ARAWETE
os deuses canibais
. . . VENTI. . . FONE/FAX IOSl1 1
coleyao ANTROPOLOGIA SOCIAL I.
Diretor: Gilberta Velho...
34 downloads
1387 Views
21MB Size
Report
This content was uploaded by our users and we assume good faith they have the permission to share this book. If you own the copyright to this book and it is wrongfully on our website, we offer a simple DMCA procedure to remove your content from our site. Start by pressing the button below!
Report copyright / DMCA form
ARAWETE
os deuses canibais
. . . VENTI. . . FONE/FAX IOSl1 1
coleyao ANTROPOLOGIA SOCIAL I.
Diretor: Gilberta Velho
primeira anlIlise eDl social e religiosa dl
contempotineo,
0
19u (Para). 0 autor l !les; aprendendo "'I
de ·seu cotidiano, ~
toes que fUndam a I cial e a oonceP'ili( de seus vizinhos de lingua e geografia. estou sup:m:lo quaisquer inplicac;Oes de orden histOriro-evolutiVa, cx::m da palavra "arcaica" -
arcaica , de fata,
ea
palavra dos
Arawere,
espeeie TaItp)uaJ ll'll:::U
a
usa
palavra
que revela a dife.re.tYj:S. origi.n.3ria e fundadora.
Vma questao, assim,
ressalta de inicio nos -fatos Arawete, e
ela encontra alguma ressonancia no que se pade ler sobre os
de-
mais Tupi-Guarani. Trata-se do que eu chamaria de excesso ou
su-
plementaridade do discurso cosrnologico em rela9ao
a
social. Ou seja: como se pode dar conta da coexistencia, na xis --
.
Arawe'te, de uma organizacrao "frouxamente estruturada" -
praniime-
ro restrito de categorias sociais, ausencia de segmentos au divisoes globais, fraca institucionaliza9ao au formallzacrao das
rela
90es interpessoais, relativa indistin~ao das esferas publica e do
24
L
r
introduc;ao
I
rnestica, POUCOS rnecanisrnos.integrativDs a nivel geral - com
extensa taxonomia do mundo espiritual, mas de dificil principlos homogeneos T uma ativa tidiana,
0
pre5en~a
uma
redu~ao
a
desse mundo na vida co-
papel fundamental dos mortos, e toda uma
orientardi.na:va estreitarrente ao sistema religioso tribal (... ) A predaninfulcia do sistema religioso sabre
sistema
0
organizarorio ... " (Fernandes, 1963: 353, 354).
das consequencias, que a cosmologia
e
parte constitutiva da
trutura social e, no caso em pauta, via inevitavel de aces so trutura. Pois h& que encontrar a problema,
0
es-
a
es
sentido problematico
dessa cosmologia - e, a partir dai, tentar dar conta do
carater
singular, sociologicamente "f1uido", do sistema social. Mas eis que
ha
urn
ll
a 1go", uma forma e urn movimento, urn sen-
tido obscuro mas distinto, que se irnpoem a quem contemple a socie
"'''II • (j(
';:;9
25 e HUlllanidact.
arawete: os deuses canibais
dade
Arawet~,
e que parecem determina-la. Na verdade, tudo se
pa~
sa como se ... ela estivesse submetida a uma dinamica centrifuga, a urn "voltar-se para
0
exter,ior", urn sair de si em dire1j:aO as re-
giees aquem e alem do social - como se alga fundamental se passa~ se ali. Mas em troca, e para isso mesmo, preocupar-se-ia
emdesma~
car suas divisees e articula90es internas - reais ou virtuais - a presentando-se "lisa lt , unida (mas nao em torne de urn centro), homogenea (mas dispersal, igual em todas as partes, como se
monada
flutuante em urn cosmos populoso e acidentado, definido pela
rnult~
intern~
plicidade e abertura. Essa desmarca9aO ou indiferencia1j:ao
contudo, esta sempre a servi1j:o de uma diferen1j:a radical, de urn 1m pulso para fora de si mesma, urna paixao pela exterioridade
que,
malgrado a aparente placidez repetitiva do cotidiano Arawete, creve
0
Dev~r
no cora9ao desta sociedade. Eis assirn que seu
tro" esta fora, sua "identidade" alhures, e que seu Outro nao urn espelho para
0
in~
"cen e
homem, mas urn destino.
Haveria aqui, portanto, uma inversao da representa9ao tradi cional que a antropologia faz da "sociedade primitiva" como
urn
sistema fechado. A visao da sociedade prirnitiva como urn teatro ta xonornico, onde todo ente real au conceitual encontra seu lugar ern urn sistema de classifica1j:ao; onde a ordem do universo reflete ordenarnento social; onde a temporalidade s6 Ihor ser denegada,
pelo mito e
0
e
0
reconhecida para me
rito; onde aquilo que
do como Exterior ao social (Natureza, Sobrenatureza)
e-o
e
defini apenas
para contra-produzir a Sociedade, como urn meio de interioridade e auto-identidade -"esta visao nao se ajusta absolutamente aos Arawete. Nao pela razao obvia que ela nao se ajusta a nenhuma sociedade "real" - sabemos que as sociedades mudam, e que
0
tempo
e
sua pr6pria substancia; sabemos que as classificaqoes sao instru-
26
mentos politicos; e que entre as normas e a pratica deve haver urn
descolamento, au a vida social seria entediante e/ou impassivel -
mas porque os Arawete tendem para Dutra
dire~ao.
