Participar como espectador em actividades mimeticas bastante organizadas sem fazer parte da propria organizagao, com pouca ou nenhuma participagao nas suas rotinas e, de acordo com isso, com a destruigao relativamente diminuta da rotina, atraves de movimento, por exemplo, ver fiitebol ou ir a um
*«Lazer-comunitario» (N. da T.)
CAPlTULO II
149
iii) participar como actor em actividades mimeticas menos organizadas, por exemplo, danga e montanhismo; c) Miscelanea de actividades de lazer menos especializadas, com o cardeter vincado de agraddvel destruigao da rotina e com frequencia multifuncional, por exemplo, viajar nos feriados, comer fora para variar, relagoes de amor destruindo a rotina, cuidados nao rotineiros com o corpo, tais como banhos de sol, dar um passeio a pe. O espectro do tempo livre e um quadro de classificagao que indica os principais tipos de actividades de tempo livre nas nossas sociedades. Com o seu auxflio, podem observar-se rapidarnente factos que estao, com frequencia, obscurecidos pela tendencia para equacionar o tempo livre enquanto actividades de lazer: algumas actividades de tempo livre tern o caracter de trabalho, ainda que constituam um tipo que se pode distinguir do trabalho profissional; algumas das actividades de tempo livre, mas de modo algum todas, sao voluntarias; nem todas sao agradaveis e algumas sao altamente rotineiras. As caracteristicas especiais das actividades de lazer so podem ser compreendidas se forem consideradas, nao apenas em relagao ao trabalho profissional mas, tambem, em relagao as varias actividades de nao lazer, no quadro de tempo livre. Desta maneira, o espectro do tempo livre contribui para dar maior precisao ao problema do lazer. O campo de exploragao aberto pelo espectro do tempo livre e francamente extenso. Como se podexver, para ele e fundamental o grau da rotina caracteristico das suas varias ligagoes. Entendemos «rotinas» como sendo canais correntes de acgao reforgada por interdependencia com outros, e impondo ao individuo um grau bastante elevado de regularidade, estabilidade e controlo emocional na conduta, e que bloqueiam outras linhas de acgao, mesmo que estas correspondam melhor a disposigao, aos sentimentos, as necessidades emocionais do momento. O grau de rotina pode variar. Em geral, o trabalho profissional e muito rotineiro e, deste modo, numerosas actividades de tempo livre sao classificadas em 1, sendo um pouco menos aquelas que se classificam em 2 e ainda menos as que se classificam em 3. Algumas das outras actividades de tempo livre, como se pode ver, transformam-se em actividades de lazer. Com o decorrer do tempo nao poderemos deixar de Ihes prestar atengao. Contudo,
150
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
dado que so se pode avangar gradualmente, um numero consideravel de problemas levantado pelo espectro do tempo livre nao pode ser aqui resolvido. As caracteristicas distintivas que se encontram no fulcro das actividades de lazer ja foram mencionadas. Numa sociedade em que a maior parte das actividades estao submetidas a rotina, em ligagao com uma interdependencia forgada de grande numero de pessoas, e com os tipos correspondentes de objectivos pessoais e impessoais que reclamam uma elevada subordinate as necessidades emocionais imediatas, em relagao aos outros ou a um trabalho impessoal, as actividades de lazer proporcionam — dentro de certos limites — oportunidades para experiencias emocionais que estao excluidas dos sectores altamente rotineiros da vida das pessoas. As actividades de lazer sao uma categoria de actividades em que a restrigao rotineira de emogoes pode, ate certo ponto, ser publicamente reduzida e com aprovagao social, mais do que qualquer outra. Neste caso, um individuo pode encontrar oportunidades para um intenso despertar de agradaveis emogoes de nivel medio sem perigo para si proprio, quer se trate de um individuo de sexo masculino ou feminino, e sem perigo ou risco persistente para outros, visto que noutras esferas das actividades da vida, acompanhadas por sentimentos fortes e intensos, tao pouco comprometem o individuo para alem do momento do intenso despertar ou o levam a incorrer em graves perigos e riscos — se nao estao todos bloqueados pela subordinate rotineira dos sentimentos pessoais imediatos e objectivos exteriores a si proprio. Nas actividades de lazer, a consideragao de si proprio e, em especial, da sua satisfagao sob uma forma mais ou menos publica e, ao mesmo tempo, socialmente aprovada, pode ter prioridade sobre todas as outras. O grau de compulsao social, no sentido da participagao, tambem e marcadamente mais baixo e a serie de escolhas voluntarias individuais e, por correspondencia, mais elevada nas actividades de lazer do que noutras actividades de tempo livre, em particular as de tipo 1, para nao mencionar as actividades profissionais. Atraves de todo o espectro situa-se um piano inclinado de maior ou menor decrescimo de constrangimento social — com numerosas variedades e matizes entre estes tipos de compulsao e de vontade individual — em relagao as actividades de lazer no limite inferior. Tal como ficou aqui entendido, as ocupagoes de lazer oferecem um
CAPfTULO II
151
campo de acgao mais vasto para um divertimento individual intenso e relativamente espontaneo de curta duragao do que qualquer outro tipo de actividades publicas. Representam uma esfera de vida que oferece mais oportunidades as pessoas de experimentarem uma agradavel estimulagao das emogoes, uma divertida excitagao que pode ser experimentada em publico, partilhada com outros e desfrutada com aprovagao social e boa consciencia. O despertar de emogoes agradaveis nas actividades de lazer esta, em muitos casos, relacionado com tipos especificos de tensao aprazivel, com formas de excita^ao agradavel que sao especificas desta esfera da vida, embora se pudesse esperar que estivessem geneticamente relacionadas com outros tipos de excitagao. Como veremos, a excita^ao no lazer implica o risco de se transformar a si mesma nos outros tipos. O risco — indo ate ao limite — e essencial para inumeras actividades de lazer. Com frequencia, constitui parte integrante do prazer. De que modo e por que motivos e que as institutes e factos de lazer oferecem oportunidades para este tipo de experiencias e uma questao que exige estudo. Mas pode ja dizer-se que esta fungao e um aspecto-chave da maioria senao de todas essas experiencias. No con junto das actividades de lazer, todas integram um tipo peculiar de risco. Sao capazes de desafiar a rigorosa ordem da vida rotineira das pessoas sem colocar em perigo os meios de subsistencia ou o seu estatuto. Permitem as pessoas tornar mais faceis ou ridicularizar as normas da sua vida de nao lazer, e todos o fazem sem ofender a consciencia ou a sociedade. Envolvem «brincar com as normas» como um «brincar com o fogo». Por vezes, vao longe de mais. A renovagao emocional proporcionada por este acto de brincar com as normas merece um exame mais profundo, quer para o seu proprio conhecimento quer para o beneficio do que, a partir dela, podemos aprender sobre nos proprios.
E facil verificar que as instrugoes e factos de lazer se estruturam a fim de proporcionar uma excitagao agradavel ou, pelo menos, um agradavel estimulo das emogoes, em combinagao com um grau relativamente elevado de escolha individual. A questao e a seguinte: como e que eles actuam no sentido de propiciar este tipo
152
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
de experiencia e porque e que oferecem uma forma de recuperagao emocional especifica? Porque e que a necessidade deste tipo de renovagao esta tao disseminada e, pelo menos, no nosso tipo de sociedade, porque e tao premente que as pessoas gas tern tan to dinheiro em busca dela? E que correspondencia existe entre a estrutura das institutes e dos factos de lazer e a estrutura dos seres humanos, das pessoas que procuram estas satisfagoes especificas atraves da participagao neles? De modo a responder a estas questoes de uma maneira geral, sera util analisar, por momentos, algumas hipoteses mais alargadas, que sao bastante comuns nas teorias sociologicas contemporaneas, antes de as considerarmos de uma forma mais detalhada, com o auxilio de alguns tipos especificos de actividades de lazer. Nao se pode esperar que seja possfvel examinar este tipo de questao sem proceder a consideragao critica destas hipoteses. Eis aqui uma das areas em que se torna visfvel o apoio da sociologia do lazer aos problemas gerais da teoria sociologica e, num sentido mais vasto, a propria imagem dos seres humanos. O exame que se torna necessario pode ser realizado, da melhor maneira, em dois passos. O primeiro consiste na reflexao sobre algumas das teorias sociologicas, traduzidas, com frequencia, pela utilizagao actual de conceitos tais como «normas» e «valores». De acordo com esta ideia, verifica-se a tendencia para pensar e falar, por exemplo, como se os seres humanos que formam a sociedade se regessem, em todas as suas actividades, por um unico con junto de normas7. E facil ver que, de facto, as pessoas em sociedade seguem, frequentemente, normas diferentes em esferas distintas das suas vidas. As normas, por outras palavras, sao, ate certo ponto, a «esfera-limite»: determinada conduta, que pode ser normal numa esfera, pode ser um desvio noutra. Se o lazer for considerado como uma esfera e o nao lazer como outra, isto e precisamente aquilo que se observa: em ambas as esferas os seres humanos seguem certas normas, mas as normas sao diferentes, por vezes contraditorias. Deste modo, quando Laurel e Hardy trazem uma arvore de Natal a um cliente, ela flea presa na porta e atiram a porta ao chao, e o cliente Ihes bate e todos ficam loucos numa orgia de destruigao, nos rimos as gargalhadas, embora, tanto eles como nos, estejamos a agir 7
Esta tendencia e, talvez, mais comum no trabalho de Talcott Parsons.
CAPfTULO II
153
em oposigao as normas da vida de nao lazer, eles por baterem uns nos outros, nos por nos rirmos devido a isso. Num combate de boxe, as normas da vida de nao lazer, como aquelas que proibem a agressao ffsica sobre os outros, sao suspensas e outras normas tomam o seu lugar. As comunidades de bebidas desenvolvem, tambem, normas especificas de lazer; por exemplo, que se pode beber mais, mas nao se deve beber menos do que os outros e que se pode ficar um pouco embriagado, mas nao demasiado. Em resumo, nao se podem determinar as inter-relagoes funcionais das actividades de lazer e de nao lazer sem integrar nesse modelo teorico a pluralidade de codigos interdependentes adequados a cada um deles. Este e o primeiro passo que e necessario dar no sentido da critica de uma hipotese muito difundida na sociologia contemporanea, is to e, a presungao de que as normas de todas as sociedades sao monoliticas e todas formando um so bloco. Mas ha que ir um pouco mais alem no estudo critico destes conceitos. Num exame mais minucioso, depressa se descobre a forma surpreendente como se mantem o uso destes termos. Nao se pode passar inteiramente por cima deste facto mesmo que nos preocupemos apenas com a sociologia do lazer. Assim, tal como hoje e usado, o termo sociologico «norma» pode bem referir-se a uma quantidade de tipos diferentes de fenomenos. Pode referir-se pura e simplesmente a preceitos morais que se considera serem validos para todos os seres humanos. Pode referir-se a normas seguidas num grupo nacional particular, mas nao por outros. Pode ser aplicado a questoes linguisticas. As pessoas podem dizer: «Voce tern de formar a primeira pessoa do singular dizendo "eu sou" e nao "eu ser".» Ou noutros casos (porque as normas gramaticais nao sao, de modo algum, o unico tipo de normas linguisticas): «Esta e a forma como deve pronuncia-lo: "Beaver" e nao "Belvoir".»8 Noutras circunstancias, a palavra pode referir-se a regras de um jogo. Deste modo, as normas nao tern a forma de preceitos muito generalizados, tais como «os soldados tern de obedecer as ordens dos seus ofkiais-comandantes», que Parsons menciona como um exemplo do seu conceito de normas9; elas podem, tambem, por exemplo, 8
Belvoir Street (pronuncia-se Beaver Street) e uma rua bem conhecida em Leicester. 9 Ver Talcott Parsons, The Struture of Social Action, Nova lorque, 1949, p. 75.
154
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
tomar a forma de um quadro de referenda para os movimentos entrelagados dos jogadores num tabuleiro de xadrez ou num campo de futebol. Desta forma, num jogo particular pode nao ser possfvel deslocar A se o seu adversario estiver em condigoes de movimentar B, mas pode faze-lo se o seu opositor nao estiver em situagao de fazer mover B. Contrariamente as normas do tipo das leis morais, que parecem nao ser delimitadas por configurates especiais, as normas do tipo daquelas das regras do jogo sao limitadas por uma configuragao10. Este e um dos muitos casos que mostra que as afirmagoes sobre aquilo que as pessoas deviam ou nao deviam fazer nao necessitam de seguir o modelo altamente organizado que, frequentemente, parece determinar o uso da palavra «norma» no discurso sociologico, o modelo de uma lei moral geral para casos individuals identicos. As normas podem seguir tambem modelos que constituem um nivel inferior de generalidade e um tipo de abstracgao tal como as regras de um jogo. Nao existe razao, excepto no ambito de uma tradigao filosofica nao verificada, que permita aceitar que menor generalidade significa exactamente o mesmo que menor valor epistemologico ou cientifico. As caracteristicas dos diferentes tipos de normas podem ser avaliadas, como as do tipo de lei moral e o tipo de regra do jogo, independentemente de quaisquer associates de valor. Ambas constituem regulamentos sociais de individuos que actuam em grupos. Todavia, o primeiro tipo e modelado por regulamentos altamente interiorizados. Como as ordens de consciencia de cada um, as normas sociais deste tipo parecem nao exigir, nem sequer serem capazes de qualquer outra explicagao adicional. Nao se pergunta como tiveram origem ou se podem mudar ou desenvolver e, se assim for, o que as leva a isso. Sao entendidas como a origem, a fonte da acgao social, que, mais uma vez, como a nossa propria consciencia, parecem nao vir de parte alguma — as quais, embora obriguem as pessoas a reunir-se em sociedades, parece que nao descendem nem sao dependentes de qualquer outra coisa. Normas deste tipo possuem o caracter de leis gerais para decisoes que cada indivfduo tern de tomar por si mesmo, seja de que sexo for, independentemente de todos os outros. 10 Para uma discussao do conceito de configurates, ver Elias, What is Sociology?, p. 13 e seguintes.
CAPtTULO II
155
O outro tipo de normas que e util considerar aqui, o tipo de norma concebido atraves das regras de jogo, tern, em muitos aspectos, caracterfsticas diferentes. Ainda que ambos representem regulamentos de individuos e as do tipo daquelas que constituem as regras do jogo, estao centradas no grupo. Dado que esta centrado no individuo, o tipo de normas das leis morais nao se refere explicitamente a grupos especificos. As normas das regras do jogo, por outro lado, sao preceitos bastante explicitos para individuos integrados em grupos especificos limitados. O primeiro refere-se habitualmente a actos singulares de individuos num determinado momento, o ultimo diz respeito as dinamicas de entrelagamento de actos individuais, a estrategias individuals na sequencia do tempo e aos movimentos dos jogadores numa configuragao dinamica de pessoas. Alem disso, de acordo com o modelo de consciencia, as primeiras sao habitualmente concebidas como absolutas, rigidas e inalteraveis, e as ultimas representam um quadro flexivel para as actividades do grupo dentro do qual cada jogador, seja do sexo masculino ou feminino, pode desenvolver regras proprias ou mesmo novas regras, no quadro de uma progressao. Deste modo, no futebol, um jogador de campo ou um guarda-redes podem criar a sua propria tecnica, que desenvolvem e respeitam na situagao concreta das suas experiencias de jogo. Uma determinada equipa especifica de jogadores cria a sua propria tradigao, uma maneira de jogar integrando normas especificas, que sao normas dentro das normas, isto e, no quadro daquelas em que todos os jogos de futebol ou de netball* se realizam. Por seu lado, estas sao regras no ambito de outras regras de variados niveis, por exemplo, das regras comuns a todos os jogadores amadores, tal como se encontra estabelecido pelo Comite Olimpico, ou das regras legais de um pais, que integram, por sua vez, algumas prescribes morais nao escritas que se considera serem validas para todos os seres humanos e assim por diante. A seu tempo veremos, sem duvida, como e inadequado o conceito de nfvel-unico de normas, modelado nas prescribes individuais profundamente interiorizadas. Nao so a analise particular *Jogo de equipa no qual a bola tern de ser lan^ada de forma a ser introduzida num aro colocado na horizontal a uma altura relativamente elevada e que possui uma rede suspensa. (N. da T.)
156
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
de uma equipa de futebol, mas uma analise mais profunda das estrategias de entrelagamento de individuos em grupos revela, geralmente, normas de varios niveis — normas dentro de normas ou regras dentro de regras — que podem mudar de acordo com novos desenvolvimentos e experiencias na sociedade. Investigates empiricas, tais como as do processo de civilizagao e de desenvolvimento do futebol, mostram com muita clareza que, de facto, as normas desenvolvem-se como parte da estrutura da sociedade11. Ate agora, contudo, nas teorias sociologicas, as normas foram habitualmente tratadas como absolutas, como o final de todas as questoes: e assim que as normas de consciencia sao compreendidas na imediaticidade da propria experiencia de cada um, mesrno que se possa saber — ao nivel da reflexao — que elas foram assimiladas e interiorizadas atraves da aprendizagem, no decurso de um processo de civilizagao. Nao existe ponto zero, nao existe um inicio para o jogo-envolvimento dos seres humanos e, por isso, tambem nao existe inicio de normas ou regras. Um ser humano envolve-se a partir do exterior num jogo de comportamentos com os outros e, juntarnente com eles, sejam do sexo masculino ou feminino, pode, conscientemente ou nao, contribuir para uma mudanga nas regras de acordo com as quais ele se joga.
4 O segundo dos dois passos mencionados consiste na utilizagao de jogos como modelo para as relagoes entre as actividades de lazer e de nao lazer. Ao proceder desta maneira e encorajado por avaliagoes ocultas e nao testadas, pode ser mais facil compreender a relagao entre aquelas actividades; pode ser menos diffcil perceber que ambas nao sao simplesmente as actividades de individuos, mas as actividades de individuos no quadro de grupos especificos. Isto e perfeitamente obvio se alguem estudar as actividades de lazer de sociedades menos urbanizadas e menos diferenciadas que sao quase sempre as dos comunitarismos. Isso e menos obvio, mas nao menos n Ver Norbert Elias, The Civilizing Process, Oxford, 1978, e Eric Dunning e Kenneth Sheard, Barbarians, Gentlemen and Players: a Sociological Study of the Development of Rugby Football, Oxford, 1979-
CAPITULO II
157
correcto, a respeito de sociedades urbanas e industrials, ainda que o campo de acgao para a escolha individual a respeito de actividades de lazer seja muito mais vasto. Contudo, por maior que ele seja, nao e de maneira nenhuma ilimitado. Nas sociedades mais desenvolvidas, a escolha individual das actividades de lazer tambem depende das oportunidades construidas antecipadamente, e estas mesmas actividades sao habitualmente moldadas por fortes necessidades de estimulagao social, directamente ou em convivencia com o lazer mimetico. A teoria do lazer aqui exposta permaneceria incompreensivel enquanto nao se percebesse, com toda a clareza, que as actividades de lazer sao actividades sociais tanto nas sociedades muito diferenciadas como nas sociedades mais simples. Mesmo que tomem a forma do isolamento de um indivfduo, elas sao intrinsecamente dirigidas tanto a partir dos outros, como e o caso de alguem, de qualquer sexo, que ouve um disco ou le um livro, ou desse individuo relativamente aos outros —- quer se encontrem presentes em carne e osso ou nao —, como e o caso de alguem que escreve poesia ou toca violino sozinho. Em resumo, sao comunicagoes recebidas ou enviadas por pessoas dentro de configuragoes de grupo especificas. E isso o que se procura transmitir atraves do modelo de jogos. Com frequencia, o caracter essencialmente social das actividades de lazer nao e verificado nas reflexoes que procuram avaliar se as actividades de lazer sao «reais» ou simples «fantasias». Por exemplo, nao e pouco frequente encontrarem-se afirmagoes como as de William Stephenson, de acordo com as quais a distingao entre trabalho e jogo «depende do que e a fantasia e, de certo modo, a irrealidade do mundo que constitui o jogo, e o que e real no mundo que const itui o trabalho »12. Tambem se pode referir Roger Caillois, que acentua, frequentemente, a «irrealidade» dos jogos13. As dificuldades inerentes a toda esta discussao sao essencialmente devidas a dois factores. O primeiro e a avaliagao implicita que frequentemente determina aquilo que e considerado como real e aquilo que o nao e. Deste modo, a avaliagao do trabalho como real e do lazer como irreal encontra-se profundamente relacionada com 12
William Stephenson, The Play Theory of Mass Comunication, Chicago, 1967,
p. 46. 13
Caillois, Man, Play and Games, pp. 5-6.
158
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
as tradigoes e valores de uma sociedade em que o trabalho e um dos valores mais elevados, enquanto o lazer e, com frequencia, encarado como uma futilidade inutil. Representantes de certas sociedades, por exemplo Aristoteles, com um sistema de valores que avaliava o lazer de forma mais digna do que o trabalho, dificilmente teriam concordado com a considerable do lazer como «irreal». O segundo factor e a incapacidade de levar em linha de conta o unico contexto em que o termo «real» possui um significado factual, o qual pode ser verificado a luz de uma prova susceptivel de demonstragao. Isto e, a utilizagao do conceito «real» como antonimo daquilo que sao sonhos e fantasias puramente individuals, em particular os sonhos e as fantasias de pessoas doentes, os quais nao se podem comunicar no sentido comum dessa palavra, e que nao fazem sentido para os outros, excepto para um medico. Nesta linha, «realidade» e uma propriedade de todas as actividades humanas que se sujeitam a disciplina da comunicagao, enquanto «irrealidade» e uma propriedade de todas as fantasias individuals nao partilhadas por outros. Este esclarecimento nao estipula mais uma divisao estatica e absoluta entre o que e real e o que e irreal deixa espago para diferentes tipos e niveis de realidade. Isso implica que todas as actividades humanas que se baseiam na comunicagao, possuindo o caracter de movimentos realizados pelas pessoas num jogo, sao reais. Os agrupamentos de pessoas no lazer e fora das suas actividades de lazer sao, sem qualquer duvida, diferentes entre si. E esta a diferenga que nos procuramos expressar ao dizer que o lazer e o nao lazer sao jogos realizados por grupos de pessoas entre si, de acordo com regras diferentes. Nao ha duvida de que no lazer as fantasias de jogo e emogoes de todos os generos sao permitidas em proporgao muito maior do que na vida de nao lazer das pessoas, mas sao fantasias socialmente padronizadas e comunicadas, fantasias cristalizadas numa pega teatral, numa pintura, num jogo de futebol, numa sinfonia, numa corrida de cavalos, danga ou aposta. Em contraste com fantasias puramente privadas, nao socializadas, elas sao tao reais em termos de participagao de seres humanos como o tempo livre em que se dedica atengao aos seus filhos ou a sua mulher ou, ne§se caso, ao seu trabalho. Talvez se torne possivel facilitar a compreensao deste esclarecimento essencialmente simples por meio de uma ligeira mudanga na
CAPfTULO II
159
utilizagao dos termos. Pode hesitar-se em considerar pinturas, romances, pegas de teatro e filmes como «reais» enquanto estes se agruparem teoricamente sob o titulo de «actividades de lazer»; pode considerar-se mais facil aceita-las como «reais» se elas forem em teoria agrupadas sob o titulo de «cultura». Muitas vezes impede-se a compreensao do que e obvio devido, simplesmente, a diferengas de valor ocultas no sentido das palavras. Mas se o facto de as actividades de lazer e as de nao lazer serem actividades sociais, isto e, jogos realizados por grupos de pessoas, assegura a sua realidade, apesar disso estes sao jogos de um tipo diferente. O estudo a fazer e, porem, determinar a sua interdependencia funcional na sociedade, assim como as suas caracteristicas distintivas (das quais uma boa parte ja foi referida). Isso contribui para uma melhor compreensao das nossas sociedades, para se ver que, neste caso como noutros, as pessoas jogam entre si, nao so um mas diversos jogos interdependentes com regras diferentes. Os jogos de lazer e de nao lazer sao um exemplo destes jogos complementares. Existem muitos outros. Em certos casos, sao praticados dois ou mais jogos em simultaneo como, por exemplo, no caso das relagoes «formais» e «informais». Diversos outros jogos interdependentes sao jogados em tempos diferentes, como no caso de «jogos de guerra» e «jogos de paz». A relagao entre lazer e nao lazer e do ultimo tipo. A estrutura distintiva dos dois tipos de jogos, a sua relagao entre si, bem como as fungoes de cada um deles para aqueles que jogam, exige um exame mais profundo. Alguns aspectos destas diferengas podem ser apresentados com grande brevidade. O espectro do tempo livre e os comentarios que se seguem pretendem evidencia-los. As actividades dominantes nos jogos de nao lazer sao dirigidas por objectives. Possuem o caracter de vectores em linha recta. As suas fungoes primarias sao fungoes para outros, para «eles» ou para organizagoes impessoais, tais como casas de negocios ou Estados-nagoes, embora elas possam ter tambem fungoes secundarias para si proprio. Isto pode envolver, e de facto assim sucede habitualmente, satisfagao atraves de mensagens e de estimulagao recebida dos outros, mas a satisfagao pessoal para aqueles que estao envoividos no jogo permanece a sua fungao primaria. Neste sentido, pode dizer-se que o lazer constitui um enclave socialmente consentido, de concentragao sobre si proprio, num mundo de nao lazer que necessita e obriga a predominancia
160
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
de actividades centradas nos outros. Enquanto as ultimas sao dirigidas por objectivos e actuam como vectores, as primeiras, em sentido figurado, possuem o caracter de «ondas». Os sentimentos despertados pelas actividades de lazer tornam-se tensos entre polos opostos tais como medo e exaltagao, e actuam, por assim dizer, de um lado para o outro. E so a falta de adequagao dos nossos conceitos tradicionais e dos nossos utensilios de linguagem que torna dificil expressar e compreender que, nas ocupagoes de lazer, sentimentos aparentemente antagonicos como o medo e o prazer nao sao apenas opostos um ao outro (como «logicamente» parecem estar) mas partes inseparaveis de um processo de satisfagao de lazer, porque as satisfagoes de lazer so podem ser conceptualizadas como processes. Nesse caso, pode dizer-se que nao e impossivel nenhuma satisfagao a partir das ocupagoes de lazer sem pequenas fracgoes de medo a alternarem com agradaveis esperangas, breves alvorogos de ansiedade a alternarem com alvorogos de antecipadas agitagoes de delei te e, em alguns casos, atraves de vagas deste genero, resultando num climax catartico, no qual todos os medos e ansiedades podem resolver-se temporariamente, deixando so por breves momentos, o gosto da fruigao da agradavel satisfagao. E este o motivo por que as formas de excitagao desempenham um papel central nas actividades de lazer. So deste modo se pode compreender a fungao do lazer na destruigao da rotina. As rotinas integram um nivel elevado de seguranga. Sem se expor a si proprio a um certo nivel de inseguranga, a um maior ou menor risco, a incrustagao das rotinas nao se perderia nem se deslocaria, ainda que temporariamente, e a fungao das actividades de lazer perder-se-ia. Contudo, as actividades especificas de lazer podem perder a sua fungao de destruigao da rotina. Conservam-na somente em relagao a um dado con junto de rotinas. Actividades que hoje possuem uma fungao de destruigao da rotina podem tornar-se rotineiras atraves da repetigao ou atraves de um grau de controlo demasiado rigido e, deste modo, perdem a fungao de proporcionar excitagao. Nesse caso, deixam de proporcionar um grau de inseguranga, de satisfazer a expect at iva de algo inesperado e arriscado, a tensao, a excitagao da ansiedade que as acompanha. Estes altos e baixos, vagas breves ou longas de agradaveis sentimentos antagonistas tais como esperanga e medo, exaltagao e abatimento, sao uma das fontes de renovagao emocional de que ja falamos antes. Ate mesmo os preparati-
CAPITULO II
161
vos para passar um feriado num lugar que e novo — o que, em face disso, pode parecer francamente agradavel — implica saborear em antecipagao o inesperado que se pode encontrar ai e, ao mesmo tempo, possivelmente no temor de uma ligeira incerteza, a possibilidade de encontros desagradaveis ou instalagoes desconfortaveis, ou a esperanga de fazer alguns conhecimentos novos totalmente encantadores. For conseguinte, mesmo neste caso existem feixes de ansiedade misturados com uma agitagao de antecipado prazer. Pode ver-se, desde ja, que a interdependent funcional do lazer e do nao lazer (para o qual nao possuimos no presente, nenhum termo de classifkagao adequado), entre os aspectos que constituem a rotina das nossas vidas e os enclaves de destruigao de rotina situados no seu interior, so podem ser expresses em termos de equilibrio. As proprias actividades de lazer podem tornar-se rotineiras, podem facilmente, se nao houver mais nada, esvaziar-se de qualquer fimgao. E as rotinas? Poderemos nos prosseguir uma vida equilibradamente rotineira sem enclaves de lazer? Formular esta questao e avangar para o fulcro do problema. Nao pretendemos dizer que nao existam pessoas que nao vivam de maneira semelhaate. E possivel que nas nossas sociedades grande numero de pessoas viva uma vida totalmente rotineira, completamente sem interesse e sem qualquer relevo, nao so as pessoas idosas, entre as quais parecem ser bastante frequentes as faltas de lazer — em parte, porque, nao obstante continuarem vivos, as suas vidas tornam-se gradualmente menos «reais» a medida que deixam de participar nos jogos do trabalho e tambem nao podem encontrar ou nao podem iniciar uma participagao adequada nos jogos de lazer —, mas, igualmente, entre pessoas de meia-idade, porem, talvez menos entre os jovens. Existe ai uma certa evidencia sugerindo que a ausencia de equilibrio entre actividades de lazer e de actividades de nao lazer implica um determinado empobrecimento humano, alguma secura de emogoes que afecta toda a personalidade. Talvez aqui se possa ver com maior nitidez os perigos inerentes a qualquer classificagao das actividades de lazer como «irreais». Pode avangar-se mais um passo ao apresentar, pelo menos, um modelo provisorio das fimgoes de equilibrio das actividades de nao lazer e das que pertencem ao lazer nas nossas sociedades. A con-
162
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
ceptualizagao que e dominante em relagao a esta interdependencia entre lazer e nao lazer, em termos de relaxagao das fadigas e das tensoes, e enganadora porque, entre outras razoes, sugere que o trabalho professional, tal como as actividades de tempo livre profundamente rotineiras, produz tensoes, enquanto a natureza dessas tensoes permanece obscura. De modo vago, o termo «tensao » surge neste contexto com frequencia identificado com fadiga. Nesta base, o caracter das actividades de lazer, o facto de elas proprias criarem tensoes, que respondem a necessidades de estimulagao, a uma procura de excitagao, como o dissemos antes, permanece incompreensfvel. Que genero de tensao e esta que e contrabalangada atraves de outro genero de tensao, e encontra uma fesolugao atraves dela, que e motivada e talvez agradavelmente solucionada pelas actividades de lazer?
5 Nao e possivel responder a este tipo de questoes sem ter em consideragao aspectos de lazer que, segundo as actuais convengoes, permanecem fora do campo de pesquisa da sociologia. O problema que aqui se nos depara foi sentido do principio ao fim desta investigagao. E tempo de o colocar abertamente. E possivel, e esta a questao, elaborar uma teoria de lazer razoavelmente adequada no quadro de qualquer ciencia humana particular, como a sociologia, a psicologia ou, neste dominio, a biologia humana, se as suas relagoes permanecem obscuras, tal como sucede hoje em dia? De facto, os problemas de lazer pertencem a esta vasta classe de problemas que, no estadio actual do desenvolvimento da especializagao cientifica, dizem respeito nao so a dois mas a diversos ramos do conhecimento. Eles nao se ajustam inteiramente ao quadro de referenda de qualquer uma destas ciencias segundo a maneira como estas se encontram constituidas no presente, mas pertencem antes ao territorio inexplorado da terra de ninguem que existe entre elas. Se a sociologia e considerada como uma ciencia que negligencia aspectos psicologicos ou biologicos dos seres humanos, se a psicologia ou a biologia humana se consideram ciencias que podem intervir isoladamente, sem ter em atengao os aspectos sociologicos, os problemas do lazer serao deixados de lado. De facto, estes problemas
CAPfTULO II
163
mostram de forma clara que as limitagoes inerentes a compartimentagao dos seres humanos podem constituir um tema de estudo cientifico. O espectro do tempo livre, como um modelo classificador, revelou ja que nunca sera suficiente distinguir diferentes aspectos separados das pessoas sem um quadro global de referenda que assinale as suas relagoes. A concepgao actual das varias ciencias considera estes aspectos como se eles existissem, de facto, independentemente uns dos outros. A separagao e total. Nao existe um quadro global de referencia que indique como e que estes diversos aspectos se ajustam entre si. Ao situar as actividades de lazer no quadro mais alargado do tempo livre, referimos ja que os problemas com que se defronta o investigador, embora reclamem uma distingao, nao autorizam a separagao entre os aspectos da realidade que habitualmente sao estudados por uma das ciencias humanas. Se as pessoas vao ao teatro, a um baile, a uma festa ou as corridas, e porque no lazer elas podem, tal como dissemos antes, escolher como se ocupar de uma maneira que favorega a experiencia do prazer. Deste modo, o prazer, as perspectivas de um tipo especifico de estimulagao agradavel, e um elemento essencial na estrutura social destas institutes, do teatro, da danga, das festas ou corridas e de todas as outras que foram mencionadas no decurso desta investigagao. Os problemas do prazer pertencem, pode dizer-se, ao dominio da psicologia ou da fisiologia; mas integram-se, contudo, na esfera de competencia dos sociologos. Estes procuraram, em toda a historia da sua ciencia, distinguir os seus proprios tipos de problemas daqueles que eram estudados por psicologos e biologos. Em determinada epoca, tornava-se indispensavel definir que os fenomenos sociais eram um nivel de investigagao com caracteristicas distintivas proprias. Neste sentido, a luta dos sociologos pela relativa autonomia do seu tema revelou-se frutuosa. Admite-se que esta autonomia se encontra agora estabelecida com solidez, permitindo aos sociologos considerar nao so a especificidade dos seus problemas mas, tambem, a sua relagao com os dos campos vizinhos. Nas suas investigagoes, foi frutuoso para os sociologos abstrairem-se dos problemas da psicologia e da biologia que se encontravam e percorrerem, durante algum tempo, um caminho separado, tendo em vista um melhor entendimento dos seres humanos. Mas esta separagao conduziu, como seria inevitavel, ao desprezo de grandes grupos de problemas, um dos quais e o pro-
164
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
blema do lazer. A investigate actual e um exemplo do tipo de bloqueios que se encontram ao tentar analisar problemas sociologicos sem olhar para alem das fronteiras do campo da sua ciencia. No caso dos factos e das institutes de lazer, cuja raison d'etre* e uma experiencia psicologica especifica, qualquer tentativa que a nao considere e prejudicial a concretizagao do objective. A este respeito, o estudo da estrutura social e o das emogoes nao pode avangar em compartimentos separados. Contudo, isso nao significa que um se dilua no outro. For vezes, biologos e psicologos mostram-se inclinados a acreditar que podem, numa fase posterior, responder a todos os problemas sociologicos nos seus proprios — biologicos e psicologicos — termos. Neste ambito, a luta dos sociologos pela autonomia dos seus problemas particulares foi bem justificada. Talvez se possa pensar que nem todos os sociologos contemporaneos sao capazes de ver com clareza a relativa autonomia e irredutibilidade dos problemas sociologicos em relagao aos biologicos e psicologicos14. Existe, evidentemente, uma certa perplexidade quanto a saber como se pode encontrar um caminho entre a ideia de que o estudo da sociedade e totalmente autonomo, desprovido por inteiro de relagao com o da psicologia e da biologia, e a ideia de que os problemas da sociedade, enquanto campo de estudo, serao todos resolvidos, mais tarde ou mais cedo, atraves do estudo psicologico e biologico de individuos considerados isoladamente. O estudo do lazer, como dissemos, e um dos numerosos casos em que nao e possivel descurar o problema da relagao entre os fenomenos do nivel social e os que se encontram nos niveis psicologico e fisiologico. A este respeito, nao se pode evitar o trabalho de uma analise multipla dos niveis, isto e, o de considerar, pelo menos em tragos gerais, como e que no estudo do lazer os tres niveis — sociologico, psicologico e biologico — se relacionam.
14
Georges Homans, por exemplo, aflrmou na sua Presidential Address to the American Sociological Association, em 1966, que a sociologia nao possui autonomia enquanto objecto de estudo e que a psicologia e a ciencia social basica. Uma posigao semelhante e assumida por W. G. Runcinam na sua Sociology in its Place, Cambridge, 1970, p. 7. *Em Frances no original. (N. da T.)
CAPITULO II
165
Sao varias as teorias sobre os aspectos psicologicos e fisiologicos das emogoes e nao se pode dizer que todas se encontrem de acordo entre si. Mas, para os nossos fins, bastara apontar certos aspectos elementares que estao bast ante bem fundamentados. Na sua forma mais simples, verifica-se nas criangas muito novas que as relagoes emocionais parecem possuir o caracter de uma resposta a uma excitagao indiferenciada, provavelmente relacionada, de acordo com as circunstancias, com sentimentos agradaveis ou desagradaveis, sem qualquer distingao emocional especifica. Reacgoes de medo, amor e raiva, uma vez consideradas como o trio original das emogoes, emergem provavelmente, de modo gradual, como parte de um processo de diferenciagao, a partir do padrao de excitagao generalizado. Mas, seja como for, uma vista de olhos as reacgoes emocionais das criangas mais jovens traz ao pensamento, de forma muito clara, um facto que frequentemente nao e notado quando, ao considerar as emogoes, se tern no espirito apenas as emogoes dos adultos. Nas nossas sociedades, de uma maneira geral, os adultos nao revelam as suas emogoes. As criangas de todas as sociedades fazem-no. Para elas, o estado de sensibilidade ao qual nos referimos como emogao e um aspecto de um estado dinamizado por todo o organismo, em resposta a uma situagao estimulante. Sentir e agir, nomeadamente movimentar os seus musculos, os seus bragos e pernas, e talvez todo o corpo, nao estao ainda divorciados. Este, pode dizer-se, e o caracter primario do estado de sensibilidade a que nos referimos como emogao. So gradualmente aparece na experiencia das pessoas como um estado de sensibilidade, quando elas aprendem a fazer aquilo que as criangas nunca sao capazes de fazer, ou seja, a nao movimentar os seus musculos — nao agir — de acordo com o impulso emocional para agir. No discurso comum, referimo-nos as pessoas «controlarem os seus sentimentos». De facto, nao controlam os seus proprios sentimentos, mas, o movimento, a parte actuante de um estado de agitagao de todo o organismo. O lado sensivel deste estado pode assumir realmente o caracter de emogao, em parte porque ela nao pode ser libertada nos movimentos. Mas nos nao suspendemos a sensibilidade. Apenas impedimos ou diferimos a nossa acgao de acordo com ela.
166
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
Nas nossas sociedades, os adultos tornaram-se, em regra, tao habituados a nao agirem de acordo com os seus sentimentos que esta restrigao, com frequencia, Ihes parece ser o normal, o estado natural dos seres humanos, em especial se, em larga medida, a auto-restric,ao se torna automatica. Mesmo que o desejassem, nao podiam abrandar o desenvolvimento interno do controlo. Esqueceram-se, por completo, como fora diffcil para eles, em tempos, nao fazerem aquilo para que sentiam inclinagao, como os adultos se empenhavam, com uma elevagao de sobrancelhas, com palavras duras e doces, e talvez com algo mais do que palavras, para que controlassem as suas acgoes ate que o dominio, de acordo com o padrao habitual na sua sociedade, ja nao exigisse esforgo. Tornara-se uma segunda natureza e surge como parte das suas personalidades, como algo com que nasceram. O grau e o padrao deste treino para o autocontrolo varia de sociedade para sociedade, de acordo com o estadio do padrao especifico do seu desenvolvimento. Em geral, pode dizer-se que o tipo de socializagao caracterfstico das sociedades altamente industrializadas tern como resultado uma interiorizagao mais forte e mais firme do autocontrolo individual, resultando numa armadura de autodominio, a qual opera de forma relativamente harmoniosa e, em comparagao, de maneira moderada — mas sem demasiadas saidas — em todas as esferas da vida. Seria um grande contributo para a investigate sociologica sobre os problemas de lazer, — os quais constituem um dos muitos enclaves onde, mesmo em sociedades industrials, as pessoas sao capazes de procurar, ainda com moderagao mas com total aprovagao publica, excitagao emocional e onde podem mesmo mostra-la, ate um determinado limite, sob uma forma socialmente regulamentada — se alguem pudesse realizar inqueritos psicologicos e fisiologicos sobre os inumeros problemas de autocontrolo que aqui se levantam. Todavia, nao so os sociologos mas, tambem, os psicologos e os fisiologistas, embora por razoes diferentes, evitam pesquisas sobre problemas situados entre estes campos. E, na forma actual, ate mesmo a psicologia social oferece um debil contributo quanto a estes problemas. Existe uma vasta literatura na psicologia e na fisiologia sobre as questoes da aprendizagem, mas, em comparagao, ela e escassa quando se trata da influencia desta na estruturagao da personalidade. E a fundamentagao do controlo dos impulses que se interpoem — como um desenvolvimento assimilado de
CAPtTULO II
167
potencialidades humanas nao aprendidas — entre a vaga periodica de inclinagoes e impulsos emocionais dos niveis biologicos mais profundos e o esqueleto do aparelho motor para o qual eles sao dirigidos esta quase inexplorada. Nao se desconhece totalmente, uma forte evidencia de tipo pre-cientifico apontando nessa direcgao. Existe ai o bastante para nos permitir indicar pelo menos, embora nao para o resolver, e claro, o problema que mostra as ligagoes entre o fenomeno de controlo das emogoes socialmente induzido e a provisao especial de renovagao emocional nas actividades de lazer. Os autocontrolos civilizadores, que desempenham um importante papel na vida das sociedades desenvolvidas, nao sao o produto de qualquer planeamento critico e deliberado. Desenvolveram-se para o modelo que possuem agora, como se mostrou noutro lugar,15 de maneira mais ou menos inconsciente, durante um longo periodo. Considera-se como adquirido, embora nunca tenha sido demonstrado, que estas formas de controlo tern um papel essencial no funcionamento das sociedades industrials. A crescente revolta contra alguns desses controlos, em particular entre a geragao mais jovem, contribuira, decerto, para uma investigagao mais sistematica sobre a questao de saber se os controlos interiorizados, bem como as restrigoes sociais externas e respectivos aspectos, tern fungoes positivas nos mecanismos da sociedade e quais sao aquelas que as nao possuem. Alguns dos problemas de lazer que exploramos aqui estao profundamente relacionados com este tipo de questao. O que acontece numa sociedade onde a pressao sobre os indfviduos, tanto as restrigoes sociais como dos autocontrolos internos, se torna tao forte que as suas consequencias negativas ultrapassam as suas fungoes posit ivas? Esta investigagao tern de ficar para mais tarde. Mas esta breve divagagao sobre alguns aspectos elementares do autocontrolo permite avangar um pouco mais, relativamente ao que dissemos antes, sobre a ligagao entre as actividades exteriores ao lazer e as de lazer. Pode lembrar-se que a formulagao mais organizada e certamente nao exaustiva, embora, e claro, nao a unica possivel das diferengas entre dois tipos de actividades, se refere a duas especies de fungoes que todas as actividades desempenham para aqueles que as reali15
Ver Elias, The Civilizing Process.
168
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
zam: uma fungao (ou fungoes) para os proprios actores e uma fungao (ou fungoes) para os outros, ainda que por vezes nem sempre sob a forma de fungao para uma unidade social impessoal, tal como a nagao. A diferenga entre os dois tipos de actividades a que nos referimos, para dizer de uma maneira resumida, e a seguinte: nas actividades de nao lazer, a fungao para si proprio e subordinada a fungao que ela tem para os outros; nas actividades de lazer, a fungao para os outros e subordinada a fungao que ela possui para si proprio. Em termos mais psicologicos, isto significa que as actividades exteriores ao lazer exigem, desde o princfpio ate ao fim — nao apenas no caso de possuirem o caracter de trabalho profissional, mas tambem se possuirem o caracter de tempo livre de nao lazer, de acordo com a forma como foram classificadas no espectro do tempo livre —, um grau de controlo emocional relativamente muito elevado, porque a consideragao pelos outros e exigida pela frequente interdependencia muito complexa destas actividades com as actividades de outros. E por isso que falamos delas como «rotineiras». Por comparagao com sociedades nao Jescnvolvidas, a maioria das actividades entrelagadas nas nossas sociedades estao bem reguladas e de forma muito segura. So quando se possui experiencia — quer seja atraves de participagao di recta quer seja por participagao indireeta, atraves de estudo — do que significa viver numa sociedade menos regulada, e que se pode estabelecer a relativa ordem das sociedades altamente desenvolvidas e do papel ai desempenhado pela interiorizagao comparativamente elevada dos controlos individuals. Por outro lado, esta interiorizagao, quer tome a forma da consciencia, quer de maior ou menor obsessao pela ordem, ou de qualquer uma das consequencias da socializagao implicita, tem, sem duvida, devido a esta absorgao dos controlos sociais como parte da personalidade individual, como consequencias, frustrates especificas, uma boa dose de angiistia e de sofrimento e, provavelmente, numerosas doengas. Isto significa que, nas sociedades-Estado mais desenvolvidas, um duplo anel de constrangimento mantem o comportamento dos individuos nos limites da conduta do seu grupo: constrangimentos externos, representados, por exemplo, pela ubiqua ameaga da lei e dos seus agentes, e controlos externos, traduzidos por acgoes de controlo pessoal como a consciencia e a razao. Estes termos — que surgem, como tantos outros, como se fossem quase uma especie de substancias «fantas-
CAPITULO II
169
mas na maquina», em vez de controlos aprendidos dos outros e assimilados como um resultado da socializagao — referem-se precisamente a estes dois tipos de impulses que mencionamos antes e que se interpoem entre os mais elementares, os impulses mais directamente biogeneticos aos quais nos referimos como tendencias, sentimentos ou emogoes, e ao aparelho motor. Permitem-nos o controlo sobre nos proprios, o que quer dizer, habilitam-nos a nao movimentar os nossos musculos, a nao agir imediatamente quando sentimos tendencia para o fazer, ou a agir de uma maneira diferente daquela para a qual as nossas inclinagoes espontaneas e emogoes nos conduzem. Nao so nos habilitam a dirigir e a avaliar os nossos movimentos de acordo com a estrutura profundamente complexa das nossas interdependencias como tambem nos dao maior liberdade em relagao a perturbagao de impulses momentaneos e, igualmente, um maior campo de acgao para decidir. For outro lado, ao impedir tendencias, sentimentos e emogoes na procura de satisfagao directa e imediata, criam tensoes de um tipo especifico. Se, no entanto, considerarmos a literatura psicologica e psiquiatrica sobre os aspectos afectivos do comportamento e experiencia humana, podemos notar que ha um certo tempo, com muito poucas excepgoes, a tradugao de factos em teorias e perturbada por um conceito tradicional de seres humanos que, tal como o quadro de todas as proposigoes teoricas, e mais ou menos tornado como garantido e nunca verificado, de forma sistematica, quanto a sua aplicabilidade. Ja nos referimos a isso anteriormente. E a imagem das pessoas como uma especie de maquina nao social. Ela e algumas vezes representada pela metafora de uma «caixa preta»: podemos observar como a caixa preta actua mas nao sabemos o que se passa dentro dela. Em muitos casos, a suposigao implicita e de que as pessoas reagem a estimulos com reacgoes especificas. Na base desta suposigao pode ser-se conduzido a pensar que os seres humanos nao reagiriam dessa maneira, a menos que o estimulo ou o dispositivo permitisse uma reacgao padrao particular. Contudo, existe ai uma grande dose de evidencia, mostrando que os seres humanos nao esperam, de uma forma meramente passiva, por estimulos. De facto, a partir de uma massa crescente de dados disponiveis, e bastante nftido que o organismo humano reclama estimulagao para funcionar de modo satisfatorio, em particular a estimulagao criada atraves da convivencia com outros seres humanos. O significado do conceito de seres
170
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
humanos, que resulta das numerosas experiencias sobre os efeitos do isolamento extremo, talvez nao tenha sido sempre totalmente expresso16. Elas indicam que a necessidade de estimulo de um ser humano por intermedio de outros seres humanos nao se reduz a essa esfera especifica a que chamamos sexualidade. E uma necessidade mais ampla, de longe menos especializada, de estimulagao social. Na origem, pode ser libidinal ou nao. A sua genese precisa de ser explorada; mas, seja ela qual for, a «caixa preta» nao esta adormecida quando nao e estimulada. Cada ser humano, na sua (dele ou dela) constituigao global, e orientado no sentido dos outros seres humanos — por meio da estimulagao emocional que so os outros seres humanos podem proporcionar, embora possam ser substituidos por animais de estimagao ou por colecgoes de selos. Talvez o ponto mais saliente para compreender a interdependencia entre os aspectos dos seres humanos, estudados por um lado, por psicologos e por psiquiatras, e por sociologos, por outro, seja a compreensao de que a «caixa preta» nao esta fechada, pelo contrario, esta aberta, emitindo sinais sensiveis prontos a gravaremse nos outros e para actuar, reciprocamente, da mesma maneira, com os sinais sensiveis que os outros enviam17. De facto, nao se pode compreender por completo a natureza das tendencias e emogoes, a menos que se possua a consciencia de que elas representam uma linha dentro de um movimento de dois sentidos. Cada ser humano, na sua constituigao global, e orientado no sentido dos outros — para a estimula^ao emocional entre seres humanos vivos —, e a estimulagao agradavel deste genero, a estimulagao que se recebe por estar reunido com outros, quer seja de facto quer por meio da sua propria imaginagao, e um dos elementos mais comuns da satisfagao do lazer. Se procurarmos sintetizar numa metafora a diferenga entre a imagem dos seres humanos apropriada para observagoes como esta e a imagem de seres humanos de que a metafora da «caixa preta» e representativa, haveria de dizer-se que a melhor analogia — se, de todo, as pessoas tern de ser comparadas com 16
Para urn debate de algumas descobertas da investigac.ao sobre problemas de isolamento extremo, ver Peter Watson, War on the Mind: the Military Uses and Abuses of Psychology, Harmondsworth, 1978, Cap. 13. 17 Ver a critica do conceito de seres humanos do homo clausus e a sua conceptualizagao como homines aperti em Elias, What is Sociology?, p. 119 e seguintes.