Para usarmos uma
alegoria rnoderna, diria que a cosmologia Arawete e suas simi lares
sao mals parecidas com as nossos "buracos brancos" cosmologicos
que com as "buracos negros", no que estes ultimos me trazem
I
a men
te a representaerao corrente do "ser da sociedade primitiva". Devo dizer que acredito, de fatal que muitas cosmologias prirnitivas se aproximarn dessa representaerao tradicional, e que rnuitas
socieda-
des se esforerarn para· perrnanecer, ern sentido nao-trivial, identi cas a s1 mesrnas e co-extensivas ao cosmos.
Para
que sejam capazes de introjetar e domesticar a te artifipios que a colocam a
servi~o
e
iS50,
preciso
diferen~a,
median-
da identidade - onde
0
opor
,
e a condi~ao do pori onde 0 dividir e preparar uma slntese; onde l o excluir
e
criar uma interioridade. Isto pode ser chamado
dialetica, e isto parece ser a regra, no que concerne
•
a
de
forma~ao
da consciencia social e ao funcionamento da maquina da cultura . A essassociedadessem exterior, que lutam para conjurar congelar 0 devir, enquanto podem, contraponho a que
e
uma saciedade_ sem interior - ou,
Arawete,
para dize-lo menos brusco,
uma sociedade cuja
dinamica dissolve aquelas
comuns no discurso
sociologico:
interior e exterior, centro,
gens e fronteiras,
limen, etc.
Aqui, nos movemos numa especie de
espa~o
•
soc~edade
e
metaforas
espaciais mar
social nao-euclideano.
Tudo se passa, ern surna, como se -a "simplicidade"
,_. --.
Arawete
'-
ma5carasse uma complexidade de outra erdem - nao em extensao composi~ao,
diriamos, mas em intensidade. E Verern05 que
Tupi-Guarani de
(des-)constru~ao
da Pessoa segue a rnesma
cia "nao-euclideana": nae 5e trata do jogo especular de
0
eu
metoda tendenreflexes
27
r
l arawet~:
I
os deuses canibais
e inversoes entre Bu e Outro, com sua pulsao impllcita de
sime-
tria geometrica e estabilidade de forma, mas de urn processo
de
deformac;ao topologi'ca continua, oode Eu e Outro, Ego e Inimigo o vivo e
morte,
0
0
homern e
deus,
0
devorado e
0
0
devorador, es-
tao entrela~ados - aquem ou alem da Representac;ao, da substitul -
c;ao rnetaforica e da oposic;ao complementar. Moverno-nos ern urn verso oode
0
Devir
e
uni-
anterior ao Ser, e a ele insubmisso.
Tentarei mostrar, nas paginas que seguem, que 0 complexQ de
rela90es entre as humanos e as deuses
e
a estrada real -para a corn
e
preensao da sDciedade Arawete. Em tal complexo, a Marte tecirnento produtivo. Ela nao
e
0 acon-
apenas urn momento estrategico
que se pode ana1isar a Pessoa ern seus cornponentes: e1a ern que a Pessoa Arawete se rea1iza -
e
a
sintese disjuntiva.
em 1ugar
Verernos
que aqui tambem)o como para as sociedades Je, as "mortos sao tros"
(Carneiro da Cunha, 1978), e -que a morte e
espa~o
giado de reflexao ativa sabre a alteridade. Apenas, a vivos/mortos nao pode, para oposi~ao
05
oposi~ao
ou-
privi1e diferen~a
Tupi-Guarani, ser concebida
sLmples, formal ou real. Essa diferen~a
paradigma da
e
como
irredutive1 ao
fonologica au ao "trabalho do negativo".
da vida como negat~vidade. E, se a dupla nega~ao parece ser 0 todo de posi9aa da Pessoa Je, os Tupi-Guarani arriscam uma afirmayao: iS50 e aquila,
Ha
paradoxal porque nao implica uma visao
urna positividade da morte,
(3)
0
vivo e
0
morto, a eu e
caro ja entrevira P.Clastres (l974: cap. 9) , para os
0
me-
dupla
outra 3 .
A
Guararti. Ver-se-a que ~
oolho ern parte as cx:>nsider~s de P.Clastres sabre a "ser da sociedade primitiva", especial.rrente aqlJelas alinhadas em SellS UltiJros trabalhos (1980:cap.ll),
sabre a guerra. Afasto-ITE delas, no entante, no que elas i..Irplicam uma rretafis.! ca da Sociedade desoonhecern
0
<Xm:)
Sujeito Absolute, interioridade auto-identica, e no
problema. essencial, a saber: a atitude diferencial face
re.nc;:a, dentro desse universo vago da "sociedade primit iva 11 •
28
I
que
a dife
-
introduc;ao
,
e dialetica. aos Je nao e fortuita;
sociedade Arawete nao
I,
A referencia
ela sera, ao 10Dgo des-
te trabalho, exemplar, mesmo quando implicita. do fato - que tarnpouco
e
Aproveitando-nos sociedades
fortuito - de estarem estas
entre as mais bem descritas, etnografica e teoricamente, da etno-
10g1a suI-americana, iremos utiliza-las como marco de constante para construir e delimitar
0
modelo da Pessoa e da so -
cledade Arawete (Tupi-Guarani). Conforrne se vera, as
Je
e Tupi-Guarani parecern estar em
contraste
opo5i~ao
sociedades
polar, ao longo de urn
continuum virtual das diversas forma~oes socio-culturais dos
vos sul-americanos, para as variaveis - note-se bern - que
po-
decidi
4
privilegiar ern meu trabalho • (4) A posiqao da cosrologia Beraro
e rnais
a::rrplexa, e crucial, neste cx:>ntraste.