CAPITULO II
111
qualquer instrumento mecanico — e o de alguem equipado com um radio transmissor e receptor que envia constantemente mensagens que fazem sair respostas, que podem receber, por sua, vez, e as quais ele ou ela, por sua vez, podem responder. Coloquem uma crianga numa sala por alguns dias e vejam o que acontece. Ela «enfraquece» por melhor que seja a alimentagao. A razao e a de que esta necessidade elementar de um tal movimento de «dois sentidos», de tudo aquilo a que chamamos, ainda de forma muito imperfeita, «tendencias» ou «emogoes», a necessidade de uma resposta emocional, e suspensa. E de facto notavel que o sofrimento e a dor infligidos nas criangas por este corte, ou simplesmente atraves da nab satisfagao dessa necessidade quase insaciavel de consolidar os vectores das suas afeigoes no sentido dos outros, favorega uma resposta afectuosa, dirigida para si proprias e que, por sua vez, favorece uma resposta reforgada dos afectos, e sempre por ai adiante. Em resume, os vectores enviados no sentido dos outros em busca de apoio, quer Ihe chamemos «tendencias», «libido», «afectos» ou «emog6es», sab parte de um processo social interpessoal. No que diz respeito as criangas, se este processo e interrompido ou apenas perturbado, o desenvolvimento de toda a personalidade da crianga sera mais ou menos prejudicado. No decurso do processo de crescimento, do «processo de civilizagao» a que os individuos se submetem nas nossas sociedades, os seres humanos sao ensinados a controlar com bastante severidade, e em parte automaticamente, a necessidade sempre inquieta do tipo de estimulagao adquirido pelo envio e recepgab de mensagens emocionalmente significativas, que e tab vital para o jovem ser humano como e a alimentagao. No nosso tipo de sociedade, os adultos, na sua vida de nao lazer, tern de refrear severamente o envio de mensagens emocionais. Nesta esfera das suas vidas, eles sao impedidos de enviar e de receber mensagens no quadro dessas ondas longas. As actividades de lazer, por outro lado, permitem um certo campo de acgao para enviar e, acima de tudo, receber mensagens atraves das ondas a que nos referimos, de modo imperfeito, como emocional. Mas uma vez que a diminuigao dos controlos nas sociedades humanas de todos os generos, senao em especial nas sociedades tab bem ordenadas e complexas como as nossas, compreende sempre riscos, a fungab das actividades de lazer destruidoras do controlo, que abre o caminho para a renovagao das emogoes, e, por seu lado,
172
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
demasiado limitada por regras de prevengao para que possa ser assim socialmente toleravel. De tudo isto emerge, com maior nitidez, um dos aspectos centrals da relagao entre as actividades do nao lazer e as actividades de lazer. Talvez isto possa ser sintetizado, de forma conceptual, por referenda a uma polarizagao que flui atraves de toda a vida como um equilibrio de tensao dinamico. Referimo-nos ao equilibrio de tensao entre o controlo e a estimulagao emocional. A forma como este equilibrio de tensao se manifesta varia de sociedade para sociedade, onde o controlo de todo o continuum de sentimentos e, em parte, bastante interiorizado, desde as tendencias animais ate as mais sublimes emogoes, o controlo externo das emogoes e relativamente moderado e a estimulagao emocional favorecida no quadro das actividades de lazer com a anuencia publica e, em geral, igualmente moderada quanto ao seu caracter. Em resumo, ambas reclamam um grau de maturidade emocional consideravel. Mas a breve referenda ao facto de que a sociabilidade e, pode dizer-se, uma caracteristica permanente da vida das criangas, pode servir como uma advertencia quanto a uma das principals fungoes das actividades de lazer nas nossas sociedades; nomeadamente, que ajudam a moderar a grande severidade do autocontrolo consciente ou inconsciente exigido a todos os participates pelo tipo de actividades de nao lazer a que, em geral, temos de nos acomodar, permitindo a ocupagao, sob uma forma adulta, em actividades que predominant na vida das criangas. Os psicanalistas podem falar, num caso destes, de «regressao socialmente autorizada», de cornportamento infantil, mas declaragoes como estas revelam apenas a falta de adequagao de qualquer teoria psicologica que integre a ideia de que o comportamento adulto e um bloco, que segue o mesmo padrao em todas as actividades. De facto, por meio da instituigao do lazer, o proprio desenvolvimento social permitiu um campo de acgao para a diminuigao dos controlos do adulto, uma tenue «destruigao dos controlos» dos individuos, por meio de uma excitagao igualmente moderada — um despertar emocional equilibrado, que pode ajudar a contrariar o efeito sufocante que os controlos facilmente podem ter na ausencia de tais institutes sociais.
CAP ITU LO II
173
A relagao entre as actividades de nao lazer e as actividades de lazer pode compreender-se melhor como um equilibrio de tensao dinamico. Nas esferas da vida muito rotineiras e bem reguladas, em que a fun^ao para «ele» ou para «eles» domina a fungao para si proprio, satisfazemos, a longo prazo, as exigencias das nossas sociedades altamente complexas e, desse modo, tambem as nossas proprias. Mas fazemo-lo a custa da satisfagao de numerosas necessidades imediatas espontaneas. Nao dizemos a este homem ou a esta mulher — ao nosso patrao, a um cliente, ao nosso colega ou mesmo a um subordinado — o quanto nao gostamos deles, como os desprezamos e abominamos. Nao dizemos a este homem ou a esta mulher — a nossa secretaria, a um colega do nosso departamento, ao nosso cliente, ao agente do banco ou de seguros — o quanto gostamos deles, que eles sao atraentes e como gostariamos de passear com eles. Existem cento e uma maneiras de dominarmos as nossas emogoes — por uma boa razao. Se toda a gente atenuasse ou eliminasse as restrigoes, toda a estrutura da nossa sociedade se desfazia, e a satisfagao da qual dependemos a longo termo, a nfvel de conforto, de saude, de consumos varios, de lazer e muitos outros que sao importantes quando comparados com os de outros paises menos desenvolvidos — privilegios que, com frequencia, nao experimentamos como tais —, perder-se-ia. Na falta de outro modelo preciso de relagao, habituamo-nos a pensar que o equilibrio para o tipo de relagao impessoal, que prevalece nos sectores mais rotineiros da nossa vida social, e proporcionado pela familia. Ate certo ponto, isto esta possivelmente correcto. A familia pode fornecer numerosas formas de equilibrio emocional que combatem a relativa restrigao emocional necessaria em particular na vida professional das pessoas. De facto, se a familia, enquanto instituigao, perdeu um certo numero de fungoes, pode verificar-se que, em ligagao com o processo de urbanizagao e industrializagao, ela adquiriu fungoes como um dos agentes sociais para a satisfagao das necessidades instintivas e emocionais no seio de uma sociedade em que, de outro modo, elas seriam fortemente controladas mais do que acontece em muitos outros tipos de sociedades. Mas existem varias indicates de que a familia por si mesma nao e suficiente para o provimento de todas as necessidades que, de
174
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
outra forma, sao severamente reprimidas. Uma das razoes consiste no facto de a propria vida familiar ser, nas nossas sociedades, muito rotineira. E, embora ela constitua um espago social para a descontracgao especifica aprovada das restrigoes que mantem as nossas tendencias sob vigilancia, tambem e necessario reconhecer que ela produziu, particularmente em relagao ao aumento de igualdade de poder entre os sexos e as geragoes, novos tipos de tensoes. Outra razao e o facto de que, no quadro da familia, a fungao de equilibrio — a satisfagao das tendencias e emogoes que proporciona — esta associada a uma obrigagao muito forte e quase inevitavel. Esta obrigagao caracteriza-se pela existencia de tres niveis. Da ligagao destes tres niveis, a de dois e tipica das multiplas obrigagoes nas sociedades mais desenvolvidas. Marido e mulher, nas suas relagoes, pais em relagao aos filhos, estao dependentes uns dos outros por todos os generos de pressoes sociais, nao so as dos vizinhos ou amigos mas, tambem, as da lei. Marido e mulher estao dependentes um do outro e dos seus filhos, como sabemos, por um «sentido de responsabilidade» ou, por outras palavras, pela sua propria consciencia. Em certos casos, estao tambem dependentes, para alem de razoes de natureza emocional, pela afeigao mutua e, talvez, pelo amor que sentem um pelo outro. Muito pouco se conhece sobre a maneira como estes tres niveis de obrigagoes familiares afectam cada um. Supoe-se, frequentemente, que a primeira e tambem a segunda destas obrigagoes sao necessarias para que, desse modo, a terceira se forme e se conserve. Se formos honestos para nos proprios, dirfamos que sabemos demasiado pouco sobre a natureza da ligagao emocional duravel de um casal. Embora a satisfagao sexual desempenhe af um papel — e isto e caracteristico da maneira de ser dos seres humanos —, tal ligagao possui, a longo prazo, um caracter bem diferente daquele que caracteriza a breve duragao do acto sexual. Em teoria, mal comegamos a atingir a superficie na nossa exploragao da natureza e das condigoes da obrigagao emocional, a longo prazo, dos seres humanos entre si. Se for mutua, e provavelmente a mais gratificante das experiencias humanas, mas esta afirmagao tern de ser esclarecida dado que, nas situagoes em que o problema do amor esta em causa, e extremamente diffcil progredir da ideia para o proprio facto. Nem ninguem comegou sequer a explorar a relagao entre os efeitos verificados sobre as obrigagoes institucionais atraves da propria consciencia de cada um. Ate mesmo, para se
CAPfTULO II
175
chegar a este estadio de clarificagao conceptual, se sentiram dificuldades. Se pudessemos avangar nesta materia, se soubessemos mais sobre a interdependencia funcional destas tres camadas de obrigagoes famiHares, poderiamos ser capazes de enfrentar e de analisar a mudanga de condigoes da vida familiar de uma forma mais realista do que aquela que e possivel realizar no presente. Mas seja como for, pode compreender-se melhor o caracter peculiar do lazer como um enclave onde se pode encontrar um tipo de revigoramento emocional sem nenhuma destas obrigagoes desde que o consideremos em relagao a familia, onde o revigoramento de outro tipo diferente se pode encontrar, mas apenas relacionado com obrigagoes emocionais e outras. Sem fazermos referenda ao facto de que as actividades de lazer nao exigem obrigagao nao se podem entender perfeitamente as fungoes especificas que estas cumprem na vida das sociedades industrials. A satisfagao das emogoes e dos instintos, proporcionada no quadro da familia, esta limitada por fortes restrigoes institucionais e normativas. Dado que esta satisfagao se cumpre no longo prazo, pode tornar-se, em certa medida, rotineira. A satisfagao pessoal esta subordinada, em parte, a consideragao dos outros, os quais, por sua vez, alimentam essa satisfagao. A satisfagao proporcionada pelo lazer esta limitada, em grande medida, ao momento. Ela e extremamente breve. Simultaneamente, esta satisfagao oferece a oportunidade de contrariar a restrigao emocional, a comparativa falta de estimula^ao emocional expressa abertamente, caracteristica dos principals sectores de actividades nas sociedades mais diferenciadas, atraves de outro tipo de actividades cuja fungao primaria e a de proporcionar prazer a si proprio. As actividades de lazer, desprovidas de qualquer caracter de obriga^ao, podem contrariar as restrigoes emocionais normals com excepgao daquela que um individuo deseja assumir voluntariamente em qualquer momento. Mas esta clara ausencia de obrigagao, misturada com um elevado grau de estimulagao emocional, que, reunidos, dao a muitas actividades de lazer as caracteristicas a que nos referimos como «jogo» ou «brincadeira», levanta problemas especificos. Ja nos referimos ao facto de que, nas sociedades mais ou menos ordenadas, as situagoes que desencadeiam fortes emogoes sao consideradas com desconfianga, em particular por aqueles que sao responsaveis pela conservagao da boa ordem. O que se afirmou,
176
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO L1VRE
antes, sobre as emogoes serem de natureza a favorecer a transmissao de forgas de acgao explica esta tendencia. Sob o impacte de sentimentos fortes, as pessoas agem de uma maneira que elas proprias nao podem controlar mais e que, por esse motivo, os guardioes da ordem na sociedade tern dificuldade em controlar. Todas as areas das sociedades complexas, em que a incrustagao das actividades por meio de extensas cadeias de interdependencias tern de ser preservada, sao, por essa razao, limitadas, de um modo geral, por regulamenta^oes e sangoes destinadas a impedir o desenvolvimento incontrolado das emogoes. A forma atraves da qual a maioria das sociedades associa a legitimagao da satisfagao sexual e de outras satisfagoes emocionais no quadro da famflia, por meio de socializagao, de cren^as, de restrigoes directas e de proibi^oes, impedindo os perigos que podem resultar para os outros de qualquer libertagao de forgas instintivas ou emocionais, ja foi referida. Talvez nem sempre se compreenda perfeitamente que os mesmos problemas surgem a respeito das actividades de lazer. Ja referimos que numerosos tipos de lazer integram, como uma das suas caracteristicas principals, um elemento de risco, um «brincar com o fogo». A primeira vista, isto pode parecer um risco so para aqueles que se empenham em qualquer actividade particular — a aposta para o jogador de azar, as corridas de automoveis para o condutor. Mas isso nao e tudo. As actividades de lazer, tal como o procuramos demonstrar, constituem um enclave onde, ate certo ponto, os controlos emocionais podem ser atenuados, e no qual a excitagao e estimulada e abertamente expressa. Nas nossas sociedades tao bem reguladas, a legitimagao de qualquer diminuigao de autocontrolo implica riscos nao so para as proprias pessoas envolvidas mas, tambem, para os outros, para a «boa ordem» da sociedade. Ao investigar o desenvolvimento do futebol, por exemplo, constatamos o facto de que, na Idade Media, os reis e as autoridades das cidades tentaram durante seculos proibir o jogo de futebol, entre outras razoes porque ele terminava invariavelmente em derramamento de sangue ou, se era jogado nas ruas de uma cidade, acabava, pelo menos, com muitas janelas partidas18. A incapacidade das autoridades em por fim a tudo isto era devida, em grande medida, ao facto
18
Ver Cap. V deste volume.
CAPtTULO II
111
de as pessoas envolvidas terem grande prazer na excitagao proporcionada pelo jogo e pela diminuigao das restrigoes. Porem, a organiza^ao do controlo do Estado nao era suficientemente eficaz para contrariar a atracgao que a emogao excitante do jogo tinha para os jogadores. Hoje, a eficacia do poder de restrigao do Estado tornou-se muito maior, mas o facto de ela ser tao elevada nao pode ser esquecido, se pretendermos compreender algumas das caracteristicas estruturais e problemas correntes das actividades de lazer do nosso tempo. O equilibrio de tensao entre o desejo de revigoramento emocional dos que se entregam as actividades de lazer e a vigilancia mantida pelas autoridades do Estado, de modo a que nenhum mal possa advir desta relaxa^ao de controlo tanto para os que procuram o lazer como para os outros, e hoje uma caracteristica de organizagao e de direcgao das actividades de lazer tao fundamental como era nas sociedades medievais que mencionamos. Mas o facto de o controlo do Estado ser muito mais energico teve certas consequencias para estas actividades. For agora, e suficiente assinalar que a necessidade de um elevado grau de regulagao parece ter influenciado uma tendencia mais acentuada no sentido da sofisticagao e da sublimagao das respostas emocionais presentes nas actividades de lazer. O aspecto mimetico das ocupagoes de lazer no nosso tempo nao pode ser bem compreendido sem referir que o apelo de muitas delas, embora nao de todas, ja nao e orientado para necessidades emocionais ou instintivas, na sua forma mais elementar, embora possa parecer ser exactamente isso, mas, antes, para con juntos de exigencias afectivas, onde misturas de sentimentos compostos entram em jogo. Mas o facto de o controlo do Estado ser muito mais eficaz tambem significa que a sua acgao e mais harmoniosa e previsivel. Ele actua, frequentemente, apenas como um «guardiao nos bastidores», confiando, em grande medida, no autocontrolo do «guardado». Uma analise sociologica das actividades de lazer seria muito fragmentaria se nao considerasse o facto de que os dois dos tres niveis de obriga^oes mencionados antes, em referenda a famflia, tambem desempenham o papel de uma estrutura de controlo nas actividades de lazer.
178
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
A luz do quadro teorico que expusemos acima, a unidade estrutural que existe por tras da variedade das ocupagoes do lazer torna-se mais visfvel. No seu centro permanece a separagao bastante rigida, imposta aos seus membros pelo caracter das sociedades muito diferenciadas, entre uma esfera da vida social onde predominam as actividades e experiencias dirigidas para objectivos impessoais — no qual tern uma estrita prioridade as fungoes de tudo aquilo que alguem faz pelos outros relativamente as fungoes do que se realiza para si proprio e onde as satisfagoes emocionais sao estritamente subordinadas a fria reflexao — e uma esfera em que prevalece a ordem oposta de prioridades: os processos de pensamento relativamente desprovidos de emogoes e de natureza impessoal estao enfraquecidos, os processos emocionais estao fortalecidos, dando-se maior peso ao que se realiza para si proprio do que ao que se faz para os outros. As actividades de lazer preenchem estas fungoes atraves de uma diversidade de meios. Por carencia de uma palavra melhor chamar-lhe-emos «elementos de lazer». Basicamente, aqui estao tres: sociabilidade, mobilidade e imaginagao. Se olharmos para as categorias de actividades de lazer indicadas no espectro do tempo livre, pode ver-se, de imediato, que nao ha nenhuma actividade onde estas tres formas elementares de activagao emocional se encontrem ausentes. Tambem se pode ver que dois ou tres destes elementos se combinam com frequencia embora, um deles possa ser dominante em qualquer das actividades. Cada um destes elementos pode servir, a sua maneira, como um meio de atenuar os controlos que, na esfera do nao lazer, mantem severamente vigiadas as inclinagoes afectivas das pessoas. A consideragao destes elementos aponta, de novo, para o modelo geral de seres humanos, isto e, para um equilibrio de tensao instavel entre uma esfera onde a actividade intelectual impessoal e o controlo das emogoes que a acompanha prevalece sobre a estimulagao das actividades emocionais e outra esfera onde a excitagao agradavel de semelhante processo emocional prevalece e os controlos inibitorios estao enfraquecidos. Para explicar as fungoes destes elementos de lazer, bastara discutir aqui duas das esferas primarias das actividades de lazer nas nossas sociedades: as que denominamos esferas da «sociabilidade» e «mimetica».
CAPITULO II
179
1) A sociabilidade como um elemento basico do lazer desempenha um papel na maioria das actividades de lazer, senao em todas. O que significa dizer que um elemento do prazer e o sentimento agradavel vivido pelo facto de se estar na companhia dos outros sem qualquer obrigagao ou dever para com eles, para alem daqueles que se tern voluntariamente. Este tipo de estimulagao desempenha um papel se alguem vai as corridas, a um clube de jogo de azar, a uma cagada, a um pequeno baile e, ate mesmo, se alguem vai a um restaurante com o seu marido ou a sua mulher: mesmo af, como dissemos antes, o facto de comer fora com os outros, ainda que nao se saiba nada sobre eles, desempenha um papel no seu prazer, mesmo que seja secundario relativamente a outros elementos primarios da situa^ao de lazer. A propria sociabilidade desempenha um papel primario em encontros, como festas, ida ao bar, visitas a amigos e por ai fora. Podem encontrar-se numerosas observances acidentais sobre sociabilidade na literatura sociologica; contudo, faltam investigates sociologicas baseadas numa solida teoria do lazer que tenham como seu tema central problemas de sociabilidade. E facil verificar a relevancia deste tipo de pesquisas para uma teoria da sociedade. Muitas das reunioes sociais possuem as caracteristicas do que, na falta de uma palavra melhor, pode ser chamado «\azet-gemeimchaften»\ elas proporcionam, de forma evidente, oportunidades para uma integragao mais profunda e — como intengao — a amigavel emotividade que difere acentuadamente da que e considerada como normal na profissao e noutros contactos de nao lazer entre as pessoas. Estas diferengas de nivel emocional entre as reunioes sociais como «ba,t-gemeinschaften», festas ou bebida com caracter social numa messe de oficiais, e nas reunioes de grupos de nao lazer, como assembleias de fabricas ou reunioes de comissoes, sao faceis de observar, mas mais dificeis de conceptualizar. Talvez nao seja inadequado aplicar-lhes, de forma abreviada, o conceito de gemeinschaft* dando-lhe um sentido um pouco diferente em comparagao ao do seu uso tradicional. Atraves dos exemplos dados, e facil abandonar as conotagoes romanticas tra-
*Gemeinschaft designa, de acordo com a perspectiva de Ferdinand Tonnies, todo o tipo de vida dominado por um caracter intimo, privado e reservado, proprio da vida comunitaria. (N. da T.)
180
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
dicionais associadas ao termo gemeinschafi; Pessoas que no seu tempo de lazer considerem ser gratificante reunir-se num «bzr-gemeinschaft» ou que gostam de ir a festas que encorajam a integragao dentro de um elevado nivel de evidencia e mais ou menos amigavelmente emotivas, nao pertencem necessariamente ao mesmo quadro de analise daquelas que, de uma maneira romantica, aguardam muito tempo por um retorno a aldeia gemeinschaft dos seus primeiros dias de vida. Esta e uma relagao estrutural de generos — que nao precisa de ser aqui discutida — entre as tendencias no sentido do «l&zer-gemeimcbaft» nas sociedades urbanas industriais e a ansia romantica da «aldeia-gemeimcbaft», mas as diferengas sao bastante claras. E duvidoso que os adultos que hoje gostam de participar num «la.zer-gemeinscbaft» periodico mas transitorio desejassem atribuir-lhe um caracter permanente, com excepgao dos tipos de relagao emocionalmente mais restritos que predominam na nossa vida de nao lazer. Nao e improvavel que muitas pessoas que apreciam as reunioes sociais do seu tempo de lazer possam nao gostar em absoluto delas, se estas se tornarem uma forma de vida. A alternancia caracteristica na vida de muitos, entre a participagao num «nao lazer gesellschaft»* e num «la.zer-gemeinscbaft» transitorio, assinala o caracter complementar dos dois tipos de relagoes nas nossas sociedades. Compreendido desta maneira, o termo «lazei;-gememschaft» abre um campo muito vasto de pesquisa. Nas sociedades industriais, estas oportunidades passageiras de maior evidencia afectiva e relativamente espontaneas, embora de integragao variavel, estao entre as instituigoes comuns socialmente estandardizadas, para as quais se canalizam com grande regularidade muitas exigencias de lazer das pessoas. Neste caso, em contraste com as instituigoes mimeticas de lazer, as pessoas reunem-se sem possuirem necessariamente qualquer competencia tecnica especializada, sem «actuagao» para os outros ou para si proprias (embora isso possa acontecer acidentalmente), so para desfrutarem a companhia uns dos outros, para terem prazer, isto e, um nivel mais elevado de calor emocional, de
*Gesellscbaft designa, em contraponto, a gemeinschaft e, ainda segundo F. Tonnies, o tipo de vida em sociedade, publica e de caracter social ou associative. (N. da T.)
CAP ITU LO II integragao social e de estimulagao atraves da presenga de outros — uma estimulagao divertida, sem obrigagoes serias e os riscos inerentes a elas — do que aquele que e possivel experimentar em qualquer outra esfera da vida. Ao mesmo tempo, a sociabilidade do lazer, assim como as actividades mimeticas, e um indicador de caracteristicas das sociedades industriais. O «la.zer-gemeinscbaften» opoe-se, em particular, a rotina inerente aos contactos relativamente impessoais que sao dominantes nas esferas de nao lazer dessas sociedades. Ai, as barreiras emocionais entre as pessoas, como as restrigoes exigidas aos individuos em geral, sao habitualmente elevadas. A existencia do «la.zer-gemeinscbaften» de uma variedade de tipos mostra a necessidade corrente dos contactos humanos, do enfraquecimento dessas barreiras num clima mais intense de manifesta emotividade, com uma marcada preponderancia, ao nfvel intencional, se nao mesmo, de facto, sempre, dos aspectos positives de relagoes que de outro modo seriam ambivalentes. Mas, mais uma vez, no «laser-gemeinschaften», como noutros factos de lazer, o enfraquecimento das barreiras, o elevar do nfvel de emotividade como um agente contrario ao incrustar de rotinas, implica um certo risco. Como a maioria das pessoas sabe, o grau socialmente permitido de destruigao da rotina pode exceder-se. Para os objectives deste trabalho, nao ha necessidade de falar do vasto campo de possibilidades de investigagao aberto por esta abordagem do problema da sociabilidade do lazer. Contudo, uma area de investigagao de problemas merece, em certa medida, discussao. Em muitos casos, o prazer que as pessoas tern nas reunioes sociais parece acentuar-se atraves do consume de bebidas alcoolicas em comum. Qual e a fungao que o alcool possui enquanto ingrediente normal de muitas destas reunioes? Se a satisfagao derivada das reunioes sociais esta relacionada com a diminuigao das barreiras entre as pessoas, com uma agradavel elevagao do nivel de emotividade, porque precisam as pessoas de beber para criar, ou pelo menos aumentar os prazeres da sociabilidade? Pode dizer-se que o acto de beber em comum serve uma fungao de integragao? Que satisfagoes esperam as pessoas da sua participagao em tais «bebidasgemeinscbaften»? Quais sao as caracteristicas comuns destas reunioes? Qual e o seu curso normal? Qual e o seu curso Optimo? Que caminhos se consideram decepcionantes? E em que condigoes deve
182
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
a bebida em comum servir uma fungao desintegradora em vez de uma fungao de integragao? Se as nossas hipoteses provisorias estao correctas, descobrir-se-a provavelmente que, neste caso tambem, as pessoas esperam das suas actividades de lazer nao so, como muitas vezes se afirma, «relaxagao» mas antes estimulagao e alegria. Mais uma vez, as abordagens medicas deste tipo de problemas parecem-nos, sem a investigagao sociologica complementar, incompletas. Existe a este respeito uma boa quantidade de provas, sugerindo que tambem neste tipo de actividade de lazer as pessoas procuram um despertar emocional agradavel e excitagao, em resumo, a produgao de tipos especificos de aumento de tensao em companhia dos outros. Estas necessidades, aparentemente ubiquas, dos seres humanos por formas de estimula^ao que so podem ser proporcionadas por outros seres humanos, serao facilmente negligenciadas se olharmos, prioritariamente, como se faz de um modo geral na abordagem medica tradicional, para o organismo individual como um sistema autocontrolado. E por esta razao que as tentativas medicas de explicar a bebida como um ingrediente normal das reunioes de lazer se revelam, de certa maneira, inadequadas. Se alguem procurar explicar as fungoes sociais da bebida, nao e suficiente assinalar que a «depressao dos centres inibidores do cerebro», devida ao consumo do alcool, «produz um sentimento passageiro de bem-estar». Se as pessoas procurassem no uso do alcool apenas um sentimento de bem-estar, poderiam muito bem permanecer em casa a beber o seu alcool. E bastante mais provavel que as pessoas bebam acompanhadas porque pela depressao dos centres inibidores do cerebro facilita-se a estimulagao amigavel reciproca, a um nivel relativamente elevado de emotividade, que e a essencia da sociabilidade do lazer. Um copo ou dois favorecem a perda relativamente rapida da habitual armadura de restrigoes profundamente encravadas e, assim, a abertura a uma divertida excitagao mutua que serve de contraponto a relativa solidao do individuo e as suas obrigagoes e rotinas, verificadas nas esferas de nao lazer, incluindo as da vida familiar. Deste modo, o «\azet-gemeinschaften>> reforgado pela bebida proporciona, como muitos outros factos de lazer, oportunidades para elevar, na presenga de outros, o nivel de emotividade manifesta em publico. Espera-se, de uma maneira geral, que a excitagao assim gerada nao va alem de certos limites. Como noutros factores
CAPITULO II
183
de lazer pode ser dificil de dominar. O risco esta sempre ai. Pode bem ser que o «brincar com o fogo», neste caso, tambem constitua um aspecto do prazer. Como muitas outras formas de actividades de lazer, este brincar com o fogo, este risco, parece contribuir para a excitagao agradavel e, nessa medida, para o prazer do «lazer-g£meinschaften». Abordar os limites daquilo que e socialmente toleravel e, por vezes, transgredi-los, em resumo, suscitar a quebra limitada dos tabus socials em companhia dos outros, talvez acrescente algum gosto a estas reunioes. A ubiquidade de oportunidades em que os seres humanos podem reciprocamente «perder as suas armaduras» na companhia dos outros sugere que as necessidades de estimulagao emocional, mesmo se ela nao e especifica, exigente e relativamente moderada, e bastante mais forte e mais generalizada do que aquilo que se admite. O consume de alcool, como e evidente, actua como um auxiliar para as pessoas que, sem ele, poderiam nao ser capazes de passar tao depressa, ou talvez de modo nenhum, dos contactos relativamente impessoais em grupos dominados por tarefas altamente rotineiras e orientadas por objectivos exteriores para a companhia relativamente menos ordenada e mais pessoal de «lazer-gemeinschaft», que nao possui outro fim senao ele proprio. 2) As caracteristicas distintivas da sociabilidade como uma esfera de lazer sao bastantes claras. Aquelas que estao no centro da classe de actividades de lazer a que chamamos mimeticas sao talvez menos claras e necessitam de alguns comentarios. O termo «mimetico» sublinha que numerosas institutes e actividades de lazer, habitualmente classificadas como diversas, a um nivel mais reduzido de generalidade, possuem um caracter estrutural especifico em comum. O termo, como o usamos aqui, refere-se a questao de que os factos e actividades agrupadas sob esse nome partilham as seguintes caracteristicas estruturais: despertam emogoes de um tipo especifico que estao intimamente relacionadas de uma forma especifica, diferente, com aquelas que as pessoas experimentam no decurso da sua vida ordinaria de nao lazer. No contexto dos factos mimeticos, as pessoas podem experimentar e, em alguns casos, representar medo e riso, ansiedade e amor, simpatia e antipatia, amizade e odio e muitas outras emogoes e sentimentos que tambem podem experimentar na sua vida de nao lazer. Mas no contexto mimetico todos os sentimentos e, no caso de isso suceder,
184
0 LAZER NO ESPECTRO DO TEMPO LIVRE
os actos dominados pelas emogoes com eles relacionados transpoem-se. Perdem o seu ferrao. Mesmo o medo, o horror, o odio e outros sentimentos que estao longe de serem agradaveis, e as acgoes correspondentes no quadro mimetico, associam-se em maior ou menor dimensao a sentimentos de prazer. As experiencias e o comportamento das pessoas num contexto mimetico representam, desse modo, uma transposigao especifica de experiencias e de comportamentos caracterfsticos das chamadas coisas «serias da vida», quer este termo se refira ao trabalho profissional quer a outras actividades de lazer. Nao significa que o ultimo seja uma imitagao ou reflexo do primeiro. Refere-se ao facto de que no contexto mimetico, o comportamento emocional e as experiencias da vida ordinaria adquirem uma tonalidade diferente. Aqui podem experimentar-se e, em alguns casos, representar-se sentimentos fortes sem se correr qualquer dos riscos normalmente associados a todas as actividades que se realizam sob o impacte de forte excitagao emocional, em particular nas sociedades altamente civilizadas mas, em certa medida, tambem nas outras. De facto, o despertar de excitagao de tipo especifico e o fulcro de todas as actividades mimeticas de lazer. Fora do contexto mimetico, o publico despertar de intensa excitagao e a manifestagao de um comportamento excitado sao controlados, de um modo geral, de forma severa; sao limitados pela propria consciencia das pessoas. No contexto mimetico, a excitagao agradavel pode demonstrar-se atraves da aprovagao dos amigos e da propria consciencia, desde que nao exceda certos limites. Pode experimentar-se odio e o desejo de matar, derrotar adversaries e humilhar inimigos. Pode participar-se fazendo amor com o homem ou a mulher mais atraentes, experimentando as ansiedades de ameagadora derrota e o aberto triunfo da vitoria. Em resumo, pode tolerar-se, ate certo ponto, o despertar de fortes sentimentos de grande variedade de tipos em sociedades que, de outra forma, impoem as pessoas uma vida de rotinas relativamente harmoniosa e sem emogao, e que exige um nivel elevado e grande regularidade de controlos emocionais em todas as relagoes humanas. Deste modo, as actividades mimeticas partilham com os outros dois tipos de lazer a fungao de antidotos para as rotinas da vida. Mas no seu caso depara-se-nos pelo menos nas sociedades altamente industrializadas, uma grande variedade de institutes e de organi-
CAPITULO II
185
zagoes particularmente especializadas para as tarefas de lazer, para o despertar de excitagao mimetica, como um ponto cristalizador para um vasto campo de outras experiencias. Estas tarefas altamente especializadas reunem institutes mimeticas e actividades que, de forma geral, se agrupam em compartimentos separados, tais como divertimento e cultura, desportos e arte. For certo, sera necessario olhar com maior profundidade para estas diferengas, mas dificilmente isso podera efectuar-se sem que, ao mesmo tempo, se investiguem as suas caracteristicas comuns nao so enquanto factos de lazer mas, tambem, como factos mimeticos de lazer.
CAPITULO III A genese do desporto: urn problema sociologico Norbert Elias
1
Muitos tipos de desportos que hoje sao praticados, de maneira mais ou menos identica, por todo o mundo tiveram origem em Inglaterra1. Daqui propagaram-se para outros paises, principalmente, na segunda metade do seculo XIX e primeira metade do seculo XX. O futebol, sob a forma que se tornou conhecida em Inglaterra por association football ou atraves da abreviatura popular de soccer, foi um deles. Corridas de cavalos, luta, boxe, tenis, caga a raposa, remo, criquete e atletismo foram outras formas. Mas nenhuma foi adoptada e absorvida pelos outros paises com tanta intensidade e, em muitos casos, com tanta rapidez, como se deles fizessem parte, como o futebol. Nem gozaram de tanta popularidade2. O termo ingles sport tambem foi largamente adoptado por outros paises como um termo generico para este tipo de passatempos. O facto de os sports, o tipo especifico de passatempos ingleses x
Este trabalho foi publicado previamente em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. O quadro teorico ai integrado esta muito relacionado e e, de facto, uma extensao da teoria dos processes de civilizagao definidos por Norbert Elias em The Civilizing Process, Oxford, 1978; e State Formation and Civilization, Oxford, 1982. 2 Nao e possfvel investigar aqui, com maior minucia, o facto de terem sido bastante mais reduzidas, quanto ao seu campo de acgao, a difusao e a adopgao da forma mais «rude» do futebol ingles, em contraste com a difusao e a adopgao de forma denominado soccer. Mas talvez merega a pena referir que o estudo deste tipo de problemas pode fornecer uma boa quantidade de provas e servir como um tema de estudo para aspectos especiflcos de uma teoria sociologica do desporto.
188
A GfiNESE DO DESPORTO
que se divulgaram por muitos paises, particularmente entre 1850 e 1950, possuirem em comum certas caracteristicas singulares, justificando a referida designagao, foi por certo mais notado nos outros paises do que em Inglaterra. Um comentador alemao escreveu em 1936: Como bem sabemos, a Inglaterra foi o bercp e a «mae» devota do desporto... Parece que os termos que se referem a este carnpo se tornaram propriedade comum de todas as nagoes, da mesma maneira que os termos tecnicos italianos no campo da musica. E raro, provavelmente, que uma pec,a de cultura tenha migrado com tao poucas mudangas de um pais para outro3. O facto de o «desporto» — o dado social tanto quanto a palavra — ser, de inicio, estranho nos outros paises pode demonstrar-se a partir de muitos exemplos. O tempo de um processo de difusao e de adopgao e sempre um dado significative no contexto de um diagnostico sociologico. Desta maneira, na Alemanha de 1810, um aristocrata escritor, que conhecia a Inglaterra, continuava a poder dizer que sport e tao intraduzivel quanto gentleman4. Em 1844, outro autor alemao escreveu, a respeito do termo sports, que «nao temos palavra para isso e somos quase forgados a introduzir o termo na nossa lingua»5. A difusao do termo ingles sport como uma expressao que os Alemaes podiam compreender com naturalidade continuou lenta ate 1850. Gradualmente adquiriu impeto em conjunto com o crescimento das proprias actividades desportivas. Por fim, no seculo XX, o termo sport estabeleceu-se por complete como uma palavra alema. Em Franga o Larousse du XIX.1™6 Siecle caracterizava desta maneira o termo sport: «Sport — sportt: palavra inglesa formada do antigo frances cksport, prazer, diversao...» Lamentava-se quanto a importagao de tais termos «que, obviamente, corrompem a nossa lingua, mas nao temos barreiras de costumes que proibam a sua
3 Tradugao do autor de England* Einfluss auf den deutschen Wortschatz, de Agnes Bain Stiven, Marburgo, 1936, p. 72. 4 Prmcipe Puechlser-Muskau, Brief e ernes Verstorbenem, 9 de Outubro de 1810. 5 J. G. Khol, citado por F. Kluge em Ethymologtsches Worterbuch, IT edi^ao, 1957, artigo sobre desporto.
CAPITULO III
189
passagem na fronteira»6. Outras importances de Inglaterra para Franga, quer factuais como verbals foram turf, jockey, steeplechase, match, sweepstake, boxe*. Ja, sob Luis XVIII, as corridas de cavalos e as apostas, de acordo com os modelos ingleses, se tinha divulgado em Franga. A moda desapareceu durante a revolugao, mas foi revivida com o restabelecimento de uma classe alta mais ou menos aristocratica. Em 1833, fundou-se em Paris um clube de joqueis. De facto, o tipo aristocratico ou de society dos passatempos que dominavam, com o sentido do termo sport, em Inglaterra, na primeira metade do seculo XIX, propagou-se a outros pafses, tendo side adoptado pelas correspondentes elites sociais antes de os tipos mais populates, como o futebol, se desenvolverem com as caracterfsticas de um sport', antes mesmo de estes serem compreendidos como tal na propria Inglaterra e de se propagarem, sob essa forma, a outros pafses como um passatempo de grupos da classe media e dos trabalhadores. Na Alemanha, como em Franca, alguns termos ingleses que pertenciam a linguagem do desporto do tipo das classes altas fpram adoptados ja no seculo XVIII. Desde aproximadamente 1744, um velho termo baxen apareceu na forma literaria de boxen. Para compreendermos o desenvolvimento das sociedades europeias, tal como para se compreender o proprio desporto, e muito significativo que os primeiros tipos de desportos ingleses adoptados por outros pafses tenham sido as corridas de cavalos, o pugilismo, a caga a raposa e passatempos semelhantes, e que a difusao de jogos de bola, como futebol e tenis, e do «desporto» em geral, no sentido mais contemporaneo, tenha comegado somente na segunda parte do seculo XIX. A transformagao dos polimorfos jogos populares ingleses em futebol ou soccer assume o caracter de um desenvolvimento bastante vincado no sentido de maior regulamentagao e uniformidade. Esta culminou na codificagao do jogo, a um nivel nacional, mais ou menos em 1863. O primeiro clube alemao de futebol fundou-se, de 6
Larousse du XIVrem Siecle. *Turf, relvado; jockey, corredor professional nas corridas de cavalos; steeplechase, corridas de cavalos com obstaculos; match, desaflo, jogo, competigao desportiva; sweepstake, uma certa modalidade de aposta, principalmente nas corridas de cavalos, em que o vencedor recebe todo ou quase todo o dinheiro apostado; boxe, pugilismo. (N. da T.)
190
A GENESE DO DESPORTO
modo bem elucidative, em Hanover, em 1878. Na Holanda, o primeiro clube de futebol foi fundado em 1879/80 e, em Italia, cerca de 1890. As federagoes de futebol fundaram-se na Suiga, em 1895, na Alemanha, em 1900, e em Portugal, no ano de 1906, o que revela o aumento do numero de clubes em cada pais. So na Holanda existiam, desde 1900/01, vinte e cinco clubes de futebol, cada um com mais de dez membros. Em 1910/11, o numero de clubes elevara-se para cento e trinta e quatro. De 1908 em diante, o futebol tornou-se — com algumas interrupgoes — um elemento regular dos Jogos Olimpicos. A medida que o jogo se divulgava por outros paises, o proprio termo futebol, muitas vezes transformado por conveniencia e, na maior parte das vezes, associado ao tipo de futebol ingles soccer, invadiu outras linguas. Em Franga manteve a sua forma original. Na Alemanha transformou-se sem grande diflculdade em fussball. Em Espanha tornou-se futbol com caracteristicas derivativas, como futbolero tfutbolista. Em Portugal tornou-se futebol, na Holanda voetbal. Nos Estados Unidos, tambem o termo football se relacionou durante um tempo com o tipo de jogo soccer, mas entao o termo alterou o seu sentido, de acordo com as mudangas verificadas no sucesso do proprio jogo. O tipo dominante americano de jogo de futebol transformou-se de modo gradual a partir do soccer. Algumas das principals universidades americanas, segundo parece, divergiram a partir das suas regras iniciais, primeiro influenciadas por uma variante canadiana do rival ingles do futebol, o rugby-football ou rugger, que se desenvolveu entao a sua maneira. Mas o termo football permaneceu associado a um estilo diferente de jogar, que evoluiu de modo gradual e, por fim, foi estandardizado nos Estados Unidos, enquanto o tipo de jogo association se tornou ai conhecido pura e simplesmente como soccer, em contraste com o uso continuo do termo futbol e football para esta forma de jogo nos Estados lat ino-americanos. Poderiam apresentar-se muitos outros exemplos desta difusao a partir de Inglaterra e de absorgao por parte de outros paises do desporto e dos termos a ele associados. Numa primeira abordagem, estes exemplos sao talvez suficientes para apresentar o problema.