urn e~ialista nesse grupo, os Je aparecan ironicanente caro una "ananorfose" 'sinplificadora do intrincado sistema scx;ial Bororo (Crocker, 1979:
Se, para
249), a mi.m
Ire
pareceria que, em teDTos de urna op::>siyao ideal entre, diganos ,
os Timbira e os Guarani, os Beraro ocupam uma fOsiyao int.emedi.ariai nao .'
en-
quanto ma.terializarrlo urn. cx:::itpranisso, mutuarrente enfra::jUeCedor, entre os m:::delos
Je
e TG (tal seria mais l::en 0 caso des Tapirape, urn "hibrido" real de ori-
gen 'fupi-Guarani e influencias centro-brasileiras evidentes), mas o::m::>
que
sanando as carplexidades PrOprias a cada rrodelo. A ide.ia dos Bororo o::m::> reali
zando uma transi9°O entre os Je e os Tupi ja foi, aliiLs, aventada FOr
Levi-
Strauss (1964,151; 1971,546,551), em tenros de mito-10gica, e explicada even-
tua..1nente fOr contigilidades geograIicas. Sinplifioo excessivarrente uma questB:o que
SE.:,
a retanada
ao final do trabal..h:> i e rresno 1ii con cautela.
Seguindo uma
inspira~ao
distancia maxima - no
estruturalista,
justamente
interior de urn conjunto vaga,
sistencia historico-cultural ja (1964:16-7) no dominio da
Je
e
mas cuja
foi demenstrada per
rnitologia - que torna
essa con
Levi-Strauss
as liyoes do caso
valiosas para a compreensao dos Tupi-Guarani. "S oc iedades dia'leticas" se asha (Maybury-Lewis
~i":_:~; 1979),
29
arawete: os deuses canibais
e
entre os Je-Bororo
principios de
que encontramos
oposi~ao
~
complementar de
valores cosmologicos, de
representa~ao
desenvolvimento maximo dos categorias sociais
oposi~oes
que se
entrecortam~
de
de segmentos sociais
bais mediante elementos que Ihes sao exteriores, de de
e
glo-
mUltiplica~ao
onde, igualmente, a Pessoa
e
sada e construida como uma figura dual, sintese delicada entre
pe~ N~
tureza e Cultura, Devir e Ser, individuo e personagem, cuja existencia depende de sua
articula~ao
a mascaras simetricas, anti-eus
que Ihe estao ligados pelas praticas de lizada e rituais de
"impersona~ao"
nomina~ao,
amizade fqrma-
mortuaria. Sociedades onde tu-
do significa: da geografia ao corpo,
0 socius
inscreve
seus
principios no universo. Os Je sao justarnente famosos por sua cornplexidade e conservadorisrno sociologicos, e por serem as
povos
mais bern estudados do Brasil; foram 0 ponto de partida do traba lha de Levi-Strauss sabre as mitologias americanas, e parecem ser urn dos casas mais fortes em favor da antropologia estrutural. Nenhum dos atributas acima, infelizrnente, aplica-se aos Tupi-Guaran1. Se comparados as propriedades cristalinas das saciedades Je,os Tupi-Guarani evocarn certarnente a natureza de carpos amorfos, vens,
fuma~a,
ern sua
arganiza~ao
nu-
social frouxa e casual, sua
au-
sencia de fronteiras conceituais claras entre os dominios do cosmos, sua fragi11dade ao contato corn a sociedade ocidental
(mais
em aparencia que em essencia), sua plasticidade, e seu estilo extra-mundane eu "mist1co" de pensamento.
Je
Como disse antes, nao creia ser acidental 0 fato des rem despertado tanto interesse. Seu dualismo onipresente,
0
t~
alto'
grau de redundancia que apresentam entre diferentes dominies
da
vida social, sua intrincada dialetica de Natureza e Cultura,
ser
e nao-ser - tudo isso as torna nao so ideais para a opera9ao es -
30
inllo
truturalista, como gia ocidental.
05
epistemol~
aproxima de figuras classicas da
A complexidade dos
Je
seria, par assim dizer,
miliar; tal nao se da com a simplicidade dos Tupi-Guarani, peito dos esfor90s dos jesuitas para ler as cosmologias
fa
a des Guarani
como lim rnisticisrno cristao avant 13 lettre. Nao sou
0
primeiro a constatar e a inquirir
Je
tente entre as formas socia-culturais
e TG, tanto
mais eviden
te ~to estes pavos tern uma 10nga historia de cantatas, 9ao ecologica e guerra.
Mas
plificayoes: seja cegueira
as
ha
que
competl
qualificar, sob pena de sim
0
profundas
diferen~as
internas a
da conjunto, seja reducionismo ingenue que faz coincidir
desconsidera~ao
cUltural
de muitas ou
tras cosmologies sul-americanas ja estudadas, e que deixam ver a vasto sistema de
transforma~oes
ca
lingua
e cultura (e que ignora, no minime, a intensa dinamica da pre-historia do centinente), seja
p~
contraste
0
entre
subjacente a este universe:
Jes, Tupis, Tukanos, Yanomamis, Caribes, -Xinguanos ... seja em que nivel ,for, as unidades sociolagicas, ling"Uisticas
ou
culturais
do continente cada vez mais se mostram como incidencias loeais
e
variantes combinatarias de uma estrutura que, sobre operar com urn me sma repertorio simbalieo, articula questoes.
mesmas
Levi-Strauss ja nos mastrou isso nas Mythologiques.
Assim, certamente este nao pertinente.
difereneialmente as
Mas tambem
e
e
0
unico
contraste
irnportante notar que os
valor estrategico para uma tentativa de
compara~ao
Je
possivel ou apresentam
sociologica
a
nivel continental - que e1es sao urn "elemento pivotal" na historia da America do SuI (L.-strauss, 1958:cap.VI; 1964: 17) -,
e
isso
pode ser testemunhado pelo lugar de destaque que ocupam nas sinte ses mais recentes (Kaplan 1981a,1981b,1984; Riviere 1984: cap.8). Para todo estudioso de etnologia suI-americana sera facil constatar
31
arawet~:
as
os deuses canibais
semelhan~as
de fundo e forma entre
o~
Arawete e
aquelas socie
dades minimalistas, ideologicamente endogamas (literal e
metafor~
camente.), afirmadoras de uma indiferencra interna ativa, que serv.:!:. ram de base para tais sinteses 5 . Igualmente facil, entao, sera peE
(5) Care os Piaroa (Kaplan, 1975) e os Trio (Riviere, 1969) do norte amazonico.
ceber porque a fei~ao cristalina e a tersa dialetica institucional -da forma
Je
pr~
serve COmo urn anti-analogon heuristico e poe urn
blema teorico. Pois se a diferencra Je/TG
e
interior de urn espa90 comUm, nao
interessante, e que ela se da no
e
pura heterogeneidade.
Aquila
que Heritier chama de "simbolica elementar do identico e do
dife
rente" (1979:217), pela qual uma sociedade poe 05 parametros sua
auto-concep9~0,
utiliza ca e la os mesmos materiais: mas para
urn outro jogo, com outras regras, e resultados que,
filosbficarne~
te, divergem ao. maximo. por iS50 questionamos a ideia de que te uma
~
de
filosofia social sob todas as cosmologias
eXi~
sul-ameri
canas, para a qual identidade e seguran9a mas impossibilidade, di feren9a
e
perigo mas necessidade; e que entao, au se introjeta
domestica a diferenya (Je), ou se a bane e denega (norte CO) - como formula J.Overing (Kaplan 1981b).
e
amazoni
Vereroos como 0 cani
balismo divido Arawete complica essa questao essencial: a das for mas diferenciais de pensar 0 fato da diferen9a.
2.
° PERCURSO,
SINOPSE
Este -trabalho se divide em tres partes. das condi90es de trabalho de campo
32
Apos uma
exposi9ao
entre os Arawete, e das
que~
introduqao
toes que ali me surgiram (Cap. I, §3)
1
0 capitulo II
~az
uma bre-
ve recensao do estado atual da etnologia Tupi-Guarani, e identifi Ca urn conjunto de questoes a serem enfrentadas. Neste ainda, urn cornentario sabre algumas
no~oes
capitulo,
teoricas utilizadas.
A segunda parte (capitulos III, IV, V)
e
uma etnografia dos
Arawete. Decidi apresentar uma descri~ao dos Arawete que,
mesmo
precaria, excede bastante a necessidade de acurnula~ao
fatos
de
para a fundarnenta9ao das hipoteses principais deste trabalho.
0
que naD quer dizer que ela seja suficiente para IIprovar" tais hipoteses. Nao so estas ultimas se apoiam largamente em etnografias outras, como exigiriam ainda mais estudbs sabre os Arawete,
para
se consolidarem. Embora talvez nao seja proprio de se 0 dizer
de
uma tese de doutorado, considero esta uma sintese provisoria,
no
meio de urn percurso a prosseguir. Pretendovoltar aas Arawete. Mas, enquanto issb, apresento uma descri~ao de sua sociedade, que
e
a parte central e mais extensa da tese. Fi-lo, em
pri-
meiro lugar, porque Os Arawete sao praticamente ineditos na
bi-
bliografia sul-americana; contribuo, portanto, para 0 aumento corpus etnografico Tupi-Guarani. Em segundo lugar, para
permitir
eventuais leituras divergentes das questoes que tematizo, sabendo do carater ilusorio da neutralidade dos "fatos", limita~oes de minha competencia como etnografo,
pouea tempo de campo, e te. 0 capitulo III apresenta~ao
e
0
do
meSmo e
agravadas
das pelo
carater recente do "cantato" dos Arawe-
uma localiza~ao historico-geografica e
etnografica dos Arawete. 0 capitulo IV
e
uma
uma descri-
9ao da eosmologia do grupo, e uma tentativa de defini9ao-tradu~ao de alguns conceitos basicos, como M~f.J bfd~.J awI:
"deus", "ser hu
mano", "inimigo". Inverti a ordem tradicional das monografias, em que a "religiao"
e
posta depois da "organizay3.0 social" ,exatarrente po~
33
arawete: os deuses canibais
que essa e a ordem de entendimento da sociedade Arawete:
que es
0
ta fora dela e que a ordena e orienta, e vern assim em prirneiro lu gar. o capitulo V
e
uma
descri~ao
organiza~ao
da morfologia e
so
cial. Ernbora extensa, esta e uma parte que poderia ser mais detalhada; questoes cruciais,
como
0
pareritesco,
forarn tratadas
algo
superficialmente, por problemas de tempo ede espa~o - reservo-me outra oportunidade para explora-las melhor. 0 objetiva aqui esbo~ar
os
wete:
cicIo do xamanisma alimentar, as festas do cauirn, a opos!