CAPfTULO HI
191
Que se pode concluir do facto de um tipo de passatempo ingles chamado «desporto» ter determinado, principalmente no seculo XIX e XX, o padrao de um movimento de lazer de dimensao mundial? Passatempos deste tipo correspondent como parece evidente, a necessidades especfficas de lazer que se fazem sentir durante esse periodo em varios paises. For que razao emergiram elas, em primeiro lugar, em Inglaterra? No desenvolvimento e na estrutura da sociedade inglesa, que condigoes justificam o progresso af verificado nas actividades de lazer com as caracterfsticas especificas que designamos por «desporto»? E o que distingue os passatempos que as possuem dos anteriores passatempos? A primeira vista pode sentir-se que este con junto de questoes se baseia em hipoteses falsas. Na verdade, as sociedades contemporaneas nao sao as primeiras nem as unicas cujos membros sentiram prazer no desporto. As pessoas nao jogaram futebol em Inglaterra e em outros paises durante a Idade Media? Os cortesaos de Luis XIV nao possuiam os seus courts de tenis e nao apreciaram o seu jeu de paume! E, acima de tudo, os antigos gregos, os grandes pioneiros do «atletismo» e de outros «desportos», nao organizaram, como nos, competigoes de jogos locais e interestados numa escala grandiosa? O renascimento dos Jogos Olimpicos do nosso tempo nao e um indicador suficiente quantd ao facto de o «desporto» nao ser nada de novo? Sem considerar brevemente o problema de conhecer se, na realidade, as competigoes de jogos da antiga Grecia possuiam as caracterfsticas daquilo que agora consideramos como «desporto», e diffcil clarificar a questao de saber se o tipo de competigoes de jogos que se desenvolveram durante os seculos XVIII e XIX, em Inglaterra, sob o nome de «desporto», e que desde af se propagaram a outros pafses, era alguma coisa relativamente nova ou se se tratava do reaparecimento de alguma coisa antiga que, sem explicagao, estivesse desaparecida. O termo «desporto» e utilizado no presente de uma maneira bastante vaga, de forma a abranger confrontos de jogos de numerosos generos. Como o termo «industria», e utilizado tanto num sentido lato como num sentido restrito. No sentido lato refere-se, tambem como o termo «industria», tanto a actividades especfficas de sociedades tribais pre-Estado e de socie-
192
A GENESE DO DESPORTO
dades-Estado pre-industriais, como as actividades correspondentes dos Estados-nagoes industriais. Se, contudo, no presente utilizarmos o termo «industria» neste sentido lato, estamos bem conscientes do seu sentido restrito e mais precise, ou seja, do facto de o «processo de industrializagao» dos seculos XIX e XX ser algo muito recente e de os tipos especificos de produgao e de trabalho que se desenvolveram, em fase hodierna, sob o termo «industria», possuirem certas estruturas unicas que podem ser determinadas sociologicamente com razoavel precisao, sendo nitidamente distintas das estruturas de outros tipos de produgao. Se falarmos de «desportos», todavia, continua a empregar-se o termo de maneira indiscriminada, quer num sentido lato, em referencia ao confronto de jogos e aos exercicios fisicos de todas as sociedades, quer num sentido mais restrito, em relagao ao tipo especifico de praticas de jogos que, como o proprio termo, teve origem em Inglaterra e dai se propagou a outras sociedades. Este processo — podiamos designa-lo por «desportivizagao» das competigoes de jogos, se isso nao soasse de uma forma tao pouco atraente — evidencia um problema que e bastante claro: no recente desenvolvimento da estrutura e da organizagao destas actividades de lazer a que chamamos «desporto», sera possfvel descobrir orientagoes que sejam tao singulares como as que se observam na estrutura e organizagao do trabalho, a que nos referimos quando falamos de um processo de industrializagao? Esta e uma questao em aberto e pode ser facilmente mal interpretada. Perante a avaliagao dominante que se faz do trabalho, como algiima coisa de muito maior valor do que as actividades de lazer de todos os generos, pode sugerir-se sem difkuldade que qualquer transformagao quer nas actividades de lazer em geral quer nos confrontos de jogos em particular, que tern ocorrido nos ultimos duzentos anos aproximadamente, devem ter sido o «efeito» do qual a industrializagao foi a «causa». A expectativa implicita de relagoes casuais deste tipo encerra o problema, provavelmente, antes de este ter sido aberto. Pode, por exemplo, considerar-se a possibilidade de que tanto a industrializagao como a transformac.ao das ocupagoes especificas de lazer em desportos serem aspectos de orientagao interdependentes no quadro da transformagao global das sociedades-Estado, nos tempos recentes. So pode haver esperanga de clarificar o problema que aqui se nos depara se decidirmos deixar de tratar como «causas» as mudangas nas esferas sociais que
CAPfTULO HI
193
se classiflcam de superiores na escala de valores de uma sociedade, e como «efeitos» as mudangas em esferas inferiores. E a explicagao do proprio problema — o da genese do desporto — e a principal tarefa deste pequeno trabalho. Neste, como em muitos outros casos, e mais facil encontrar solugoes se soubermos com clareza qual e o problema.
O excerto que se segue de um artigo de atletismo numa edigao recente da Encyclopaedia Britannica pode ser encarado, provavelmente, como um razoavel sumario das perspectivas convencionais existentes quanto a este problema: Os primeiros registos historicos de atletismo sao os dos jogos Olimpicos gregos (800 a. C.)... proibidos pelo imperador Teodosio no ano de 349 d. C. A historia do atletismo, entre a queda de Roma, no seculo V, e o seculo XIX, e bastante imprecisa. Na Idade Media, os festivais religiosos eram acompanhados por rudes jogos de bola entre cidades rivais ou corporagoes. Estes foram os percurssores dos grandes espectaculos desportivos do seculo XX: soccer, basebol, tenis, futebol, etc. O advento da revolugao industrial, em meados do seculo XVIII, e a posterior introduce dos desportos como uma actividade extracurricular regular nas escolas publicas, por Thomas Arnold (1830), proporcionaram um avan^o que conduziu ao grande desenvolvimento do desporto durante a epoca vitoriana de Inglaterra. A coroar o renascimento do seculo XIX estava a restauragao dos Jogos Olfmpicos em Atenas, no ano de 1896. Assim que o seculo XX surgiu, o interesse por todos os desportos de competigao atingiu o cume e, apesar de duas guerras mundiais e de numerosas hostilidades menores, este interesse continua a aumentar. Este resumo, como se pode ver, apresenta factos razoavelmente documentados. Em alguns mementos, insinua uma explicagao, como a do impulso que se supoe ter sido dado ao desporto por meio da iniciativa do Dr. Arnold. Mas dificilmente este trecho podera ser nomeado para abrir os olhos do leitor quanto a muitos problemas nao resolvidos que se escondem sobre a suave superficie da narrativa. Por exemplo, como se pode explicar que os festivais religiosos
194
A GENESE DO DESPORTO
na antiguidade, em Olimpia e em outros locals, fossem, aparentemente, menos rudes e, desse modo, de caracter mais proximo daqueles do seculo XIX e XX? E como pode determinar-se o facto de estes serem menos rudes? E como aquilatar-se que estes sao menos rudes? Como pode determinar-se, com um razoavel grau de precisao, variagoes na «rudeza» quanto a execugao dos jogos, no ambito dos padroes civilizados? E como pode alguem explica-los? Como se explica o «grande desenvolvimento do desporto», o «restabelecimento do atletismo no seculo XIX»? Se recordarmos os torneios da Idade Media ou os inumeros jogos populares desse periodo — nao suprimidos e, de facto, irreprimfveis, mesmo que as autoridades os desaprovassem, como os repetidos edictos contra a pratica do futebol em Inglaterra e noutros paises europeus indicam — dificilmente se pode afirmar que ai nao existiu, nessa epoca um interesse muito grande pelos confrontos de jogos desse tipo. As diferengas entre as competigoes de jogos que as pessoas desfrutavam na epoca da «revolugao industrial consistiam apenas numa questao de um maior ou menor grau de «rudeza»? A que se deve o facto de os ultimos serem menos selvagens, de serem mais «civilizados»? E esta e uma das caracteristicas que os distinguem do desporto? Mas, nesse caso, justifica-se falar de um «renascimento»? O movimento do desporto no seculo XIX e XX e outra Renaissance*, um inexplicavel «renascer» de alguma coisa que existiu na Antiguidade, pereceu na Idade Media e, por razoes desconhecidas, renasceu, simplesmente, no nosso tempo? As competigoes de jogos na Antiguidade eram menos «rudes» e menos selvagens? Seriam, como as nossas, relativamente contidas e representativas de uma sensibilidade comparativamente elevada, oposta ao alegre provocar de ferimentos graves nos outros, para deleite dos espectadores? Ou a tendencia para apresentar o movimento dos desportos modernos como uma restauragao de um movimento similar na Antiguidade e uma dessas benevolas lendas ideologicas, utilizadas inocentemente como um meio para fortalecer a unidade de um movimento que esta repleto de tensoes e de tendencias conflituosas, e para realgar o seu encanto e prestfgio? Nesse caso, nao seria talvez preferivel examinar, de modo realista, as condigoes especificas que
*Renascenga, em Frances no original. (N. da T.)
CAPITULO HI
195
contribuiram para a genese e ascensao do movimento dos desportos do nosso tempo, enfrentar o facto de que competigoes de jogos do tipo que nos chamamos «desporto», tal como os Estados-nagoes industrials onde surgiram, possuem certas caracteristicas unicas que os distinguem dos outros tipos, e iniciar assim a dificil tarefa de investiga-los e de explicar a natureza destas caracteristicas distintivas?
A partir de um exame mais profundo, nao e dificil verificar que os concursos de jogos da Antiguidade Classica, que sao representados com frequencia como paradigma do desporto, possuiram numerosas caracteristicas importantes e progrediram sob condigoes que eram muito diferentes das que distinguem os nossos proprios concursos de jogos. O ethos dos concorrentes, as regras das provas e os proprios desempenhos diferem nitidamente, em muitos aspectos, dos que sao caracteristicos do desporto moderno. Muitos dos escritos relevantes de hoje apresentam urna forte tendencia para minimizar as diferengas e aumentar as similaridades. O resultado disso e um quadro distorcido de nos proprios, bem como da sociedade grega, e um quadro falseado das relagoes entre as duas realidades. Os result ados sao confundidos nao so pela tendencia de tratar os concursos de jogos da Antiguidade como a personificagao ideal do desporto contemporaneo mas, tambem, pela correspondente expectativa de encontrar a confirmagao para esta hipotese nos escritos da Antiguidade, pela tendencia, ainda, de negligenciar provas contraditorias ou trata-las de modo automatico, enquanto referencias a casos excepcionais. Bastara assinalar, a este proposito, um aspecto caracteristico das diferengas existentes na estrutura global dos concursos de jogos da Antiguidade Classica e na dos jogos do seculo XIX e XX. Na Antiguidade, as regras do costume para acontecimentos atleticos «duros», como o pugilismo e a luta, admitiam um grau de violencia bastante mais elevado do que aquele que era admitido pelas regras do tipo das provas correspondentes do desporto. As regras deste ultimo, alem disso, sao muito detalhadas e diferenciadas; em primeiro lugar, nao sao regras forjadas no costume mas regras escritas, sujeitas explicitamente a um
196
A GtiNESE DO DESPORTO
criticismo racional e a revisoes. O nivel superior da violencia fisica nos proprios jogos da Antiguidade era mais do que um dado isolado. Isso era sintomatico de tragos especificos na organizagao da sociedade grega, em especial no estadio de desenvolvimento alcangado por aquilo que nos hoje designamos por organizagao de «Estado» e pelo grau de monopoliza^ao da violencia fisica nele integrada. A monopolizagao relativamente firme, estavel e impessoal e o controlo dos meios de violencia e um dos tragos centrais dos Estados-na^oes contemporaneos. Em comparagao, a monopolizagao e o controlo da violencia fisica institucional nas cidades-Estado da Grecia, permanecia rudimentar. O esclarecimento de problemas como este nao e dificil se a investigagao for guiada por um modelo teorico claro, tal como o que e fornecido pela teoria do processo de civilizagao7. De acordo com ele, espera-se que a forma^ao do Estado e a formagao da consciencia, o nivel de violencia fisica socialmente permitido e o limiar de repugnancia contra o seu uso ou respective testemunho assumam formas especiflcas em diferentes estadios no desenvolvimento das sociedades. E surpreendente descobrir como o exemplo da Grecia Classica confirma de maneira tao completa estas expectativas teoricas. Deste modo, a teoria e os dados empiricos, em con junto, anulam um dos principals obstaculos na compreensao das diferengas de desenvolvimento como as que existem entre os antigos concursos de jogos e os contemporaneos, nomeadamente a sensagao de que se langa uma censura sobre a outra sociedade e se ameagam os seus valores humanos ao adinitir que o nivel de violencia fisica ai tolerado, mesmo nos concursos de jogos, era elevado, e o limiar de reacgao contra o facto de as pessoas serem feridas, ou mesmo mortas entre si em tais disputas, para deleite dos espectadores, ser por correspondencia inferior ao nosso. No caso da Grecia fica-se, deste modo, dividido entre os elevados valores que tradicionalmente estao associados as suas realizagoes na filosofia, nas ciencias, nas artes e na poesia, e o baixo valor humano que parece atribuir-se aos gregos antigos, se encararmos o seu baixo nivel de reacgao contra a violencia ffsica> parecendo sugerir-se que, cornpa-
7
Norbeirt Elias, The Civilizing Process, 1978; e State Formation and Civilization, Oxfbfd, 1982.
CAPtTULO HI
197
rados connosco, eles eram «nao civilizados» e «barbaros». E precisamente esta interpretagao incorrecta da natureza factual do processo de civilizagao, a tendencia dominante para usar termos como «civilizado» e «nao civilizado» como expressoes de juizos morais etnocentricos, como juizos morais absolutos e definitivos — nos somos «bons» eles sao «maus» ou vice-versa — que conduz o nosso raciocmio a contradigoes aparentemente inevitaveis como estas. Nos proprios evoluimos de acordo com uma organizagao social e um controlo dos meios de violencia especifico dos Estados-nagoes do nosso tempo, com padroes especificos de autodommio quanto a impulsos de violencia. Avaliamos as transgressoes de maneira automatica por estes padroes — quer elas ocorram na nossa propria sociedade quer noutros estadios de desenvolvimento diferentes. Assim interiorizados, estes padroes proporcionam protec^ao e fortalecem as nossas defesas, sob uma grande variedade de formas, contra pequenas faltas. Uma sensibilidade elevada relativamente a actos de violencia, a sensagao de repugnancia contra o facto de se presenciar a violencia, cometida para alem do nivel permitido na vida real, sentimentos de culpa sobre os nossos proprios erros, uma «ma consciencia», tudo isto e sintomatico destas defesas. Contudo, num periodo de incessante violencia presente nas questoes entre Estados, estas defesas interiorizadas contra impulsos a violencia permanecem> inevitavelmente, instaveis e frageis. Elas sao continuamente expostas a pressoes sociais conflituosas — aquelas encorajando um elevado nivel de autodommio dos impulsos violentos nas relagoes humanas na mesma sociedade-Estado, e estas encorajando uma libertagao do autodommio dos impulsos violentos e mesmo uma preparagao para a violencia nas relagoes entre sociedades-Estado diferentes. O primeiro e responsavel pelo elevado nivel de seguranga fisica, embora nao o seja, e claro, quanto a seguranga psicologica e de outras formas usufruida pelos cidadaos dos Estados-nagoes mais desenvolvidos, nas suas proprias sociedades. Estas defesas entram constantemente em conflito com as exigencias impostas aos cidadaos destes Estados, como o resultado da ausencia de qualquer monopolizagao e controlo eficiente da violencia fisica nas relagoes entre Estados. A consequencia e uma moralidade dupla, a ruptura e a contraditoria formagao da consciencia. Sem diivida que discrepancias deste tipo podem encontrar-se em muitos estadios do desenvolvimento das sociedades. O nivel de controlo
198
A GENESE DO DESPORTO
da violencia no seio dos grupos socials do estadio tribal e quase sempre mais elevado do que o de controlo da violencia entre grupos sociais deste tipo. Com certeza, nao seria diferente nas cidades-Estado gregas. Mas, neste caso, a disparidade entre os dois niveis era relativamente pequena, comparada com a que e caracteristica do nosso proprio tempo. Existe uma grande quantidade de provas sugerindo que este ingrediente, a disparidade entre o nivel de seguranga fisica e das formas de controlo social e de autodominio dos impulses violentos, com a correspondente formagao da consciencia alcangada hoje nas relagoes entre Estados, bem como o nivel de seguranga fisica e de regulamentagao social de sentimentos manifestamente violentos e — intermitentemente — de actos manifestos de violencia nas relagoes entre Estados, e hoje superior ao que alguma vez existiu antes. O nivel de seguranga fisica nos Estados-nagoes industrials mais avangados, embora possa parecer bastante reduzido para aqueles que vivem nelas, e, com toda a probabilidade, normalmente superior ao das sociedades-Estado menos desenvolvidas, ao mesmo tempo que a inseguranga nas relagoes entre Estados dificilmente decresceu. No actual estado de desenvolvimento social, os conflitos violentos entre Estados permanecem tao ingovernaveis para aqueles que estao envolvidos neles, como sempre o foram. De acordo com isso, os padroes de comportamento civilizado sao relativamente baixos e a interiorizagao dos tabus sociais contra a violencia fisica, a formagao da consciencia quanto a este problema, e transitoria e comparativamente instavel. O facto de os conflitos e tensoes no interior dos Estados-nagoes industrializados se terem transformado — normalmente — em menos violentos e de certo modo mais governaveis e o resultado de um longo desenvolvimento nao planeado; nao e certamente o resultado do merito das geragoes actuals. Mas as geragoes actuals consideram isso como tal; mostram tendencia para situar-se em relagao as geragoes do passado, cuja formagao da consciencia e limiar de reacgao contra a violencia fisica, por exemplo, nas relagoes entre elites dominantes e dominados era inferior, como se o seu proprio limiar de reacgao superior fosse, simplesmente, o resultado do seu empreendimento pessoal. O nivel de violencia que pode observar-se nos confrontos de jogos de periodos passados considera-se muitas vezes desta maneira. Nao sao raras as vezes que falhamos na distingao entre actos in-
CAPITULO III
199
dividuais de transgressao contra os padroes de controlo da violencia na nossa propria sociedade e actos individuais de um genero similar praticados no seio de outras sociedades, de acordo com o seu nivel socialmente permitido de violencia, com as normas dessa sociedade. Deste modo a nossa imediata, a nossa quase automatica resposta emocional induz-nos, muitas vezes, a julgar sociedades com diferentes padroes de controlo da violencia, como se os membros dessas sociedades estivessem livres para escolher entre os sens padroes e as suas normas e, tendo feito essa escolha, tivessem optado pela decisao errada. Em relagao a eles, desfrutamos a mesma sensagao de «ser melhor», de superioridade moral experimentada com frequencia em relagao a agressores individuais na nossa sociedade, quando chamamos a sua conduta «nao civilizada» ou «barbara», expressando desta maneira os nossos sentimentos de superioridade moral. Analisamos a sua aderencia a normas sociais que permitem formas de violencia condenadas como repulsivas nas nossas proprias sociedades como se fossem uma mancha no seu caracter moral, um sinal da sua inferioridade como seres humanos. A outra sociedade e assim julgada e avaliada por nos como um todo, como se fosse um membro individual da nossa propria sociedade. Em geral, nao perguntamos, e portanto nao sabemos, que oportunidades surgiram no nivel de controlo da violencia nas normas sociais que regulamentam a violencia ou nos sentimentos associados a violencia. Em regra, nem perguntamos e, por esse motivo nao sabemos, porque e que se verificam. Por outras palavras nao sabemos como e que elas podem ser explicadas ou, nesse aspecto, como e que pode ser explicado o nosso proprio nivel de sensibilidade mais elevado em relagao a violencia fisica, pelo menos nas relagoes entre Estados. Quanto muito, elas sao explicadas vagamente mais pela escolha das nossas proprias expressoes do que explicita e criticamente, por exemplo, como um fluxo na natureza dos grupos envolvidos, ou como uma caracteristica inexplicavel da sua maneira de ser «racial» ou etnica.
Os niveis habituais de violencia praticados e admitidos nos confrontos de jogos das sociedades em diferentes estadios de desen-
200
A GENESE DO DESPORTO
volvimento esclarece, deste modo, urn problema mais vasto e fundamental. Alguns exemplos podem contribuir para o tornar mais preciso. Considere-se o caso da luta executada nos nossos proprios dias e na Antiguidade. Hoje o desporto esta altamente organizado e regulamentado. A luta e dirigida por uma Federagao Internacional de Luta, com sede na Suiga. De acordo com as regras olimpicas de Janeiro de 1967, entre todas as prisoes da luta de estilo livre esta o estrangulamento, o meio-estrangulamento e o duplo-Nelson*, com aplicagao de pressao directa para baixo com o uso das pernas. Socos, pontapes, cabegadas, tudo e proibido. Um assalto, que nao dura mais que nove minutos, esta dividido em tres periodos de tres minutos cada, com dois intervalos de um minuto, sendo controlado por um arbitro, tres juizes e um cronometrista. Apesar destas regulamentagoes rigidas, a luta de estilo livre surge hoje, a muitas pessoas, com um dos tipos de desporto menos refinados e rnais «rudes». Uma versao um pouco mais violenta, executada por profissionais como um desporto-espectaculo, embora muitas vezes previamente combinada, permanece muito popular. Mas os profissionais raramente infligem ferimentos graves uns aos outros. Com toda a probabilidade, o publico nao gostaria de ver ossos partidos e sangue a correr. Mas os executantes efectuam uma boa demonstragao de se magoarem uns aos outros e o publico parece gostar desta simulagao8. Entre os concursos de provas dos Jogos Olimpicos estava o pancracio, uma especie de luta no solo que constituia um dos acontecimentos mais populares. Mas o nfvel de violencia permitida, representada pelo habitual duelo do pancracio, era muito dife8
Para urn debate quanto a luta profissional moderna enquanto um tipo de farsa, ver «American Sports: Play and Dis-play» e «Wrest ling: the Great American Passion Play», de Gregory P. Stone, em Eric Dunning (ed.), The Sociology of Sport: a Selection of Readings, Londres, 1971. ^Double-Nelson, ou duplo-Nelson, designa uma tecnica particular de luta na qual o atacante utiliza ambos os membros superiores, colocando-se atras do adversario e passando os seus brakes sob as axilas do adversario, de modo a que, atraves da flexao dos antebragos e com um movimento de pronagao das maos, estas sejam colocadas com os dedos entrelagados sobre a nuca do opositor. A extensao dos antebragos do atacante, que em geral se segue, obriga a que se efectue um movimento de extensao maxima da cabega do adversario de que pode resultar asflxia e morte. Actualmente, nao e utilizada em competicjio. (N. da T.)
CAPITULO III
201
rente daquele que e permitido hoje na luta de estilo livre contemporanea. Deste modo, Leontikos de Messana, que ganhou a coroa olimpica por duas vezes, pela luta, obteve as suas vitorias nao por derrubar os seus adversaries mas por Ihes partir os dedos. Arrhachion de Phigalia, duas vezes vencedor olimpico no pancracio, foi estrangulado em 564 durante a sua terceira tentativa para veneer a coroa olimpica, mas antes de ser morto conseguiu partir os dedos do pe do seu opositor e a dor forgou este ultimo a desistir da luta. Por esse motivo, os juizes coroaram o cadaver de Arrhachion e proclamaram o morto vencedor. Na sequencia disso, os seus compatriotas erigiram uma estatua de Arrhachion na praga da sua cidade9. Aparentemente, era esta a pratica tradicional. Se um homern era morto, numa prova de um dos grandes festivals, era coroado vencedor. Mas, para alem da perda da coroa — um reves muito duro —, o sobrevivente nao era castigado. Nem existia, tanto quanto se pode ver, qualquer estigma social inerente a esta acgao. Ser morto ou gravemente ferido e, talvez, ficar incapacitado para o resto da vida era um risco que um lutador do pancracio tinha de correr. Pode estabelecer-se a diferenga entre a luta como um desporto e a luta como um agon, a partir do seguinte resumo: No pancracio os adversaries lutavam com todas as partes do corpo, as maos, os pes, os cotovelos, os joelhos, os pescogos e as cabegas; em Esparta usavam mesmo os pes. Os lutadores do pancracio podiam arrancar os olhos uns aos outros... podiam, tambem, obstruir, agarrar os pes, narizes e orelhas, deslocar os dedos e bragos e aplicar estrangulamentos. No caso de conseguirem derrubar o outro, podiam sentar-se sobre ele e bater-lhe na cabec^a, cara e orelhas; tambem podiam dar-lhe pontapes e pisa-lo. Nao e precise dizer que os lutadores desta prova brutal eram atingidos por vezes pelos mais terriveis ferimentos e, nao raro, morriam! O pancracio dos jovens efebos era provavelmente o mais brutal de todos. Pausanias diz-nos que os lutadores lutavam com unhas e dentes, mordiam e rasgavam os olhos
9
H. Forster, Die Sieger in den Olympischen Spieler, Zwickau, 1891. Franz Mezoe, Geschichte der Olympischen Spiele, Munique, 1030, pp. 100-1; citado por Ludwing Dress em Olympia; Gods, Artists and Athletes, Londres, 1968, p. 83. 10
202
A GENESE DO DESPORTO
Havia um juiz mas nao um cronometrista, nao existindo limites de tempo. A luta durava ate que um dos oponentes desistisse. As regras eram tradicionais, nao escritas, indiferenciadas e na sua aplicagao eram, por certo, flexiveis. Parece que, tradicionalmente, morder e arrancar os olhos era proibido. Mas, antes que o juiz pudesse afastar um agressor dominado pela furia do combate, quando este era afastado do seu oponente o dano ja estava consumado. Os antigos Jogos Olimpicos duraram mais de mil anos. Os padroes de violencia na luta podem ter oscilado durante todo este periodo, mas, fossem quais fossem as oscilagoes ao longo de toda a Antiguidade, o limiar de sensibilidade quanto a provocagao de ofensas fisicas e mesmo da morte num combate, e, de acordo com isso, todo o ethos da prova, era muito diferente daquele que, nos nossos dias, e representado pelo tipo de confrontos caracterizado como «desporto». O pugilato e outro exemplo. Tal como o tipo de luta do pancracio, era muito menos limitado por regras e, por essa razao, dependia em grau mais elevado da forga fisica, da forga espontanea, da paixao e da resistencia, do que o boxe. Nao existiam distin^oes entre diferentes classes de pugilistas. Por este motivo, nao se procurava confrontar individuos segundo o seu peso, nem nesta nem em qualquer outra prova. A unica distingao que existia era entre rapazes e adultos. Os pugilistas nao lutavam apenas com os punhos, em quase todas as formas de pugilato, as pernas desempenhavam um importante papel. Dar pontapes nas pernas do adversario constituia um elemento normal na tradigao do pugilato na Antiguidade11. Apenas as maos e as partes superiores dos quatro dedos eram ligadas com tiras de couro*, apertadas no antebrago. Os punhos podiam estar cerrados ou os dedos esticados e, com pregos duros, batiam no corpo e na cara dos oponentes. Com o passar do n
Filostrato, On Gymnastics (Peri Gymnastike), primeira metade do seculo III d.C, Cap. II. *Estas tiras de couro eram colocadas como uma especie de luva, enrolando-se e, em simultaneo, entrelagando-se as tiras de modo a protegerem as maos do atacante e, tambem, a tornarem mais fortes e dolorosos os golpes desferidos sobre o opositor. Por vezes, como aconteceria mais tarde em Roma, os atletas utilizavam nos combates tiras de couro com peda^os de ferro agugados incrustados, que acentuavam o caracter agressivo destas correias, a que se dava o nome de «cesto». (N. da T.)