0
~itmos
foi
e principios basicos da vida e da ideologia Ara
9ao mata/aldeia, as valores sirnbolicos das substancias "metafisicas" (cauirn, mel, semen, etc.), as categorias de
rela~ao
social.
A terceira parte come9a com urn. capitulo em que se descrevem e analisam as canceP90es Arawete sabre a morte e
destino da
0
pe~
soa; em que se faz uma cons!dera~ao sabre a xamanismo e ~ guerra, que envalve urn cantraste entre dais generos musicais, a
"musica
dos inimigos" e a "rnusica dos deuses". Retomando, por fim, a cosmologia esbo9ada no capitulo IV, ali procuro inserir, a partir da marte, a pessoa Arawete, interpretando-a como elernento paradoxal, .ponto aleatorio ou intercalar, articulador das series cosmica
e
sociologica. Em conclusao, proponh~ uma primeira i~terpreta9ao do significado do canibalismo divino Arawete. Este e a capitulo VII, te
por
fim,
0
procura dispor
sistematicame~
xamanismo e
a
guerra ern uma serie cornparativa, buscando as constantes e as
va-
0
discurso Arawete sobre a marte, as almas,
capitulo VI.
0
ria90es dentro do universo Tupi-Guarani. Ali se discutira
0
tema
do. canibalismo, em torno do caso Tupinamba, examinando-se as in ,... terpreta~oes
disponiveis, aproxirnapdo-o de outros fenomenos, como
o profetisrno, e considerando as vias de ascese e do excesso
den-
introduQao
tro das cosmologias Tupi-Guarani. Por fim, faremos uma caracterl-
ZayaO abstrata da
cosmologia TG face
e Qutros - alern de
neses,
cia1 atenyao para tidade
Je
e
0
Urn
breve
Gui~
aos rnodelos Je-Bororo.
esp~
excurso pela Grecia - Com
contraste entre a dialetica especular da iden
"Cogito canibal" TG.
0
Os materials etnograficos Tupi-Guaranl serao usados de dt minha
versas maneiras, ao lango do trabalho. Em primeiro lugar, tentativa de identificayao
~
caracterizayao dos Arawete, dentro
dos Tupi-Guarani, levou-me ao estabelecirnento de aproximayoes tantivas de rneusdados corn as alheios, e ses e slnteses
ra consolidar
esquematicas esparsas.
urn modele cosmologico TG,
a
I
~
hip6t~
formulayao de
procur~
No capItulo VII se
a partir do sistema da a1
ma, nome, marte, canibalismo, canto: e generalizayoes finals. Por fim, uma palavra sabre
0
abuso do registro de termos em
Arawete. Ele nao traduz ~ false cuidado pedante com a "traduyao", mas procura servir aos pesquisadores de outros grupos TG, linguistas, sejam antrop51ogos, que possam usa-los
sejam
comparativame~
te. 0 deslizamento de significados dentro do universa lexical pi-Guarani
e
Tu
um tema. que me intriqa e fascina, e sou grato aque -
les estudiosos como Cadogan e Nimuendaju, que permitiram
0
acesso
ao vocabu1ario Guarani.
3. APROXlMAr;l\O AOS ARAWETE
Estes sao os costumes de mais notar desta gente do Brasil, "que para 8e fazer relavQo miudamente de todos era necessario urn livro mui grande. (Anchieta)
Passei pouco tempo entre os Arawete - onze meses, distribu! dos entre maio-julho de 1981; feverelra-abri1, junha-setembro, de
35
r
•
arawete: os deuses canibais
zembro de 1982; janeiro de 1983. Deixei, portanto, de
acompanhar
as meses de outubro e novernbro do cicIo anual - que reconstruI
a
partir de narrativas, quando de rninha ultima fase de campo.
Apos
tres curtas experienclas de pesquisa entre grupos indi
genas - Yawalaplti, Kulina, Yanomarni - que, por diversos motivQs, nao tiveram continuidade, comecei a vol tar rneu interesse para
as
pavos Tupi-Guarani. A irnpressao geral que me causava a literatura etnologica neSS3 area era arnb!gua (ver CapItulo II). Se 0 rial "classica ll
-
mate-
Tupinamba, Guarani - parecia-me sugerir uma com
plexidade ainda nao analisada, e irredutlvel
a
dos sistemas
so-
ciais e simbolicos Je, Boraro, Tukano, xlnguano e outros, que nas ultimas decadas foram
0
terreno privilegiado de estudos in situ ,
as monografias sobre povos Tupi-Guarani contemporaneos, em contra partida, me desanimavam. Marcadas, em sua grande maioria,
pela
problematica da "aculturac;ao",i nelas 0 presente etnografico passava de urn mOmenta instavel entre urn passado remota de
nao
plenit~
de socia-cUltural, de recanstruc;ao aventurosa, e urn futuro proximo e inevitavel de perda, desagregac;a~ ou desaparecimento. Assirn, a quadro que emergia era urn de sistemas sociais simples ou simpl! ficados,
cnde as baixas demograficas geravam urn nao-funcionamen-
to generalizado, urna adaptac;ao emergencial em que so subsistiam , fragmentariamente, os temas comuns a quase todas as sul-americanas - peda90s do couvade, a familia extensa,
sociedades
-rande cicIo dos gemeos miticos, 0
a
xamanismo ... Parecia impossivel sa
ber, em suma, se a impressao de superficialidade provocada
pela
Ieitura desses trabalhos se devia a urn ponto de vista teorico dos autores, a situac;ao atual dos povos estudados, au se, afinal,
as
Tupi-Guarani nao eram mesmo muito "interessantes" ... -Acrescente-se que, a partir da decada de 60, os Tupi-Guara-
36
\
$
introduq~o
nl praticamente saem da cena etnologica ever Melatti, 1983, e infra). Os trabalhos realizados e pUblicados a partir de entao,
a-
lern de estarem fora da corrente principal das discussoes, naD
ch~
gavam a delinear clararnente uma problematica Tupi-Guarani,
que
pudesse ser contrastada com os rnodelos construidos para
Qutros
sistemas socials 5ul-americanos. Tuda levava a crer, enfim,
que
05 Tupi-Guarani erammesrno pavos do passado, dominados pela
som-
bra gloriosa dos Tupinamba, e reduzidos ao papel de exemplos
nOs
livros-texto de antropologia, ou ao de sirnbolos arcaicos do Irnagi
naria nacional. corne~a-sea
assistir '
a uma retornada do interesse nas sociedades Tupi-Guarani,
dentro
Desde meados da decada dos 70, porem,
de uma expansao geral das pesquisasantropologicas de campo. A relativa maturidade da etnologia brasileira, sobretudo a partir
do
estabelecimento de urn alto padrao descritivo e interpretativo pa-
,
ra as sociedades do Brasil Central, tornava legitimo e necessario urn re-exame de sistemas sociais "marginalizados ll , . como os dos Tupi-Guarani. ~
neste contexto que se situam minha escolha dos Arawete, e
esta tese. Havendo detectado urna lacuna na etnologia sul-americana, e tendo percebido, nA':,des sabre
E:.
gra~as
a uma leitura dos livros deF.Fer -
guerra Tupinamba e do ensaio de H. Clastres
o profetismo tl'upi-Guarani,
q ~__ ~ingu~~_~
canceprrecerrlo as tacitun"Ds, os avaros e os neurastenioos ... "
(Lfu:y, 1972: 122). E eu pude observar, de fate, que uma das coisas que
mais
surpreerrli.a as Arawew, no cx::rrp:>rtarrento dos branoos, eram as flu~
aru..no
e .humor, sem ram aparente. A tristeza e a "seriedade ll
sao
e urn eufemisrro
lutarrente negativos, em gera1. "N30 tir" (pik~ i'l
de
valores abso
para
0 ~
e a J'1CXi=ao de alegria (tori) tern una ressonancia filosOfica pronmda. Em Gutras
Unguas TG, as oognatos de tori:.. designam a atividade ritual (ef. tOftp) I a b::>a ordem do rmmdo. A
Ka.nE:yura
q:osic;ao etica central na sociedade Arawete C2.
loca, de urn lado, a alegria-tori, de outro a raiva (ho 'i1"~). A priJreira define as rela
diferenya das fonPaS de pmsar a
difer~,
a
creio nee-
ja
dis-
expressa aciroa
introdu~ao
=
que escapa ao ITOdelo generalizante de P. Clastres. Kaplan (1984) lTDstra a sociedad.e Piaroa se incluiria na segunda forma;
nao
as dais "UIX>s" caro realizarrlo PJr meios cp:Jstos
0 ~
o fate irnpensavel e indispenseWel da
dif~,
obstante, ela oonsidera I objeti:va:
oonjurar
da e.xistencia real dos
outros
- animais, afins, i.nim.igos, 1OCl:rtos. Uns introjetarn e da:resticam; outros expulsam e deneg"arn. penso que h3. urra terceira saida.