CAPITULO III
203
tempo, correias macias de couro derarn lugar as correias mais pesadas feitas, especialmente, de couro curtido12. Eram entao ajustadas com varias tiras de couro grosso duro, com arestas afiadas salientes. A estatua do pugilista sentado de Apollonio de Atenas (seculo I a. C), agora no Museu Nazionale delle Terme, em Roma, apresenta com bastante nitidez o modo como se colocavam. Mas, talvez boxe seja um termo equivoco. Nao so a maneira mas, tambem, o objectivo e o ethos deste tipo de luta eram diferentes dos do boxe. Bastante significativo e o facto de o ethos da luta destes confrontos de pugilato, tal como os agones gregos de uma maneira geral, derivar muito mais directamente do ethos combativo de uma aristocracia guerreira do que o ethos combativo das provas desportivas. O ultimo radica na tradigao de um pais que, mais do que a maioria dos outros paises europeus, desenvolveu uma organizagao distinta de guerra no mar13, muito diferente da organizagao da guerra em terra, e cujos proprietarios das classes elevadas —- aristocracia e pequena nobreza — desenvolveram um codigo de cornportamento muito menos envolvido com o codigo de honra de um corpo de oficiais dos exercitos de terra do que aquele que e proprio da maioria das outras classes elevadas europeias. O «boxe» grego, comum as outras formas de preparagao agonistica e pratica nas cidades-Estado gregas, mas diferente do boxe ingles nos seculos XVIII e XIX, era considerado tanto um meio de preparagao para a guerra como para os concursos de jogos. Filostrato menciona o facto de a tecnica de luta do pancracio ter mantido os exercitos das cidades gregas em vantagem na batalha da Maratona, quando esta se desenvolveu numa luta corpo a corpo generalizada, e tambem na das Termopilas, onde os Espartanos lutaram com as maos nuas quando as espadas e dardos se quebraram14. 12
Filostrato refere que as correias de couro de pele de porco eram proibidas porque se acreditava que os ferimentos infligidos por elas eram demasiado crueis. Menciona tambem o facto de nao se dever dar golpes com o polegar. Talvez valha a pena fazer referenda a estes pormenores. Nao se deve julgar que as regras do costume das competigoes de jogos na Antiguidade nao sugeriam qualquer respeito pelos participantes. Mas, dado que estas regras eram transmitidas por meio da tradigao oral, permitiam ainda um vasto campo de possibilidades de ferimentos series. 13 Ver Norbert Elias, «Studies in the Genesis of the Naval Profession», Bristish Journal of Sociology, Vol. 1, n.° 4, Dezembro de 1950. 14 Filostrato, On Gymnastics, Cap. II.
204
A GENESE DO DESPORTO
No tempo da Roma imperial, no momento em que escrevia, as guerras ja nao se realizavam com exercitos de cidadaos, eram levadas a efeito por soldados professionals, as legioes romanas. A distancia entre a tecnica militar e a conduta de guerra, por um lado, e a tecnica agonistica tradicional dos concursos de jogos, por outro, tornara-se superior, O grego Filostrato olhou para o passado, para a epoca classica, com uma nostalgia compreensivel. Mesmo ai, no perfodo dos exercitos de hoplitas, as tecnicas de combate militar e as dos concursos de jogos, talvez ja nao estivessem tab relacionadas entre si como sugere, mas a sua ligagao era muito mais intima do que a que existia entre as tecnicas de combate das provas de desporto e as tecnicas de combate da guerra no tempo dos Estados-nagoes industrials. Filostrato exagerava, por certo, quando escreveu que, nos primeiros tempos, as pessoas consideravam os concursos de jogos como um exercicio para a guerra e a guerra um exercicio para essas provas13. O ethos dos concursos de jogos nos grandes festivals gregos continua a reflectir o dos antepassados heroicos, tal como sao representados nos poemas epicos de Homero e perpetuados, pelo costume, na educagao dos jovens. Possuia muitas caracterfsticas do ethos de ostentagao que regulamenta, em grande niimero as sociedades, as posigoes e as rivalidades de poder das elites nobres. Lutar, nos jogos como na guerra, centrava-se na exibigao ostentatoria das virtudes guerreiras que atribuiam o mais elevado louvor e honra a um homem, no interior do seu proprio grupo e para o seu grupo — para o seu grupo familiar ou para a sua cidade — em rela^ao aos outros grupos. Veneer inimigos ou adversaries era motivo de gloria, mas dificilmente seria menos glorioso ser vencido, como Heitor o foi por Aquiles, desde que se lutasse o mais que se pudesse ate ser mutilado, ferido ou morto e nao se pudesse lutar mais. A vitoria ou a derrota estavam nas maos dos deuses. Renunciar a vitoria, sem uma demonstragao de bravura e de resistencia, e que era inglorio e vergonhoso. Na linha deste ethos guerreiro, um rapaz ou um homem morto num dos combates olimpicos de pugilato ou de luta era coroado, com frequencia, vencedor, para gloria do seu cla e da sua cidade, e o sobrevivente — o assassino — nao era punido nem estigmati-
™lbid., Cap. 43.
CAPITULO HI
205
zado. Os jogos gregos nao eram dominados por uma grande preocupagao de «justiga». O ethos ingles de justiga tinha raizes nao militates. Desenvolveu-se em Inglaterra, em ligagao com uma mudanga muito especifica, verificada na natureza do prazer e da excitagao proporcionados por confrontos de jogos, na sequencia da qual o prazer, demasiado breve, que se sentia no final de uma prova de desporto, no momento de consuniagao ou de vitoria, foi alargado e prolongado pelo prazer e igual excitagao derivados daquilo que inicialmente foi o prazer antecipado de participar ou de testemunhar a tensao do proprio desafio. A maior enfase colocada no prazer da disputa do jogo e a tensao-excitagao que este proporcionava estavam, ate certo ponto, relacionados com o prazer de apostar, que desempenhou em Inglaterra um papel consideravel quer na transformagao de formas mais «rudes» de confrontos nos desportos quer nos desenvolvimentos do ethos e da justiga. Ao presenciar o combate de um jogo efectuado pelos seus filhos, pelos seus servigais ou por profissionais famosos, os cavalheiros gostavam de apostar dinheiro numa das partes, condimento da excitagao fornecida pela propria luta, que ja tinha sido temperada por restrigoes civilizadoras. Mas a expectativa de veneer uma aposta podia aumentar a excitagao de assistir a luta, unicamente se as probabilidades iniciais de ganhar se encontrassem mais ou menos divididas de modo equilibrado entre os dois lados, e se oferecessem um mmimo de possibilidades de calculo. Tudo isto requeria e tornava possivel um nivel de organizagao mais elevado do que aquele que fora alcangado nas cidades-Estado da Grecia antiga: Os pugilistas de Olimpia nao eram classificados de acordo com o peso, da mesma maneira que os lutadores tambem nao o eram. Nao existia af nenhum recinto quadrangular para combates de boxe, os assaltos realizavam-se no estadio, numa parcela de terreno ao ar livre. O alvo era a cabega e a face... A luta decorria ate que um dos dois adversaries ja nao fosse capaz de se defender ou se admitia a derrota. Isto anunciava-se pela elevagao do dedo indicador ou pela extensao de dois dedos, no sentido do oponente16.
Habitualmente, as representagoes nos vasos gregos mostram l6
Dress, Olympia, p. 82.
206
A G&NESE DO DESPORTO
lutadores numa posigao tao proxima um do outro que cada um esta erecto, com um pe avangado ou mesmo atras do pe do outro. Existia uma pequena margem de acgao para o trabalho de pes, a qual permite aos pugilistas modernos movimentarem-se rapidamente, para a direita ou para a esquerda, para tras, para a frente. Deslocar-se para tras, de acordo com o codigo dos guerreiros, era um sinal de cobardia. Esquivar-se aos socos do inimigo, desviando-se do seu caminho, era vergonhoso. Dos pugilistas, esperava-se que demonstrassem rapidez e que nao desistissem. As defesas dos pugilistas habilidosos podiam ser impenetraveis; podiam fatigar os seus oponentes e, assim, vencerem sem serem atingidos. Mas se o combate demorava tempo de mais, um juiz podia ordenar aos dois adversaries que dessem socos sucessivos alternadamente, sem se defenderem, ate que um deles ja nao estivesse em condigoes de continuar a lutar. Este tipo agonista de pugilato, como se pode ver, acentuava o climax, o momento de decisao, de vitoria ou de derrota, como o elemento mais importante e significative do confronto, mais importante do que o proprio combate. Tratava-se quase tanto de um teste de resistencia fisica e de pura fbrga muscular como de uma prova de habilidade. Eram frequentes os ferimeritos graves nos olhos, nos ouvidos e ate no cranio; o mesmo acontecia quanto a ouvidos inchados, dentes partidos e narizes esmagados. Tivemos conhecimento de dois pugilistas que aceitaram a permuta de socos. O primeiro atingiu com um soco a cabega do seu oponente, o qual sobreviveu. Quando este baixou a sua guarda, o outro bateu-lhe abaixo das costelas com os seus dedos estendidos, rebentou-o com as suas unhas duras, agarrou-lhe os intestinos e matou-o17.
De todas as provas olfmpicas, aquela que para nos e a mais estranha, hoje, e o boxe; nao interessa o quao difkilmente tentamos, continuamos incapazes de conceber como e que um povo altamente cultivado, com sentido estetico tao acentuado, podia ter prazer neste espectaculo barbarico, no qual dois homens se batiam um ao outro na cabe^a, com os seus punhos revestidos de tanta dureza... ate que um
CAPITULO III
207
deles admitisse a derrota ou fosse incapaz de continuar a lutar. Porque nao foi so sob o dominio dos Romanes mas, tambem, sob o dominio dos Gregos que esta forma de combate deixou de ser um desporto; era uma questao de vida ou de morte... Mais do que um cotepetidor olfmpico perdeu a vida no estadio. Esta critica, feita em 1882 por Adolf Boetticher, um dos primeiros eruditos olfmpicos, e valida hoje. Como os seus colegas da luta e do pancracio, os pugilistas estavam determinados a veneer a todo
Nao se duvida dos factos, mas sim da avaliagao. A citagao representa um exemplo quase paradigmatico do equivoco resultante da utilizagao, que nao e colocada em duvida, do limiar de repugnancia proprio de cada um em face de tipos especificos de violencia fisica, enquanto medida para todas as sociedades humanas, independentemente da sua estrutura e do estadio de desenvolvimento social que alcangaram, em especial, o estadio que atingiram na organizagao social e controlo da violencia fisica: isto e tao significative de um aspecto do desenvolvimento das sociedades como a organizagao e o controlo dos meios «economicos» de produ^ao. Encontra-se aqui um exemplo notavel da barreira a compreensao das sociedades originada pelo dommio de avaliagoes heteronimas19 sobre a percepgao das interdependencias funcionais. A escultura classica grega e altamente considerada na escala de valores do nosso tempo. Os tipos de violencia fisica integrados em combates de jogos gregos como o pancracio, segundo a nossa escala de valores, recebe classificagoes bastante negativas. O facto de associarmos um com um valor positivo e o outro com um valor negative conduz a uma situagao onde parece, aos que permitem que a sua compreensao seja guiada por julgamentos de valor preconcebidos, que estes dados nao se podem relacionar entre si. Um problema insoliivel atinge todos quantos julgam o passado em termos deste tipo de avaliagao.
19
Para a explicagao deste termo e para a discussao dos problemas da «objectividade» em sociologia, ver Norbert Elias, «Problems of Involvement and Detachment», British Journal of Sociology, Vol. 7, Setembro de 1956. Ver, tambem, Norbert Elias, Involvement and Detachment, Oxford (em vias de publicagao).
208
A GENESE DO DESPORTO
Contudo, se alguem se preocupar com a analise sociologica das relagoes entre diferentes aspectos da mesma sociedade nao existe razao para supor que so estas manifestagoes dessa sociedade, quando observadas do exterior, e as quais se atribui o mesmo valor, quer seja positive ou negativo, sao interdependentes. Em todas as sociedades podem descobrir-se interdependencias entre aspectos a que um observador, por um lado, e as proprias pessoas que formam estas sociedades, por outro, dedicam valores opostos. A beleza da arte grega e a relativa brutalidade dos confrontos de jogos sao um exemplo. Longe de serem incompativeis, eram manifestagoes intimamente relacionadas do mesmo nivel de desenvolvimento, da mesma estrutura social. A emergencia da escultura grega no seu modelo arcaico e o realismo ideal das esculturas do periodo classico permanecem incompreensfveis se nao houver um entendirnento do elemento que a aparencia fisica de um individuo desempenhava enquanto determinante do respeito social com que era considerada entre as elites dirigentes das cidades-Estado da Grecia. Nessa sociedade, para um homem com um corpo debil ou deformado, dificilmente seria possivel alcangar ou manter uma posigao de elevado poder social ou politico. A forga e a beleza fisica, o aprumo e a resistencia, representavam um papel muito mais elevado, como determinante da posigao social de uma pessoa do sexo masculino na sociedade grega, do que representa nas nossas. Nem sempre se esta consciente de que a possibilidade de um homem fisicamente diminuido alcangar ou manter uma posigao de lideranga ou de elevado poder social e dignidade e um fenomeno relativamente recente no desenvolvimento das sociedades. Devido ao facto de a «imagem corporal» ou a aparencia fisica se classificar a um nivel relativamente baixo —, bastante inferior, por exemplo, ao que a «inteligencia» ou o «caracter moral» ocupam na escala de valores que, nas nossas sociedades, determina a posigao social de um homem e a imagem global que formamos dele —, falta-nos com frequencia a chave para a compreensao de outras sociedades onde a aparencia fisica representa um papel muito mais determinante na formagao da imagem publica de um homem. Na Grecia antiga era este, sem duvida, o caso. Pode talvez transmitir-se melhor a diferenga indicando o facto de, na nossa sociedade, a aparencia fisica, enquanto determinante da imagem social de um individuo, continuar a representar um
CAPITULO III
209
papel bastante vincado e talvez crescente no que diz respeito a mulher, mas a respeito do homem, embora a televisao possa ter algum impacte no problema, a aparencia fisica e, em particular, a forga corporal e a beleza nao desempenham um papel muito grande na consideragao publica de uma pessoa. O facto de uma das mais poderosas nagoes do nosso tempo ter eleito um homem paralftico para o seu cargo publico mais elevado e, a este respeito, sintomatico. Na sociedade das cidades-Estado da Grecia era diferente. Desde a infancia, seres humanos que fossem fracos ou deformados eram eliminados. Recem-nascidos debeis eram abandonados a morte. Um homem que fosse incapaz de lutar interessava pouco. Era muito raro um homem aleijado, doente ou muito velho adquirir ou manter uma posigao de lideranga publica. O termo usado na sociedade grega como uma das expressoes do seu ideal, o termo arete, e com frequencia traduzido como virtude. Mas de facto ele nao se referia, como o termo «virtude» indica, a qualquer caracterfstica moral. Referia-se aos predicados pessoais de um guerreiro e cavaIheiro, entre os quais a sua imagem corporal, a sua qualificagao como um guerreiro forte e habilidoso, representava um papel dominante. Era este ideal que encontrava expressao quer nas esculturas, quer nos seus confrontos de jogos. A maioria dos vencedores olimpicos tinha as suas estatuas erigidas em Olimpia e, algumas vezes, na sua cidade natal20. O facto de a posigao social dos atletas ser muito diferente da que hoje se verifica na nossa propria sociedade e apenas outra faceta das mesmas caracteristicas distintivas da sociedade grega durante a idade classica. O equivalente do desporto, a «cultura» do corpo, nao era uma especializagao equivalente ao mesmo grau de hoje. Nas sociedades contemporaneas, o pugilista e um especialista e, se apli20 Nao e necessario discutir aqui as razoes que originaram a onda de secularizagao revelada, por exernplo, na transigao das representagoes mais soienes, mais inspiradoras de respeito, e talvez mais expressivas de deuses e de herois no periodo arcaico — um exernplo e a Medusa do frontao da fachada principal do templo de Artemisa em Corcyra, do seculo. VI a.C. —, para o realismo ideal do periodo classico, em que deuses e herois sao representados como guerreiros bem proporcionados, jovens ou velhos, cujos corpos falam, embora as suas faces sejam talvez um pouco vazias mesmo se, como no caso do condutor de carro de Delfos, os olhos incrustados e parte da cor tenham sido preservados.
210
A GtiNESE DO DESPORTO
camos o termo aos que adquiriram fama como pugilistas na Antiguidade, o mero uso da palavra pode evocar nos nossos espiritos um quadro similar. Na verdade, os homens que demonstravam a sua forga fisica, a sua agilidade, a sua coragem e a sua resistencia atraves das suas vitorias nos grandes festivais, dos quais os de Olimpia foram os mais famosos, estavam colocados numa situagao muito apropriada para adquirirem uma elevada posigao social e politica na sua sociedade natal, se nao a tivessem ja alcangado. A maior parte dos participantes nos confrontos de jogos em Olimpia provinha, decerto, de «boas familias», das elites relativamente abastadas da sua cidade natal, de grupos de proprietaries de terras e, talvez, de abastadas familias camponesas. A participagao nestes combates de jogos exigia uma longa e ardua preparagao que so as pessoas que, em termos comparativos, eram ricas podiam proporcionar. Um jovem atleta prometedor, que necessitasse de dinheiro para semeIhante treino, podia encontrar um patrono abastado; ou um treinador professional Ihe emprestaria dinheiro. Mas, se conquistasse uma vitoria em Olimpia, atraia fama para a sua familia e para a sua cidade natal e tinha uma forte oportunidade de ser considerado por eles como um membro da sua elite dirigente. Milon de Crotona foi, provavelmente, o lutador mais famoso da Antiguidade Classica. Obteve um numero consideravel de vitorias em Olimpia e noutros festivais pan-helenicos. Era um homem de forga prodigiosa que, com o tempo, se tornou conhecido. Tambem e referido como um dos melhores alunos de Pitagoras e como comandante do exercito da sua cidade natal, na batalha vitoriosa contra os Sibaritas, que terminou com a furiosa matanga dos ultimos depois da sua derrota. Encontramos o mesmo quadro invertido se considerarmos aqueles homens que hoje sao recordados, acima de tudo, pelas suas realizagoes intelectuais eram com frequencia evocados tambem, no seu proprio tempo, em ligagao com os seus feitos como guerreiros ou atletas. Esquilo, Socrates e Demostenes passaram pela dificil escola de combate hoplita. Platao teve a seu credito vitorias em alguns dos festivais atleticos. Desta maneira, a idealizagao do guerreiro na escultura grega, a representagao dos deuses de acordo com a aparencia fisica ideal do guerreiro aristocrata e o ethos guerreiro dos combates de jogos eram, com efeito, nao so compativeis; eram manifestagoes intimamente ligadas do mesmo grupo social. Ambas sao caracteristicas da posigao social, do estilo de vida e dos ideais
CAPtTULO III
211
destes grupos. Mas a compreensao desta interdependencia factual nao compromete o prazer da arte grega. Sob certos aspectos, engrandece-a21.
7
A comparagao entre o nivel de violencia verificado nos combates de jogos da Grecia antiga, ou nos torneios e jogos populates da Idade Media, e o que se revela nas provas de desporto actuals mostra claramente o elemento especifico do processo de civilizagao, mas o estudo deste elemento integrante do aspecto civilizador das provas de jogos permanece inadequado e incompleto se nao o relacionarmos com outros aspectos das sociedades de que estes confrontos de jogos sao manifestagoes. Em resumo, o nivel variavel de civilizagao nas competigoes de jogos mantem-se incompreensivel se nao for relacionado, pelo menos, com o nivel geral de violencia socialmente permitida, com o nivel da organizagao do controlo da violencia e com a correspondente formagao da consciencia em causa.