Uma vez que as sociedades do primeiro "tipo" sao
aquelas que~
que mais imediatamente se prestam ao olhar antropologico, a
tao esta em equa~ionar, inicialmente, a especificidade das outras, dire~ao
as que tomam a Iher entre duas
esc~
oposta. Tratar-se-ia, por exempla, de
forrnula~oes,
ambas negativas: sociedades como
Arawete nao se caracterizam pela
presen~a
a
de segmentos, metades
classes de idade, rituais elaborados, sistemas de troca matrirno -
01a1 estavel,
e
classifica~oe5
refinadas, etc. -
OU
0 que as carac-
a ausencia de tais tra~os? A segunda formula~ao,
embora
ainda negativa, implica uma positividade que nos incita a
olhar
teriza
alhures, e a buscar razoes. Antes contudo que eu
corne~asse
nao me restava, no campo, senao a
esbo~ar
a
constata~ao
as questoes acima, desanirna?ora de que
os Arawete "nao tinham" uma porc;ao daquelas coisas que despertam' o interesse profissional do antropologo. Tal inventario das indiferen~as,
rna de
ou lista de ausencias, incluiria: nenhuma regra ou for-
eVita~ao
de
nomina~ao;
em
mudan~as
ca~ao
de afins; baixo rendimento estrutural do sistema
ausencia de cerimonias de
inicia~ao,
pouca
I
enfase
no ciCio de vida; simplicidade dos funerais, nao-mar
do luto e de seu termino; divisao do trabalho fluida; sim -
plicidade dos sistemas de
presta~ao
e
contra-presta~ao
cerimo-
niais ou profanos; morfologia espacial aparentemente caotica; padrao cerimonial simplificadoi repertorio minimo de papeis ciais; e, naturalmente, ausencia de qualquer
segmenta~ao
lli~
sc-
global .
47
.
, ,
arawete: os deuses canibais
outros
Se algumas dessas ausencias recorrernlem Qutras povos TG,
aspectos vaa, em contrapartida, receber consideravel elabora9ao . Some-se a iS50, por fim, uma cultura material bastante
simples,
tecnologica e esteticamente, e uma agricultura "rudirnentar"
para
os padroes TG.
A violenta
depopula~ao
sofrida pelos Arawete nos anos
de
1976-77, e, sobretudo, uma long a historia de transum~ncia e deslo camentos for9ados, devido
a
\
pressao de levas sucessiv~s de invaso
res, nao podern ser superficialmente descartadas, no explicar essa
simplicidade do sistema social Arawete. Contudo, quero crer
que
elas sao mais irnportantes no que tange aos aspectos tecno-econorn! cos. Nada nos autoriza a postular que, em algum hipotetico (e remoto) per1odo de "paz" e isolamento territorial, a sociedadde Ara wete dispusesse de urn sistema social ·e cerimonial rnais diferencia do que
0
atual. Note-se porern que a redu~ao demografica, e a con-
centra~ao
recente da tribo ern urna so aldeia, modificaram
padroes basicos - vista que anteriores era
0
0
alguns
modus vivendi na decada de 1960
e
da ocupa9ao de urn vasto territorio por pequenos'
grupos locais, ligados por casamento e
alian~a
guerreira,
tando-se mutuamente no tempo das festas do cauim (uma
freque~
morfologia
tipica da floresta tropical). Minha opiniao
e
que os mecanismos de produ¥ao e
reprodu~ao'
da sociedade Arawete nunca depenqeram de urn grande efetivo cional - e isto se estende aos demais Tupi-Guarani, com a exce~ao
0
obvia
da gigantesca maquina de guerra Tupinamba. Do ponto
vista da infra-estrutura, duz
popu1~
e
de
a agricultura do milho que causa, pr£
agregado aldeao; na super-estrutura,
e
0
xamanisrno que, co-
rno institui9ao central dessa saciedade, garante sua integra9ao reprodu9ao simbolica.
48
a milho e
0
xama sao os pilares do
e
mundo
introdm;ao
Arawete; uma r09a de roilhae urn xama bastam para definir uma
a1-
deia, e urn horizonte de Vida. Os Arawete explicam sua busca
de
as
cantata com os brancos, em 1976, quando fugiram em dire9aO
mar
gens do Xingu, pelo fato de nao mais poderern plantar rnilho
em
terras infestadas de inimigos. ltEstavamos cansados. de comer sO car ne" - diziam-me. Quando ao xarnanismo, ernbora eu nao saiba de nhum momento na historia Arawete ern que eles estivessem
ne-
privados
dessa institui930, ficara claro adiante de que modo 0 xama encarna e garante a unidade do grupo local
(12) OS exernplos dessa
fun de tuna
•
erninente e sobredetenninada do xamani.SITO abundarn
na literatura'l\Jpi-GJarani. tlre
remanescentes em
12
so - nae pela
red~ao
tres
(1976:456) sebre
aldeias e a concen~o
dentXjrafica,
os
CXXlO
dos
mas p::Jr nao nais haver
xam.is la - 12 espec:ialJrente interessante, uma. vez que os Tapirape desenvolveram uma organiza~ cerirronial de feiyao centro-brasilei.ra, a qual irrpu:nha urn efetivo populacional mais elevado que 0 usual nas SOC'iedades anazanicas (Wagley 1977:32, 39). No entanto, e ccmJ
a falta
de
xama.s,
na:, de gente, que eles reo:>rriarn
explica~. A .. ttiparti~ funcional" Tupi-GJarani - chefe,
xana,
guerre!
ro - sera examinada no capitulo VII.