21
O grau em que as caracteristicas de um estadio anterior no desenvolvimento da organizac.ao do Estado, especialmente quanto a monopolizagao e controlo da violencia fisica, afecta todas as relagoes humanas revela-se, entre outras coisas, na frequencia com que as lendas gregas referem conflitos entre pai e filho. No que diz respeito a sociedade grega, Freud estava provavelmente equivocado na sua interpretagao da lenda de Edipo ou, pelo menos, so viu um dos seus aspectos, o de um unico individuo, o filho. No contexto da sociedade grega, nao se pode deixar de assinalar a configuragao social especifica reflectida nesta lenda, como noutras lendas gregas relacionadas com o mesmo problema. Nao se pode deixar de questionar a rela^ao entre o filho e o pai, o jovem rei e o velho rei, na perspectiva do pai, assim como na perspectiva do filho. A partir da posigao do filho, pode bem ser, como Freud disse, que este estivesse imbuido de ciumes quanto a posse da mulher pelo pai — e, pode acrescentar-se, com medo da forga fisica e do poder do pai. Considerado, no entanto, segundo a perspectiva do pai, como se reflecte nas lendas gregas, o medo do rei e a inveja do filho representam um papel equivalente na relagao entre os dois. Porque, inevitavelmente, o pai ira envelhecer e enfraquecer flsicamente, e o filho, fragil enquanto crian^a, tornar-se-a fisicamente mais forte e mais vigoroso. Antigamente, quando o bem-estar de toda a comunidade, de um cla ou de uma casa, nao estava so ligado de facto, mas, tambem, na imaginagao dos membros de tais grupos — e de forma magica—a saude e ao vigor do rei ou do lider, com frequencia, o homem mais velho era ritualmente morto quando se tornava mais idoso, quando a sua for^a e vigor
212
A GENESE DO DESPORTO
Alguns exemplos podem ajudar a tornar mais nitido este vasto contextcx No seculo XX, a chacina de massas por grupos de nazis alemaes, despertou a reacgao de quase todo o mundo. A memoria do facto manchou, durante algum tempo, o bom nome da Alemanha entre as nagoes do mundo. O choque foi ainda maior porque muitas pessoas viviam sob a ilusao de que, no seculo XX, tais barbaridades ja nao podiam acontecer. Tacitamente, acreditavam que as pessoas se tinham tornado mais «civilizadas», que se haviam tornado «moralmente melhores», de acordo com a sua propria natureza. Tinham adquirido orgulho em serem menos selvagens do que os seus antepassados, ou do que outras pessoas que conheciam, sem nunca enfrentarem o problema que o seu proprio comportamento mais civilizado colocava — o problema de saber porque e que eles proprios, porque e que o seu comportamento e os seus sentimentos, se tornaram um pouco mais civilizados. O episodio nazi serviu como uma especie de aviso; foi um sinal de que as desapareciam, e substituidopor um dos seus fllhos, o jovem rei. Muitas lendas gregas mostram que o filho, o fiituro herdeiro, ainda quando jovem, tinha de ser escondido da if a e persegui^ao do seu pai, sendo habitualmente educado por estrangeiros. Por esse motivo, «sabemos», de acordo com um estudo recente (Edna H. Hooker, The Godness of the Golden Image, in Parthenos and Parthenon, Greece and Rome, suplemento do Vol. X, Oxford, 1963, p. 18), «que, nas comunidades primitivas agrarias, as crian^as estavam em constante perigo dado que constituiam uma ameaga potencial ao dommio do trono do rei ou, por vezes, para a ambigao de uma madrasta, tendo em vista a posse deste por um dos seus filhos. Nos mitos e lendas gregas, poucos prmcipes foram educados em casa. Alguns foram enviados para o centauro Quiron mas muitos eram expostos, com a indicagao da sua origem, com o fim de serem criados por estrangeiros. O rei Laio abandonou o seu filho Edipo temendo ser morto por ele. Zeus foi criado por amas e educado em segredo, porque o seu pai, Cronos, sentiu que ele era uma amea^a e tentou mata-lo. O proprio Zeus, como Jahve, receava que o homem pudesse aprender a participar no seu conhecimento magico e castigou com violencia o mais jovem, Prometeu, que se atreveu a roubar o fogo do ceu e a oferece-lo ao povo. Onde quer que o Estado tenha monopolizado o direito de utilizar a violencia ffsica, pode bem ser que a escalada de rivalidade e de ciume como ingrediente na complexa rela^ao entre pai e filho, processo peculiar cujos reflexes encontramos nas lendas gregas e em muitas outras lendas, ja nao desempenhe qualquer papel numa sociedade em que mesmo os parentes masculines nao constituent mais o perigo que em tempos tinham representado em sociedades onde os pais podiam matar ou mesmo expor os seus filhos. Seriam necessarias mais pesquisas configuracionais de pais e filhos para descobrir em que medida os sentimentos de rivalidade e de inveja do filho em rela^ao ao pai, como foi assinalado por Freud nos seus doentes, e, ao
CAPfTULO III
213
restrigoes contra a vioiencia nao sao sintomas da superioridade da natureza das nagoes «civilizadas», nao sao caracteristicas eternas da sua maneira de ser racial ou etnica, mas aspectos de um tipo especifico de desenvolvimento social, que resultou de um controlo social mais diferenciado e estavel dos meios de vioiencia e da correspondente formagao da consciencia. Evidentemente, este tipo de desenvolvimento social podia ser invertido. Isto nao implica, necessariamente, que nao existam bases para a avaliagao dos resultados deste desenvolvimento no comportamento humano e formas de sentir «melhor», para alem das correspondentes manifestagoes dos primeiros estadios de desenvolvimento. A compreensao mais vasta da relagao de factos proporciona, com efeito, uma base muito melhor, a unica base segura para julgamentos de valor deste tipo. Sem ela, nao podemos saber, por exemplo, se as nossas maneiras de elaborar os autodomfnios individuais contra a vioiencia fisica nao estao associados a malformagoes psicologicas que podem parecer altamente barbaras a uma idade mais mesmo tempo, uma reacgao ao sentimento de rivalidade e inveja do pai em rela^ao ao filho. Mas, se considerarmos as lendas gregas e, em especial, a propria lenda de Edipo, dificilmente se pode duvidar da face dupla dos sentimentos reciprocos de rivalidade que tinham um papel na relagao entre pai e filho. A utilizagao desta lenda como modelo teorico parece incompleta enquanto a fiingao desempenhada na dinamica desta configuragao pela reciprocidade de sentimentos entre um filho que de fraco passa a ser mais forte e de um pai que de forte passa a ser mais fraco nao for investigada de forma mais completa. Nas sociedades onde a forga e o poder ffsico desempenham um papel superior aquele que hoje representam nas relagoes tanto dentro como fora da famflia, esta configuragao deve ter tido uma grande significado e, de modo algum, apenas um sentido inconsciente. Considerada neste contexto, a lenda de Edipo da a impressao de uma lenda indicada para ameagar filhos de que serao castigados pelos deuses se matarem os seus pais. Contudo, a questao que ressalta em primeiro lugar nao e, por certo, a morte do velho rei pelo filho ou a favor deste, mas a quebra do tabu do incesto, da proibicjio de o filho ter relagoes sexuais com a sua mae, a qual, e claro, e uma proibigao social muito mais antiga do que aquela contra a morte do pai. A este respeito, o mito de Edipo simboliza, de modo evidente, um estadio relativamente tardio no desenvolvimento de uma sociedade em que, num estadio inicial, nem a morte do filho jovem nem a morte do pai idoso era um crime. Desta forma, a lenda pode ajudar-nos a compreender o tipo de relagoes humanas que existiu num certo estadio de desenvolvimento social, quando a organizagao do que agora chamamos o «Estado» permanecia na infancia, e quando a forga fisica de uma pessoa, a sua aptidao para garantir a sobrevivencia atraves da sua propria capacidade de lutar, era a principal determinante de todos os tipos de relagoes humanas, incluindo, a de pai e filho.
214
A GENESE DO DESPORTO
civilizada. Alem do mais, se alguem avalia uma forma mais civilizada de conduta e de sentir como sendo «melhor» do que formas rnenos civilizadas, se considera que a humanidade fez progresses ao chegar aos seus proprios padroes de reacgao e de repugnancia contra formas de violencia que eram comuns nos primeiros tempos, e confrontado com o problema de saber como e que um desenvolvimento nao planeado resultou em alguma coisa que se avalia como um progresso. Todos estes juizos sobre padroes de comportamento civilizado sao julgamentos comparativos. Nao se pode dizer em nenhum sentido absoluto: nos somos «civilizados», eles sao «nao civilizados». Mas pode afirmar-se com grande confianga: os padroes de conduta e de sentir da sociedade A sao mais «civilizados», os da sociedade B sao menos «civilizados», desde que se tenha elaborado uma medida de desenvolvimento clara e precisa. A comparagao entre as provas-agon* e as competigoes desportivas contemporaneas constituem um exemplo. Os padroes de reacgao publica perante o assassinio em massa constituem outro. O modo como se revelou em tempos recentes o sentimento quase universal xle repugnancia contra o genocidio indica que as sociedades humanas sofreram um processo civilizador, limitado, contudo, no campo de acgao e instavel, de qualquer modo, nos seus resultados. A comparagao com atitudes do passado demonstra isso muito nitidamente. Na Antiguidade grega e romana, o massacre de toda a populagao masculina de uma cidade derrotada e conquistada, e a venda de escravos e criangas, embora pudesse despertar piedade, nao provocava um generalizado aumento de actos de condenagao. As nossas fontes estao incompletas, mas demonstram que esses casos de massacre de massas ocorriam com grande regularidade desde o principio ate ao final de todo o periodo22. Certas vezes, a furia com que um exercito ameagado ou frustrado, durante longo tempo, lutava desempenhava um papel decisivo no massacre de todos os inimigos. A destrui22 Pierre Ducrey, Le Traitement de Prisionaires de Guerre dans la Grece Antique, Ecole Frangaise d'Athenes, Travaux et Memoires, Fas. XVIII, Paris, 1968, p. 196 e seguintes. *Tipo de competi^ao, confronto ou combate ritual que era cofrente na antiga Grecia. Atraves dos agones destacavam-se os melhores quer fosse na luta quer tambem na danga, na poesia, no teatro ou mesmo entre os bebedores. (N. da T.)
CAPtTULO III
215
ao de todos os sibaritas a que puderam langar as maos, levada a efeito pelos cidadaos de Crotona, sob a direcgao de Milon, o famoso lutador, e um caso a assinalar. For vezes, o «genocidio» era um acto calculado que visava a destruigao do exercito de um Estado rival, como sucedeu no caso de Argos, cujo poder militar, enquanto potencial rival de Esparta, foi mais ou menos aniquilado pela destruigao geral de todos os homens que podiam empunhar armas, sob as ordens da Assembleia de Cidadaos ateniense em 416 a. C, descrita com vivacidade por Tucidides, resultando de uma configuragao muito semelhante a que conduziu a ocupagao russa da Checoslovaquia, em 1968. Os Atenienses consideravam Melos como uma parte do seu imperio. Esta ilha possuia para eles um significado estrategico especifico na sua luta com Esparta. Mas os habitantes de Melos nao desejavam tornar-se uma parte do imperio ateniense. Por esse motivo, os Atenienses mataram os homens, venderam as mulheres e as crian^as para a escravatura e estabeleceram-se na /ilha com colonos atenienses. Alguns gregos consideravam a guerra como a relagao normal entre cidades-Estado. Esta podia ser interrompida por acordos de periodo limitado. Os deuses, pela palavra dos seus sacerdotes, e os escritores podiam desaprovar massacres deste genero. Mas o nivel de repugnancia «moral» contra aquilo que nos agora chamamos «genocidio» e, de um modo geral, o nivel de inibigoes interiorizadas contra a violencia fisica eram decididamente mais baixos, e os sentimentos de culpa ou de vergonha associados a tais inibigoes eram mais frageis do que o sao nos Estados-nagoes relativamente desenvolvidos do seculo XX. Talvez estivessem ausentes por completo. Nao havia falta de compaixao pelas vitimas. Os maiores dramaturges atenienses e, acima de todos, Euripides, em A Mulher Troiana, expressaram este sentimento com a mais energica vivacidade, porque nao estavam ainda protegidos pela repugnancia moral e a indignagao. Contudo, so com grande dificuldade se pode duvidar de que a venda de mulheres dos derrotados para a escravidao, a separagao de mae e filho, a morte das criangas do sexo masculino e muitos outros temas da violencia e da guerra nas suas tragedias possuiam bastante mais actualidade para um publico ateniense no contexto das suas vidas do que possuem, no nosso contexto, para um publico contemporaneo. No total, o nivel de inseguranga fisica nas sociedades da Anti-
216
A GENESE DO DESPORTO
guidade era muito mais elevado do que o que existe nos Estados-nagoes contemporaneas. Nao e incaracteristico desta diferenga que os seus poetas demonstrem maior paixao do que indignagao. Ja Homero desaprovava o facto de Aquiles, no seu sofrimento e furia pela morte de Patroclo, nao ter morto e queimado, como um sacrificio ao seu espirito, apenas ovelhas, bois e cavalos mas, tambem, doze jovens nobres, na pira funeraria do seu amigo. Mas, uma vez mais, o poeta nao faz o julgamento e a condenagao do seu heroi a partir do elevado trono da sua propria rectidao e superioridade, porque havia cometido a barbara atrocidade do sacrificio humano. A critica do poeta a Aquiles nao possuia o torn emocional da indignagao moral. Nao langa duvidas sobre aquilo que nos chamamos «caracter» do seu heroi, do seu valor como ser humano. As pessoas fazem «coisas mas» (kaka ergo) no seu sofrimento e furia. O poeta abana a sua cabega, mas nao apela para a consciencia dos seus ouvintes; nao Ihes pede que considerem Aquiles como um reprobo moral, um «mau caracter». Apela para a sua compaixao, para a compreensao da paixao que se apodera mesmo dos melhores, dos herois, em tempos de fadiga e os leva a fazer «coisas mas». Mas o seu valor humano como nobre e guerreiro nao esta em duvida. O sacrificio humano nao tinha para os gregos aAtigos exactamente a mesma conotagao de algo horrfvel como tern para as nagoes mais «civilizadas» do seculo XX23. Qualquer aluno de uma escola das classes gregas educadas conhecia a ira de Aquiles, os sacrificios e os combates de jogos realizados no funeral de Patroclo. Os confrontos dos Jogos Olfmpicos situavam-se numa linha directa de sucessao, a partir destes combates funerarios ancestrais. Era uma ascendencia muito diferente daquela que conhecemos quanto as provas de desporto contemporaneas.
8
Ate onde se pode ver, o nivel normal de paixao e de violencia dos herois e deuses homericos ou, dito de outro modo, o seu nivel normal de desenvolvimento do autodommio incrustado, o nivel de «consciencia», nao se encontrava senao alguns passes mais atras do 23
Fr. Schwenn, Die Menschenopfer bet den Griechen undRomern, Giessen, 1915.
CAP ITU LO HI
217
nivel atingido em Atenas durante o periodo classico. As pedras que sobreviveram, os templos e as esculturas dos deuses gregos e herois contribufram, de maneira peculiar, para a imagem dos antigos gregos como um povo equilibrado e harmonioso. O proprio termo «classico», usado em frases como «Antiguidade Classica», evoca o quadro da sociedade grega como um modelo de beleza harmonioso e equilibrado, que as geragoes posteriores jamais podem ultrapassar. Isto e um equivoco. Nao podemos tragar aqui, com o rigor que merece, o lugar da Grecia antiga no desenvolvimento da «consciencia», dos controlos interiorizados a respeito quer da violencia quer de outras esferas da vida. Bastara afirmar que a equilibrada Grecia classica continua a representar a «aurora da consciencia», um estadio em que a transformagao de uma consciencia autocontrolada — representada por imagens comuns de pessoas super-humanas, de demonios-deuses que comandam ou ameagam, que dizem aos seres humanos, de forma mais ou menos arbitraras, o que devem fazer e o que nao devem, numa voz oculta, de certo modo impessoal e individualizada, que fala de acordo com os principios sociais gerais de justiga e de in justiga, do certo e do errado — permanecia antes a excepgao e nao a norma. O daimonion de Socrates foi talvez a aproximagao mais intima ao nosso tipo de formagao da consciencia da sociedade grega classica, mas mesmo esta «voz oculta» altamente individualizada continuava, em certa medida, a ter o caracter de um genio tutelar. Alem disso, o grau de interiorizagao e de individualizagao das normas e dos controlos sociais que encontramos na representagao de Platao sobre Socrates foi, sem diivida, um fenomeno deveras excepcional. E bastante significative que a lingua grega classica nao possua uma palavra diferenciada e especializada para «consciencia». Existem muitas palavras, tais como synesis, euthymion, eusebia e outras, que sao por vezes traduzidas como «consciencia», mas, num exame mais profundo, verifica-se rapidamente que cada um destes termos e menos especifico e abrange um espectro muito mais vasto, tal como «ter escrupulos», «piedade» e «reverencia para com os deuses». Mas um conceito unico, tao nitidamente especializado como o moderno conceito de «consciencia», que denota uma acgao interior bastante autoritaria, inevitavel e, com frequencia, tiranica, que como parte de si propria, guia a conduta individual, que exige obediencia e castiga a desobediencia com «angustias» ou «ferroa-
218
A GENESE DO DESPORTO
das» de sentimentos de culpa, de maneira diferente do «medo dos deuses» ou «vergonha», actos em si mesmos aparentemente vindos de lado nenhum e sem derivarem do poder e de autoridade de qualquer acgao externa, humana ou sobre-humana — este conceito de consciencia esta ausente do equipamento intelectual da Grecia antiga. O facto de este conceito de «consciencia» nao se ter desenvolvido na sociedade grega pode considerar-se como um fndice muito seguro de que a formagao da consciencia nesta sociedade nao tera atingido um estadio de interiorizagao, individualizagao e relativa autonomia, em qualquer grau, comparavel ao nosso. Se pretendemos compreender o elevado nivel de violencia integrado nos combates dos jogos gregos e o nivel inferior de reacgao contra a violencia na sociedade grega em geral, esta e uma das indicates que e necessaria. Isto e sintomatico do facto dos individuos no quadro social da cidade-Estado grega permanecerem, a um nivel acentuado* mais dependentes uns dos outros, de acgoes externas e de sangoes como meios de refrearem as suas paixoes, de poderem confiar menos nas barreiras ihteriorizadas, apenas em si proprios, para controlarem impulsos violentos, do que as pessoas nas sociedades contemporaneas. Podemos acrescentar que eles, ou pelo menos a suas elites, ja eram capazes, em grau muito superior, de se restringirem a si proprios, individualmente, mais do que os seus antepassados haviam sido na idade pre-classica. As alteragoes de imagem dos deuses gregos, a critica da sua arbitrariedade e ferocidade, suportam o testemunho desta mudanga. Se nos recordarmos do estadio especifico representado, num processo de civilizagao, pela sociedade grega no tempo das autogovernadas cidades-Estado, e mais facil compreender que — comparada com a nossa — a elevada paixao dos antigos gregos pela acgao era perfeitamente compativel com o equilibrio corporal e harmonia, a graga e a dignidade do movimento reflectidas na escultura grega. A terminar, talvez seja util assinalar, de forma breve, um outro lago na cadeia de interdependencias que relacionam o nivel de violencia integrado no tipo grego dos combates de jogos e de guerra com outras caracteristicas estruturais da sociedade grega. Para o estadio que a organizagao do Estado atingiu, no periodo das cidades-Estado gregas, e bastante significative que a protecgao da
CAPITULO III
219
.vida de um cidadao contra ataques de outros nao tivesse sido ainda tratada, como e hoje em dia, como uma preocupagao exclusiva do Estado. Mesmo em Atenas, ainda nao era considerado dessa maneira. Se uma pessoa fosse morta ou mutilada por um concidadao, mesmo nos tempos classicos, a questao de determinar as causas e proceder a vinganga estava reservada aos seus parentes. Em comparagao com o nosso proprio tempo, o grupo-familia continuava a desempenhar um papel muito superior no que respeita a protecgao de um individuo contra a violencia. O que significa, ao mesmo tempo, que todos os individuos robustos do sexo masculino tinham de estar preparados para a defesa da sua familia ou, caso se chegasse a esse ponto, para um ataque, no sentido de ajudar ou de vingar a sua familia. Mesmo no seio da cidade-Estado, o nivel geral da violencia fisica e de inseguranga era, em termos comparativos, elevado. Isto contribui, tambem, para explicar o facto de o nivel de reacgao de infligir dor e ofensas aos outros, ou de os presenciar, ser inferior, e esses sentimentos de culpa, devido a actos de violencia, serem menos encorajados no individuo. Numa sociedade assim organizada, teriam constituido uma severa desvantagem. Algumas maximas do grande filosofo grego Democrito podem talvez ajudar a dar maior profundidade a compreensao destas diferengas. Estas sao sintomaticas da experiencia social comum das pessoas nessa situagao. Mostram que — e indicam porque — «certo» e «errado» nao podem significar exactamente a mesma coisa em sociedades como as nossas e numa sociedade onde qualquer individuo pode ter de tomar partido, por si ou pela sua familia, em defesa das suas vidas. De acordo com as regras do costume, diz Democrito, esta certo matar qualquer coisa viva que tenha realizado uma ofensa; nao matar e errado. O filosofo expressou estes pontos de vista inteiramente humanos e sociais. Ai nao existe apelo aos deuses; nem para a justiga e para o sagrado, como pode encontrar-se, mais tarde, no dialogo de Socrates com Protagoras — se podemos confiar em Platao. Nem, como se pode ver, existe ai qualquer apelo a protecgao dos tribunals, das instituigoes do Estado, do governo. As pessoas estavam, entao, muito mais entregues a si proprias quanto a total sobrevivencia fisica do que nos estamos. Eis o que o Democrito afirmou:
220
A GtNESE DO DESPORTO
68(B257) Como os animais, em certas ocasioes, matar on nao matar, a regra e como se segue: se um animal faz mal, ou deseja fazer mal, e se o homem o matar ele deve contar-se entre os isentos de castigo. Porque isto executar promove bem-estar, mais do que o contrario. 3CB258) Se alguma coisa e uma ofensa contraria ao bem, e necessario mata-la. Isto abrange todos os casos. Se um homem o faz, aumentara a parte que compartilha do bem e seguranga em qualquef ofdem {social].
5(B256) O bem e exeeutar o que e neeessario e o fiial e deixar de realizar aquilo que e necessario e reeusar faze-Io.
6(B261) Se alguern Ihes tiver feito mal,, ha a necessidade de os vingar ate onde e praticavel. Isto nao se deve passar por alto. Este tipo de eoisa esta certo e tambem esta bem e o outro tipo de coisa esta errado e tambem esta mal24. 24
Estou a citar estes excertos da tradugao que Eric A. Havelock publicou no seu livro The Liberal Temper in Greek Politics, New Haven e Londres, 1964, pp. 127-8. Penso que a sua tentativa de transferir a sentido destes excertos para um leitor contemporaneo do falar ingles, ate onde isso e possivel, foi bastante bem sucedida. Demonstra tambem, com maior clareza talvez do que muitos outros escritores, que a enfase que Platao e Aristoteles colocavam na autoridade central
CAPfTULO HI
221
do Estado conto o primeiro ponto controverso dos problemas politicos e, com frequencia, considerada de modo errado como caracterfstiea dos gregos antigos em geral, enquantov de facto, este destaque e caracteristico, em grande parte, de um desenvolvimento tardio e, talvez mesmo, so da ultima fase das cidadesEstado gregas independentes. Nao posso concordar, no entanto, com a interpretagao do professor Haveiock quanto as doutrinas de filosofos como Democrito serem «liberais». O liberalismo enquanto filosofia polltica pressupoe uma organizagao do Estadoi altamente desenvolvida, ainda que se oriente para impedir uma interferencia demasiado grande dos representantes do Estado nos assuntos dos seus membros individuais. For outro lado,, a autoconfianga individual que Democrito defende e caracteristica de um estadio de desenvolvimento no qual urn individuo e o seu grupo familiar nao podem ainda ser significativos na protecgao de uma organizagao do Estado razoavelmente efeetiva e impessoal. Na realidade, nao e uma ideia «liberal» aquela que afirma que os homens tern o direito e o dever de se vingar e de matar os seus proprios inimigos.
CAPITULO IV Ensato sobre o desporto e a vtolencia Norbert Elias
1
Ha alguns seculos, o termo sport era usado em Inglaterra, juntamente com a versao disport, para designar uma variedade de passatempos e divertimentos. Em A Survey of London, escrita no final do seculo XVI1, temos conhecimento do «espectaculo realizado por cidadaos, para diversao* do jovem principe Ricardo», ou sobre o «divertimento** e passatempos que se costumavam realizar anualmente, primeiro na festa de Natal... Havia na casa dos reis... um vvsenhor da desordem", ou vvmestre de joviais" desportos***...»2. No decurso do tempo, o termo «desporto» passou a ser padronizado como um termo para formas especificas de recreagao nas quais o esforgo fisico desempenhava o principal papel — formas especificas de um tipo de recreagao que se desenvolveu primeiro em Inglaterra e que, a partir dai, se espalhou por todo o mundo. A propagagao destas formas inglesas de ocupagao de tempo livre ligar-se-ia ao facto de as sociedades onde as pessoas as adoptaram terem passado por mudangas estruturais semelhantes aquelas que a Inglaterra havia conhecido antes? Seria isso devido ao facto de a Inglaterra estar adiantada, relativamente aos outros paises, quanto a «industrializagao»? O caminho paralelo destes dois processes, a difusao a partir de Inglaterra de modelos de produgao industrial, de Stow, A Survey of London (1956), publicado pela primeira vez em 1603 e reimpresso em Oxford, em 1908. 2 Ibid., p. 96 e seguintes. * Disport (N. daT.) **Sportess (N. daT.) ***Merry disports (N. da T.)