Assirn, havia que enfrentar a simplicidade Arawete em toda a sua cemplexidade, sern recorrer a- hipoteses de simplificaqao por depopula9ao ou regressao. Mesmo que algo nesse sentido se tenha e fetivamente verificado, tal hipotese nao e, nem necessaria,
nem
interessante; havia que achar uma exp1ica930 Tupi-Guarani parauma sociedade TG, e nao recorrer aos percal90s imaginarios da histo ria ou da ecologia. E era precise olhar na dire9ao certa, ver que interessava aOs Arawete, seguindo
0
0
conselho sensato de Evan~
-Pritchard (1978: apendice IV): a que, para e1es, correspondia ao gada Nuer,
a
bruxaria Azande, aos nomes e ao dualismo
Je?
Nao me refiro aqui, apenas, aos topicos substantivos
que
49
...
---
'"
r arawete: os deuses canibais
dominavarn a disCUISO cotidiano Arawete. Esses, eram mals ou menos as que sernpre interessaram
comida,
0
as homens, de toda epoca e lugar:
sexo, a marte, as deuses 13 • Mas sobretudo
(13) A etnograf1a Arawete
segu1ra,
mas, ITD8tl:ando a1nda
os deuses (capl tulos rv e VI)
~ des
versais,
CClTO
a tarefa
de
ma1s au monos nesta orden, esses neSllOS te-
sao 0
cperador da
tres outros (cap. V § 1-3, § 4; cap. VI). se esses terras
e porque
a
sao
ali:!
uni -
se referem aos processes em que a SOCiedade se cxmfronta cxm
seus lirn1tes rea1s de ex1steneia e reproc1usanente fOr nones de rrortos,
o::mfo~
I
invisivel: as
parou, dizendo: "muitos, roui tos sao nos 50S mortos ... " 15 .
(15) l\s duas linbas verticais, parale1as,
i'
vao crescendJ,
vao
vaSenoo
apresenter::; ?crrti culari.da-
55
I I
arawete: as deuses canibais
005
~
os rerord3m. Creio que eu estava nesse case, quando
Ire
carparavam aos
rrortos, e oonfonrerrente iam-rre o::mferincb "apelidos".
ossos esquecem", "so os ossos esquecern", quando algum vivente
a-
lega ter esquecido algo, algum fato de sua propria historia
pes-
50al. A memoria dos mortos e "curta", portanto. No Capitulo
VI
tentaremos entender essa frase; ela encerra uma verdade e uma men tira, e oculta urn desejo dos vivos. A principio, eu achava que tos - que nao e a urn "culto"
venera~ao,
0
interesse Arawete pelos
mor-
temor, e nao constitui nada semelhante
(pois se imitam os mortos, ri-se deles, fala-se
les antes como ausentes que como mortos) - seria urna
de-
Ilforma~ao
sessional" ligada ao trauma do contata, quando em dois anos ter~o
ob urn
da popula~ao morreu. Os anos de 76-77 sao lernbrados
corn
tristeza e angustia - e frequentemente evocados. Mas a experien cia de ver desaparecer
familias inteiras, de se perderem
todos
os parentes proximos, de ter de se dispersar, esconder-se na mata - tudo i550 parece ter feito parte da vida Arawete desde muito an tes dos anos do contato. Cerca de 35 por cento dos obitos nas ultirnas 4
gera~oes
(inclusive ados adultos atuais) se deve a assaI
tos de inimigos: Kayapo, Parakana,
Kamar~
(brancos). A
Arawete e urn movirnento incessante de fuga e dispersao, e de guerra parece ter sido a regra e
0
historia 0
costume, desde ha muito.
Mas nao se trata apenas de uma familiaridade com a violenta. Os mortos povoam a discurso cotidiano, a his tori a geografia do grupo. A morte e to,
0
estado
morte e
a
acontecimento que poe ern movirnen-
literalmente, a sociedade e a Pessoa Arawete. Durante minha estadia, Tatoaw!-hi, urna mulher de meia-idade,
mae de varios filhos, rnorreu de pneumonia. Quatro crian9as de co10 morreram, ao lange de 1982, da mesrna causa. A primeira morte ,
L
introduqao
no auge da epidemia de gripe, mergulhou a todos em profunda consterna~ao~
apenas 0 estado geral de fraqueza, bern como a
chegada
do encarregado do Posto trazendo as primeiras trinta espingardas
l
recebidas pelos Arawete, impediram a dispersao da aldeia na mata, como e
0
costume apos a mOrte de urn adulto. Esse evento nao so in
tensificou a presen9a da morte no discurso cotidiano, como pas em cena
t~ro
0
we,
0
ternido espectro terrestre dos recem-falecidos.
Adianto que a importancia da.rnorte e dos mortos nao signif!
e
ca que as Arawete jem realmente
0
preciso dize-lo? -
"desejem" a marte, inve-
destino dos mortos, ou qualquer coisa semelhante;
eles nada tern de morbidos, e ademais, como vimos, lamentarn as mor tos, nao os
.
V1VOS
17
Q7) Nao M. aqui, PJrtanto, nenhuma "tanatanania" ou Uresejo profl.mdanente re-
ligiose de lTDrrer" -- o::rro disse Sd1aden (1962:133) cbs Guarani, mas nao a essa "arrbivalencia" 'IG. Dutra coisa a fazer diante CIa ~ e