224
ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOLENCIA
organizagao e de trabalho e a difusao das formas de ocupagao de tempo livre do tipo conhecido como «desporto» e dos tipos de organizagao relacionados com ele e, certamente, notavel. Como hipotese inicial, nao parece despropositado supor que a transformagao da forma segundo a qual as pessoas utilizavam o seu tempo livre seguiu de mao dada com a transformagao da maneira segundo a qual trabalhavam. Mas quais eram as ligagoes? Muita reflexao tern sido dedicada ao processo de industrializagao e as suas condigoes. Falar de processo de «desportivizagao» pode produzir um efeito desagradavel ao ouvido. O conceito soa de modo estranho. Apesar disso, ajusta-se bastante bem aos factos observados. No decurso do seculo XIX — e, em alguns casos, mais cedo, na segunda metade do seculo XVIII —, com a Inglaterra considerada como um modelo, algumas actividades de lazer exigindo esforgos fisicos assumiram tambem noutros paises as caracteristicas estruturais de «desportos». O quadro das regras, incluindo aquelas que eram orientadas pelas ideias de «justiga», de igualdade de oportunidades de exito para todos os participantes, tornou-se mais rigido. As regras passaram a ser mais rigorosas, mais explfcitas e mais diferenciadas. A vigilancia quanto ao cumprimento das regras tornou-se mais eficiente; por isso, passou a ser menos facil fugir as punigoes devidas a violagoes das regras. Por outras palavras, sob a forma de «desportos», os confrontos de jogos envolvendo esforgos musculares atingiram um nfvel de ordem e de autodisciplina nunca alcangados ate ai. Alem disso, sob a forma de «desportos», as competigoes integraram um conjunto de regras que asseguravam o equilibrio entre a possivel obtengao de uma elevada tensao na luta e uma razoavel protecgao contra os ferimentos fisicos. A «desportivizagao», em resurno, possui o caracter de um impulse civilizador comparavel, na sua orientagao global, a «curializagao» dos guerreiros, onde as minuciosas regras de etiqueta representam um papel significative e do qual tratei num outro lugar3. A tendencia muito divulgada de explicar quase tudo aquilo que ocorreu no seculo XIX como o resultado da Revolugao Industrial
3 Norbert Elias, State Formation and Civilization, 1982, p. 258 e seguintes. «Feudalizagao» e um exemplo de um impulse na direcgao oposta.
CAPfTULO IV
225
faz com que as explicates sejam, assim, um pouco cautelosas. Sem duvida que a industrializagao e a urbanizagao desempenharam urn papel no desenvolvimento e na difusao das formas de ocupagao de tempo livre com as caracteristicas de «desportos», mas tambem e possivel que, tanto a industrializagao como a desportivizagao, tenham sido sintomaticas de uma transformagao mais profunda das sociedades europeias, que exigia dos seus membros individuals uma maior regularidade e diferenciagao de comportamentos. O peso crescente e a maior diversidade das cadeias de interdependencia podem ter tido alguma coisa a ver com isso. Este processo fundamenta a sua expressao na submissao tanto dos sentimentos das pessoas e das suas acgoes a um horario regulador minuciosamente diferenciado como na responsabilidade, a que era igualmente dificil de escapar, em termos de dinheiro. E possivel pensar que as sociedades europeias, falando de uma maneira geral, sofreram, desde o seculo XV em diante, uma transfbrmagao que forgou os seus membros a uma lenta e crescente regularidade de conduta e de sensibilidade. A rapida aceitagao do tipo de passatempos de desporto nos paises continentals seria, talvez, um sinal da necessidade cada vez maior de actividades de recreagao mais ordenadas, de maior regulamentagao e menor violencia fisica na sociedade em geral? Investigates futuras podem contribuir para dar uma resposta a estas questoes. De momento, sera suficiente esclarecer e ordenar algumas das questoes que envolvem o desenvolvimento dos proprios desportos. No passado, o termo «desporto» foi usado com frequencia, de modo indiscriminado, a proposito de tipos especificos de actividades de lazer modernas e, tambem, de actividades de lazer das sociedades num estadio anterior de desenvolvimento, da mesma maneira que, frequentemente, se refere a «industria» moderna e, ao mesmo tempo, a «Industria» das pessoas da Idade da Pedra. Aquilo que afirmei chegara para realgar, com maior nitidez, o facto de o desporto ser algo relativamente recente e novo.
Se alguem comegar a investigar, recuando no tempo, partindo desta breve visao da propagagao do movimento dos desportos no exterior de Inglaterra para o precedente desenvolvimento do des-
226
ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOLENCIA
porto na propria Inglaterra, tera de pensar qual sera a melhor forma de prosseguir. Como e que se encontram provas seguras sobre processes de crescimento — sobre o desenvolvimento dos jogos e outras actividades de lazer, ate a forma a que se aplica o termo «desporto»? Quantos destes desenvolvimentos, pode pensar-se, ficaram sem registo. Sera que existem dados suficientes para a reconstrugao dos processes em que alguns passatempos adquiriram as caracteristicas de desportos e nos quais cada desporto, por sua vez, adquiriu as suas proprias caracteristicas distintivas? Nao sao tanto as provas que faltam. Mas ao procura-las e-se, frequentemente, impedido de prestar atengao a semelhante prova, tal como ela e, devido a preconceitos sobre escrever historia, em geral, e sobre escrever a historia dos desportos, em particular. Deste modo, ao estudar o desenvolvimento de um desporto, muitas vezes e-se conduzido pelo desejo de Ihe estabelecer uma longa e respeitavel ascendencia. E, neste caso, fica-se em condigoes de seleccionar, como relevantes para a sua historia, todos os dados acerca de jogos praticados no passado que apresentam alguma semelhanga com a forma actual do desporto particular cuja historia se esta a escrever. Se alguem encontra numa cronica do seculo XII a referencia de que, ja nesse tempo, os rapazes de LondrelT iam^em certos dias, para os campos, jogar com uma bola, inclina-se a concluir que esses jovens ja entao estavam a jogar o mesmojogo que, sob o nome de futebol, passou a ser um dos maiores jogos de Inglaterra e que, sob essa forma, se tern propagado por todo o mundo4. Mas tratar desta maneira as actividades de lazer de um passado bastante distante, como sendo mais ou menos identicas as do seu proprio tempo — o «futebol» do seculo XII com o futebol do passado^ seculo XIX e seculo XX —, impede que sejam colocadas no centro da investigagao as seguintes perguntas: de que maneira e porque e que jogar com uma grande bola de couro se desenvolveu para esta 4
E assim que Geoffrey Green, na sua History of the Football Association (Londres, 1953, p. 7), faz a referenda ao «famoso jogo de bola» (ludumpilae celebrem) de William Fitzstephen, no seu panegirico Descriptio Noblissimae Civitatis Londinae (1175, citado em Stow, A Survey of London) como demonstrac.ao do facto de que o futebol era jogado pelos jovens de Londres no seculo XII. Embora mais prudente, Morris Marples, na sua A History of Football (Londres, 1954, pp. 19-21), conclui que «existe uma boa razao para pensar que Fitzstephen esta realmente a referir-se ao futebol».
CAPITULO IV
227
forma particular? Impede que se pergunte como e porque e que se clese'fivolveram regras e convengoes particulares que determinant agora a conduta dos jogadores quando efectuam o jogo e sem as quais o jogo nao seria «futebol» no nosso sentido da palavra. Ou de que maneira e porque e que se desenvolveram as formas parti-, culares de organizagao, que possiBilitam a estrutura mais imedia-~ ta para o desenvolvimento de tais regras e sem a qual elas nao se, poderiam manter e controlar. A respeito de todas estas questoes, o treino, o estudo e a observagao a que aplicamos agora o termo «sociologico» dirigem a atengao para problemas e, por consequencia, para a demonstragao, a qual nem sempre e considerada como possuindo a relevancia fundamental dentro da tradigao dominante do escrever historia. A historia dos sociologos nao e historia dos historiadores. Prestar! atengao as regras e normas que governam o comportamento huma- \ no, num dado tempo, e as organizagoes no interior das quais essas ) regras sao mantidas e a sua observancia controlada passou a ser um I trabalho bastante comum das investigagoes sociologicas. \ Aquilo que e ainda muito invulgar no presente e a atengao a regras e normas em desenvolvimento. Ojproblemajdo como ejio porque regrasje normas se tornaram^naxjuiio que elas^sao num dado momento nap e explorado, com frequencia, de maneira sistematica. Alem disso, sem a investigagao de tais processos, uma dimensao completa da realidade social permanece fora de alcance. O estudo sociologico dos jogos-desporto, para alem do seu interesse intrinseco, desempenha tambem a fungao de um projecto-piloto. Encontram-se aqui, num campo que e relativamente limitado e acessivel, problemas de um tipo que muitas vezes surge noutras areas maiores, mais complexas e menos acessiveis. Os estudos sobre o desenvolvimento dos desportos proporcionam experiencias de varias formas e, por vezes, conduzem a modelos teoricos que podem contribuir para investigagao dessas outras areas. O problema do como e do porque se desenvolveram regras e um exemplo. O estudo estatico das regras ou normas, como algo definitivamente adquirido, conduziu com frequencia, no passado, e continua a conduzir hoje, a um quadro equivoco e, de algum modo, irrealista da sociedade. Se fossem testadas as teorias correntes da sociedade, descobrir-se-iam fortes tendencias para considerar normas e regras — na
228
ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A
VIOL^NCIA
heranga de Durkheim — quase como se elas possuissem uma existencia independente das pessoas. Fala-se, com frequencia, de normas ou regras como se elas fossem dados, que resultassem por si proprios, para a integragao de pessoas individuals na forma de sociedades e para o tipo particular de integragao, para o padrao de sociedades. EmjgsuinOjJ^ normas ou regras, comet as ideias de^PJ^^^ggssuem uma existenI cia propria, que existem, dejilguma maneira, em si mesmasje cpnsJtituissem, por esse motivo, o ponto de partida para reflexoe^spbre maneira atraves da qual as pessoas constituem as SQciedndejr. ~~" Se alguem investigar sobre o modo de desenvolvimento das regras e normas, ficara mais bem habilitado para ver que a abordagem durkheimiana, que explica a coesao, a interdependencia e a integragao de seres humanos e de grupos em termos das regras e das normas a que obedecem, continua a revelar uma forte orienta^ao nominalista. Ela propria conduz a uma concepgao equivoca sobre a natureza da sociedade que esta agora bastante divulgada. Nesta linha, a nitida distingao de valor feita a proposito de formas de conduta e de agrupamentos humanos que se desenvolvem de acordo com as normas estabelecidas, e de outras que tomam o sentido oposto, e considerada destituida de atitude critica no aparelho conceptual daqueles cujo trabalho consiste em estudar e, tanto quanto possivel, explicar os problemas da sociedade. Estudos sociologicos dirigidos para a explicagao da rela^ao dos factos na sociedade, seriam frustrados se os classificassem dessa maneira, porque, em termos de explicagao, as relates dos factos que se ajustam as normas estabelecidas e as dos outros que se desviam delas — «integragao» e «desintegragao», «ordem social» e «desordem social» — sao interdependentes e constituem exactamente o mesmo tipo de factos5. Se alguem investigar sobre os processes de desenvolvimento das normas e regras, a interdependencia factual de «ordem» e «desordem», de «fungao» e «disfungao», torna-se nitida, de forma notavel. Porque, no decurso de tal processo, pode ver-se muitas vezes como regras e normas especificas sao estabelecidas pelos seres humanos de modo a resolver formas especificas de mau funciona5
Para urn aprofundamento desta questao, ver Norbert Elias, What is Sociology?, Londres, 1978, pp. 75-6.
CAPtTULO IV
229
mento e como este, por seu lado, conduz a outras alteragoes nas normas, nos codigos de regras que governam a conduta das pessoas em grupos. E possivel verificar, tambem, com grande nitidez, o caracter ilusorio de qualquer concepgao da sociedade que sugere que regras ou normas possuem um poder proprio, como se fossem algo exterior e separado dos grupos de pessoas, e pudessem servir, enquanto tal, como uma explicagao para o modo como as pessoas se reunem em sociedades. O estudo do desenvolvimento dos «jogos-desporto»6 e, neste ambito, o desenvolvimento das suas regras permitem-nos explorar, dentro de um campo que, comparativamente, se apresenta possivel, a tecnica da pesquisa sociologica para a qual utilizo, como denominate mais adequada, a analise e smtese «configuracionais» e para demonstrar qual e o modo como penso que estas devem ser utilizadas. Em particular, um estudo com estas caracteristicas revela, com muita clareza, um dos factos basicos da estrutura das sociedades em geral, nomeadamente, o de que — em face de condigoes nao humanas inalteraveis — as normas especificas no interior das quais as pessoas se reunem so podem ser explicadas em termos de outras formas especificas de reuniao. J^gjs^ continua a soarjde form^ta^ aquilo que se estuda como «<padr6es sociais>>, ^e, « configurates » sao padroes, estruturas e configurates formadas por seres humanos. Costumes linguisticos e habitos de pensarneritg> levam-nos a falar e a pensar tais padroes como se eles fossem algo exterior e separado das pessoas que os formam. Muitos termos sociologicos padronizados atingiram, e certo, um elevado grau de aplicabilidade em relagao a estruturas observaveis. Entre eles encontra-se o proprio termo de «estrutura». E, contudo, tenho algumas reservas a respeito de expressoes padronizadas como estas que utilizamos quando afirmamos que uma sociedade ou um grupo tern uma estrutura. Pode interpretar-se, facilmente, esta maneira de falar como se traduzisse o facto de o grupo ser alguma coisa separada das pessoas que o constituem. Aquilo a que chamamos «estrutura» nao e, de facto, senao o padrao ou a 6 Nem todos os jogos sao «desportos» e nem todos os desportos sao «jogos». O termo «jogos-desporto» refere-se aqueles — fiitebol, raguebi, tenis, criquete, golfe, etc. — a que ambos os termos se aplicam.
230
ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOLENCIA
configuragao de pessoas individuals interdependentes que constituem o grupo ou, num sentido mais vasto, a sociedade. Aquilo que designamos pelo termo de «estruturas» quando consideramos as pessoas enquanto sociedades nao sao mais do que «configurates» quando as encaramos como individuos. As configuragoes constituem, no estudo dos desportos, o fulcro da investigagao. O desporto — qualquer que seja — e uma actividade de grupo organizada, centrada num confronto entre, pelo menos, duas partes. Exige um certo tipo de esforgo fisico. Realiza-se de acordo com regras conhecidas, que definem os limites da violencia que sao autorizados, incluindo aquelas que definem se a forga fisica pode ser totalmente aplicada. As regras determinam a configuragao inicial dos jogadores e dos seus padroes dinamicos de acordo com o desenrolar da prova. Mas todos os tipos de desportos tern fungoes especificas para os participantes, para os espectadores ou para os respectivos paises em geral. Quando a forma de um desporto fracassa na execugao adequada destas fungoes, as regras podem ser modificadas. Os desportos variam segundo as suas regras e, por esse motivo, os diferentes modelos de pratica ou, por outras palavras, as diferentes configuragoes dos individuos envolvidos, como esta determinado nas respectivas regulamentagoes e organizagoes que controlam o seu cumprimento. O problema e, evidentemente, saber o que\ distingue o tipo ingles de «jogar o jogo» — o tipo de jogos disputados, de regras e de organizagao a que agora nos referimos como «desportos» — dos outros tipos de jogos. Como e que eles se constitufram? Como e que se desenvolveu, no decurso do tempo, o caracter distintivo das regras, das organizagoes, das relagoes, dos 1 grupos de jogadores, no quadro da acgao peculiar dos «desportos»? Como e evidente, este foi um dos processes no decurso do qual se desenvolveram, durante muitas geragoes, estruturas especificas de relagoes de grupos e de actividades por meio da conjugagao das acgoes e dos objectivos de muitos individuos, mesmo que nenhum dos participantes, individuos ou grupos tivesse a intengao ou planeasse a longo termo o resultado da sua acgao. Nestas condigoes, o exame da emergencia dos desportos como um problema meramente historico nao se trata de uma questao sem importancia. Nos livros de historia, a historia dos desportos e apresentada^jrom^frequencia, como series de actividades e decisoes quase acidentais de
CAPfTULO IV
231
algumas pessoas. Aquilo que parece conduzir a forma «final», a forma «amadurecida» do jogo, e colocado em evidencia. O que e diferente ou oposto ao padrao «derradeiro» e muitas vezes abandonado na sombra, como irrevelante. Qsmgjej^a,_o_orescimentajia forma «adulta»_de^um despprto nao pode ser apresentadp^de modo adequado, se for encarado antes, como um emaranhado fortuito de actividades e de decisoes de alguns individuos ou grupos conhecidos. Nem pode ser apresentado de modo adequado, de acordo com o que sugerem as teorias sociologicas correntes, como series de «mudangas sociais». A alteragoes que se podem observar no desenvolvimento de desportos como o criquete e o futebol, assim como a caga a raposa e as corridas de cavalos, possuem nao so um padrao mas uma direcgao proprios. Este e o aspecto da historia dos desportos salientado por quern se refere a ela como um «desenvolvimento». Mas ao utilizar este termo ha que dissocia-lo do seu uso filologico ou metaffsico. O que se entende por desenvolvimento social so pode ser alcangado com a contribuigao de estudos empiricos minuciosos. So pode descobrir-se, neste contexto especifico, se alguem investigar sobre a maneira como a caga a raposa, o boxe, o criquete, o futebol e outros desportos se «desenvolveram» de facto. Utilizei, provisoriamente, e em cita^oes, a expressao forma «amadurecida» ou «derradeira» do jogo. Uma das descobertas feitas no decurso de investigates deste tipo foi a de que um jogo pode atingir, no decurso do seu desenvolvimento, um estadio de equilibrio peculiar. E quando este estadio foi alcangado, a estrutura global do seu desenvolvimento anterior modifica-se. Porque o facto de ter atingido a sua forma «amadurecida», ou aquilo que se Ihe pretenda chamar, nao significa que todo o desenvolvimento termina; significa, apenas, que este encetou um novo estadio. Contudo, nem a existencia deste, nem as suas caracteristicas, nem, sequer, o significado global do seu desenvolvimento social podem ser determinados de qualquer outra maneira, excepto por meio do estudo empirico da propria prova. Por outro lado, o conhecimento preliminar do que se procura ao estudar a historia de um desporto nao e meramente a actividade isolada de individuos ou grupos, nem apenas um numero de mudangas nao padronizadas, mas uma sequencia padronizada de alteragoes na organizagao, nas regras e na configuragao actual do proprio jogo, o qual se orienta, durante um certo perfodo, em direcgao a um estadio especifico de equilibrio de
232
ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOL&NCIA
tensao que, provisoriamente, foi aqui designado por «estadio amadurecido» e cuja natureza tern ainda de ser determinada. Este mesmo conhecimento, utilizado com flexibilidade e, sempre, com a possibilidade da sua insuficiencia no pensamento, pode orientar a selecgao de dados e contribuir para a compreensao das relagoes.
Como afirmamos, um desporto, seja ele qual for, e uma actividade organizada, centrada num confronto entre, pelo menos, duas partes. Exige esforgos fisicos de certo tipo e e disputado de acordo com regras conhecidas, incluindo, onde se revelar apropriado, regras que definem os limites autorizados de for^a fisica. O grupo de participantes e organizado de tal maneira que em cada encontro ocorre um padrao especifico de dinamica de grupo — um padrao que e flexivel, umas vezes mais, outras vezes menos, e, por isso, variavel e, de preferencia, nao inteiramente previsivel no seu curso e nos seus resultados. A configuragao das pessoas em semelhante confronto encontra-se de tal modo planeada que nao so facilita as tensoes como, tambem, as restringe. Na forma amadurecida, integra um complexo de polaridades interdependentes, num estado de equilibrio de tensao instavel, e permite — na melhor das hipoteses — moderar as variaveis que oferecem a todos os contendores oportunidades para levar a melhor, ate que um deles consiga desfazer o equilibrio vencendo o jogo. Uma das caracteristicas de um jogo-desporto no seu estado amadurecido e o facto de o perfodo de tensao nao ser nem demasiado breve, nem demasiado longo. Como os bons vinhos, a maioria dos desportos necessita de muito tempo para evoluir ate esta forma, para crescer ate a maturidade e encontrar a forma optima. E raro — embora tenha acontecido —• inventar-se um jogo-desporto satisfatorio7. Em geral, passaram por um perfodo de ensaio e erro antes de atingirem uma forma que garantisse suficiente tensao por tempo satisfatorio sem favorecer tendencias no sentido do empate. Vitorias precipitadas e repetidos empates podem verificar-se por uma variedade de razoes, algumas das 7
O basquetebol, que, na sua forma inicial, foi inventado pelo Dr. James Naismith de Springfield, Massachusetts, e um exemplo de semelhante jogo.
f
CAPfTULO IV
233
quais, mas nao todas, podem situar-se na construgao do jogo-padrao, da conflguragao e das suas proprias dinamicas. A necessaria tensao da configurable estara ausente se urn dos adversaries se revelar excessivamente superior ao outro em forga e tecnica, porque nesses casos o jogo depressa termina na derrota do lado mais fraco. Se os adversaries estiverem demasiado equilibrados em forga e em habilidade, o confronto pode arrastar-se. Neste caso, e provavel que termine num empate e que a tensao-excitagao nao seja capaz de atingir a tempo a sua libertagao no climax da vitoria. Nestes casos, e a configuragao temporaria dos jogadores, nao a configuragao mais duradoura estabelecida pelo proprio jogo-padrao instituido, que e responsavel por imperfeigoes no complexo de equilfbrio de tensao caracteristico dos jogos-desporto. Noutros casos, as tendencias no sentido de uma vitoria precipitada ou de um empate sao devidas a configuragao instituida pelos jogadores no proprio jogo. No desenvolvimento de um jogo-desporto, pode encontrar-se, com frequencia, um perfodo durante o qual as disposigoes favorecem os atacantes em detrimento dos defesas ou vice-versa. No primeiro caso, os atacantes podem veneer todos os jogos, e demasiado depressa. O batedor medio do wicket* introduziu-se no criquete, como se sabe, quando os boladores desenvolveram uma tecnica que atingia a bola com grande frequencia e, segundo parece, com demasiada facilidade8. No segundo caso, os jogos terminavam muitas vezes em empate9. Assim^proporgag ^ej^uUlbrio_dejt^ensao ejdasudinamicas da configurajao^um Jpgo-desporto depende, entre outras, de fllsposi^oes que garantam aos concorrentes, nao so quando atacam comb quando defendem, oportunidades iguais de vitoria e de derrota. Mas estas nao sao as unicas polaridades de que depende o 8
A questao aqui sublinhada nao e delibitada pelo facto de que tanto batsman {Jogador que, no criquete defende com um bastao, a que se da o nome de bat. (N. da T.)} como bowlers [O langador. (N. da T.)] no criquete e jogos comparaveis, alternarem defesa e ataque, situagoes que dependem, por exemplo, do decurso do jogo e do estadio que nele foi atihgido. 9 Um exemplo disso e a mudanga na lei de «fora de jogo» introduzida no futebol, no ano de 1923. Para uma discussao sobre esta mudanc,a, ver o Cap. VI deste volume. * Wicket e um grupo de tres pequenos paus verticals, ligados por barras horizontals, que se designam por bails, defendido por um jogador — o batsman. (N. da T.)
234
ENSAIO SOBRE 0 DESPORTO E A VIOL&NCIA
equilibrio de tensao do jogo. Se os jogadores nao se controlarem a si proprios o suficiente, estao provavelmente ajnfrio^r^^gHTe a vitoria pode desviar-se para os seus oponentes.e Se se restringirem de mais, Jfaltar-lhes-a o vigor e a energia necessaries para a vitoria.